CONTRATO DE SEGURO
AGRAVAMENTO DO RISCO
ÓNUS DA PROVA
INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS DO CONTRATO DE SEGURO
Sumário


I. Incumbe à seguradora que invoca a ocorrência de situação de agravamento de risco, com base no qual pretende ver-se exonerada da obrigação de indemnizar o segurado que participou a ocorrência de sinistro, o ónus da prova da factualidade que integra esse agravamento.
II. Quanto à interpretação do clausulado do contrato de seguro vale, conforme entendimento pacífico, o regime geral dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.

Texto Integral


Acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I- RELATÓRIO

EMP01..., Unipessoal, Lda., com sede no lugar da ..., ..., concelho ..., propôs ação declarativa sob a forma de processo comum contra EMP02..., Companhia de Seguros, S.A., com sede no Largo ..., ... Lisboa, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a importância de € 156.912,00, acrescida de juros à taxa supletiva legal desde a data do sinistro até ao efetivo e integral pagamento, e da importância que se vier a apurar, em sede de execução, correspondente aos danos resultantes do facto de não poder adquirir e utilizar objetos equivalentes aos que foram furtados.

Alegou, em síntese, que celebrou um contrato de seguro com a ré, por imposição da empresa EMP03... B.V. Sucursal em Portugal, empresa que subscreveu com a autora um contrato de locação operacional, tendo como objeto os “Equipamentos de som e imagem” constantes de uma fatura com o valor de € 248.246,00 + IVA, que passaram a ser utilizados pela autora em espetáculos de luz e som, em diversos locais, ao longo do ano, em especial nos meses de maio a outubro, e que no fim do dia 18/11/2022 ou no princípio do dia 19/11/2022, ocorreu o furto do conjunto formado pelo veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-TH-.. e semirreboque, que se encontrava no parque de estacionamento da empresa autora, carregado com aparelhos de luz e som utilizados por esta em concertos musicais, três dos quais objeto do contrato de seguro, cujo custo de aquisição ascendeu ao montante total de € 156.912,00.
A ré contestou por exceção –  invocando a ilegitimidade ativa, por não ser a autora a titular ativa da relação litigada relativamente ao pedido de condenação da ré no pagamento de uma indemnização pelos bens em regime de leasing furtados, já que o beneficiário é o locador, proprietário dos bens, e a exclusão contratual resultante do artigo 3.º das cláusulas gerais do contrato de seguro, pelo facto de a autora se ter conformado com o risco existente de um possível e provável furto dos bens que se encontravam dentro do camião estacionado no parque exterior das suas instalações – e por impugnação, no âmbito da qual conclui que o armazenamento dos materiais em semirreboque, e não em armazém, configura um incremento de risco que não foi comunicado à seguradora, acrescentando que não se verifica, no caso em concreto, nenhum dos pressupostos para o acionamento da cobertura de furto contratada, que tem como local de risco o edifício da sede da autora.
A autora pronunciou-se sobre as exceções de ilegitimidade ativa e “da exclusão contratual” invocadas na contestação, e requereu a intervenção acessória da locadora financeira EMP03... B.V. Sucursal em Portugal
Por despacho de 10.01.2024, foi deferido o pedido de intervenção acessória de EMP03... B.V. Sucursal em Portugal
Citada a interveniente, requereu a mesma a convolação da sua intervenção acessória em intervenção principal, nos termos do artigo 316.º do Código de Processo Civil, e, caso a seguradora seja condenada a pagar o valor dos bens furtados no âmbito do contrato de seguro, no valor de € 156.912,00, que tal valor seja pago diretamente à interveniente, acrescido de juros legais desde a data do sinistro até integral pagamento, não autorizando a interveniente que tal valor seja pago à autora.
Em sede de audiência prévia, as partes aceitaram que a interveniente fosse considerada como interveniente principal.
Foi proferido despacho saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova.

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Realizou-se audiência final, e veio a ser proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, julgo a presente ação procedente e, em consequência, condeno a Ré EMP02..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar à Interveniente Principal EMP03... B.V., SUCURSAL EM PORTUGAL a quantia de 141.220,80 € (cento e quarenta e um mil duzentos e vinte euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros à taxa supletiva legal desde 30 dias após as conclusões da investigação até ao efetivo e total pagamento
*
Não se conformando com o assim decidido, a ré interpôs o presente recurso.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:

«1. A Recorrente não pode conformar-se com a sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância, motivo pelo qual interpõe o presente recurso, que versa sobre matéria de facto e matéria de direito, nomeadamente da exclusão contratual e na não verificação dos pressupostos contratuais.

