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RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO NÃO PATRIMONIAL
PROGENITORES
ACIDENTE DE VIAÇÃO
LEGITIMIDADE
Sumário
I - Não se apura a ilegitimidade processual activa através do mérito da pretensão deduzida. II - Sendo discutível a interpretação da norma que confere o direito reclamado, não pode a mesma ser considerada como disposição legal em contrário para o efeito de anular o desenho da relação material controvertida que o autor haja feito. III - Depende do apuramento factual dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e da interpretação das disposições conjugadas dos números 2 e 4 do artigo 496º do Código Civil, a afirmação ou infirmação do direito dos pais de vítima mortal de acidente de viação a serem indemnizados pelos seus próprios danos não patrimoniais causados pelo acidente, no caso de, nos dias que mediaram entre o acidente e a morte, a vítima, não casada nem unida de facto, ter sido pai de uma criança que não chegou a conhecer nem a reconhecer.
Texto Integral
Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Em 05.07.2024, AA e marido, BB, vieram instaurar a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra a Generali Seguros S.A., peticionando a final:
“Termos em que, atento o disposto no art.º 9º do Decreto – Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, art.º 35º, n.º 2 e 149º, alínea f) do Código de Estrada, art.º 483º, 495º, 496º, 499º e 503º, todos do C. Civil, requer-se a V. Excia se digne condenar a R. ao pagamento ao A.A.: - Em sede de danos patrimoniais, o montante 45.000 € (…). - No capítulo dos danos extrapatrimoniais o pagamento um valor nunca inferior a 100.000€ (…). - Juros de mora, à taxa de 4%, a contar da data da citação da R. até efectivo e integral pagamento sobre os montantes discriminados”.
Alegaram em síntese serem “progenitores de CC, falecido em ...Agosto de 2023 (…), seus universais herdeiros à data do óbito, vítima de um acidente de viação em Julho de 2023”, “exclusivamente imputado ao” segurado da Ré. Além de reclamarem “lucros cessantes e danos emergentes, (…) correspondente à perda de rendimentos pagos pela vítima mensalmente (250 €) a título de prestação alimentos reportados a 15 anos” da esperança de vida dos Autores, sustentaram, para fundamentar o pedido de indemnização por danos extrapatrimoniais, que haverá de levar em “linha de conta a idade da vítima, ter falecido 27 dias após o acidente e seu particular circunstancialismo mormente as intensas dores e submissão a diversas cirurgias. A íntima ligação dos A.A. ao filho falecido em especial a mãe. O facto de após a morte os A.A. terem entrado em depressão que se mantém, encontrem-se sós, sofrerem de insónias não tendo, ainda, recuperado e muito menos esquecido essa morte. Encontrarem-se, desde o falecimento, em acompanhamento/tratamento médico-medicamentosos, no caso psiquiatra e psicólogo com recurso a antidepressivos, calmantes e soporíferos. Ser ele (o falecido) o filho predilecto dos A.A. Terem alimentado a esperança, durante 27 dias, daquele sobreviver. Todos os dias, no período compreendido entre o acidente a data da morte, que souberam de imediato, estarem presentes, todos os dias, no ... em Ponta Delgada. Um sonho de vida - viverem com o filho falecido e possível família daquele - conjuntamente na mesma casa, se ter desvanecido. E, também eles, A.A. terem perdido a alegria de viver, limitando-se a passarem o dia em constante sofrimento psíquico”.
A Ré contestou invocando a excepção de ilegitimidade, posto que à data do acidente a namorada da vítima se encontrava grávida, e ainda durante o internamento da vítima, a Julho de 2023, nasceu a filha de ambos, anteriormente mesmo aos Autores terem feito a escritura em que se habilitaram como herdeiros. O “direito à indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima, antes de falecer, o dano decorrente da perda do direito à vida e ainda os danos patrimoniais, ambos em consequência de acidente de viação, cabe, em conjunto, e pela precedência indicada no artigo 496º, n.º 2 do Código Civil”. Sustentou então que nos “termos do disposto do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo Civil, os Autores não são parte legítima, pois não têm interesse direto em demandar, porquanto não têm qualquer direito a serem indemnizados uma vez que esse direito pertence exclusivamente à filha do falecido”.
Responderam os Autores invocando que só em Setembro de 2024 foi a menor reconhecida como filha da vítima, tendo a escritura de habilitação sido rectificada em 04.10.2024, pelo que à data da interposição da acção eram parte legítima. De resto, “Sobre a legitimidade material ou substantiva - independentemente da querela doutrinal e jurisprudencial de apurar se o elenco constante do art.º 496º, n.º 2 do C. Civil é indicativo ou cumulativo 1 - é legitimo aos A.A. demandarem a R. por apelo ao art.º 495º, n.º 3 do C. Civil, disposição aliás, expressamente invocada pelos A.A. na fundamentação jurídica do pedido”.
Na audiência prévia os autos foram saneados, sendo conhecida a excepção de ilegitimidade nos seguintes termos, depois do respectivo excurso teórico:
“No presente caso, os Autores peticionam danos patrimoniais e danos não patrimoniais, sendo a causa de pedir a morte do seu filho num acidente de viação. A este respeito, dispõe o artigo 496, nº2 do Código Civil que Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem, acrescentando o nº4 de tal artigo que no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores (…).
Pelo exposto, e não sendo os Autores titulares do direito referido no nº4 do artigo 496º, por tal caber ao descendente da vítima, teremos de concluir que, efetivamente, são partes ilegítimas quanto ao segundo pedido que formulam (aliás, na resposta os Autores admitem que apenas são credores de alimentos, pese embora em requerimento posterior mudem a sua posição).
