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PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
FINALIDADE CONSERVATÓRIA
Sumário
Não se verifica um erro na forma de processo (procedimento cautelar em vez de acção comum) se numa providência cautelar comum o requerente pede que seja decidida a sua manutenção num grupo até uma certa data, em vez de pedir essa manutenção provisoriamente ou até que, na acção definitiva, lhe seja reconhecido, ou não, esse direito.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A 24/06/2024, F intentou, num Julgado de Paz, contra R- Unipessoal Lda., um procedimento cautelar inominado, requerendo que,sem audiência prévia da ré, fosse “determina[da] judicialmente a manutenção (ou reposição) da requerente como membro do grupo BP primeiramente até 31/07/2024 e, inclusive, até 31/07/2025, com todos os direitos associados à qualidade de membro BP, designadamente ao direito de participar semanalmente nas reuniões do grupo BP (realizadas e a realizar no Funchal) para nelas dar e receber referências de negócios, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências”; atribuiu ao procedimento o valor de 13.029€. Alega para tanto, em síntese, que tornou-se cliente da requerida pagando uma taxa de adesão e uma anuidade; a requerida é uma franchisada de um negócio designado por B; a requerente tornou-se membro do BP em Maio de 2024 e já era membro do BC; em 07/06/2024 recebeu um email da vice-presidente do BC a decidir que a requerente ficava, a partir de então, inibida de visitar o BC nas suas reuniões ou eventos especiais; e no dia 12/06/2024, recebeu um email da requerida a excluí-la do BP; a requerente não praticou os factos que estão na base destas decisões e mesmo que o tivesse feito tal não prejudicaria o B nem o BC; aquelas decisões foram tomadas sem a ouvir e sem possibilidade de se defender e por quem não tinha competência para a tomada delas; no dia 12/06/2024 os acessos da requerente à plataforma do B foram bloqueados; a requerente é contratualmente membro do BP até 31/07/2024 e pagou no dia 17/06/2024 a anuidade da renovação de 01/08/2024 a 31/07/2025; a requerente solicitou à requerida a revogação da decisão de exclusão, violadora do contrato entre requerente e requerida e comunicou que iria participar no dia 19/06/2024 numa reunião do BP, na sequência do que lhe foi comunicado que estava inibida de o fazer e se necessário seriam usadas as forças de segurança para concretizar tal inibição. A exclusão causa-lhe prejuízos. A providência cautelar é o único meio adequado para evitar a lesão decorrente da demora inevitável no processamento normal da acção.
O Julgado de Paz determinou a audição da requerida e esta, citada, deduziu, a 05/07/2024, oposição, concluindo no sentido da improcedência da providência cautelar.
A 23/07/2024, o Julgado de Paz designou o dia 13/08/2024 para julgamento.
A 26/07/2024, a requerente veio responder extensamente à oposição, juntando ainda 11 documentos.
A requerida requereu o desentranhamento da resposta.
A 26/07/2024 a requerente opôs-se ao requerimento de desentranhamento.
A 27/07/2024, o mandatário da requerente veio requerer a designação de outra data (entre 26/08 e 30/08) com fundamento no seu sagrado direito a férias.
A 06/08/2024, o Julgado de Paz notificou as partes para se pronunciaram, querendo, em 10 dias, sobre a incompetência do Julgado em razão do valor da causa, considerando que o valor desta era de 30.000,01€ por dizer respeito a interesses imateriais e deu sem efeito a designação para julgamento.
A 07/08/2024, antes de ser notificado de tal despacho, o mandatário da requerente requereu que fosse admitida a sua intervenção no julgamento através de meios de comunicação à distância.
A 27/08/2024, a requerente veio aditar prova.
Nenhuma das partes se pronunciou sobre o que se dizia no despacho de 06/08/2024.
A 19/08/2024 foi fixada à causa o valor de 30.000,01€, declarado o Julgado de Paz incompetente em razão do valor e ordenada a remessa do processo para o Juízo Local Cível do Funchal.
A 21/10/2024 o Julgado de Paz remeteu os autos para o Tribunal.
Foram depois as partes, por despacho de 22/11/2024, notificadas para, querendo e no prazo de 5 dias, se pronunciarem quanto ao entendimento do Tribunal em indeferir liminarmente o procedimento cautelar por se estar perante a nulidade do erro na forma de processo (pelo facto de os pedidos formulados só poderem ser apreciados e decididos em processo declarativo comum e não em procedimento cautelar).
Apenas a requerente veio pronunciar-se por requerimento de 02/12/2024, requerendo a inversão do contencioso, alegando a inconstitucionalidade da interpretação normativa de várias normas do CPC, segundo a qual teria de ser decidido em acção declarativa de condenação os pedidos em que se consubstancia a providência cautelar peticionada em procedimento cautelar tempestivamente instaurado em que se mostram reunidos e verificados os requisitos constantes do procedimento e em que se mostra deduzida em tempo o pedido de inversão do contencioso e concluindo pela inexistência de erro na forma de processo. A 08/01/2025 foi indeferido liminarmente o requerimento inicial. A 28/01/2025 a requerente recorreu do indeferimento – para que seja revogado e reconhecidas e declaradas como verificadas a nulidades, inconstitucionalidades e erros discriminados – terminando as suas alegações com as conclusões que serão transcritas mais à frente.