DA DISCORDÂNCIA DA RECORRENTE:
2. Determinante para a adequação do cálculo do prémio de seguro às circunstâncias concretas do caso e ao risco que a Seguradora terá de assumir, afigura-se essencial a delimitação do risco e a determinação do local do mesmo, atento o dever jurídico de informação que recai sobre o segurado na declaração inicial do risco, nos termos e para os efeitos do artigo 24.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro
3. A declaração inicial de risco, enquanto dever pré-contratual que impende sobre o segurado, em que cabe ao tomador do seguro/segurado transmitir as informações para poder delimitar o risco.
4. À luz do princípio da especialidade, o risco é recortado e concretizado através de cláusulas de cobertura e de exclusão, delimitando-o quanto ao tempo, espaço, causas e consequências:
5. Nestes termos, a declaração pré-contratual do risco assume um papel fundamental na configuração do risco coberto, delimitado nas cláusulas contratuais convencionadas: de forma a estimar a probabilidade de verificação do evento extracontratual a que se reporta o contrato e classificar o risco, deve o proponente fornecer ao segurador as informações caracterizadoras do risco.
6. A descrição do risco é concomitantemente um factor de validade do contrato e bem assim um pressuposto de fixação do seu conteúdo, permitindo ao segurador estabelecer a sua opinião do risco e formar, em função dela, a sua vontade contratual o prémio correspondente ao risco assumido.
7. Um dos elementos estruturantes da actividade seguradora assenta precisamente na análise do risco e na consequente adequação dos prémios de seguro às circunstâncias concretas de cada caso, de modo a que seja possível assegurar uma razoável proporcionalidade entre o risco assumido pelo segurador, e o prémio de seguro a suportar pelo tomador, e o prémio de seguro foi calculado de acordo com o risco e coberturas assumidas.
8. Isto para dizer que, enquadrando-se a presente acção, tal como são configurados pedido e causa de pedir, no âmbito da responsabilidade contratual, as obrigações das partes estão delimitadas pelo contrato e, no âmbito da responsabilidade contratual, desde que não violadoras de normas imperativas, de regras fundamentais, dos bons costumes e da boa fé, os direitos e obrigações das partes estão fixadas no clausulado do contrato que, a priori, reflecte a vontade das partes.
9. Está, pois, aqui em causa, a delimitação do risco no contrato de seguro dos autos, pelo que importa, desde logo, atentar às suas coberturas e exclusões, nomeadamente o artigo 3.º das Cláusulas Gerais, sob a epígrafe Exclusões aplicáveis a todas as coberturas, que refere a exclusão expressa de danos derivados, direta ou indiretamente, de atos ou omissões dolosos do Tomador do Seguro ou do Segurado.
10. A este propósito importa as modalidades do dolo, nomeadamente do dolo eventual, cuja consagração encontra respaldo no disposto no n.º 3 do artigo 14.º do Código Penal, nos termos dos quais há uma decisão contra valores tipicamente protegidos, mas como a produção de resultado depende de eventualidades ou condições incertas, o dolo eventual é construído sobre a base de factos de cuja insegurança o agente é consciente.
11. Como infra melhor se demonstrará mas desde já se avança, a Recorrida Autora conformou-se com o risco existente de um possível e provável furto ou mesmo a deterioração dos bens que se encontravam dentro do camião ao os deixar permanecer em semirreboque estacionado no parque exterior das suas instalações.
12. A falta de segurança e de condições do armazenamento do equipamento de som e luz profissional em semirreboque era do conhecimento e consciência da Recorrida Autora, assumindo um risco com o abandono do material no semirreboque, bem como com a omissão dolosa de comportamentos diligentes de zelo na guarda dos mesmos.
13. Tal omissão dolosa no comportamento de guarda nos equipamentos acarreta necessariamente o agravamento do risco, risco esse que não se encontra coberto no contrato dos autos.
14. Ora, como explanado de seguida, as omissões respeitantes à actuação da Recorrida Autora, como locatária dos bens em regime de locação financeira, consubstanciam verdadeiros actos e omissões dolosas, pelo menos na modalidade de dolo eventual, razão pela qual se encontra automaticamente afastada a possibilidade de a presente apólice de seguro responder pelos alegados danos por aplicação da exclusão supra transcrita e invocada.
15. Conforme relatório de averiguação junto aos autos e, salvo melhor opinião, não suficientemente valorado nos presentes autos, junto sob o número 4 com a contestação ora apresentada pela aqui Recorrente, concluiu-se que a guarda dos equipamentos em camião em parque aberto não deixa de configurar negligência.
16. Tratou-se, tão só e simplesmente, de um acto de negligência na protecção dos equipamentos, ao não se encontrarem devidamente armazenados nas instalações da A., já que tal é só uma opção da Segurada, que não faz com que o alegado sinistro esteja enquadrado na apólice, pelo que, por não comunicado nem analisado, não foi aceite pela Recorrente, Seguradora.
17. O armazenamento dos referidos equipamentos em semirreboques e não em armazém próprio configura-se, aliás, como um incremento, um agravamento, do risco, risco esse que não foi comunicado à Seguradora e, portanto, por ela não aceite, pelo que não pode a mesma ser responsabilizada por um risco pelo qual não recebeu o respectivo prémio, risco esse ainda agravado, ao abrigo do princípio “no premium, no risk”.
18. No que aos autos releva, importa a cobertura contratada furto e roubo, incluindo o seu âmbito de cobertura e exclusões específicas, que desde logo se conclui pela não verificação de nenhum dos pressupostos para accionar a mesma, isto é, não foi observada qualquer destas situações que permitiriam o enquadramento da apólice.
19. Na verdade, conforme se depreende do teor, quer dos pressupostos que permitem o accionamento da apólice para furto ou roubo, bem como das situações que conduzem à exclusão da mesma cobertura, o edifício apresenta-se como o local de risco: a sede das instalações da Recorrida Autora, enquanto espaço físico, dotado de estruturas rígidas e de carácter permanente, com paredes e tecto, e isto por ser o espaço adequado à protecção, guarda e segurança, no caso, dos bens seguros, sendo apenas esse espaço que garante e reúne as condições necessárias para aquelas finalidades, já que o mesmo permite o controlo e vigilância sobre os bens, o que claramente não sucede com um espaço aberto, exterior e com menor vigilância.
20. Quis a Seguradora delimitar o local de risco ao edifício da Segurada à sede da mesma, o que não permite enquadrar na apólice, por si só, que qualquer dano ocorrido em território português possa fazer acionar a apólice.
21. O facto de nas condições particulares constar como local de risco “Portugal”, tem apenas que ver com a condição especial contratada de “Transporte” e, como se torna evidente, a ocorrência do sinistro nos termos participados não se enquadra na cobertura de Transporte.
22. Foi pela contratação de coberturas facultativas especiais que levaram ao incremento do prémio, não se encontrando diretamente relacionado com uma cobertura plena de todo e qualquer sinistro, para riscos não assumidos e cobertos.
23. Nesta medida, e como os bens se encontravam em semirreboque estacionado no parque exterior das instalações da A. e não no edifício da sede da mesma, das instalações para o armazenamento do material, não pode ser à Recorrente assacada qualquer responsabilidade na indemnização dos alegados danos, por não preenchimento dos pressupostos das coberturas contratadas e por aplicação das exclusões contratadas, devendo a sentença dos autos ser revogada em toda a sua extensão.
AS DISPOSIÇÕES JURÍDICAS VIOLADAS:
24. A sentença em crise, aliás douta, violou, entre outras, as disposições legais constantes do artigo 227.º, n.º 1 do Código Civil, artigo 413.º do Código de Processo Civil, artigos 24.º e 49.º do DL 72/2008, de 16 de Abril.