Já quanto ao pedido de indemnização por danos patrimoniais, e atenta a configuração que dão à ação, têm legitimidade, conforme estatui o artigo 495º, nº3 do Código Civil: têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
Em face do exposto, julgo parcialmente procedente a exceção dilatória de ilegitimidade, e em consequência, absolvo a Ré da instância quanto ao primeiro pedido dos Autores [artigos 278º, nº 1, alínea d), 576º, nº2 e 577º, nº 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil].
Custas pelos Autores, enquanto parte vencida (artigo 527º do Código de Processo Civil)”.
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Inconformados, os Autores interpuseram o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
A) A decisão recorrida comungando do entendimento que a titularidade à indemnização por danos não patrimoniais passa pelas regras rígidas do direito sucessório devendo o texto da lei (art.º 496º, nº 2 do C. Civil) ser interpretado literalmente relativamente às pessoas aí indicadas que se excluem por categorias de herdeiros legitimários e precedência vinculativa considerou os recorrentes em sede de despacho saneador – progenitores da vitima – partes ilegítimas para deduzirem pedido de indemnização na vertente dos danos não patrimoniais absolvendo, em consonância, a ré seguradora.
B) É pacifico o entendimento que os danos não patrimoniais não se reconduzem apenas à noção de “dano morte” devendo ser focados na figura da vítima e a sua interação com aqueles que o rodeavam, eram parte do seu projecto de vida e para quem a sua perda ditou amputações emocionais, psicológicas ou psicossomáticas (danos não patrimoniais laterais ou intercalares).
C) Por este prisma a noção de família exige uma visão hodierna centrada na noção de afecto e vivência que admite a abertura duma “brecha dogmática” no elenco dos beneficiários do direito à indemnização dos danos não patrimoniais do artigo 496º C. Civil relativamente ao qual deve ser efectuada uma interpretação actualista impondo ao julgador uma ponderação casuística de cada evento danoso e seus envolvidos sejam eles terceiros ou herdeiros legitimários. Ou uns em detrimento de outros.
D) Recorrentes e vítima tinham um projecto de vida em comum que passava por aquele tomar conta dos pais enquanto vivos fossem residindo com eles e sendo-lhe doada a casa morada de família e aquele uma fonte permanente de apoio e afecto dos autores.
E) Em face do que ficou escrito, devem os recorrentes ser considerados partes legitimas ao ressarcimento dos danos não patrimoniais laterais sublinhando-se que nenhuma coincidência ou concurso nesta matéria de danos não patrimoniais existe entre os recorrentes e a filha descendente.
F) Assim não sendo entendido e não operada esta interpretação actualista e casuística dos titulares dos danos não patrimoniais, pelo prisma indicado, assume-se a decisão recorrida como injusta ao ignorar o sentimento, afecto, dor e sofrimento perdurável e inolvidável dos recorrentes pelo que,
G) As conjugações de todos estes elementos – administração da justiça com equidade, justa composição do litígio e apreciação casuística dos concretos circunstancialismos que rodeiam o caso “sub judice”, bem como a noção de danos não patrimoniais (laterais)- impõem por remissão para o disposto no art.º 6º, nº 1 do C. Processo Civil e art.º 9º, nº 3 e 496º, ambos do C. Civil que deva a decisão recorrida ser revogada por atentatória das disposições citadas.
H) E serem considerados os autores partes legitimas, à luz do disposto no art.º 496º do C. Civil para serem ressarcidos em sede de danos não patrimoniais (laterais) cabendo ao julgador, casuisticamente, apreciar o concreto circunstancialismo que rodeou a morte da vítima e o sofrimento provocado na pessoa dos recorrentes com a morte do filho. Termos em que, pelas razões de facto e de direito invocadas deverá a decisão recorrida ser revogada e os recorrentes serem considerados partes legitimas para deduzirem pedido de indemnização por danos não patrimoniais.
Não consta dos autos a apresentação de contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil - a questão a decidir é a de saber se os recorrentes têm legitimidade activa para o segundo pedido que formularam.
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III. Matéria de facto
A constante do relatório que antecede.
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IV. Apreciação
Como se sabe e como bem afirma a decisão recorrida, “salvo disposição legal em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade, os sujeitos da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor (artigo 30º, nº 3 do Código de Processo Civil)”. Secundamos também a decisão recorrida quando prossegue, afirmando: “a legitimidade, enquanto pressuposto processual, não se confunde com razões de mérito ou de demérito da pretensão trazida à lide, antes se configurando como expressão da relação existente entre a parte no processo e o objeto deste (pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o. Nada mais pode ser concluído do que pelo artigo 30º do Código de Processo Civil é disposto. Assim sendo, ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última, devendo a mesma ser apreciada e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da ação pode advir para as partes, face aos termos em que o Autor configura o direito invocado, bem como a posição jurídica que essas partes têm na relação jurídica material controvertida, tal qual a apresenta o Autor. É nisto que consiste a legitimidade dos sujeitos da relação controvertida, a que se refere o nº 3 do artigo 30º do Código de Processo Civil”. (fim de citação).
Dizer então também que, para além de ser indiferente o mérito, é também indiferente o demérito, isto é, as razões de mérito que a parte contrária possa opor.
