COMPRA E VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONTRATO DE MÚTUO
CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE
NULIDADE DA CLÁUSULA
Sumário


É nula a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador (mutuante) sobre o bem comprado pelo mutuário, mediante recurso aos meios económicos que lhe foram emprestados pelo primeiro, com a finalidade de comprar aquele bem, destinada a garantir o cumprimento das obrigações contratuais que o mutuário assumiu perante o mutuante.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I- RELATÓRIO

Por apenso aos autos de insolvência instaurados contra EMP01..., Lda., em que, por sentença proferida em 29/02/204, transitada em julgado, esta foi declarada insolvente, Banco 1..., S.A., com sede no ..., Edifício ..., piso ..., ... Porto ..., instaurou ação de verificação ulterior de créditos contra Massa Insolvente da devedora, a própria devedora e os credores da massa insolvente, pedindo que se julgasse verificado o crédito de natureza comum, no montante global de 78.028,18 euros, se procedesse à sua graduação no lugar que lhe competir e se reconhecesse que sobre os veículos com as matrículas ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.., ..-XA-.., ..-XM-.. e ..-XM-.. se encontram registadas reservas de propriedade a favor do credor reclamante garantindo a satisfação dos créditos reclamados.
Para tanto alegou, em síntese, que: no exercício da sua atividade bancária celebrou com a devedora seis contratos de mútuo, os quais se destinaram à aquisição de seis veículos automóveis com as matrículas ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.., ..-XA-.., ..-XM-.. e ..-XM-..; nos referidos contratos ficou expressamente convencionado que a aquisição dos veículos estaria sujeita ao regime de reserva de propriedade a favor da reclamante; e a devedora não liquidou a totalidade das quantias que lhe foram emprestadas no âmbito dos referidos contratos, encontrando-se em dívida de capital, juros e cláusula penal, do primeiro contrato a quantia global de 15.748,79 euros, do segundo contrato a quantia global de 15.748,79 euros,  do terceiro contrato a quantia global de 15.748,79 euros, do quarto contrato a quantia global de 14.823,29 euros, do quinto contrato a quantia global de 8.731,76 euros e do sexto contrato a quantia global de 7.226,76 euros.
A Ré Massa Insolvente contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Suscitou a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial por falta de alegação da causa de pedir, sustentando que a Autora não alegou factos que permitam compreender, com o mínimo de rigor, como é que alcançou os valores que diz estarem em dívida, quer a título de capital, quer a título de juros, quer a título de cláusula penal.
Impugnou parte dos factos alegados pela Autora.
Concluiu pedindo que se julgasse improcedente, por não provada, a ação ou, caso assim se não entenda, se ordenasse a notificação da Autora para aperfeiçoar a petição inicial.
Deduziu reconvenção pedindo que se:
a- declarasse nulas e de nenhum efeito as reservas de propriedade constituídas e registadas a favor da reconvinda sobre os veículos com as matrículas ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.., ..-XA-.., ..-XM-.. e ..-XM-..;
b- condenasse a reconvinda a reconhecer que os referidos veículos pertencem à insolvente;
c- ordenasse o cancelamento do registo automóvel das reservas de propriedade constituídas e registadas a favor da reconvinda sobre os veículos objeto dos presentes autos.
Para tanto alegou, em suma, que: os seis contratos de mútuo foram celebrados pela devedora com a Autora-reconvinda mediante os quais financiou a aquisição por aquela dos veículos automóveis; os veículos foram comprados pela devedora junto da EMP02..., S.A. e EMP03..., Lda.; e a constituição de reserva de propriedade sobre os veículos a favor da reconvinda, a fim de garantir as obrigações assumidas pela devedora nos contratos de financiamento é nula, pois essa cláusula apenas pode ser estipulada a favor do alienante, o que não foi o caso.
A Autora-reconvinda replicou, concluindo pela improcedência da exceção dilatória de ineptidão suscitada pela Ré.
Quanto à reconvenção, suscitou a exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, do Juízo de Comércio para conhecer da reconvenção.
Pugnou pela validade da cláusula de reserva de propriedade constituída sobre os veículos automóveis a favor do financiador, invocando doutrina e jurisprudência que perfilha esse entendimento.
Concluiu pedindo que se julgasse: improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial e, em consequência, se julgasse a ação procedente conforme o petitório; procedente a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria que suscitou e, em consequência, se absolvesse ela própria da instância; subsidiariamente, se julgasse a reconvenção improcedente e fosse absolvida do pedido reconvencional.
Realizou-se audiência prévia em que, uma vez frustrada a conciliação das partes, proferiu-se: despacho saneador, em que se julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência, em razão da matéria, suscitada; admitiu-se a reconvenção; fixou-se o valor da causa em 86.028,18 euros; identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova; conheceu-se dos requerimentos de prova; e, finalmente, designou-se data para a realização de audiência final.
Na ata de audiência final realizada em 14/01/2025, Autora-reconvinda e Ré-reconvinte celebraram a transação que se segue:
“A Massa Insolvente reconhece o crédito peticionado pela Autora na presente ação.
A Autora e a Ré Massa Insolvente admitem como assentes os factos alegados no artigo 18º ao artigo 28º da reconvenção.
A Autora desiste do recurso apresentado relativo à competência material do Tribunal do Comércio para decidir da nulidade da reserva de propriedade (apenso H).
No que concerne a nulidade de constituição da reserva de propriedade a favor da Autora sobre os veículos identificados no art. 26º da contestação e porque nesta questão não chegaram a acordo, requerem que a mesma seja decidida por este Digníssimo Tribunal”.

Sobre a transação acabada de referir recaiu a seguinte sentença homologatória, a qual transitou em julgado:
“Nos presentes autos de verificação ulterior de créditos, que Banco 1..., S.A. move a Massa Insolvente de EMP01... – Ensino de Cond. e Form. Rodoviária, Lda., atendendo à qualidade dos intervenientes e à disponibilidade do objeto do litígio, julga-se válida a transação apresentada, homologando-se a mesma por sentença e condenando-se as partes nos seus precisos termos.
Homologa-se também a desistência do recurso interposto pela aqui Autora Banco 1..., S.A. (apenso H).
Abra conclusão a fim de ser proferida decisão quanto à questão jurídica que ainda subsiste”.

Em 20/01/2025, proferiu-se sentença, em que se julgou improcedente a reconvenção e se absolveu a Autora-reconvinda do pedido reconvencional, a qual consta da seguinte parte dispositiva:
“Julga-se procedente a pretensão da A. e, nesta medida, julgam-se válidas as estipulações de reserva de propriedade a favor daquela acima descritas e sobre os veículos identificados no art. 26º da contestação.
Custas a cargo de ambas as partes na proporção de 25% para a Autora e 75% para a Ré Massa Insolvente”.

Inconformada com o decidido, a Ré-reconvinte, Massa Insolvente de EMP01..., Lda., interpôs recurso, em que formulou as conclusões que se seguem:
1- Vem o presente recurso de apelação interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo, nos termos da qual julgou: “Tudo visto, julga-se válida a cláusula de reserva de propriedade favor da A., acarretando a procedência da ação nesta parte do peticionado.”
2- A douta sentença viola a lei substantiva padecendo de erro de interpretação da norma aplicável, nomeadamente, o disposto no art.º 409.º, n.º 1 do Código Civil.
3- O que está em causa é a norma jurídica do n.º 1, do art.º 409.º do C. Civil, que dispõe que nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
4- Assim face à factualidade demonstrada resulta ter sido estabelecida uma relação entre A. e a R. insolvente EMP01... mediante a celebração de vários contratos de mútuo, nos termos dos arts. 1142.º e ss. do Código Civil e entre a R. insolvente e terceiros (EMP02... S.A. e EMP03... Lda.), mediante a celebração de um contrato de compra e venda de veículo, nos termos dos arts. 879.º e 408.º do Código Civil).
5- No âmbito desse contrato de financiamento a A. e a R. insolvente acordaram, como garantia do bom pagamento do capital mutuado a reserva de propriedade das viaturas cuja aquisição foi financiada pelo crédito concedido.
6- Enquanto a A., ora recorrida, entendia que as cláusulas de propriedade são válidas, a R., ora recorrente, entende que as aludidas cláusulas são nulas, já que não é lícito ao financiador, à A., reservar para si a propriedade dos veículos, pois que, estas só podem ser constituídas a favor do alienante.
7- Ora, a questão em divergência é a (in)validade da constituição da reserva de propriedade a favor da A./financiadora, não podendo a recorrente conformar-se com a decisão tomada pelo tribunal a quo, nomeadamente, de julgar válidas as referidas cláusulas de reserva a favor da A..
8- A respeito desta questão jurídica há substancialmente dois entendimentos, podendo ver-se com mais detalhe quer a nível doutrinário quer a nível jurisprudencial a análise feita no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/2014 (processo n.º 844/09.8TVLSB.L1.S1), da Relatora Clara Sottomayor e no Acórdão da Relação de Lisboa de 12/08/2013, do Relator Pedro Martins (processo n.º 3225/12.2YXLSB.L1-2), ambos in www.dgsi.pt..