TERMOS EM QUE,
deve o presente recurso ser julgado procedente, modificando-se a sentença em crise, nos termos alegados, com o que se fará a acostumada JUSTIÇA!»
*
A autora apresentou contra-alegações, concluindo, a final, que «o recurso deve ser indeferido e confirmada integralmente a douta sentença

Também a interveniente apresentou contra-alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES

«1. As presentes contra-alegações vêm na senda do recurso interposto pela Recorrente EMP02... – Companhia de Seguros, S.A. da sentença proferida que julgou a ação procedente, e em consequência condenou a Recorrente EMP02..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar à Interveniente Principal EMP03... B.V., SUCURSAL EM PORTUGAL a quantia de 141.220,80 € (cento e quarenta e um mil duzentos e vinte euros e oitenta cêntimos) acrescida de juros à taxa supletiva legal desde 30 dias após as conclusões da investigação até ao efetivo e total pagamento.
2. A Recorrente pretende a modificação da sentença alegando a não aplicação da cobertura do contrato de seguro e a existência de exclusão contratual que afasta a sua responsabilidade, alegando que o tomador de seguro, EMP01..., não prestou em conformidade a declaração inicial de risco, aquando da celebração do contrato de seguro, nomeadamente porque não declarou com exatidão as condições de armazenamento do equipamento segurado.
Mas tal não corresponde à realidade,
3. Atenta a prova testemunhal e documental produzida em juízo, constata-se facilmente que assim não era, pois, o material segurado, era constituído por equipamento (grandes colunas de som) que se destinavam a ser utilizadas em festas populares e concertos por todo o País (mobilidade essa salvaguardada pelos bens serem transportados em camiões de grande segurança próprios para o efeito).
4. Sendo que, a Recorrente não pretende a alteração dos factos provados, logo por aí o presente recurso que ora se contra-alega deverá improceder, pois os factos dados como provados não podem ficar como não provados com a conclusão de Direito que a Recorrente pretende daí extrair.
5. Acresce que, a cláusula 5ª das condições gerais do contrato de seguro previa uma cobertura de furto ou roubo, nomeadamente daquele que ocorresse mediante “a) com escalamento ou arrombamento”. Sendo que tal foi o que sucedeu.
6. Para além disso, no contrato de seguro sub judice não há qualquer menção de que os equipamentos teriam de estar dentro de edifício para estarem cobertos para a possibilidade da ocorrência de furto.
7. Nem poderiam, pois se assim fosse, atenta a sua finalidade (transporte para concertos no território nacional em camiões de grande tonelagem), os bens segurados, não poderiam ser utilizados para o fim a que se destinavam.
8. Realce que, a seguradora Recorrente conhecia os bens segurados, conhecia o fim a que se destinavam e conhecia, como foi contratado, a condição especial de transporte dos mesmos, tanto que foi mencionado na apólice de seguro para efeitos de determinação do âmbito do mesmo, que o local de risco era “Portugal”.
9. Deste modo, ao ser o local de risco “Portugal”, não poderá excluir-se a possibilidade de os bens estarem segurados os equipamentos se encontravam armazenados em edifício ou dentro de camiões.
10. Acresce que, nem sequer existiu qualquer agravamento do risco contratado pois nos termos do testemunho do próprio averiguador da Recorrente, AA, era mais difícil proceder ao arrombamento de um camião do que seria fazê-lo se estivesse dentro de um armazém.
11. Conclui-se, ainda, não existindo qualquer fundamento para tal alegação, que não houve qualquer violação das disposições legais constantes do artigo 227.º, n.º 2 do Código Civil, artigo 413.º do Código de Processo Civil, artigos 24.º e 49.º do DL 72/2008, de 16 de abril.
12. Por outro lado, conforme ficou reconhecido nos autos, bem como foi confessado pela co-autora, EMP01..., e admitido pela Recorrente, como estávamos perante contratos de locação operacional, o contrato de seguro previa direitos ressalvados a favor do seu proprietário, no caso EMP04... (e não ao tomador do seguro, EMP01...), pelo que, o pagamento do valor do seguro é devido à ora Recorrida.
13. Face ao exposto, entende a Recorrida por todos os fundamentos já explanados supra que o Tribunal a quo bem andou ao julgar a ação.
Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, confirmando-se a sentença proferida, só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com efeito devolutivo, a subir nos próprios autos, o que não foi alvo de modificação por este Tribunal ad quem.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II- DO MÉRITO DO RECURSO

1. DEFINIÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil – sendo que o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de apreciar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras. 
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões solvendas:
. Da impugnação da matéria de facto.
. Da exclusão contratual.
. Do não preenchimento dos pressupostos das coberturas contratadas.
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2. RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO

2.1. Factualidade considerada provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. Entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato de seguro de danos em bens em regime de locação, titulado pela apólice ...37, mediante o qual esta última assumiu a cobertura de danos verificados em equipamentos de som e imagem, resultantes, entre outros eventos, de furto, tendo ainda sido contratadas as seguintes coberturas facultativas/condições especiais, nos termos do contrato que se juntam:
• Fenómenos Sísmicos;
• Equipamento Eletrónico;
• Responsabilidade Civil Extracontratual;
• Transporte Terrestre.
2. A celebração do contrato de seguro foi imposta à autora pela proprietária e locadora, a Interveniente EMP04..., que cedeu, pelo período de 60 meses, com início a 01/04/2022 e sem opção de compra final, os bens descritos em fatura junta, com a discriminação de todos os objetos adquiridos e informados à seguradora Ré, no valor de € 249.246,00.
3. No que se refere à cobertura de furto/roubo foi contratualizada uma franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis, no mínimo de € 750.
4. Das condições particulares do contrato de seguro resulta que este não pode ser alterado sem o consentimento da locadora e em caso de sinistro, não será paga qualquer indemnização ao locatário sem o prévio consentimento da locadora.
5. Os objetos destinavam-se a ser utilizados pela Autora em espetáculos de luz e som, em diversos locais, e que ocorrem em especial nos meses de maio a outubro.
6. Neste período os bens encontram-se geralmente nos camiões que ficam estacionados nas instalações da Autora, só sendo descarregados para os espetáculos, atendendo ao fim a que estão destinados e às suas grandes dimensões.
7. O parque de estacionamento da empresa está dotado de vedação e portão metálicos, com acesso restrito e abertura remota. 8. A Ré[1] conhecia a natureza dos bens seguros e a sua finalidade.
9. No dia 18/11/2022, sexta-feira vários equipamentos estavam guardados no camião da Autora com a matrícula de ..-TH-.., depois do último espetáculo e para seguirem, na semana seguinte, para uma revisão, a saber:
- 12 ... (colunas de som verticais dispostas três unidades por caixa);
- 12 ... SUB 221 (Subwoofer-graves, dispostas em caixas individuais);
- 4 POWER RACK ... (amplificação para as colunas);
- 1 uni SUB 1 (subwoofer-graves, mais antigo);
- 1 amplificador (usado no SUB P1)
- 8 uni TRUSS PROLYTE S-52F FOLDING 2.4M.
10. O acesso ao interior do semirreboque faz-se através de duas portas de ferro nas traseiras, fechadas através de um sistema de segurança em ferro com um aloquete do mesmo material.
11. Nesta noite, pessoas cuja identificação não se apurou, entraram no parque de estacionamento, e estroncaram o fecho da porta do lado esquerdo da cabine, estroncaram a zona de ignição, para uma ligação direta e, aproveitando o movimento de camiões, pelas 3 da manhã, saíram do parque com o veículo e reboque.
12. Cerca das 13h45m, o veículo foi encontrado, depois de indicação do GPS da Autora, pela GNR, perto da aldeia do ..., concelho ..., com o fecho das portas do semirreboque estroncado e todo o seu conteúdo havia sido furtado.
13. Até esta data os objetos não apareceram, sendo que, entre estes, estavam os objetos do contrato de seguro, cujo preço de aquisição ascendia a € 156.912,00:
- 12 ... (colunas de som verticais dispostas três unidades por caixa);
- 12 ... SUB 221 (Subwoofer-graves, dispostas em caixas individuais);
- 4 POWER RACK ... (amplificação para as colunas).
14. A Autora tem vindo a pagar as mensalidades totais do contrato de locação, não tendo até à interposição da ação sido comunicado à locadora o furto ocorrido.
15. A Autora viu-se impossibilitada de usar os bens e, na falta de assunção da cobertura, de adquirir novos equipamentos.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:

-  A Autora adquiriu os bens à EMP04..., procedendo ao pagamento a prestações;
- O local de risco fosse o edifício fechado da sede da Autora;
- A falta de segurança da guarda dos equipamentos era conhecida da Autora, que abandonou o material no semirreboque;
- Estejam garantidos outros danos que não o valor dos equipamentos.
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2.3. Impugnação da matéria de facto

Nas suas alegações recursivas a recorrente veio requerer, desde logo, que o presente recurso verse sobre a decisão da matéria de facto.

O artigo 640.º, do Código de Processo Civil, estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.
3. […]
Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos de facto que pretende questionar, especificar os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham uma decisão sobre aqueles pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, concretização que deve ser feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova e, quando gravados, com a indicação precisa (exata, na terminologia legal) das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida sobre a matéria de facto.

Procedendo à exegese das alegações de recurso, afigura-se-nos patente o incumprimento dos ónus de especificação a que aludem os n.ºs 1, als. a), b) e c), do artigo 640.º.
Daí que, em consonância com o disposto no n.º 1, do referido dispositivo legal, impõe-se a rejeição, nessa parte, do recurso, sendo que, dada a expressão perentória da lei (através do emprego do adjetivo imediata), não cabe convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desses ónus[2].
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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
3.1. Da exclusão contratual

Como emerge da factualidade apurada, a ora recorrente aceitou o contrato de seguro de danos em bens em regime de locação, titulado pela apólice ...37, mediante o qual assumiu a cobertura de danos verificados em equipamentos de som e imagem, resultantes, entre outros eventos, de furto e roubo, tendo ainda sido contratadas as seguintes coberturas facultativas/condições especiais:
• Fenómenos Sísmicos;
• Equipamento Eletrónico;
• Responsabilidade Civil Extracontratual;
• Transporte Terrestre.
O Tribunal a quo decidiu que o sinistro ocorrido na noite de 18 de novembro de 2022 estava coberto pelo referido contrato de seguro.
A recorrente insurge-se contra o decidido por entender que se aplica ao caso concreto a exclusão contratual contida no artigo 3.º das Cláusulas Gerais do contrato de seguro, o que conduz ao afastamento da sua responsabilidade.
Prescreve o artigo 3.º das referidas Cláusulas Gerais, sob a epígrafe Exclusões aplicáveis a todas as coberturas, que “1. O presente contrato nunca garante os danos que derivem, direta ou indiretamente, de […] i) Atos ou omissões dolosos do Tomador do Seguro, do Segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis”.
Sustenta a recorrente que a recorrida autora se conformou com o risco existente de um possível e provável furto ou mesmo da deterioração dos bens que se encontravam dentro do camião ao deixar os mesmos em semirreboque estacionado no parque exterior das suas instalações; que a falta de segurança e de condições do armazenamento do equipamento de som e luz profissional em semirreboque era do conhecimento e consciência da recorrida autora, e que tal omissão dolosa no comportamento de guarda dos equipamentos acarreta necessariamente o agravamento do risco, que não se encontra coberto no contrato dos autos.