Se olharmos para o desenho da relação material controvertida tal como foi feito pelos Autores, o que eles dizem muito linearmente é que eram os pais do falecido, e seus únicos herdeiros reconhecidos à data do acidente e da morte. E nesta qualidade se apresentam a reclamar indemnização pelos danos não patrimoniais, não só sofridos pelo próprio acidentado, como por eles mesmos. Saber se posteriormente, até à interposição da acção, foi estabelecida a paternidade do falecido em relação a uma menor, é questão de mérito, convocando as normais legais que nos explicam, quanto aos danos sofridos pela própria vítima, quem são os herdeiros da competente indemnização, e nos explicam que familiares, em caso de morte, têm direito a indemnização dos seus próprios danos, causados pelo mesmo evento lesivo – acidente, internamento hospitalar e morte, causada por terceiro.
Pode argumentar-se que estas normas são a disposição legal em contrário ao desenho que é feito na petição inicial e que este contrário opera por retroactivade. Não foi este o argumento, se bem percebemos, que o tribunal usou. Em todo o caso, ele apenas poderia permitir a exclusão de determinado tipo de pedidos/causas de pedir e não a globalidade dos pedidos e causas de pedir formulados pelos autores, ou, dito de modo mais concreto, sempre seria preciso apurar factos para conseguir estabelecer se houve danos sofridos pela vítima (outro o direito à vida, a questão das dores e da angústia depende do estado concreto em que a vítima haja ficado depois do acidente e até à sua morte) e se houve danos não patrimoniais sofridos pelos próprios pais, da data do acidente à data em que a neta nasceu, e para um pedido de indemnização que se fundasse nesta causa e segmento temporal, nenhum óbice de legitimidade, processual ou material, poderia ser levantado. De resto, a discutibilidade da tese dos recorrentes sobre uma interpretação actualista do artigo 496º nº 4 do Código Civil nem sequer autorizava a decidir sumariamente pela exclusão deles do direito ao pedido de indemnização dos danos não patrimoniais próprios a partir do nascimento da neta.
Sabemos que o princípio geral, na matéria de indemnização baseada na responsabilidade civil extracontratual, é o da ressarcibilidade dos danos directamente sofridos pela vítima, e só excepcionalmente podem ser atendidos os danos próprios sofridos por terceiros. A razão de assim ser explica-se pelo contraponto deste direito indemnizatório, que é a vinculação do lesante a um patamar pré-definido de danos indemnizáveis, e não a uma pluralidade casuística insustentavelmente imprevisível, incerta e, logo, insegura. Imaginemos precisamente a relação afectiva: vitimado alguém mortalmente, todos os que com tal pessoa tinham uma ligação afectiva forte sofrem, no mínimo, forte tristeza, a qual é um dano verdadeiramente próprio destas pessoas. Um grande amigo, a vizinha que criou a vítima desde pequena.
São danos próprios dos terceiros sujeitos à regra geral e desde logo à válvula do conceito indeterminado da reparabilidade constante do nº 1 do artigo 496º do Código Civil - “Nafixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Mas a arquitectura legal não é feita assim: - na conciliação dos valores da certeza jurídica com a reparação dos danos, o legislador não se bastou com aquela válvula de escape, por assim dizer, antes expressamente limitou o círculo daqueles que podem reclamar reparação pelos seus próprios danos – “4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”, ou seja, segundo o nº 2 do mesmo preceito: “2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; (…)”.
(sublinhados nossos).
Ou seja, são atendidos os danos não patrimoniais próprios dos familiares pela ordem indicada, todos os outros não o sendo. Não é reparável a dor que o maior amigo sente, mesmo que o seu dano seja maior do que o desgosto que o cônjuge do falecido sofre.
Este exemplo mesmo revela como o legislador é livre de aumentar ou restringir – em suma, escolher, optar – pela definição dos danos que obriga o lesante a reparar e das pessoas cujos danos entende serem merecedores de reparação.
Pretendem os recorrentes que se faça uma interpretação actualista para ou por respeito ao conceito de família enquanto trama afectiva.
No corpo do recurso explicam que relativamente à titularidade do direito à indemnização “se digladiam quer na doutrina quer na jurisprudência teses antagónicas:
1- Para uns, em nome da certeza e segurança jurídica, apoiando-se no elemento histórico3 a indemnização por danos não patrimoniais passa pelas regras rígidas do direito sucessório devendo o texto da lei (art.º 496º, nº 2 do C. Civil) ser interpretado literalmente relativamente às pessoas aí indicadas que se excluem por categorias de herdeiros legitimários e precedência vinculativa4.
2- Outros, em defesa do conceito hodierno da família e de uma interpretação actualista do art.º 496º, nº 2 do Código Civil, advogam a atribuição da indemnização dos danos não patrimoniais (laterais) a terceiros que não abrangidos pelo elenco legal e/ou sujeitas a essa precedência vinculativa. Invocam a adequação interpretativa do normativo legal à vivência comunitária do século XXI em que a noção tradicional de família se esbateu perante novos valores e realidades que não se compaginam com o conceito conservador (católico-judaico) da família antes devendo ser dada a primazia nas relações ao afecto e, por isso, podem existir elementos estranhos cujo sofrimento merece tutela que devem ser, também, eles (terceiros) admitidos no âmbito do dispositivo legal quer por uma interpretação extensiva quer por aplicação analógica a par dos indicados pelo legislador no art.º 496º, nº 2 do Código Civil5.