No dia 20/03/2025, às 23h06, a requerida apresentou alegações a defender a improcedência do recurso.
A 25/03/2025, a secção de processos remeteu o recurso para o TRL.
A 28/03/2025 os autos foram apresentados à secção central do TRL e nessa data foi aberta conclusão ao relator.
* Questão que importa decidir: se o procedimento cautelar não devia ter sido indeferido liminarmente.
* O despacho de indeferimento tem a seguinte fundamentação, em síntese:
Conforme estabelece o art. 364 do CPC, a providência cautelar não especificada visa a tutela provisória de um direito ameaçado, sendo instrumental de um processo principal instaurado ou a instaurar.
Isto é, a providência cautelar, porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal e da qual depende, apenas se justificando para se acautelar o direito invocado no sentido de evitar, durante a pendência da acção principal, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.
Ora, pese embora a requerente tenha intentado uma providência cautelar, a verdade é que formula os pedidos característicos da que seria a acção principal e não do procedimento cautelar, esquecendo a instrumentalidade e a provisoriedade do mesmo.
Isto é, ois pedidos formulados traduzem-se na pretensão definitiva de satisfação de um direito ou interesse da requerente e não na salvaguarda provisória desse, o que contraria a finalidade dos procedimentos cautelares.
Com efeito, os pedidos formulados só devem ser apreciados e decididos em processo declarativo comum e não em procedimento cautelar, não sendo adequados a tal meio processual, pelo que estamos perante a nulidade do erro na forma de processo (cf. art. 193 do CPC).
É certo que, nos termos do art. 392/3 [o despacho quis-se referir ao artigo 376/3 - TRL] do CPC, o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida.
Mas, no caso, os pedidos formulados são característicos de uma acção declarativa comum, que não de um procedimento cautelar.
Ora, só uma medida cautelar seria susceptível da adequação a que se refere a norma citada do CPC.
Por outro lado, é certo que a requerente (adiante-se, só após ser notificada para exercer o contraditório quanto à eventual nulidade de erro na forma do processo) requereu a inversão do contencioso, prevendo o art. 369 do CPC.
Mas “a possibilidade de inversão do contencioso não legitima a inversão da essência do procedimento cautelar, caracterizado pela celeridade e provisoriedade, por forma a transferir para o procedimento cautelar a acção definitiva (cf. ac. do TRP de 29/06/2017, proc. 25601/16.1T8PRT.P1). A requente, contra isto, opõe o seguinte (são as conclusões referidas acima, em síntese e com as adaptações):
III\ a V\ O julgado de paz admitiu o requerimento inicial e encontra-se transitado em julgado e a decisão recorrida ofende esse caso julgado, pelo que padece de erro e é nula, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615/1-b-c do CPC;
VI\ a XI\ Tendo em conta os requisitos de um procedimento comum tal como referidos no ac. do TRG de 21/09/2017, proc. 1483/17.5T8BCL.G1, as finalidades visadas por tal procedimento conforme estabelece o art. 364 do CPC, o requerimento de inversão do contencioso tal como previsto no art. 369 do CPC e o que foi referido pela requerente no requerimento inicial, o tribunal tinha, no próprio procedimento cautelar, matéria de facto e de direito para formar uma convicção segura acerca da existência de contrato celebrado entre a requerente e a requerida, e que esta estava a impedir a requerente de exercer o direito que tinha e que a natureza das providências cautelares a decretar, conforme peticionado no requerimento inicial, eram adequadas a realizar a justa composição definitiva do litígio.
XII\ Ademais, a requerente alegou e juntou a correspondente prova documental que a renovação do contrato celebrado com a requerida termina já no próximo dia 31/07/2025; sabendo-se que o tempo médio de duração e de obtenção de uma decisão definitiva numa acção declarativa demora cerca de três anos, com a decisão recorrida o tribunal obriga a requerente a obter uma decisão definitiva quanto à vigência do dito contrato e quanto ao referido direito em 2027, relativamente a um contrato cujo fim de vigência ocorrerá a 31/07/2025; ou seja, a decisão final a obter em acção principal seria de nenhum efeito útil e seria completamente estéril.
XIII\ Pelo que neste caso em concreto a decisão recorrida denega à requerente a tutela jurisdicional efectiva consagrada no artigo 20/1-4 da Constituição da República Portuguesa;
XIV\ E manteve fechada a porta ao exercício dos direitos da requerente quando tinha toda a matéria de facto e de direito para decidir sobre a vigência do contrato celebrado e renovado entre a requerente e a requerida e para decretar a providência cautelar no sentido de acautelar esses direitos até 31/07/2025.
XV\ Sendo que, no entretanto, a requerente, com a decisão recorrida, jamais poderá acautelar ou jamais poderá ver ser reposto esses direitos na data em que houver uma decisão definitiva, porquanto o tempo já decorreu e os direitos da requerente já estão no passado e a requerente não tem como regressar ao passado e o tribunal não tem como efectivar o regresso da requerente ao passado;
XVI\ Constam da decisão recorrida fundamentos para decidir de forma diferente ao indeferimento liminar, o que fere, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615/1-c do CPC, de erro e de nulidade a decisão recorrida.