Sobre o agravamento do risco conhecido pela seguradora após a ocorrência do sinistro, dispõe o artigo 94.º do DL. n.º 72/2008, de 16 de abril, no seu n.º 1, e no que para o caso releva, o seguinte:
“Se antes da cessação ou da alteração do contrato nos termos previstos no artigo anterior ocorrer o sinistro cuja verificação ou consequência tenha sido influenciada pelo agravamento do risco, o segurador:
(…)
c) Pode recusar a cobertura em caso de comportamento doloso do tomador do segurado ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, mantendo direito aos prémios vencidos.
(…)”
Conforme se elucida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.03.2019[3], citado pela interveniente nas suas contra-alegações, o agravamento do risco «consiste no aumento da probabilidade de verificação do evento – ou da intensificação das suas consequências potenciais – compreendido no risco coberto pelo contrato relativamente ao cálculo probabilístico efetuado em sede da sua estipulação
Para ser suscetível de produzir efeitos sobre o contrato de seguro, esse agravamento do risco deve apresentar determinadas caraterísticas.
Desde logo, «deve ser posterior à celebração do contrato, assim como imprevisto ou imprevisível. Depois, deve derivar de um facto extrínseco e novo relativamente à situação de risco, porquanto não pode falar-se de agravamento quando o facto que o provoca se integra na evolução normal do estado de coisas existente ao tempo da celebração do contrato. Deve, também, apresentar uma certa estabilidade ou durabilidade, pois há-de tornar-se naturalisticamente idóneo a constituir um novo processo de risco, sendo, em geral, adequado a propiciar a ocorrência do sinistro, pois só assim se perturba a correspondência entre o risco suportado e o prémio cobrado pelo segurador. O agravamento tem de ser efetivo, devendo assim tratar-se de um risco efetivamente variado ou alterado entre o momento da celebração do contrato e um momento subsequente, apurado através de uma avaliação global do risco. Por último, deve ser relevante, deve ser suscetível de influir no cálculo do prémio, na medida em que se o segurador o tivesse conhecido ao tempo da celebração do contrato teria estipulado condições diversas ou não teria concluído o contrato. Pode dizer-se que o agravamento do risco se afigura relevante quando o novo estado de coisas incide indiferentemente sobre a gravidade ou a intensidade do risco. Está em causa o aumento da probabilidade de ocorrência do sinistro ou o agravamento das suas consequências potenciais. Existe, por isso, agravamento do risco quando aumenta a probabilidade do dano ou quando intensifica a potencialidade danosa do sinistro, apesar de a probabilidade de verificação do sinistro se manter invariável. A determinação da relevância do agravamento é feita com base em escolhas que o segurador teria feito em casos similares. Tratando-se de juízos valorativos de tipo subjetivo, serão sempre, necessariamente, balizados, inter alia, pelo princípio da boa fé (arts. 762.º e 334.º do Cód Civil)
Recai sobre a seguradora que invoca a ocorrência de situação de agravamento de risco com base no qual pretende ver-se exonerada da obrigação de indemnizar o segurado que participou a ocorrência de sinistro, o ónus da prova da factualidade que integra esse agravamento, bem como as consequências que do mesmo derivariam quer para a decisão de contratar, quer para o agravamento do prémio (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).[4]
Ora, o armazenamento do equipamento de som e luz profissional em semirreboque, só por si, não configura um agravamento do risco, enquanto «aumento da probabilidade de verificação do evento – ou da intensificação das suas consequências potenciais – compreendido no risco coberto pelo contrato relativamente ao cálculo probabilístico efetuado em sede da sua estipulação», porquanto o facto que provoca o risco integra-se na evolução normal do estado de coisas existente ao tempo da celebração do contrato, não se tratando de um risco efetivamente alterado entre o momento da celebração do contrato e um momento subsequente, tendo em atenção o local de risco contratado, conforme infra se aduzirá.
 Mas ainda que o armazenamento dos referidos bens em semirreboque pudesse configurar um agravamento do risco, sempre a conformação da recorrida autora com o risco existente de um possível e provável furto dos bens que se encontravam no interior do camião ao deixar os mesmos no semirreboque estacionado no parque exterior das suas instalações, careceria de ser factualmente demonstrada e não encontra respaldo no elenco dos factos provados.
Ademais, resultou provado que o acesso ao interior do semirreboque é feito através de duas portas de ferro nas traseiras, fechadas através de um sistema de segurança em ferro com um aloquete do mesmo material, e que para sair do parque com o camião e respetivo reboque foi necessário estroncar o fecho da porta da cabine e a zona de ignição do camião, a fim de efetuar uma ligação direta para colocar o mesmo em funcionamento.
Por conseguinte, nunca se poderia considerar afastada a possibilidade de a apólice de seguro em causa responder pelos danos por aplicação da exclusão contratual contida no artigo 3.º das Cláusulas Gerais do contrato de seguro, e sempre estaria excluída a hipótese prevista no n.º 1, al. c), do artigo 94.º, do DL. n.º 72/2008, de 16 de abril, de recusa de cobertura, por não ter resultado provada a existência de dolo por parte da autora.