3- Por último, os defensores duma posição mitigada que admite a abertura duma “brecha dogmática“ no elenco dos beneficiários do direito à indemnização dos danos não patrimoniais do artigo 496º C. Civil relativamente ao qual deve ser efectuada uma interpretação actualista (“de acordo com a interpretação actualista que entendemos dever ser feita do artigo 496º do Código Civil apenas o sofrimento grave e relevante imposto os familiares da vitima, designadamente aos seus progenitores, como decorrência das graves lesões por esta sofridas, justificará que se abra uma “brecha dogmática geral “(expressão utilizada no AUJ nº 6/2014) para lhe conferir tutela legal”6) o que, implica, uma ponderação casuística de cada evento danoso e seus envolvidos sejam eles terceiros ou herdeiros legitimários. Ou uns em detrimento de outros. Análise sempre centrada na vítima e seu relacionamento com quem convivia.
Equacionadas todas as teses, sempre com o devido respeito, acompanhamos esta última, ou seja, que casuisticamente e cotejadas todos os elementos atinentes à vítima e sua interligação com aqueles com quem convivia e estabeleceu relações de intimidade e/ou um projecto de vida, deverão os danos não patrimoniais (laterais) ser atribuídos a terceiros caso a perda da vida tenha neles um impacto profundo. Mostra-se a mais justa e adequada e que não fere a sensibilidade jurídica. Tal não significa, contudo, que a posição mais consentânea com os valores da sociedade portuguesa do século XXI não seja a exposta pela segunda tese.
Porém, e independentemente, de apelando a Castanheira Neves7, caber ao julgador na interpretação da lei criar Direito pois que não se baseia a sua tarefa, unicamente, numa conduta hermenêutico-exegética de leitura da fonte legal, admite-se caber ao legislador impor esse entendimento ao ordenamento jurídico colocando cobro a uma controvérsia que exige respostas claras pois é a vida o sofrimento de terceiros que se discute”1.
Estas concepções ou teses têm de ser equacionadas pelo tribunal, se o apuramento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e especificamente dos danos alegados tiverem apoio nos factos a apurar após julgamento.
Sobre a evolução conceptual veja-se o acórdão do STJ de 10.4.2024 (Rel. Conselheiro Jorge Arcanjo):
“A propósito dos danos não patrimoniais, a doutrina clássica, sustenta, em princípio, só o titular do direito violado tem direito à indemnização ( art.496 nº1 CC ), não sendo incluídos na obrigação de indemnização os danos sofridos directa ou reflexamente por terceiros, salvo no caso de morte, dada a natureza excepcional da norma do nº2 do art.496, a impossibilidade de interpretação analógica das normas excepcionais e a impossibilidade de interpretação extensiva, por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no preceito, como decorre do argumento histórico.
Contra a posição clássica, tanto Vaz Serra ( RLJ ano 104, pág.14, como Ribeiro de Faria ( Direito das Obrigações, vol.1º, pág.491, ), Américo Marcelino ( Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 6ª ed., pág.380 ) e Abrantes Geraldes ( Temas da responsabilidade Civil, II volume, Indemnização por Danos Reflexos, pág.75 e segs.) sustentam a possibilidade de uma interpretação actualista da norma do art.496 nº2 do CC, e esta orientação doutrinária tem sido acolhida pela jurisprudência, sendo disso sintomático o AUJ n.º 6/2014 ( cf., por ex. Ac STJ de 15/12/2022 ( proc nº 550/14.1T8PVZ.P1 ), em www dgsi.pt )
E também se entende que reconhecimento do direito de indemnização por danos não patrimoniais de terceiros pode assentar directamente nas normas dos arts.483 e 496 nº1 do Código Civil. Com efeito, o 496 nº1, ao plasmar o princípio geral da ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial, impõe como única condição que os danos, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, logo, o princípio geral assim estabelecido, não se limita a tutelar apenas os prejuízos do lesado directo.
Para Abrantes Geraldes - “São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do art.496 nº1 do CC, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia do lesado; Tal direito de indemnização deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº2 do art.496 “( cf. “Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiros”, publicado nos Estudos de Homenagem ao Prof. Inocêncio Galvão Telles, vol.IV, pág.263 e segs., e posteriormente desenvolvido em “ Temas da responsabilidade Civil, II volume, Almedina 2005 “)
(…)
Porém, em sede de responsabilidade extracontratual, em que não foi estabelecido qualquer vínculo negocial entre o lesante e o lesado, importa ter conta, nas palavras de Vaz Serra, que “o obrigado a indemnizar só pode, em regra, basear as suas previsões nas relações com o titular dos bens imediatamente afectados pelo facto danoso” o que, segundo o autor justifica que “a indemnização apenas pode, em princípio, abranger o interesse desse titular, e não o de terceiros” (loc. cit).
Como também afirma Rui Vasconcelos Pinto (A tutela delitual dos danos patrimoniais reflexos, O Direito, 2018, I, p. 158) a necessidade de delimitar o círculo de pessoas lesadas pelo mesmo facto ilícito que podem pedir indemnização, no âmbito da responsabilidade civil delitual, “surge porque a solução de atribuir um direito a indemnização indiscriminadamente a todos os que provem ter sofrido um dano na sua esfera jurídica, conduz a uma inadmissível multiplicação de pretensões indemnizatórias”. Ou seja, como diz no acórdão do STJ de 08-09-2016 (Revista n.º 1952/13.6TBPVZ.P1. S1), a necessidade de circunscrever as hipóteses de ressarcimento deste tipo de danos em sede de responsabilidade civil aquiliana, resulta da “necessidade de salvaguardar a liberdade de actuação dos sujeitos, pois esta opõe-se a uma protecção indiscriminada do património em sede de responsabilidade civil delitual”.