9- Assim, um primeiro entendimento, vai no sentido de que, nos termos do art. 409.º do C. Civil, a cláusula de reserva de propriedade se circunscreve aos contratos de alienação, razão pela qual não sendo o mutuante o proprietário do bem, não poderia o mesmo reservar para si o direito de propriedade sobre, no caso, as viaturas, até porque, por outra parte, o financiador tem à sua disposição outros mecanismos para assegurar o cumprimento do seu contrato. Assenta o mesmo no elemento literal da regra jurídica enunciada, com apoio também no argumento sistemático, não permitindo uma interpretação que faça caber na mesma a hipótese de constituição de reserva de propriedade a favor do mutuante que não seja   vendedor proprietário.
10- Um segundo entendimento vai no sentido de que se impõe fazer uma interpretação atualista da lei – art. 9.º do C. Civil - e, partindo da expressão «qualquer outro evento» - art. 409.º do C. Civil - admitir ao Financiador a possibilidade de lançar mão da reserva da propriedade em seu benefício, assente no princípio da liberdade contratual, no instituto de coligação de contratos, assim como apelando ao instituto de sub-rogação.
11- Foi este o entendimento seguido pelo tribunal a quo, suportado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/2014 da Relatora Maria Clara Sottomayor, ainda que com o voto contra de Moreira Alves.
12- Contudo, ainda que se pudesse interpretar a norma do art.º 409.º, n.º 1 do C. Civil segundo este entendimento, sempre a sentença em   crise deveria ter reconhecido como nulas as cláusulas de reserva de propriedade constituídas a favor da A..
13- Pois que, este entendimento, perfilha a possibilidade de que possa o vendedor do bem  financiado, ao receber diretamente o preço da venda do bem por parte da financiadora, sub-rogar a sua posição contratual no contrato de compra e venda a esta financiadora, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação, nos termos do 589.º do CC, incluindo a reserva de propriedade que ali tenha sido estabelecida.
14- Possibilidade que encontra acolhimento no art.º 591.º do Código Civil. E, nessas situações existe uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, assumindo o risco em que este incorreria se tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações e passando a dispor das garantias que pertenceriam aquele, no caso a reserva de propriedade.
15- Vertendo ao caso dos autos, da matéria de facto dada como provada, verificamos ter resultado demonstrado simplesmente que a A. ora recorrida, financiou a aquisição das viaturas vendidas por terceiro à insolvente, tendo esta ficado obrigada perante a A. nos termos do contrato de financiamento assim entre ambas celebrado, e, para além disso, que foi registada a favor da A. reserva de propriedade sobre os aludidos veículos (cfr. ponto 8.º da matéria de facto dada como provada).
16- Ora, em face das normas constantes nos arts. 408.º, 409.º, n.º1 e 879.º a) do C. Civil, e inexistindo sequer alegado nem demonstrado qualquer contexto factual que permita fazer funcionar o instituto de sub-rogação (ainda que) na senda do segundo entendimento doutrinal e jurisprudencial descrito, impõe-se concluir, salvo o devido respeito por melhor opinião, que as cláusulas de reserva de propriedade a favor da A., ora recorrida, são nulas nos termos do disposto nos 280.º e 294.º do C. Civil, pois que não sendo a A. proprietária dos bens nada poderia reservar para si a este título.
17- Concluindo, a douta sentença padece de erro julgamento, consubstanciado na errada interpretação da norma jurídica prevista no art.º 409.º do C. Civil.
18- Consequentemente, impõem-se a procedência do presente recurso e a revogação da sentença proferida pelo tribunal a quo, a qual deverá ser substituída por outra, nos termos da qual se decida:
A)  Que as reservas de propriedade objeto da decisão apelada são nulas, pelo que as viaturas com  as matrículas ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.., ..-XA-.., ..-XM-.. e ..-XM-.., integram a massa insolvente.
B) Consequentemente, os registos da reserva de propriedade inscritos a favor da A. devem ser cancelados.
Termos em que, procedendo o recurso, revogando-se a douta sentença recorrida nos segmentos acima melhor identificados, proferindo-se acórdão que substitua a sentença recorrida nos termos propugnados, tudo com as legais consequências, assim se fará a costumada JUSTIÇA.

A recorrida, Banco 1..., S.A., contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso. Formulou as conclusões que se seguem:

1. O Tribunal recorrido decidiu bem.
2. Tem vindo a consolidar-se entre nós uma corrente jurisprudencial que pugna pela validade da estipulação da cláusula da reserva da propriedade a favor do financiador, cujos fundamentos últimos radicam, por um lado, numa interpretação atualista do disposto no artigo 409.ºdoCódigoCivile, por outro lado, no princípio da liberdade contratual.
3- Assim, cumpre ter em linha de conta que, na época em que a norma do artigo 409.º do Código Civil foi criada, as relações jurídico-económicas eram praticamente limitadas à venda a prestações, suportando o vendedor o risco do crédito.
4. Porém, não é esta a situação atual em que a norma é o financiamento de aquisições a crédito ser assegurado por uma instituição de crédito, tendo esta modalidade de negócio trilateral substituído a tradicional venda a prestações, sendo agora o   financiador a assumir o risco do crédito.
5. A reserva da propriedade, sendo tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objeto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem.
6. De acordo com os cânones de uma boa interpretação, o intérprete tem de tomar em consideração as circunstâncias do tempo em que a lei é aplicada, estando a interpretação atualista legitimada pelo Código Civil e pela teoria do direito.
7. Conforme resulta do disposto no art.º 1317.º a) do Código Civil, 408.º n.º 1 e 409.º n.º 1, nos contratos de alienação de coisa determinada, a transferência do direito de propriedade dá-se por “mero efeito do contrato”, porém, as partes podem estipular coisa diversa no  que toca a este efeito real, mediante uma estipulação de “reserva de propriedade”, segundo a qual “o alienante pode reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”.
8. Esta dinâmica contratual a que nos conduziu a já mencionada evolução das relações económicas e as transformações da sociedade de consumo em que vivemos exigem uma leitura atualista das disposições legais já mencionadas, designadamentedodispostonoartigo409.ºdoCódigoCivil.
9. No esquema contratual trilateral atual, o vendedor deixou de correr o risco resultante do incumprimento por parte do comprador, uma vez que lhe passou a ser entregue o preço, por parte da entidade financiadora e, deste modo, não faz sentido que ficasse registada a seu favor a reserva de propriedade em relação à coisa vendida.
10. Quem fica onerado com   o risco do incumprimento é a terceira parte contratante, ou seja, a instituição de crédito financiadora e, por isso, justifica-se que seja este o titular da garantia que constitui a reserva de propriedade.
11. Se, por um lado, a reserva de propriedade é um direito do proprietário, ou seja, do vendedor, conferida pelo disposto no artigo 409.º, n.º 1 do Código Civil, por outro lado, também estatui o artigo 405.º que “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”.
12. Do princípio da liberdade contratual derivam várias consequências: os contraentes são inteiramente livres tanto para contratar ou não contratar, como na fixação do conteúdo das relações contratuais que estabeleçam, desde que não haja lei imperativa, ditame de ordem pública ou bons costumes que se oponham.
13. Não se vislumbra qualquer obstáculo legal a que o alienante possa transferir um direito que é seu para a esfera jurídica de terceiro, neste caso o mutuante, no âmbito do contrato tripartido ou triangular a que vimos aludindo, em que o risco do crédito se desloca do vendedor para o financiador, estando ambos os contratos (compra e venda e mútuo) interligados.
14. Também não pode dizer-se que o sentido proposto para o artigo 409.º não tenha qualquer correspondência no texto da lei uma vez que o Código Civil admitiu a cláusula de reserva de propriedade com grande amplitude e a expressão contida na norma “qualquer outro evento”, pela sua abertura, é suscetível de incluir o pagamento das prestações de um contrato de mútuo ao financiador, afinal, o credor do preço da venda.
15. Consequentemente, há que concluir que a referência feita ao "contrato de alienação" é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade.
16. A melhor doutrina tem-se pronunciado igualmente no sentido da validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, em especial,  ISABEL  MENÉRES  CAMPOS (in “Contributo para o estudo da reserva de propriedade”, p. 402 e seg.), defende que, tendo-se convencionado num contrato de compra e venda financiada por terceira entidade, a reserva de propriedade garante, não o preço devido pela aquisição, mas o montante do crédito concedido no quadro da mesma, a reserva de domínio transmite-se para ofinanciador.
17. A citada autora pugna pela validade dessa estipulação, baseando-se sobretudo em três argumentos:
-  Por um lado, o argumento interpretativo e o princípio da equiparação que permitiriam estender a previsão do artigo 409.º, que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro;
-Por outro lado, o princípio da liberdade contratual, pilar de todo o direito privado português, permite que as partes possam, dentro dos limites da lei, celebrar um contrato deste tipo;
- Finalmente, a reserva de propriedade a favor do financiador corresponderá a um interesse das partes, digno de tutela legal, não contendendo, por seu turno, com os interesses de ninguém de tal modo que se possa afirmar que a cláusula é nula.
18. Nos contratos de mútuo celebrados entre o recorrido e a ré EMP01... foi expressamente acordado nas respetivas cláusulas 9.5 das condições gerais que: “Caso a reserva de propriedade esteja prevista nas CP, o Cliente declara, expressamente, que a quantia mutuada através do contrato se destina ao cumprimento da obrigação de pagar o preço do bem identificado nas CP ao Fornecedor e que o Banco fica sub-rogado nos direitos do Fornecedor,transmitindo-se para o Banco todas as garantias e acessórios do crédito do Fornecedor, designadamente, a reserva de propriedade estipulada sobre o bem alienado até ao integral cumprimento do Contratocoligado,adquirindo o Banco todos os poderes que competiam ao Fornecedor”.