Sustenta ainda a recorrente que não se verifica nenhum dos pressupostos para acionamento da cobertura contratada de furto e roubo.
Tal cobertura base encontra o seu âmbito e exclusões específicas regulados no artigo 4.º, ponto 5, das Condições Gerais do contrato de seguro, e abrange “os danos diretamente causados aos bens seguros, em consequência de furto e de roubo, consumado ou tentado, praticado:
a) Com escalamento ou arrombamento;
b) Com utilização de chaves falsas, incluindo as verdadeiras quando fortuita ou sub-repticiamente estiverem fora do poder de quem tiver o direito de as usar e as gazuas ou outros instrumentos usados para fins semelhantes;
c) Por quem se introduza ilegitimamente no edifício onde se encontram os bens seguros, ou nele permaneça escondido com tal intenção;
d) Por meio de violência ou de ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física de pessoa que se encontre no local do risco, ou pondo-a na impossibilidade de resistir.”
E “não garante:
a) O furto e o roubo de que sejam autores ou cúmplices o Tomador do Seguro ou o Segurado;
b) O furto e o roubo de que sejam autores ou cúmplices empregados do Tomador do Seguro ou do Segurado, bem como qualquer pessoa a quem tenham sido confiadas as chaves do edifício onde se encontram os bens seguros;
c) O furto e o roubo dos bens seguros, praticados durante ou na sequência de qualquer outro sinistro abrangido pelas coberturas do presente contrato;
d) O furto de veículos ou equipamentos com locomoção própria, que tenham sido guardados com as chaves na ignição, exceto em caso de arrombamento do local onde se encontrem;
e) O furto subsequente à não substituição das fechaduras ou dos respetivos mecanismos em caso de furto, roubo ou perda das chaves do edifício onde se encontram os bens seguros, bem como subsequente ao abandono, ainda que temporário, das chaves nas portas ou em outro local acessível a qualquer pessoa.”
No entender da recorrida, não foi observada qualquer das situações que permitiriam o enquadramento da apólice, nomeadamente que o furto ocorresse em qualquer uma das seguintes situações:
a) Com escalamento ou arrombamento;
b) Com utilização de chaves falsas, incluindo as verdades quando fortuita ou sub-repticiamente estiverem fora do poder de quem tiver o direito de as usar e as gazuas ou outros instrumentos usados para fins semelhantes;
c) Por quem se introduza ilegitimamente no edifício onde se encontram os bens seguros, ou nele permaneça escondido com tal intenção;
d) Por meio de violência ou de ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física de pessoa que se encontre no local do risco, ou pondo-a na impossibilidade de resistir.
Isto, porque, «conforme se depreende do teor, quer dos pressupostos que permitem o accionamento da apólice para furto ou roubo, bem como das situações que conduzem à exclusão da mesma cobertura, o edifício apresenta-se como o local de risco: a sede das instalações da Recorrida Autora, enquanto espaço físico, dotado de estruturas rígidas e de carácter permanente, com paredes e tecto.
(…)
E isto por ser o espaço adequado à protecção, guarda e segurança, no caso, dos bens seguros, sendo apenas esse espaço que garante e reúne as condições necessárias para aquelas finalidades, já que o mesmo permite o controlo e vigilância sobre os bens, o que claramente não sucede com um espaço aberto, exterior e com menor vigilância.
Quis a Seguradora delimitar o local de risco ao edifício da Segurada à sede da mesma, o que não permite enquadrar na apólice, por si só, que qualquer dano ocorrido em território português possa fazer acionar a apólice.
O facto de nas condições particulares constar como local de risco “Portugal”, tem apenas que ver com a condição especial contratada de “Transporte”.
(…)
Ora, como se torna evidente, a ocorrência do sinistro nos termos participados não se
enquadra na cobertura de Transporte.
Foi pela contratação de coberturas facultativas especiais que levaram ao incremento do prémio, não se encontrando diretamente relacionado com uma cobertura plena de todo e qualquer sinistro.
(…)
Nesta medida, e como os bens se encontravam em semirreboque estacionado no parque exterior das instalações da A. e não no edifício da sede da mesma, das instalações para o armazenamento do material, não pode ser à Recorrente assacada qualquer responsabilidade na indemnização dos alegados danos, por não preenchimento dos pressupostos das coberturas contratadas e por aplicação das exclusões contratadas».

Que dizer?
Na fixação do conteúdo do negócio jurídico que substancia o contrato de seguro há que analisar, em primeira linha, os termos do acordo que os respetivos outorgantes firmaram ao abrigo do poder que lhes é conferido pelo artigo 405.º do Código Civil, termos esses que, no contrato de seguro, devem constar da respetiva apólice, por força do disposto no artigo 37.º do DL. n.º 72/2008, de 16 de abril, que passou a ser considerada como requisito de prova (artigo 32.º).