Em obediência ao princípio de que a titularidade do direito a reparação apenas cabe à pessoa a quem pertence o direito absoluto ou o interesse juridicamente protegido que foram ofendidos, o legislador limitou a extensão do dever de indemnizar, em caso de morte, aos danos não patrimoniais e aos danos patrimoniais previstos no art. 495.º do CC, nos quais se incluem as situações mais prementes de protecção legal, em concreto, as despesas decorrentes do funeral da pessoa falecida, mesmo que efectuadas por terceiro, por evidentes razões éticas e da dignidade da pessoa falecida, bem como a obrigação alimentar em relação a terceiro afectada pela morte da pessoa que prestava alimentos ou que legalmente podia ser obrigado a prestá-los, dado tratar-se de um prejuízo que contende com o direito de subsistência, e o dano na perda de rendimento.
Muito embora se deva aceitar uma concepção atípica dos modos de lesão, significando relevar ainda a ilicitude causada de forma indirecta, não parece, em termos de direito positivo, que, em caso de morte de uma pessoa, a lei atribua a qualquer “terceiro” o direito de indemnização, a coberto do art.483 nº1 (1ª parte) CC. É inquestionável que a lei limita a determinado círculo de pessoas o direito de indemnização por danos provocados em consequência de morte de outrem, conferindo apenas aos familiares e ao unido de facto (por direito próprio) individualizados no art. 496 nº2 e 3 CC, mas esta limitação reporta-se aos danos não patrimoniais”. (fim de citação).
Relevante análise da evolução histórica encontra-se também no acórdão do STJ de 15.12.2022 (Rel. Conselheiro Cura Mariano), no qual se percebem as razões que levaram à admissibilidade da reparação, ao lado dos danos não patrimoniais da vítima, dos danos não patrimoniais sofridos por terceiros, e que o acórdão em causa aplicou aos pais de uma criança mordida por um cão, que sobreviveu ao ataque.
A terceira tese de que falam os recorrentes vai, no seu entendimento, mais além da reparação de danos não patrimoniais sofridos pelos terceiros, derrogando a ordem de preferência contida no nº 2 do artigo 496º do Código Civil, e esta é que é a verdadeira questão dos autos: - são indemnizáveis os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares do falecido, qualquer que seja o seu grau de parentesco, e todos podendo reclamar o ressarcimento, na medida do dano que sofreram, conquanto seja grave? A aplicação ao caso concreto é evidente: - a vítima estava internada quando a filha nasceu, faleceu entretanto, a filha não teve qualquer hipótese de estabelecer qualquer laço afectivo com o pai (sequer de o conhecer) a partir do qual se pudesse afirmar um desgosto. É insustentável, por isto, defender um dano moral sofrido pela filha com a morte do pai, facto que em si, independendo da relação efectiva entre ambos, apenas teria relevância patrimonial, da qual aqui não cuidamos. Evidentemente, e com todo o respeito, os autores sim, é que sofreram um enorme desgosto.
Conseguimos chegar à tese defendida pelos recorrentes?
Lê-se no acórdão do STJ de 15.5.2021 (rel. Conselheiro Jorge Dias):
“De acordo com o disposto no art.° 496.°, n.° 2, do Código Civil, “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”. No caso dos autos, em que a vítima vivia em união de facto, prescreve o n.° 3, do mesmo normativo que “se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes” (redação introduzida pela Lei n.° 23/2010, de 30 de agosto) e, finalmente, dispõe ainda o seu n.° 4 que “montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.°; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”. (…) Porém, a indemnização prevista no preceito não é cumulável a todas as classes de pessoas aí previstas, mas apenas à primeira que existir. Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. 11-12-2019, proc. 107/15.0GAMTL.E1.S2), “(...) II-A «letra da lei», de que deve partir-se na interpretação da norma (artigo 9.° do Código Civil), obriga, desde logo, a considerar os elementos gramaticais constituídos pelas duas conjunções coordenativas que, na estrutura da frase do n.° 2 do artigo 496.°, ligam os nomes - a coordenativa copulativa (ou aditiva) «e», que liga os termos «cônjuge» e «filhos ou outros descendentes», com idêntica função na frase, e a coordenativa disjuntiva (ou alternativa) «ou» que, ao ligar «filhos» e «outros descendentes», estabelece uma relação de exclusão. III. Assim, como se tem afirmado em jurisprudência reiterada a propósito da primeira categoria dos beneficiários do direito a indemnização prevista neste preceito, o universo dos titulares do direito a indemnização serão, em conjunto, segundo a ordem lógica da frase, o cônjuge e os filhos; havendo filhos, excluir-se-ão os netos (outros descendentes)” — e, acrescentaríamos, tendo por referência o caso sub judice, havendo filhos estão excluídas as classes seguintes, ou seja, os pais ou outros ascendentes, os irmãos ou sobrinhos que os representem, por ter sido essa, de forma expressa, a intenção do legislador, sem que recorrendo aos elementos sistemático, histórico e teleológico possa extrair-se interpretação diversa, já que a única situação que o legislador quis salvaguardar foi a introduzida em 2010 com a equiparação, plasmada no n.° 3, do cônjuge ao unido de facto, mas sem que tenha pretendido acrescentar ou alterar a ordem ou cumular as várias classes aí previstas. Na verdade, conforme também decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. 28-02-2019, proc. 1940/14.5T8CSC.L1.S1), “I - A redação do art.° 496.°, n.