19. No caso sob análise, nos contratos de mútuo assinados pelo insolvente, este sub-rogou o financiador nos direitos do fornecedor, transmitindo-lhe todas as garantias do crédito.
20. Tais cláusulas, significam, no contexto em que foram proferidas, de acordo com os critérios do artigo 236.º, n.º 1 do Código Civil, uma declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado, pelo devedor, nos direitos do credor-artigo 591.º, n.ºs 1e2 do Código Civil.
21. Por força das regras da sub-rogação, o financiador, ao pagar o crédito do vendedor, ficou sub-rogado nos direitos deste, transmitindo-se para aquele o crédito e os seus acessórios e garantias, incluindo a reserva de propriedade.
22. De tudo o acima expendido, não restam assim dúvidas quanto à validade das cláusulas de reserva de propriedade estipuladas a favor do Banco recorrido, não tendo sido violada nenhuma das normas apontadas pela apelante.
23. Em suma, andou bem o Tribunal “a quo” ao julgar improcedente o pedido reconvencional, devendo ser mantida a decisão ora posta em crise.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve ser negado provimento ao recurso interposto pela apelante, com todas as consequências legais.

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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e como efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser, nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar uma única questão que consiste em saber se a sentença recorrida (ao ter julgado válidas as cláusulas de reserva de propriedade constituídas sobre os veículos automóveis a favor da recorrida, com vista a garantir o cumprimento das obrigações emergentes dos contratos de mútuo celebrados entre ela e a devedora, mediante a qual a recorrida financiou a aquisição daqueles veículos e, em consequência, ao ter julgado improcedente a reconvenção, com a absolvição da recorrida do pedido reconvencional) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe a sua revogação e substituição, julgando-se o pedido reconvencional procedente.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão de mérito a proferir a propósito da reconvenção:
1- A A., celebrou com a 2ª Ré “… seis contratos de mútuo que se destinaram à aquisição dos veículos que se passam a elencar:
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-VA-.., cfr. doc. n.º 1 (...27);
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-VA-.., cfr. doc. n.º 2 (...46);
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-VA-.., cfr. doc. n.º 3 (...52);
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XA-.., cfr. doc. n.º 4 (...63);
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XM-.., cfr. doc. n.º 5 (...45); e
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XM-.., cfr. doc. n.º 6 (...46).”.
2- “Foi expressamente convencionado que as aquisições dos referidos veículos estariam sujeitas ao regime de reserva de propriedade a favor do credor reclamante, conforme consta das condições particulares dos contratos de créditos sob a epígrafe “GARANTIAS” e ainda da cláusula 9.5 das condições gerais dos referidos contratos, sendo certo que aqueles registos se manterão em vigor até que lhe seja pago tudo quanto é devido por força dos referidos contratos de financiamento para aquisição dos veículos em causa”.
3- Ou seja, celebrou com a 2ª R. seis “CONTRATOS DE CRÉDITO” com vista a financiar a compra dos veículos automóveis, tendo ficado acordado que a seu favor seriam constituídas reservas de propriedade sobre os veículos automóveis identificados nos mesmos.
4- No âmbito do apenso “B”, em 29/04/2024, foram apreendidos os seguintes veículos automóveis:
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-VA-.., estando tal verba identificada no “Auto de Apreensão” como verba n.º 5, tendo-lhe sido atribuído o valor de € 1.500,00;
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-VA-.., estando tal verba identificada no “Auto de Apreensão” como verba n.º 6, tendo-lhe sido atribuído o valor de € 1.500,00;
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-VA-.., estando tal verba identificada no “Auto de Apreensão” como verba n.º 7, tendo-lhe sido atribuído o valor de € 1.500,00;
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XA-.., estando tal verba identificada no “Auto de Apreensão” como verba n.º 15, tendo-lhe sido atribuído o valor de € 500,00;
- marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-XM-.., estando tal verba identificada no “Auto de Apreensão” como verba n.º 13 tendo-lhe sido atribuído o valor de € 1.500,00 e
- marca ..., com a matrícula ..-XM-.., estando tal verba identificada no “Auto de Apreensão” como verba n.º 12, tendo-lhe sido atribuído o valor de € 1.500,00, conforme documento que sob o n.º 1 se junta e cujo teor se reproduz integralmente.
5- Foi requerida pela reconvinte o registo das aludidas apreensões junto Conservatória do Registo Automóvel ..., através das apresentações com os n.º 10370 (..-VA-..), de 13/06/2024; n.º ...71 (..-VA-..), de 13/06/2024; n.º ...72 (..-VA-..), de 13/06/2024; n.º ...80 (..-XA-..), de 13/06/2024; n.º ...78 (..-XM-..) de 13/06/2024, n.º ...77 (..-XM-..) de 13/06/2024, conforme documento que sob os n.ºs 2, 3, 4, 5, 6 e 7.
6- Os veículos com as matrículas ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.., ..-XA-.., foram adquiridos pela insolvente à sociedade “EMP02... SA”, sita na Estrada ..., ..., ... ..., encontrando-se a propriedade registada a seu favor desde ../../2018,  10/01/2019, 24/09/2018 e 29/03/2019, respetivamente, conforme documentos que sob os n.ºs 8, 9, 10 e 11 se juntam e cujo teor se reproduz integralmente e docs. n.ºs 1, 2, 3 e 4 juntos com a p.i.
7- E os veículos com as matrículas ..-XM-.. e ..-XM-.., foram adquiridos pela insolvente à sociedade “EMP03... Lda.”, sita na Rua ..., ..., ..., ... ..., encontrando-se a propriedade registada a seu favor desde ../../2019, conforme documentos que sob os n.ºs 12 e 13 se juntam e cujo teor se reproduz integralmente e docs. n.ºs 5 e 6 juntos com a p.i.
8- Encontram-se inscritas na Conservatória do Registo Automóvel, a favor da reconvinda, reservas de propriedade, com datas de: ../../2018 (..-VA-..), 10/01/2019 (..-VA-..), 24/09/2018 (..-VA-..), 29/03/2019 (..-XA-..), e ../../2019 (..-XM-.. e ..-XM-..), cfr. docs. n.ºs 8, 9, 10, 11, 12 e 13.
9- A insolvente, representada pelo seu representante legal AA outorgou com a R. seis “Contratos de Crédito”, nomeadamente:
- em 22/06/2018, contrato n.º ...42, cujo montante financiado – € 19.617,21 – se destinou, entre outros, à compra pela insolvente do veículo automóvel da marca e modelo ... 1.4-4D ... + ...,” com o preço de € 19.184,51, conforme documento que sob o n.º 1 foi junto com a p.i.;
- em 18/06/2018, contrato n.º ...96, cujo montante financiado – € 19.617,21 – se destinou, entre outros, à compra pela insolvente do veículo automóvel da marca e modelo ... 1.4-4D ... + ...,” com o preço de € 19.184,51, conforme documento que sob o n.º 2 foi junto com a p.i..;
- em 18/06/2018, contrato n.º ...01, cujo montante financiado – € 19.617,21 – se destinou, entre outros, à compra pela insolvente do veículo automóvel da marca e modelo ... 1.4-4D ... + ...,” com o preço de € 19.184,51, conforme documento que sob o n.º 3 foi junto com a p.i.;
- em 24/01/2019, contrato n.º ...71, cujo montante financiado – € 16.011,06 – se destinou, entre outros, à compra pela insolvente do veículo automóvel da marca e modelo ... 1.0WT-i ...”, com o preço de € 16.500,00, conforme documento que sob o n.º 4;
- em 22/04/2019, contrato n.º ...62, cujo montante financiado – € 7.054,32 – se destinou, entre outros, à compra pela insolvente do veículo motociclo da marca e modelo ...”, com o preço de € 12.496,70, conforme documento que sob o n.º 5;
- em 22/04/2019, contrato n.º ...70, cujo montante financiado – € 5.920,52 – se destinou, entre outros, à compra pela insolvente do veículo motociclo da marca e modelo ... Z400”, com o preço de € 5.685,00, conforme documento que sob o n.º 6.
10- Dos aludidos contratos foi feito constar que o “Fornecedor” dos veículos ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.. e ..-XA-.. foi “EMP02..., S.A” e dos veículos ..-XM-.. e ..-XM-.. “EMP03..., LDA” – cfr. doc. n.º 1 a 6 juntos com a p.i.
11- Os referidos contratos de mútuo ficaram subordinados às condições gerais e particulares que constam dos documentos n.º 1 a 6 juntos com a p.i..
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A questão da (in)validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador para aquisição do bem onerada pela referida cláusula foi tratada pelo aqui relator no recente acórdão desta Relação de 31/10/2024, em que também interveio a aqui 1ª Adjunta, pelo que, analisados e reponderados os fundamentos jurídicos aduzidos por recorrente e recorrida, não se descortinando razões para alterarmos a posição que nele perfilhamos,  passamos basicamente a reproduzir o teor desse aresto[2].