Com efeito, estabelece o artigo 37.º que:
“1- A apólice inclui todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis.
2 - Da apólice devem constar, no mínimo, os seguintes elementos:
a) A designação de «apólice» e a identificação completa dos documentos que a compõem;
b) A identificação, incluindo o número de identificação fiscal, e o domicílio das partes, bem como, justificando-se, os dados do segurado, do beneficiário e do representante do segurador para efeito de sinistros;
c) A natureza do seguro;
d) Os riscos cobertos;
e) O âmbito territorial e temporal do contrato;
f) Os direitos e obrigações das partes, assim como do segurado e do beneficiário;
g) O capital seguro ou o modo da sua determinação;
h) O prémio ou a fórmula do respectivo cálculo;
i) O início de vigência do contrato, com indicação de dia e hora, e a sua duração;
j) O conteúdo da prestação do segurador em caso de sinistro ou o modo de o determinar;
l) A lei aplicável ao contrato e as condições de arbitragem.  
3 - A apólice deve incluir, ainda, escritas em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes:
a) As cláusulas que estabeleçam causas de invalidade, de prorrogação, de suspensão ou de cessação do contrato por iniciativa de qualquer das partes;
b) As cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação;
c) As cláusulas que imponham ao tomador do seguro ou ao beneficiário deveres de aviso dependentes de prazo.
4 - Sem prejuízo do disposto quanto ao dever de entregar a apólice e da responsabilidade a que haja lugar, a violação do disposto nos números anteriores dá ao tomador do seguro o direito de resolver o contrato nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º e, a qualquer momento, de exigir a correcção da apólice.”
Deste modo, para aferição do conteúdo do contrato, torna-se mister atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos na apólice, havendo igualmente que ter em conta as estipulações negociais que visam delimitar ou excluir certo tipo de riscos.
Como deflui do artigo 2.º das Condições Gerais do ajuizado contrato de seguro, o mesmo garante a cobertura, entre outros, dos riscos de furto e roubo.
A cobertura de furto e roubo abrange os danos diretamente causados aos bens seguros, em consequência de furto e de roubo, consumado ou tentado, praticado, desde logo, com escalamento ou arrombamento.
Perante a descrita proposição contratual, tendo o sinistro ocorrido com estroncamento do fecho da porta do lado esquerdo da cabine, e estroncamento da zona de ignição do camião, primo conspectu, estaria verificado o condicionalismo necessário para o acionamento da cobertura contratada de furto e roubo.
Todavia, como se notou, a recorrente advoga que não se verificam os pressupostos para acionar a aludida cobertura, porquanto, para efeitos do seu acionamento, o edifício apresenta-se como o local do risco: a sede das instalações da recorrida, sendo que o facto de nas condições particulares constar como local de risco “Portugal”, tem apenas que ver com a condição especial contratada de “Transporte”, na qual não se enquadra a ocorrência do sinistro, e, no caso, os bens encontravam-se em semirreboque estacionado no parque exterior das instalações da autora e não no edifício da sede da mesma.
Não foi esse, no entanto, o entendimento sufragado na sentença sob censura, onde se considerou que «[o] evento aqui em causa foi um furto de alguns equipamentos seguros, através de um furto de um veículo pesado onde estes se encontravam, por arrombamento do mesmo.
No âmbito da cobertura de «furto ou roubo» do contrato de seguro ficou estabelecido entre as partes, que a cobertura garante danos resultantes de furto ou roubo (tentado ou consumado), praticado: a) com escalamento ou arrombamento, b) com utilização de chaves falsas (e as gazuas ou outros instrumentos para fins semelhantes).
Ao contrário da alínea c) que refere “por quem se introduza ilegitimamente no edifício onde se encontrem…”, nas referidas a) e b) não se mencionam edifícios; de resto, na alínea d) das exclusões específicas do furto exclui-se apenas “furto de veículos (…) que tenham sido guardados com a chave na ignição”.
Assim, o objeto seguro eram os equipamentos referidos e tinha como local de risco Portugal. Em nenhum lugar se refere que tinham que estar dentro de edifício para estarem cobertos para o furto.
Ainda que estivesse nas condições gerais, tal seria contrário ao efetivamente contratado e à boa fé, atendendo à abrangência negociada do contrato e à natureza do equipamento seguro, que pela sua natureza estaria mais tempo a circular do que na sede da empresa.
Assim, a entrada ilícita nas instalações da Autora, com o estroncamento de três fechaduras, afigura-se-nos como suficiente para enquadrar a situação na condição prevista de furto por arrombamento/chave falsa.»