° 4, do CC, suscita a dúvida sobre saber se quando se diz que “no caso de morte, podem ser atendidos (...) os danos não patrimoniais (...) sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores” se está a dizer que as pessoas referidas nos n.ºs 2 e 3 do art.° 496.° têm direito a indemnização, sem que entre elas haja uma qualquer ordem de exclusão, ou se as pessoas referidas nos n.ºs 2 e 3 têm direito a indemnização pela ordem de exclusão prevista no n.° 2. II - A decisão do legislador histórico foi no sentido de que havia uma ordem de preferências na compensação dos danos não patrimoniais próprios - e, ainda que a decisão do legislador histórico seja discutida e discutível, o facto é que o STJ tem interpretado a segunda parte do n.° 4 do art. 496.° do CC no sentido de que a remissão para o n.° 2 inclui a remissão para a ordem de preferências aí prevista. III - Entre os corolários de se “fazer prevalecer (...) a segurança jurídica à equidade” está o de que a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais próprios às pessoas colocadas na primeira categoria - cônjuge, unido de facto e filhos ou outros descendentes - exclui as pessoas colocadas na segunda e terceira categorias, e a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais próprios às pessoas colocadas na segunda categoria - pais ou outros ascendentes - exclui as pessoas colocadas na terceira - irmãos ou sobrinhos que os representem”. No mesmo sentido, cfr. Ac. STJ, 03-12-2014, proc. 250/08.1GILRS.L1.S1. Importa notar que os danos não patrimoniais peticionados na presente ação pelos autores, na qualidade de progenitores do falecido, não tem qualquer relação direta com os designados “danos não patrimoniais reflexos” a que se refere o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.° 6/2014, de 16/01/2014, na medida em que pelo mesmo apenas incidiu na interpretação do n.° 1, do art.° 496.°, quando o lesado sobrevive mas, em virtude e por causa do facto gerador de responsabilidade, sem prejuízo de também poder abranger ou outras pessoas, o cônjuge do lesado sobrevivo ter sofrido “danos não patrimoniais graves, atingida de modo particularmente grave” (um dos casos de doutrina consiste em a vítima ficar em coma ou em situação de incapacidade elevada, implicando a impossibilidade da vida conjugal, da perda da atividade sexual, da perda da possibilidade de ter filhos, etc.). Não é o caso dos autos, já que a vítima, não sobreviveu. Aliás, no mesmo citado aresto do STJ, de 11-12-2019, foi decidido, precisamente, que em caso de morte da vítima, “(...) IV - Não é aplicável ao caso o acórdão n.° 6/2014 (DR, 1.a série, de 22.05.2014) que, numa interpretação atualista dos artigos 483.°, n.° 1, e 496.°, n.° 1, do Código Civil, uniformizou jurisprudência no sentido de que os «devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave», nem dele se extraem elementos que, de modo a evitar contradições ou incoerências, possam, na mesma perspetiva, ser considerados para efeitos de interpretação do n.° 2 do artigo 496.° do Código Civil”. Com efeito, o preceito exclui a inclusão de quaisquer outros conjuntos de pessoas e a atribuição a uma preclude e impede que a classe seguinte possa invocar o direito previsto no preceito, sabendo que a norma também exclui a via sucessória no direito à indemnização (cfr., Ac. STJ, 16-06-2005, doc. SJ200506160016127 e Ac. STJ, 01-03-2018, proc. 1608/15.5T8LRA.C1.S1, no qual foi decidido que «foi intuito do legislador, no art.° 496.° do CC, subtrair a indemnização por "danos não patrimoniais" às regras do direito sucessório a que aludem os artigos 2133.° e ss. do CC»). Em conclusão, os autores não têm legitimidade substantiva para formular o primeiro pedido”. Alongamo-nos na transcrição da sentença, mas apenas porque concordamos com os fundamentos aí expostos. Os autores, pais de vítima de acidente de viação pedem indemnização contra a seguradora do outro interveniente no acidente. A vítima vivia em união de facto e tinha uma filha menor. Reportando-se a danos não patrimoniais, determina o art. 496 do CC a quem cabe o direito de indemnização (desde que ocorram danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito) e, por ordem: 1 - ao cônjuge ou unido de facto e filhos ou outros descendentes - quando a vítima tivesse sido casada ou unida de facto e tivesse filhos; 2 - ao cônjuge ou unido de facto – quando a vítima tivesse sido casada ou unida de facto e não tivesse filhos nem outros descendentes; 3 - aos filhos ou outros descendentes – quando a vítima fosse solteiro e tivesse filhos ou outros descendentes; 4 - aos pais ou outros ascendentes - quando a vítima fosse solteiro e não tivesse filhos nem outros descendentes; 5 - aos irmãos ou sobrinhos em representação daqueles - quando a vítima fosse solteiro, sem filhos ou outros descendentes e sem pais vivos ou outros ascendentes. Só inexistindo titulares do direito de uma classe ou grupo, se passa à classe seguinte. O termo “em conjunto” reporta-se aos beneficiários titulares de cada classe. Se o legislador pretendesse que o termo “em conjunto” se reportasse a todos os beneficiários de todas as classes, não usaria para distinguir as expressões “na falta destes ou “por último”. No caso de ocorrer a morte da vítima há um círculo restrito de pessoas a esta ligados por estreitos laços de convivência, dação mútua, entrega recíproca, afeição, carinho e ternura, a quem a lei concede reparação/compensação quando pessoalmente afetadas por isso nesses sentimentos. Mas nem todos são, em simultâneo, titulares de direito a indemnização. Como refere o Ac. do STJ de 15-04-2009, no proc. nº 08P3704, “Neste caso, os danos destas vítimas “indiretas” emergem da dor moral que a morte da vítima pessoalmente lhes causou, havendo lugar a indemnização em conjunto e jure próprio ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes, e na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representarem - artigo 496º, n.