Como ressalta da decisão recorrida, bem como das alegações de recurso, nomeadamente, da doutrina e da jurisprudência que nelas são citadas, não existe consenso doutrinal nem jurisprudencial a propósito da natureza jurídica da cláusula de reserva de propriedade, nem da validade jurídica desta quando aposta num contrato de mútuo, em que a entidade financiadora (mutuante), no exercício da sua atividade, faculta ao financiado (mutuário) os meios monetários necessários ao pagamento do preço de aquisição desse bem a um terceiro, em que estipulem que, para garantia das obrigações emergentes do contrato de mútuo para o mutuário,  o bem comprado fica onerado com reserva de propriedade a favor do mutuante, em face do regime jurídico do art. 409º do CC.
Com efeito, lê-se no identificado art. 409º que:
1- Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2- Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros”.
Conforme decorre do n.º 1 do art. 409º acabado de transcrever, mediante o regime jurídico nele enunciado permite-se que os contraentes, nos contrato de alienação, no exercício da sua liberdade contratual, estipulem uma cláusula (a cláusula de reserva de propriedade) mediante a qual reservam para o alienante a propriedade sobre o bem objeto do contrato enquanto o adquirente não cumprir, total ou parcialmente, com as obrigações contratuais que assumiu perante o alienante e que emergem do contrato celebrado (normalmente o pagamento do preço de compra do bem), afastando assim a regra geral do n.º 1 do art. 408º, segundo a qual nos contratos reais ou com eficácia real a transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito de contrato.
Com a estipulação da cláusula de reserva de propriedade, alienante e adquirente acordam, assim, em submeter um dos efeitos essenciais e típicos dos contratos de alienação – a transmissão da propriedade do alienante para o adquirente por mero efeito da celebração do contrato – a uma condição suspensiva  ou a um termo inicial, em que paralisam o efeito translativo da propriedade do alienante para o adquirente sobre o bem objeto do contrato para um momento futuro, subordinando essa transferência a evento futuro e de verificação incerta (reafirma-se, normalmente o pagamento do preço), mas que fica dependente exclusivamente de um ato do adquirente: a transmissão da propriedade sobre o bem para o adquirente apenas se verificará quando este cumprir com as obrigações contratuais assumidas perante o alienante no contrato a que condicionaram essa transmissão.
Mediante a estipulação da cláusula de reserva de propriedade sujeita-se, portanto, não o contrato de alienação a uma condição suspensiva, mas apenas um dos seus efeitos essenciais típicos – a transferência da propriedade sobre o bem para o adquirente. Com a cláusula de reserva de propriedade a titularidade do direito de propriedade sobre o bem objeto do contrato de alienação permanece na esfera jurídico-patrimonial do alienante, e apenas se transmite para a do adquirente quando este cumprir (e se cumprir) a obrigações contratuais que assumiu perante o alienante a que ambos subordinaram esse efeito translativo de propriedade para aquele.
Com exceção desse efeito típico do contrato de alienação – a transmissão do direito de propriedade sobre o bem da esfera jurídica do alienante para o adquirente -, que não se produz por mero efeito da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, todos os restantes efeitos jurídicos típicos desse contrato produzem-se por mero efeito da sua celebração, nomeadamente, o alienante fica constituído na obrigação de entregar o bem objeto do contrato ao adquirente[3], passando este, com a entrega, a possuí-lo em nome próprio, a usá-lo e a fruí-lo, mas não como titular de um verdadeiro direito de propriedade sobre o bem (porquanto a propriedade, com a celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade permanece na esfera jurídico-patrimonial do alienante), mas por efeito de, por via da execução do contrato de alienação, o alienante lhe ter entregue o bem. Daí que entre o momento da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade e o do cumprimento pelo aquirente da condição a que ele e o alienante subordinaram a transferência do direito de propriedade para aquele, o direito de propriedade e, por conseguinte, a posse, os direitos de uso, fruição e disposição, em termos de direito de propriedade, permaneçam na titularidade do alienante, mas a posse, o uso e a fruição material e efetiva sobre o bem sejam exercidos pelo adquirente.
Acresce enfatizar que, por via da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, atento os efeitos obrigacionais e reais que emergem desse contrato, o adquirente tem direito a adquirir a propriedade sobre o bem, estando essa aquisição unicamente dependente de um ato ou comportamento futuro seu (o cumprimento das obrigações contratuais que assumiu perante o alienante e de cuja satisfação fizeram depender a transmissão do direito de propriedade sobre o bem para si), sem que, por sua vez, por via dos efeitos da celebração do contrato, não assista ao alienante, nem a terceiros, o direito de se oporem a que o adquirente cumpra com aquela condição e, assim, adquira o direito de propriedade sobre o bem objeto do contrato de alienação.
Por isso, apesar de, por via da cláusula de reserva de propriedade, o alienante continuar a ser o titular do direito de propriedade sobre o bem objeto do contrato celebrado, se a posse e os direitos de uso e fruição que são exercidos pelo adquirente não traduzem uma posse e o exercício dos direitos de uso e fruição inerentes a quem é titular de um verdadeiro direito de propriedade sobre esse bem, também com a celebração do contrato o alienante  deixa de ter o direito pleno e exclusivo ao uso, fruição e disposição sobre o bem que são reconhecidos pelo art. 1305º do CC ao proprietário pleno sobre as coisas que lhe pertencem.
O fim visado por alienante e adquirente com a estipulação da cláusula de reserva de propriedade é o de garantirem o cumprimento ao primeiro pelo adquirente das obrigações contratuais que assumiu perante si decorrentes do contrato de alienação que celebraram e a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade sobre o bem para o último, em que a cláusula de reserva de propriedade assume, por isso, uma função de garantia do cumprimento dos direitos de crédito assumidos pelo adquirente perante o alienante emergentes da celebração do contrato de alienação.
Com interesse, expende Paulo Ramos de Faria que, a realidade socioeconómica típica que se encontra subjacente à cláusula de reserva de propriedade no tráfego jurídico-comercial é a seguinte: “O vendedor, um profissional, interessado na comercialização das suas mercadorias (mas desconhecedor da abonação e probidade da contraparte), não está em condições de aceitar cedê-las ao comprador, que pretende adquirir o bem imediatamente, mas que não dispõe dos fundos necessários para saldar o preço, sem que este preste garantias do cumprimento futuro. Na falta de uma garantia sem desapossamento idónea, o vendedor limita o risco de incumprimento pela contraparte reservando para si a propriedade até que o pagamento ocorra. O fim visado pelas partes com a estipulação da cláusula de reserva de propriedade é, como se vê, o de garantir a satisfação do crédito do vendedor ao preço. Pode, pois, afirmar-se que o direito de propriedade é aqui utilizado com função de garantia”[4].
Face às características peculiares dos efeitos jurídicos produzidos pela cláusula de reserva de propriedade que se acabam de enunciar têm sido ensaiadas, a nível doutrinário e jurisprudencial, diversas tentativas para qualificar a sua natureza jurídica: uma corrente defende que a cláusula de reserva de propriedade confere ao alienante um direito real de garantia, na medida em que reveste a natureza de uma garantia real do crédito, e assim, uma hipoteca mobiliária pelo preço em dívida; uma outra corrente defende que, por via da dita cláusula, o vendedor fica investido na titularidade de um direito de penhor com pacto comissário; e outra ainda que sustenta que a cláusula de reserva de propriedade, em termos substanciais, é uma cláusula de garantia que confere ao vendedor o poder de reivindicar o bem no caso de resolução do contrato por incumprimento do comprador, etc.[5].
A doutrina e a jurisprudência tradicionais defendem que a cláusula de reserva de propriedade configura uma condição suspensiva ou termo inicial do negócio de alienação, mediante a qual alienante e adquirente acordam que a propriedade sobre o bem se mantém na titularidade do alienante até ao cumprimento, total ou parcial, pelo adquirente das obrigações contratuais que assumiu perante aquele no contrato celebrado e a que sujeitaram o efeito translativo típico desse tipo contratual (normalmente o pagamento do preço) para o adquirente.
Dito por outras palavras, a cláusula de reserva de propriedade não subordina o contrato de alienação - isto é, todos os efeitos típicos que decorrem da sua celebração - a uma condição suspensiva, mas apenas submete a essa condição suspensiva um dos seus efeitos típicos essenciais: a transmissão da propriedade sobre o bem objeto do contrato para o adquirente[6].
O referido entendimento é o que continua a ser o adotado pela doutrina e jurisprudência nacionais maioritárias e é o que, na nossa perspetiva, melhor explica os efeitos jurídicos produzidos  pela cláusula de reserva de propriedade em face do regime do art. 409º do CC,  no qual se concebe a mesma como uma cláusula acessória dos contratos de alienação, em que, no exercício da sua liberdade contratual, afastando o regime regra do art. 408º,  n.º 1,  alienante e adquirente subordinam a transmissão do direito de propriedade sobre o bem para o adquirente (efeito típico dos contratos de transmissão e que, salvas as exceções previstas na lei, é uma consequência ou decorrência da mera celebração desse tipo contratual) a um evento futuro e incerto; mas unicamente dependente da conduta do adquirente, mais concretamente, do facto do mesmo cumprir com as obrigações contratuais que assumiu perante o alienante.
Trata-se de uma cláusula atípica, mas socialmente típica, acessória dos contratos de alienação, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, que obsta a que o direito de propriedade sobre o bem se transmita para o adquirente como mero efeito da celebração do contrato de alienação, em que a transmissão desse direito apenas ocorre quando o adquirente cumprir no futuro (nas condições acordadas) as obrigações contratuais que assumiu perante o alienante e a que subordinaram a transmissão desse direito.
A reserva de propriedade desempenha, portanto, uma função de garantia dos direitos de crédito do alienante sobre o adquirente que emerge do contrato de alienação que celebraram.