XVII\ Não tendo o tribunal discriminado quais as concretas provas existentes nos autos que levariam a que não pudesse formar convicção segura da existência do direito da requerente e das providências que fossem adequadas a realizar a composição definitiva do litígio, tal consubstancia a omissão de pronúncia sobre questões que devia e podia apreciar, o que fere de nulidade a decisão recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615/-d do CPC
XVIII\ É inconstitucional e constitui uma compressão intolerável dos direitos de defesa da requerente, por violação dos artigos 20/1-4, 204 e 205 da CRP e por violação do princípio constitucional da tutela jurisdiciona efectiva, a interpretação normativa dos artigos 193, 369/1 e 590/1 do CPC, no sentido de permitir ao tribunal fazer tábua rasa e denegar a inversão do contencioso no âmbito de um procedimento cautelar quando a matéria de facto e de direito existentes nos autos é suficiente para o tribunal formar uma convicção segura acerca da existência do direito ameaçado que a requerente pretende ser judicialmente acautelado e que a natureza da providência cautelar a decretar é adequada a realizar a justa composição definitiva do litígio. A requerida defende a improcedência do recurso, no essencial pelas razões constantes do despacho recorrido. Apreciação:
Em 12/06/2024 a requerente foi excluída da qualidade de membro de um grupo de que tinha pago a inscrição até 31/07/2024. A requerente quer permanecer como membro desse grupo, inclusive até 31/07/2025 por ter renovado a inscrição até essa data, e é isso que pede na providência cautelar porque, se só o fizer na acção comum, dada a demora normal nestas acções, perderá as vantagens inerentes à permanência no grupo durante todo aquele tempo (até porque a decisão da acção comum só ocorreria, provavelmente, depois daquele período ter decorrido).
O tribunal não diz que a requerente não possa acautelar tal direito numa providência, mas que não o pode fazer nos termos em que o fez, isto é, que o pedido que formulou é um pedido próprio das acções comuns e não das providências cautelares, havendo, por isso, erro na forma de processo.
Portanto, se a requerente tivesse pedido que fosse decidida a sua manutenção no grupo até que, na acção definitiva, lhe fosse reconhecido, ou não, esse direito de continuar no grupo, ou tivesse pedido que provisoriamente (até que houvesse uma decisão definitiva num sentido ou em sentido contrário) fosse decidida a sua manutenção no grupo (“Miguel Teixeira de Sousa diz que a providência cautelar tem finalidade conservatória quando procura conservar um status quo, ou seja, quando assegura o que existe até à prolação da tutela definitiva. […] Em concreto, p. ex.: […] (iii) o sócio de uma sociedade que foi excluído dessa qualidade pode pedir a permanência provisória como sócio; […]” – CPC online, versão 2024.12, artigos 362-409, página 6], em vez de ter pedido que fosse decidida a sua manutenção até 31/07/2025, já não teria havido erro na forma de processo empregue.
Ora, tendo em consideração que os pedidos devem ser entendidos em termos prático-jurídicos e não nos precisos termos em que, com erro, possam ter sido formulados, e que, no caso, se está perante um pedido formulado num procedimento cautelar, o pedido formulado pela requerente deve ser lido com aquele sentido, isto é, de ter a limitação implícita de só estar a ser feito para valer até ao momento em que haja uma decisão definitiva na acção comum subsequente (e não importa que, com o pedido de inversão do contencioso e com o que invoca agora a propósito, a requerente até reforce, mal, segundo decorre do que antecede, o carácter definitivo do pedido, até porque, como diz o ac. do TRP citado pela decisão recorrida, o pedido de inversão do contencioso é irrelevante para toda esta questão; ou, como diz Miguel Teixeira de Sousa, no postJurisprudência (773) publicado no blog do IPPC em 19/01/2018, em comentário àquele acórdão: “A solicitação da inversão do contencioso nos termos do art. 369 CPC não implica uma convolação legal do procedimento cautelar em processo comum. A inversão do contencioso respeita apenas à natureza da decisão do tribunal, dado que este, em vez de decidir no plano da tutela provisória, decide no plano da tutela definitiva. Portanto, a circunstância de ter sido solicitada a inversão do contencioso não pode ser utilizada como argumento para que o juiz aceite um procedimento cautelar como um processo comum.”)
Tanto mais que, como o próprio tribunal lembra, o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida (art. 376/3 do CPC) e, por isso, ao decretar a providência pedida a pode limitar naqueles termos.
Assim sendo, entende-se que não se verifica o erro na forma de processo (art. 193 do CPC) e que, por isso, o procedimento cautelar deve prosseguir os seus normais termos.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho que indeferiu a providência cautelar, devendo o procedimento seguir os seus termos normais.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte, pela requerida (que é quem perde o recurso).
Lisboa, 10/04/2025
Pedro Martins
Arlindo Crua
Susana Maria Mesquita Gonçalves