º 2, do Código Civil”. Mais concretamente, se pronunciou sobre a questão, o Ac. deste STJ de 28-02-2019, proferido no Proc. nº 1940/14.5T8CSC.L1.S1, (também citado na sentença), no sentido de que as pessoas referidas nos n.ºs 2 e 3 do art. 496 se encontram numa ordem de preferências e que, o STJ tem interpretado a segunda parte do n.º 4 do art. 496 do CC no sentido de que a remissão para o n.º 2 inclui a remissão para a ordem de preferências aí prevista. Como se diz neste acórdão, o legislador optou por “fazer prevalecer a segurança jurídica à equidade” pelo que, a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais próprios às pessoas colocadas na primeira categoria – cônjuge, unido de facto e filhos ou outros descendentes – exclui as pessoas colocadas na segunda e terceira categorias, e a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais próprios às pessoas colocadas na segunda categoria – pais ou outros ascendentes – exclui as pessoas colocadas na terceira – irmãos ou sobrinhos que os representem. O que não invalida que um familiar, colocado atrás na ordem de preferência, tenha sofrido mais (danos não patrimoniais) com a morte da vítima, do que os colocados à frente nessa ordem. Até pode acontecer que sofram mais, com a morte da vítima pessoas (amigos) não abrangidas por aqueles nºs 2 e 3, do que os aí indicados como titulares do direito de indemnização. Como refere o Ac. do STJ de 01-03-2018, no Proc. nº 1608/15.5T8LRA.C1.S1, “… a compensação por danos morais caberá naturalmente à/s pessoa/s que o legislador entendeu mais ligadas ao falecido por laços afetivos. Claro que este sistema não é necessariamente infalível no elencar dos beneficiários da indemnização, podendo haver outras pessoas que tenham sofrido com a morte da vítima um dano não patrimonial ainda superior… No entanto o Código entendeu, por critérios de segurança, fazer prevalecer no elencar dos beneficiários a segurança jurídica à equidade”. No sentido do entendimento expresso é a orientação deste STJ, referindo-se, para além dos acórdãos indicados na sentença e os supra indicados, o de 30-03- 2017, no proc. nº 225/14.1T8BRG.G1, de 09-01-2019, no proc. nº 1649/14.14.0T8VCT.G1.S1 e,. Referindo o ac. proferido no proc. nº 225/14.1T8BRG.G1 “II. A interpretação normativa do citado art. 496 do CC, em termos de os titulares de toda a indemnização devida por danos não patrimoniais conexionados com a morte da vítima serem necessariamente os sujeitos enunciados nos nºs 2 e 3 do preceito – estabelecendo o legislador que tal indemnização, sempre reportada à lesão de bens ou interesses de ordem eminentemente pessoal, deve necessariamente reverter para quem se presume estar numa relação familiar ou afetiva de particular intensidade com o defunto – não viola qualquer preceito ou princípio constitucional, nomeadamente ao resultar desse regime legal a impossibilidade de o de cujus poder dispor desse específico direito de indemnização mediante testamento”. E o Ac. do STJ de 24-05-2007, no proc. nº 07B1359, refere que “3. Do teor literal do nº 2 do art. 496 C. Civil, decorre que esse direito de indemnização cabe, em simultaneidade, ao cônjuge e aos filhos e, representativamente, a outros descendentes que hajam sucedido a algum filho pré-falecido. Só na falta desta primeira classe de familiares é que os referidos no segundo grupo terão direito a essa indemnização, ou seja, só se não houver cônjuge nem descendentes da vítima é que os ascendentes passarão a ter direito à indemnização. Sendo a vítima casada, o cônjuge integra o primeiro desses grupos e, como não havia filhos, será o único titular do direito a indemnização devida pela sua morte, não tendo os pais da vítima direito a compensação por danos não patrimoniais (quer dos sofridos pela vítima, quer por eles próprios) com a morte do filho”. E salienta A. Varela in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª edição, Almedina, pág. 613, analisando a evolução histórica do preceito, “(…) duas conclusões importantíssimas. A primeira é que (…). A segunda é que, no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer os sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2 do artigo 496”. E em anotação ao art. 496 do seu Código Civil anotado, referem P. Lima e A. Varela, “pode naturalmente suceder que a morte da vítima cause ainda danos não patrimoniais a outras pessoas, não contempladas na graduação que faz o nº 2, tal como pode acontecer que esses danos afetem as pessoas abrangidas na disposição legal por uma forma diferente da ordem de precedências que o legislador estabeleceu. Mas este é um dos aspetos em que as excelências da equidade tiveram se ser sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito”. (fim de citação do Ac. STJ de 15.5.2021).
O facto da jurisprudência ser abundante e expressiva no sentido de não acolher a tese que os recorrentes defendem, não significa que o julgador não possa fazer a sua própria interpretação nem que essa interpretação não venha a reverter a jurisprudência, e sobretudo nem sequer significa que a interpretação jurisprudencial dominante deva prevalecer sobre as circunstâncias do caso concreto – ou dito de modo mais simples, não partimos da jurisprudência nem da doutrina, enquanto formulações abstractas, para descartar a apreciação das questões que concretamente cada caso exija e mereça.