Por mero efeito da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, na medida em que a reserva apenas suspende os efeitos translativos do direito de propriedade para o adquirente, mas não os restantes efeitos jurídicos típicos que decorrem da sua celebração, o alienante fica constituído na obrigação de entregar o bem objeto do contrato ao adquirente; e com a entrega é o adquirente que passa a deter a posse sobre o bem, posse essa que exerce em nome próprio, e, bem assim a usá-lo e fruí-lo.
Contudo, a posse que o adquirente exerce em nome próprio sobre aquele bem, assim como o uso e fruição que sobre ele exerce, derivam da circunstância do alienante, na execução do contrato de alienação, lhe ter entregue o bem, e não do direito de propriedade, uma vez que esse direito, por via da cláusula de reserva de propriedade, permanece na esfera jurídico-patrimonial do alienante.
Deste modo, a posse e os direitos de uso e fruição que são exercidos pelo adquirente no âmbito do contrato de alienação com reserva de propriedade não são uma posse, nem um uso e fruição que são próprios de quem é titular de um verdadeiro direito de propriedade sobre o bem. Permanecendo entre o momento da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade e o cumprimento das obrigações a que alienante e adquirente subordinaram a transmissão do direito de propriedade para o último, na esfera jurídico-patrimonial do alienante[7], caso o adquirente venha a incumprir as obrigações contratuais a que ele e o alienante subordinaram a transmissão do direito de propriedade, assiste ao alienante o direito a resolver o contrato; e, em sequência desta, a obter do adquirente a restituição do bem objeto do contrato, ainda que este - no caso de móvel não sujeito a registo, ou no caso de imóvel ou móvel sujeito a registo, desde que a reserva de propriedade tenha sido registada (n.º 2 do art. 409º) -, tenha transmitido o bem em causa a um terceiro adquirente. É que permanecendo a propriedade sobre o bem na esfera jurídica do alienante, o adquirente não pode transmitir a terceiros adquirentes um direito de propriedade sobre o bem de que não dispunha[8].
Por sua vez, apesar de mediante a inserção da cláusula de reserva de propriedade no contrato de alienação o alienante continuar a ser o titular do direito de propriedade sobre o bem enquanto o adquirente não cumprir com as obrigações contratuais a que ambos subordinaram a transmissão daquele direito para o adquirente (e por isso, ser quem detém a posse e os poderes de uso e fruição que o art. 1305º do CC reconhece ao proprietário), entre o momento da celebração do contrato e o do cumprimento, o mesmo fica investido num direito real diferente da propriedade plena sobre o bem em causa, em relação ao qual passa a ser titular da denominada “propriedade reservada”: apesar de ser titular de um direito absoluto (o direito de propriedade), por natureza oponível erga omnes, a posse, o uso e a fruição que sobre ele são exercidos, em termos materiais e fácticos, são exercitados pelo adquirente. Além disso, por via da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, o alienante não pode opor-se a que o adquirente cumpra com as obrigações (condição) a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade sobre aquele bem; e o efeito translativo do direito de propriedade para a esfera jurídico-patrimonial apenas se encontra dependente de uma conduta do próprio adquirente – o cumprimento das obrigações contratuais que assumiu no contrato de alienação perante o alienante e a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade  sobre o bem para si –, sem que o alienante se possa opor a que cumpra com as referidas obrigações e assim adquira o direito de propriedade.
O adquirente tem, assim, direito a adquirir a propriedade sobre o bem objeto do contrato de alienação com reserva de propriedade, pelo que, caso entre o momento da sua celebração e o cumprimento  dessas obrigações o alienante transmitir esse bem a terceiro, e tratando-se de móvel não sujeito a registo, ou tratando-se de imóvel ou móvel sujeito a registo, se no momento daquela transmissão ao terceiro adquirente a reserva de propriedade estiver inscrita no registo – art. 409º, n.º 2 do CC -, o adquirente tem o direito de sequela sobre o bem.
Esse  direito de sequela, e conforme antedito,  também se afirma a favor do alienante no caso de o adquirente não cumprir as obrigações contratuais emergentes do contrato de alienação a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade para este último, vindo então o alienante a resolver o contrato de alienação celebrado com aquele e que o alienante transmitira entretanto o direito de propriedade a um terceiro (relembra-se, de que não dispunha na sua esfera jurídica, sendo, por isso, esse contrato de alienação nulo, por incidir sobre bem alheio – art. 892º do CC).
O contrato de alienação com reserva de propriedade produz, por isso, efeitos obrigacionais e reais e, por via desses efeitos, mercê da sua mera celebração, o alienante deixa de ter o direito pleno e exclusivo ao uso, fruição e disposição sobre o bem que o art. 1305º do CC reconhece ao proprietário pleno sobre as coisas que lhe pertencem. Ou seja, por mero efeito da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, o alienante fica investido num direito real diferente da propriedade plena (ficando titular da denominada “propriedade reservada”, conforme já referido supra). Por sua vez, o adquirente  fica investido num “direito de expectativa real, fortemente tutelado, de aquisição do direito de propriedade plena e de um direito de gozo que inere à coisa e é oponível erga omnes[9].
A propriedade reservada corresponde a um estádio entre a propriedade plena e o direito real de garantia, em que, por mero efeito da celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade, o alienante fica constituído na obrigação de entregar o bem ao adquirente, com cuja tradição lhe confere a posse (que este exerce em nome próprio) e os direitos de uso e fruição em termos materiais sobre o mesmo durante o período que medeia entre a celebração do contrato e o cumprimento pelo adquirente das obrigações contratuais a que ambos subordinaram a transferência do direito de propriedade para o último.
Durante esse período de tempo, o direito de propriedade permanece na titularidade do alienante, exercendo uma função de garantia em relação aos direitos de crédito que lhe assistem sobre o adquirente e a que subordinaram a aquisição pelo último do direito de propriedade.
Por isso, a posse, os direitos de uso e fruição sobre o bem, em termos de direito de propriedade, são exercidos pelo alienante, enquanto a posse, os direitos de uso e fruição que são exercidos pelo adquirente não se fundam no direito de propriedade, mas sim na tradição do bem que o adquirente lhe fez na execução do contrato de alienação com reserva de propriedade celebrado[10].
O alienante, durante o referido período temporal, vê o seu poder de disposição sobre o bem que alienou com reserva de propriedade fortemente condicionado, na medida em que, caso o transmita a um terceiro, o adquirente com reserva de propriedade, tratando-se de móvel não sujeito a registo, ou tratando-se de imóvel ou móvel sujeito a registo, desde que a cláusula de reserva de propriedade se encontre registada à data em que esse bem foi transmitido ao terceiro (art. 409º, n.º 2), goza do direito de sequela sobre o mesmo. Logo, a eficácia desse ato de disposição do transmitente para o terceiro adquirente (no segundo contrato) fica dependente da resolução do primeiro contrato de alienação, com reserva de propriedade, que celebrou[11], resolução essa que, por sua vez, depende naturalmente do adquirente com reserva de propriedade ter incumprido com as obrigações contratuais para com o alienante (a que  subordinaram a transferência do direito de propriedade para si), sem que o alienante, relembra-se, se possa opor a que este cumpra com essas obrigações (condições) e com isso adquira a propriedade plena sobre o bem.
Por sua vez, o adquirente com reserva de propriedade, durante o referido período de tempo, tem uma expectativa de aquisição da propriedade sobre o bem, assente no contrato de alienação com reserva de propriedade que celebrou com o alienante, em que a aquisição desse direito apenas depende de um ato seu (o cumprimento perante o alienante das obrigações contratuais a que subordinaram a transmissão do direito de propriedade para si). Essa expectativa de aquisição é oponível ao alienante (que, por via do contrato celebrado, não pode impedir que aquele pratique o ato que o tornará proprietário) e a terceiros adquirentes, em relação a quem o adquirente com reserva de propriedade - no caso de coisa móvel não sujeita a registo ou, tratando-se de coisa imóvel ou móvel sujeita a registo, a partir da inscrição no registo da cláusula de reserva de propriedade - goza do direito de sequela sobre o bem (arts. 409º, n.º 2 e 275º, n.º 2 do CC).
O adquirente com reserva de propriedade é, portanto, em suma, titular de um direito real de aquisição e de gozo sobre a coisa objeto do contrato de alienação com reserva de propriedade[12].
Feito aquele que, na nossa perspetiva, deve ser o enquadramento jurídico da cláusula de reserva de propriedade à luz do ordenamento jurídico civilístico nacional, nomeadamente, do disposto no art. 409º do CC, importa passar à análise da questão essencial ou nuclear em discussão no presente recurso: a questão da validade (ou não) da cláusula da reserva de propriedade aposta em contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, em que a instituição bancária empresta a quantia monetária ao mutuário necessária para que este pague o preço de compra de um bem – nomeadamente (como acontece no caso dos autos), de veículos automóveis a terceiros (vendedores) -, reservando para si (mutuante), mediante acordo do mutuário, a propriedade sobre o bem comprado pelo último até que este cumpra com as obrigações contratuais emergentes do contrato de mútuo, cumprindo, assim, a cláusula de reserva de propriedade uma função de garantia do cumprimento pelo mutuário das obrigações emergentes do contrato (de mútuo) que celebrou e que assumiu perante o mutuante.
A referida questão não tem merecido uma resposta consensual ao nível da doutrina e da jurisprudência portuguesas.