O problema equacionado no presente recurso reconduz-se, pois, à interpretação de cláusulas do contrato de seguro, em particular do já referido ponto 5 do artigo 4.º, das Condições Gerais do contrato de seguro, por recurso às regras da hermenêutica negocial, sendo certo que para o contrato de seguro, quanto à interpretação do seu clausulado, vale, conforme entendimento pacífico[5], o regime geral dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.
Do artigo 236.º, n.º 1, resulta que “[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.”
Nos termos do n.º 2, do mesmo receito, “[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
Como assinalam Evaristo Mendes e Fernando Sá[6], há ainda a considerar «as seguintes regras ou princípios não escritos, em boa medida dedutíveis do padrão do declaratário normal – isto é, razoável, medianamente esclarecido, diligente e de boa fé – acolhido no artigo 236.°, n.º 1, e recondutíveis genericamente à ideia de que, via de regra, os participantes no tráfico jurídico-negocial prosseguem fins lícitos, atingíveis e razoáveis, comportam-se com um mínimo de racionalidade e respeitam a lei: ( i) o princípio da primazia do fim do negócio, fazendo prevalecer o sentido que lhe seja mais conforme; (ii) o principio da interpretação sistemática e contextual, vendo o negócio no seu todo e atendendo às circunstâncias ou ambiente em que eventuais expressões verbais utilizadas hajam sido proferidas; (iii) o princípio da coerência, privilegiando a interpretação que evite contradições do texto a interpretar, visto como um todo; (iv) o princípio do favor negotii, se estiverem em confronto sentidos divergentes, um dos quais originador de invalidade e/ou ilicitude; (v) e o princípio da tendencial validação de uma «interpretação mais direta» quando estejam em causa fórmulas muito claras e evidentes (substancialmente neste sentido, cf. MENEZES CORDEIRO, 2005: 761 e 766). Referindo, ainda, a respeito dos contratos, os princípios da justiça, do equilíbrio, da razoabilidade e da ponderação das consequências, cf. CARNEIRO DA FRADA, 2012: 978 e ss
Ainda segundo os mesmos autores, é entendimento generalizado que «se se prova existir uma real vontade comum ou coincidente das partes, é o sentido correspondente a essa vontade aquele que se considera juridicamente relevante, mesmo que ele não se encontre espelhado no conteúdo da declaração negocial ou só o esteja de modo imperfeito (falsa demonstrativo non nocet). O n.º 2 do artigo 236.º acrescenta que basta o conhecimento, pelo declaratário real, da vontade do declarante para a declaração valer com esse sentido.
(…)
Não se provando o sentido da vontade real do declarante, ou não se provando o seu conhecimento efetivo pelo declaratário, aplica-se o critério normativo objetivo do n.º l do artigo 236.º: em princípio, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do dedaratário real, poderia deduzir do comportamento do declarante; ou, numa formulação próxima, vale com o sentido que o declaratário real lhe daria se fosse uma pessoa razoável, diligente e de boa fé[7]
Todavia, tratando-se de um negócio formal[8], estipula o artigo 238.º que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
No caso concreto, não resulta da factualidade provada o sentido da vontade real da ré ou o seu conhecimento efetivo pela autora.
Haverá, então, que ter em conta, desde logo, o género de contrato em causa e o fim prosseguido, um contrato de seguro de danos em bens em regime de locação, bem como os interesses envolvidos, que o contrato visa salvaguardar, na medida em que os bens em causa se destinam a ser utilizados pela autora em espetáculos de luz e som, em diversos locais, razão pela qual foi ainda contratada, para além das coberturas base, a cobertura facultativa de Transporte Terrestre, destinada a garantir os danos causados aos bens seguros durante o seu transporte terrestre, por veículo adequado, pertencente ao próprio Segurado ou a terceiros.
O artigo 5.º das Condições Gerais do contrato de seguro, atinente ao âmbito territorial, estabelece que «[a]s garantias do presente contrato são válidas em caso de sinistro ocorrido em Portugal, salvo convenção em contrário constante das Condições Particulares
Das Condições Particulares que constituem o Doc. 2 junto com a petição inicial consta como local de risco “Portugal”.
Considerando todos esses elementos, e ainda os ditames da boa fé, tendo em atenção que os bens segurados se destinavam a ser utilizados em diversos locais, e, por via disso, a serem transportados pelo país, permanecendo, por isso, a maior parte do tempo, fora do edifício da sede da autora, entendemos que a declaração de cobertura de danos diretamente causados aos bens seguros, em consequência de furto praticado com escalamento ou arrombamento, no que respeita ao local de risco, na perspetiva de um declaratário normal no caso, um aderente medianamente esclarecido, diligente e de boa fé, colocado na posição da autora –, deve valer com o sentido de que tal cobertura tem como local de risco Portugal, exigindo apenas que os bens seguros se encontrem em local fechado/trancado, suscetível de ser arrombado para se aceder ao seu interior, sob pena de, assim não se entendendo, se desvirtuar e esvaziar consideravelmente o conteúdo do contrato de seguro, colocando em causa a finalidade visada com a sua celebração.
Efetivamente, é este o sentido que melhor é comportado pelas cláusulas contratuais que definem o âmbito objetivo do seguro contratado e, portanto, aquele que deve valer em consonância com os referidos critérios hermenêuticos (e que tem correspondência no texto da apólice, o que, por conseguinte, releva para os efeitos do disposto no artigo 238.º do Código Civil, dado estarmos em presença de negócio formal).
Aqui chegados, estando provada a ocorrência do sinistro e não estando o mesmo excluído do âmbito de cobertura do ajuizado contrato de seguro, encontra-se a ré investida na obrigação de pagar à interveniente o capital contratualmente estipulado.
Destarte, a apelação terá de improceder.
***
III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
***
Custas pela recorrente (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
                                   
Guimarães, 2 de abril de 2025

Susana Raquel Sousa Pereira – Relatora  
Gonçalo Oliveira Magalhães – 1º Adjunto
José Carlos Pereira Duarte – 2º Adjunto
 

[1] Retifica-se o manifesto lapso de escrita em que incorreu o Tribunal a quo, tendo em atenção o que foi alegado no artigo 41.º da petição inicial, de que a Ré, e não a Autora, teve e tem conhecimento da finalidade dos bens seguros.
[2] A este propósito, a doutrina tem considerado que o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento – cf., por todos, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição Atualizada, p. 199 e FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, p. 170; CARLOS LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, p. 585 e JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 2ª edição, p. 62. Idêntico entendimento tem sido trilhado na jurisprudência, de que constituem exemplo, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.02.2012 (processo n.º 1858/06.5TBMFR. L1.S1), de 22.09.2011 (processo n.º 1368/04.5TBBNV.S1), de 15.09.2011 (processo n.º 455/07.2TBCCH.E1.S1) e de 21.06.2011 (processo n.º 7352/05.4TCLRS.L1.S1), do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.03.2014 (processo n.º 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo n.º 26/10.6TTBRR.L1) e desta Relação de 12.06.2014 (processo n.º 1218/10.3TBBCL.G1).
Registe-se que sobre esta temática, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se, v.g. Decisão Sumária n.º 256/2021, proferida pela Relatora Conselheira Maria José Rangel de Mesquita, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20210256.html, tendo concluído que «não é constitucionalmente censurável, no caso de não se mostrar cumprido o ónus de impugnação especificada da matéria de facto em recurso civil, a cominação com a imediata rejeição do recurso em matéria de facto, sem prévio convite ao recorrente para suprir tal omissão».
[3] Processo n.º 1680/12.0TBGDM.P1.S1.
[4] Vd. o Acórdão da Relação do Porto de 25.09.2023 (processo n.º 7308/20.7T8PRT.P1).
[5] Cf., sobre a interpretação do contrato de seguro, J. C. MOITINHO DE ALMEIDA, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, pp. 31-32, e Contrato de Seguro – Estudos, fevereiro/2009, Coimbra Editora, p. 115 e ss e JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, p. 351 e ss.
[6] Comentário ao Código Civil Parte Geral, Universidade Católica Editora, p. 535, V.
[7] Cf. obra citada, p. 540, notas IX e X.
[8] Entendendo-se como tal, o negócio legalmente sujeito a forma (ad substantiam ou ad probationem) – assim, Evaristo Mendes e Fernando Sá, obra citada, p. 545, IV.