Da tese dominante não vemos apoio para uma defesa dum direito independente, autónomo, de cada familiar dos enunciados nos nº 2 e 4 do artigo 496º do Código Civil, à reparabilidade dos seus próprios danos, em caso de morte da vítima. Sabemos outrossim que a interpretação da lei não pode deixar de ter um mínimo de correspondência na letra da lei. Sabemos que o que impede esta reparabilidade dos danos dos vários familiares e de cada um deles, o estabelecimento da ordem de prioridade, é determinado pela segurança jurídica que se quer garantir ao lesante. Ela garante-se pela restrição da qualidade de lesados, qualidade que no fundo se reconduz a números: - o cônjuge é só um, os ascendentes não podem ser mais que dois, os filhos podem ser muitos, mas é bastante pouco provável que o sejam. Então, de todo podemos afirmar que viola este direito do lesante à segurança jurídica2, a interpretação do segmento “na falta destes” constante do nº 2 do artigo 496º, como reportando-se à inexistência tanto de familiares do primeiro tipo como de danos sofridos por familiares do primeiro tipo, porquanto este último aspecto se resolve não numa multiplicação de lesados, mas numa substituição de lesados.
E a interpretação quadraria com toda a justiça e acerto, ao fim útil do Direito, enquanto instrumento primeiramente dirigido à obediência auto-determinada, à míngua evidente das forças hétero-determinantes, ou seja, quadraria à paz social que o Direito se propõe estabelecer justamente através do sentido de justiça, num caso como o presente, em que aparentemente a vítima, vivendo com os pais e sendo o filho predilecto, nem chegou a conhecer a sua própria filha, que terá nascido já depois do acidente, sucedendo a morte do pai poucos dias depois. Esta circunstância concreta, da evidência da ausência de dano não patrimonial da filha da vítima e da evidência, em termos gerais, do desgosto profundo que os pais sofrem quando os filhos morrem, bem permite pensar num resultado manifestamente injusto e intolerável para o sentimento da comunidade jurídica, que a invocação, pela ré, da ilegitimidade material dos autores, produz (segundo a tese securitária acima indicada), assim se eximindo a reparar qualquer dano não patrimonial – o que a filha da vítima não teve, e os que os pais da vítima seguramente tiveram. Pode, pois, eventualmente ponderar-se a intervenção do instituto do abuso do direito.
Pela discutibilidade da tese dos autores e recorrentes, e por falta do exercício probatório de apuramento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, e sobretudo dos danos invocados e da sua data de produção, a decisão recorrida limitou-se a excluir o mérito da pretensão dos Autores (isto é, concluiu que os Autores não tinham direito), rematando-a com o dispositivo da ilegitimidade processual, e a consequente absolvição da instância.
Ora, repetindo-se, porque o mérito não intervém na definição da legitimidade processual, porque ao mérito interessaria a discussão acima, porque falta apurar factos, procede o recurso cuja conclusão final não é outra que a dos autos deverem prosseguir para o apuramento do mérito, o que passa, naturalmente, pela produção de prova dos danos que os recorrentes alegaram na petição inicial, além dos demais pressupostos da responsabilidade civil.
Consequentemente, procede o recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se ao tribunal o prosseguimento dos autos, para apuramento dos factos relevantes e posterior e correspondente aplicação do Direito que vier a ser devido.
Custas pela recorrida – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e em consequência revogam a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos em primeira instância para apuramento dos factos relevantes e posterior e correspondente aplicação do Direito que vier a ser devido.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
Lisboa, 10 de Abril de 2025
Eduardo Petersen Silva
Nuno Gonçalves
Nuno Lopes Ribeiro
Processado por meios informáticos e revisto pelo relator
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1. As notas de rodapé citadas são: 3- O legislador alterou a redacção do art.º 496º do Código Civil para a versão actual através da Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, inserindo especificamente a união de facto no corpo do dispositivo, mas não aludiu a outros terceiros excepto os indicados nas normas sucessórias. Argumento, sempre salvo o devido respeito, que se nos afigura periclitante pois que a alteração legislativa da norma decorreu por imperativo do Tribunal Constitucional; 4 Na doutrina Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II e Ana Prata e outros, Código Civil Anotado, vol. I. Almeida e Costa, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol.I e Capelo e Sousa, Direito Geral da Personalidade. Na jurisprudência entre outros citados nessa decisão o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Jorge Dias, 25/05/2021; 5 Na doutrina, Vaz Serra , Gomes Canotilho e Vital Moreira, na definição do conceito de família, Bruno Bom Ferreira in ”Dano Morte”: compreensão dos danos não patrimoniais à luz da evolução do conceito de família”. Na Jurisprudência Insigne Juiz Conselheiro Mário Torres in Acórdão do Tribunal Constitucional 86/2007 e o Ac. TR. Guimarães, 30/05/2013 (Hélder Melo).”; 6 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Maria Clara Figueiredo, 24/10/2023. E pese embora não ser peremptório nesta concreta matéria o infra citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/04/2024, de Jorge Arcanjo, em 1 do capítulo 2.8 – Síntese Conclusiva- que que deixa em aberto a possibilidade de outros terceiros reivindicarem um direito indemnizatório por danos não patrimoniais conforme resulta da expressão utilizada -“em princípio “..; 7 In, Curso de Introdução ao Estudo de Direito, Coimbra, 1972 e Do Actual problema metodológico, da Interpretação Jurídica.
2. Leia-se segurança jurídica como o conhecimento do número de pessoas que, no caso dos acidentes de viação, o condutor de um veículo poderá ter de indemnizar se provocar com culpa sua um acidente mortal (e chame-se insegurança jurídica à circunstância paralisante da condução que seria ter de ponderar a hipótese de indemnizar um sem número de pessoas ligadas à vítima).