Com efeito, a favor da validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador aposta no contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, pronunciam-se Isabel Meneres Campos[13], Nuno Pinto de Oliveira[14], e uma corrente jurisprudencial, que cremos ser minoritária[15].
Em sentido contrário pronunciam-se Paulo Ramos de Faria, Ana Maria Peralta, Luís Lima Pinheiro[16], Fernando Gravato Morais[17], Menezes Leitão[18], Paulo Duarte[19], e a corrente jurisprudencial tradicional que, a nosso ver, permanece maioritária[20].
A corrente que se pronuncia no sentido da validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador assenta a sua posição nos seguintes argumentos: a) a cláusula de reserva da propriedade mais não é do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens adquiridos mediante acesso ao crédito desde a data em que foi consagrada a norma do art. 409º do CC, em que a reserva surgiu, historicamente, não só para garantir o pagamento do preço ao vendedor, mas também por razões sociais, pois permite o acesso à propriedade das pessoas mais desfavorecidas a bens de consumo, em que as alternativas ao dispor do mutuante exigem maiores formalismos, perdendo-se em celeridade e eficácia, o que acabará por redundar num aumento de despesas com a compra e venda de bens de consumo pela generalidade dos consumidores; b) atualmente as vendas a crédito de bens de consumo já não são configuradas como relações bilaterais, mas triangulares, nas quais o vendedor do bem recebe logo o preço de compra do bem do financiador por via do contrato de mútuo que este celebrou com o comprador (mutuante), pelo que é o financiador (mutuante) quem passa a suportar o risco do incumprimento que, nas vendas tradicionais, recaía sobre o vendedor, risco esse que, inclusivamente, é atualmente agravado pela circunstância dos contratos de consumo terem por objeto bens de consumo de elevado valor (v.g. veículos automóveis, televisores e aparelhos de som de marcas conceituadas, etc.), os quais  sofrem uma rápida desvalorização a partir do momento da sua aquisição; c) a ordem jurídica não pode ignorar que os dois contratos – compra e venda e mútuo – coexistem e estão interligados entre si, visando a consecução de uma finalidade económica comum,  que é a facilitação do consumo por recurso ao crédito, em que apesar dos dois contratos manterem a sua autonomia estrutural e formal, mantém uma interdependência de interesses entre o triângulo, em que o acordo entre as partes da relação triangular deverá ser visto como unitário, pelo que ambos os contratos devem merecer um tratamento jurídico unitário; d) esse tratamento jurídico unitário corresponde à vontade das partes contratantes (vendedor, comprador/mutuário e mutuante/financiador), pelo que a validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato de mútuo a favor do mutuante, onerando o bem comprado (financiado), garantindo o cumprimento das obrigações contratuais que o mutuário assumiu perante o mutuante no contrato de mútuo, acaba por ser a expressão da liberdade contratual que assiste aos contraentes; e) as normas dos arts. 408º e 409º do CC têm natureza dispositiva, e não imperativa, não existindo, por isso, qualquer óbice legal à validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade aposta em contrato de mútuo para aquisição de bem mediante recurso a crédito, onerando o bem adquirido, a favor do mutuante, financiador daquela compra; f) as obrigações que originam a reserva de propriedade nos contratos de consumo são as prestações concernentes ao contrato de mútuo, que correspondem, de algum modo, ao preço relativo ao contrato de compra e venda, em que, uma vez pago o preço do bem ao vendedor, este desaparece da relação contratual triangular que inicialmente existia entre vendedor, comprador e financiador, nada impedindo que o vendedor sub-rogue o financiador (mutuante) - que passa a assumir o risco do incumprimento do comprador -, nos direitos de crédito que detém sobre o comprador por via de contrato de compra e venda celebrado e nas garantias pessoais e reais que constituiu no contrato sobre aquele, incluindo, na cláusula de reserva de propriedade que constituíram sobre o bem objeto da compra e venda.
Com base nos argumentos que se acabam de referir, concluem os defensores da referida corrente doutrinal e jurisprudencial nada obstar à validade jurídica da cláusula de reserva de propriedade aposta num contrato de financiamento, na modalidade de mútuo, em benefício do mutuante, onerando o bem objeto do contrato de compra e venda, cujo preço foi pago pelo mutuário, mediante o recurso à quantia monetária que aquele lhe emprestou, defendendo uma interpretação atualista do regime jurídico do art. 409º do CC, de modo a que abranja a reserva de propriedade constituída a favor do financiador (mutuante), e tanto mais que, com base na interpretação daquela norma, face à própria letra desta, que se refere a “qualquer outro evento”, nada obsta a que se considere englobada na referida expressão a reserva de propriedade sobre o bem constituída a favor do financiador.
Acontece que, analisados os argumentos que se acabam de explanar, dir-se-á que, face ao âmbito de aplicação do art. 409º da cláusula de reserva de propriedade (em que, conforme antedito, esta foi  concebida pelo legislador nacional como uma cláusula acessória dos contratos de alienação), aos efeitos jurídicos que que dela extrai (em que a cláusula em análise paralisa um dos efeito típicos decorrente da celebração dos contratos de alienação  - a transmissão da propriedade sobre o bem alienado da esfera jurídico-patrimonial do alienante para a do adquirente -, permanecendo a propriedade sobre o bem objeto do contrato na titularidade do alienante, enquanto o adquirente não cumprir com as obrigações contratuais que assumiu no contrato de alienação perante ele e a que subordinaram a transmissão daquele direito para o adquirente, em que, por isso, a reserva de propriedade funciona como garantia do cumprimento pelo adquirente dos direitos de crédito emergentes do contrato para o alienante), e aos efeitos obrigacionais e reais que decorrem da celebração desse tipo de contrato com reserva de propriedade (tudo conforme acima já se deixou enunciado), a que acrescem os argumentos que se passam a expor, prefigura-se-nos que o entendimento que melhor se adequa à figura da reserva de propriedade, tal como se encontra delineada no ordenamento jurídico nacional, é o que defende a sua invalidade jurídica quando seja estipulada a favor do financiador.
Concretizando…
O art. 409º do CC considera ser lícito ao alienante que nos contratos de alienação reserve para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento, o que significa que, de acordo com a letra da lei – elemento gramatical – o legislador reservou expressamente a estipulação de cláusula de reserva de propriedade aos contratos de alienação, considerando que esta é uma cláusula acessória dos contratos de alienação,  destinando-se a garantir o cumprimento das obrigações neles assumidas pela contraparte (adquirente) perante o alienante.
O sentido corrente e natural da expressão “alienação” quando tomada numa perspetiva jurídica é de compra e venda.
Por isso, de acordo com o elemento gramatical (o texto da norma do art. 409º do CC), a cláusula de reserva de propriedade é reservada pelo legislador aos “contratos de alienação”, ou seja, aos contratos de compra e venda, em que aquela funciona como garantia de cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo comprador perante o vendedor – normalmente, o pagamento do preço -, ao paralisar o efeito translativo da propriedade sobre o bem decorrente da celebração daquele contrato enquanto o comprador não cumprir com as obrigações a que subordinaram a transferência do direito de propriedade para si.
É certo que, nos termos do art. 9º do CC, na interpretação da norma o intérprete “não deve cingir-se à letra da lei”, mas deve reconstituir “a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1 do art. 9º). Isto significa, por um lado,  que em sede interpretativa o legislador aderiu ao atualismo, em que “a lei vale na verdade para todas as épocas, mas em cada época” deve ser interpretada “da maneira como esta a compreende e desimplica, segundo a sua própria consciência jurídica”[21]; e por outro, em sede de interpretação, a letra da lei (elemento gramatical) é apenas um dos elementos interpretativos a considerar, a que acrescem mais três: a) a “unidade do sistema jurídico” (elemento sistemático); b) “as circunstâncias em que a lei foi elaborada” (elemento histórico); e c) “as condições específicas do tempo em que é aplicada” (elemento racional ou teleológico).
Seguindo os ensinamentos de Baptista Machado, pelo elemento sistemático, a norma deve ser interpretada tendo em “consideração as outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei)”, mas também as que “regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos)”, tendo presente que “as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário”, pelo que a interpretação a dar a uma determinada norma jurídica deve ser de molde a obter-se uma coerência interna do ordenamento jurídico.
Pelo elemento histórico, o intérprete deve ter presente “todos os materiais relacionados com a história” da norma interpretanda, a saber: “a) A história evolutiva do instituto, tendo presente que “as mais das vezes a norma é produto de uma evolução histórica de certo regime jurídico, pelo que o conhecimento dessa evolução é suscetível de lançar luz sobre o sentido da norma, pois nos faz compreender o que pretendeu o legislador com a fórmula ou com a alteração legislativa; b) As chamadas “fontes da lei”, ou seja, os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador”, incluindo as leis de outros países “que serviram de modelo ao legislador português, em muitos pontos, ou que, pelo menos, representam as fontes em que ele foi beber a sua inspiração”; e c) Os trabalhos preparatórios,  isto é, “os estudos prévios, os anteprojetos que normalmente os acompanham, os projetos, as respostas a críticas, as propostas de alteração aos projetos, as atas das comissões encarregadas da elaboração da projeto”, etc., os quais “são de grande valia para definir a atitude final e a opção do legislador, servindo para afastar interpretações que se devem considerar rejeitadas”. 
Finalmente, pelo elemento racional ou teleológico, o intérprete deve buscar a razão de ser de o legislador ter adotado a norma interpretanda – ratio legis -, o fim visado pelo legislador ao elaborá-la, em que o conhecimento desse fim, sobretudo “quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.) em que foi elaborada ou da conjuntura político-económico-social que motivou a sua consagração/criação constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido interpretativo a ser-lhe dado, ao impor que tenha de ser interpretada de modo a transpor os objetivos prosseguidos pelo legislador com a sua consagração “para o condicionalismo atual”, e a que se ajuste o “próprio significado” da mesma à evolução entretanto sofrida pelo ordenamento jurídico (pela introdução de novas normas ou decisões valorativas) “em cuja vida ela se integra”.
A interpretação da norma segundo os quatro cânones interpretativos acabados de enunciar poderá demandar que se tenha de fazer: a) uma interpretação declarativa da norma interpretanda (elegendo um dos sentidos que o texto direta e claramente comporta, por ser o que corresponde ao pensamento legislativo); b) uma interpretação extensiva (quando se conclua que o elemento gramatical – texto – daquela fica aquém do espírito da lei, impondo-se então que se alargue ou estenda o seu texto, dando-lhe um alcance interpretativo conforme ao pensamento legislativo); c) uma interpretação restritiva (quando se conclua que o seu texto diz mais do que aquilo que corresponde à intenção do legislador, impondo-se então que se restrinja aquilo que se extrai do texto da norma de modo a que apenas abarque o pensamento legislativo); d) uma interpretação revogatória (quando se conclua que o texto da norma não está conforme ao pensamento legislativo e que este nem sequer consegue abranger o pensamento legislativo que com ela se quis prosseguir, impondo-se então sacrificar parte do texto ou a totalidade do texto da norma interpretanda); f) ou uma interpretação enunciativa (quando se conclua que o texto da norma apenas contém virtualmente o pensamento legislativo prosseguido pelo legislador, impondo-se então por inferências lógico-jurídicas interpretar a norma de acordo com o sentido interpretativo que lhe quis dar o legislador e que apenas nela se encontra virtualmente contido)[22].
Note-se, contudo, que, como alerta aquele mesmo autor e decorre do art. 9º, n.ºs 2 e 3, nessa tarefa interpretativa o intérprete não pode considerar um “pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2) e tem de presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3). “A letra (o enunciado linguístico), é assim, o ponto de partida” para a interpretação da norma jurídica. “Mas não só, pois exerce uma função de um limite, nos termos do art. 9º, n.º 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Acresce que a letra da lei (texto) exerce ainda “uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9º, n.º 3, o intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e direto da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo. Desde logo, o mesmo n.º 3 destaca outra presunção: “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”. Este n.º 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagra as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz), mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo. Só que não convém exagerar a tónica objetivista, pois já vimos ser ponto assente que a nossa lei não tomou partido entre as duas correntes (a subjetivista e a objetivista)”[23] (destacado nosso).
Assentes nas premissas acabadas de referir, atento o elemento gramatical (a letra) do art. 409º - o qual, conforme antedito, é o ponto de partida da tarefa interpretativa e que leva que se tenha de rejeitar entre os sentidos interpretativos possíveis os que não tenham na letra da lei um mínimo de correspondência verbal possível, ainda que imperfeitamente expresso, sem que se descure que se impõe presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas -, dir-se-á que nele, ao estatuir-se que:  “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade …”, o texto da norma em referência é no sentido de que a cláusula de reserva de propriedade se encontra nele prevista, única e exclusivamente, para os contratos de alienação; e apenas pode neles ser estipulada a favor do alienante, onerando o bem objeto desse contrato, garantindo as obrigações contratuais nele assumidas pelo adquirente perante o alienante, exercendo neles uma função de garantia dos direitos de crédito assumidos pelo adquirente perante o alienante (normalmente, o pagamento do preço de venda do bem alienado). E não só o significado da expressão “contrato de alienação” corresponde ao de “contrato de compra e venda”, como esse também é o sentido natural, normal e corrente da expressão em referência.
Recorrendo ao elemento sistemático, a norma em referência insere-se no Capítulo II, que tem por epigrafe as “Fontes da Obrigações”, e integra-se na Secção I daquele capítulo, a qual versa sobre os “Contratos”.
Deste modo, o legislador previu a norma do art. 409º do CC, no capítulo relativo às fontes das obrigações, e entre estas, na Secção relativa aos contratos.
Nessa Secção, começou por se consagrar os princípios gerais vigente em sede de contratos: o princípio da liberdade contratual (art. 405º do CC); o princípio da eficácia relativa dos contratos (art. 406º do CC); o princípio regra da preferência ou prevalência dos direitos pessoais de gozo constituídos no contrato primeiramente celebrado sobre o bem, quando sobre o mesmo forem constituídos, através de sucessivos contratos, direitos pessoais de gozo incompatíveis entre si a favor de pessoas diferentes (art. 408º do CC); e o princípio de que nos contratos constitutivos ou translativos de direito reais sobre coisa determinada, a constituição ou a transferência do direito real sobre aquela dá-se, por norma, por mero efeito da celebração do contrato (art. 408º do CC). Depois, na norma do art. 409º, permite-se aos contraentes que, nos contratos de alienação (isto é, nos contratos de compra e venda), reservassem para o “alienante” (vendedor) “a propriedade da coisa até ao cumprimento parcial das obrigações da outra parte ao até à verificação de qualquer outro evento”, isto é, até o comprador (contraparte do “alienante”) cumprir com as obrigações contratuais assumidas naquele contrato perante o “alienante” (vendedor) e a que subordinaram a transmissão da propriedade sobre o bem para o comprador.
Deste modo, entre as fontes das obrigações, o legislador começou por identificar como primeira fonte das obrigações os “contratos”. A propósito da primeira fonte das obrigações que enumerou - os contratos –, o legislador começou por enunciar o princípio fundamental vigente em sede contratual, que é o da liberdade contratual, reconhecendo aos contraentes (como é próprio de uma sociedade liberal e de mercado) o direito de celebrarem os contratos previstos e regulados pelo próprio legislador (os denominados contratos típicos ou nominados), contratos diferentes daqueles (os denominados contratos atípicos ou inominados), e de incluir nos contratos nominados as cláusulas que lhes aprouver, impondo como único limite a essa liberdade contratual os que decorram da lei.
Acresce que, não desconhecendo o legislador que entre os contratos típicos que prevê e regula, e os atípicos que permite que as partes celebrem, existem os que produzem apenas efeitos obrigacionais e aqueles outros que produzem efeitos obrigacionais e reais, o  mesmo estabeleceu como regra geral que os efeitos reais dos contratos que sejam celebrados produzem-se por mero efeito da sua celebração, “salvas as exceções previstas na lei”; e passou, de seguida, a estatuir que nos autos de alienação “é lícito” ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento  total ou parcial das obrigações da outra parte, paralisando os contraentes, mediante a inserção da cláusula da reserva de propriedade, nos contratos de alienação, o efeito translativo da propriedade sobre o bem por mero efeito da celebração do contrato enquanto o comprador não cumprir com as obrigações contratuais que assumiu perante o alienante (vendedor) a que ambos subordinaram esse efeito translativo da propriedade (reafirma-se, normalmente o pagamento do preço).
Daí que, salvo melhor opinião, o elemento gramatical (a letra da lei)  - as expressões “contratos de alienação” e “alienante” utilizadas pelo art. 409º - apenas permite/consente uma interpretação segundo a qual o legislador (em relação ao qual, relembra-se, o intérprete deverá presumir ter consagrado as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados) apenas considerou (e considera) ser “lícito” (legalmente permitida) aos contraentes estipularem a cláusula de reserva da propriedade nos “contratos de alienação”, sendo neles estipulada a favor do “alienante” (vendedor), isto é:  essa cláusula apenas pode ser estipulada em contratos de compra e venda em que o vendedor reserve para si o direito de propriedade sobre a coisa vendida enquanto o comprador não cumprir com as obrigações que perante si assumiu no âmbito desse contrato e a que subordinaram o efeito translativo da propriedade sobre o bem para o comprador (normalmente, o pagamento do preço).
Para além do que se acaba de concluir ser o sentido interpretativo natural, normal e corrente das expressões “contratos de alienação”, “alienante” e “reservar para si a propriedade da coisa”, a circunstância de o legislado declarar naquele art. 409º, n.º 1 que “é lícito”, permite concluir a contrario sensu que apenas é “lícito”, ou seja, legalmente permitido estipular a cláusula de reserva de propriedade nos contratos de compra e venda a favor do comprador, onerando a coisa objeto desse contrato, essa também é a única interpretação possível que se retira do elemento sistemático, atento o que acima se acabou de referir.
De resto, o mutuante não transmite a propriedade sobre uma coisa, mas empresta dinheiro ao mutuário, pelo que a constituição de reserva de propriedade a favor daquele, sobre a coisa comprada, mediante a utilização dos meios económicos que lhe foram emprestados pelo primeiro, para garantir o cumprimento das obrigações que assumiu perante o mutuante emergentes do contrato de mútuo que celebraram, salvo melhor entendimento, não tem na letra da norma do art. 409º do CC um mínimo de correspondência verbal possível, ainda que imperfeitamente expresso.
Passando ao elemento histórico, é certo que à data em que a norma do art. 409º do CC foi consagrada pelo legislador a compra e venda de bens a crédito processava-se essencialmente mediante recurso ao instituto da compra e venda a prestações.
Porém, já então o legislador não desconhecia que, quando o comprador pretendia comprar determinado bem e não dispunha dos meios económicos necessários ao pagamento do respetivo preço,  não recorria sempre ao instituto da compra e venda a prestações e que este não era o único instituto ou meio jurídico de que aquele se podia socorrer (e se socorria) para se financiar e adquirir o bem que pretendia comprar: já então, em 1966, existiam meios de financiamento alternativos, através dos quais obtinha os meios económicos necessários para proceder ao pagamento do preço do bem a pronto pagamento, nomeadamente, o contrato de mútuo celebrado com uma instituição bancária, ou com terceiros, mormente, familiares.
Pois bem, não ignorando essa realidade económica e social já existente em 1966, o legislador não permitiu que o comprador/mutuário, no contrato de mútuo que celebrasse com o mutuante, a fim de obter os meios necessários para proceder ao pagamento do preço de compra do bem que pretendia adquirir, acordasse com o mutuante na constituição de uma reserva de propriedade sobre esse bem, garantido o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de mútuo que assumiu perante o mutuante: conforme antes de deixou dito, atento o elemento gramatical, o sentido natural e normal das expressões utilizadas no art. 409º do CC, e a sua inserção sistemática, a única interpretação possível do preceito em causa é o de que a cláusula de reserva de propriedade nele prevista foi reservada pelo legislador para os contratos de alienação (isto é, para os contratos de compra e venda, onerando o bem objeto desse tipo contratual, em benefício do vendedor), funcionando como garantia do cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo comprador perante o vendedor.
Acresce referir que, com a intensificação da compra de bens de consumo a crédito, no D.L. n.º 133/2009, de 02/06 (que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de abril), o legislador passou a regular essas relações contratuais bipartidas (quando o comprador ou adquirente do serviço é, em simultâneo, o mutuário, e o vendedor ou prestador do serviço é, em simultâneo, o mutuante) ou tripartidas (em que comprador ou adquirente do serviço, vendedor ou prestador do serviço e mutuante são três pessoas jurídicas distintas), dando aos contratos abrangidos pelo campo objetivo e subjetivo deste diploma um tratamento jurídico unitário.
A propósito do seu campo de aplicação subjetivo, o regime jurídico daquele diploma apenas é aplicável aos contratos por ele abrangidos e que sejam celebrados por um «consumidor», considerando-se para efeitos da sua aplicação por «consumidor» a pessoa singular que celebre contratos de aquisição de bens de consumo abrangidos pelo referido diploma, que adquirisse bem(ns) destinados a objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional – cfr. art. 4º, n.º 1, al. a) do DL. n.º 133/2009.
No mencionado diploma passou a considerar-se ocorrer uma situação de «contrato de crédito coligado» quando fosse celebrado um contrato de compra e venda ou de prestação de serviço específico e o crédito concedido servisse exclusivamente para financiar o pagamento do preço do contrato de fornecimento de bens ou de prestação de serviços específicos; e ambos os contratos constituíssem objetivamente uma unidade económica, designadamente se o crédito ao consumidor  fosse financiado pelo fornecedor ou pelo prestador do serviço ou, no caso de financiamento por terceiro, se o credor recorresse ao fornecedor ou ao prestador do serviço para preparar ou celebrar o contrato de crédito ou se o bem ou serviço específico estivessem expressamente previstos no contrato de crédito – art. 4º, n.º 1, al. o) do DL. n.º 133/2009.
Na situação de «contrato de crédito coligado» (integrado pelo contrato de compra e venda ou pelo contrato de prestação de serviços e, bem assim, pelo contrato de mútuo), no âmbito daquele diploma, essas figuras contratuais consideram-se constituírem um único contrato: em que a invalidade ou ineficácia do contrato de crédito determina a invalidade ou ineficácia da compra e venda, e vice-versa – art. 18º, n.ºs 1 e 2 -; e em que o incumprimento das obrigações contratuais assumidas no âmbito do contrato de crédito pelo consumidor, salvas as exceções previstas no diploma, confere ao financiador (mutuante) o direito a resolver o contrato de crédito coligado, reavendo para si o bem comprado pelo primeiro, além de lhe conferir o direito a ser indemnizado nos termos previstos no mesmo – art. 20º do DL. n.º 133/2009.
Acontece que o legislador não desconhecia que, após 1966, tinham ocorrido alterações profundas nas relações contratuais de compra e venda/prestação de serviços a crédito, em que estas, na grande maioria das vezes, deixaram de assentar em relações contratuais bilaterais, assentes em dois contratos típicos autónomos (por um lado, o contrato de compra e venda, celebrado entre vendedor e comprador/«consumidor» e, por outro, o contrato de mútuo, celebrado entre mutuante e mutuário/«consumidor», com o fim de que o mutuante facultasse ao mutuário os meios económicos necessários ao pagamento do preço da compra e venda do bem que pretendia adquirir, contratos esses que, apesar de substancialmente correlacionados entre si, mantêm a sua autonomia e individualidade jurídica[24]); e passaram a assentar numa relação contratual tripartida, nas quais, as mais das vezes, o vendedor recebe do comprador ou do mutuante (que, nesse caso, procede ao pagamento do preço, a mando e por conta do mutuário/comprador) imediatamente o preço da coisa comprada ou do serviço que lhe foi prestado, e que, por isso, neles passou a ser o mutuante quem suporta o risco de incumprimento que, nas vendas a prestações tradicionais, era suportado pelo vendedor.
Ora, sabendo-o, o legislador nem por isso alterou a redação do art.  409º do CC, onde limitou a cláusula de reserva de propriedade aos contratos de compra e venda; e inclusivamente, restringiu a figura jurídica do «contrato de crédito coligado» prevista no DL. n.º 133/2009, de 02/06, aos contratos abrangidos pelo seu campo objetivo de aplicação, e em que o «consumidor» (isto é, o comprador do bem/adquirente do serviço) e, em simultâneo, o mutuante fosse uma pessoa singular e desde que não destinasse o(s) bem(ns) ou o(s) serviço(s) adquiridos à sua atividade comercial ou profissional.
Tal significa que, quanto aos contratos de compra e venda ou de prestação de serviços e ao contrato de mútuo celebrados pelo comprador ou o adquirente de serviço (a fim de obter os meios financeiros necessários ao pagamento do preço de aquisição do bem ou do serviço que pretende adquirir), que não estejam abrangidos pelo campo de aplicação objetivo do DL. 133/2009 (cujo âmbito objetivo de aplicação não abrange os contratos previstos nos arts. 2º e 3º desse diploma, nomeadamente, os contratos em que o crédito concedido seja inferior a 200,00 euros ou superior a 75.000,00 euros), ou que, estando-o, não estão abrangidos pelo seu campo subjetivo de aplicação, por o comprador (no contrato de compra e venda) ou o adquirente do serviço (no contrato de prestação de serviços), que é simultaneamente mutuário (no contrato de mútuo), ser uma pessoa coletiva (como é o caso da aqui devedora/insolvente EMP01..., Lda.) ou, apesar de ser uma pessoa singular, destinar o bem ou o serviço adquirido à sua atividade comercial ou profissional (finalidade a que a devedora/insolvente também destinou os veículos automóveis em discussão nos autos, pelo que o DL. 133/2009, nunca tem aplicação no caso sobre que versam os autos), o legislador do DL. n.º 133/2009 optou por afastar esses dois tipos contratuais da figura jurídica do «contrato de crédito coligado».
O legislador, conforme antedito, nesses casos não abrangidos pela disciplina daquele diploma deixou de considerar os contratos celebrados como constituindo um único e submetendo-os a uma disciplina jurídica unitária (a prevista naquele diploma), mantendo antes cada um deles (por um lado,  o contrato de compra e venda ou o contrato de prestação de serviços e, por outro, o contrato de mútuo) a sua individualidade jurídica; e sujeitando cada um à respetiva disciplina jurídica, apesar de se encontrarem entre si interligados, dado visarem a consecução de uma finalidade comum (a facilitação de aquisição de bens ou serviços por recurso ao crédito).
Destarte, salvo melhor opinião, também por apelo ao elemento histórico, o regime jurídico do art. 409º do CC - que limita a cláusula de reserva de propriedade aos “contratos de alienação”, ou seja, aos contratos de compra e venda, quando se trate de reservar para o “alienante” (vendedor) a propriedade sobre o bem objeto desse contrato até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte (comprador) ou até à verificação de qualquer outro evento - não permite uma interpretação extensiva desse preceito, de modo a que nele se englobe a reserva de propriedade constituída a favor do financiador (mutuante).
Finalmente, ante o que se vem dizendo, também o elemento racional ou teleológico, isto é, a rato legis ou o fim visado pelo legislador ao elaborar a dita norma do art. 409º do CC, não permite, em nossa modesta opinião, semelhante interpretação extensiva.
Se assim fosse, logo aquando da sua consagração, o legislador - que não desconhecia que o comprador que não dispunha de meios económicos para pagar a pronto o preço de aquisição do bem que pretendia comprar, nem sempre recorria ao instituto da compra e venda a prestações -, não teria limitado o regime jurídico do art. 409º do CC, ao contrato de compra e venda.
Acresce que, quando instituiu o regime jurídico do DL n.º 133/2009, o legislador não teria restringido o âmbito objetivo e subjetivo de aplicação deste diploma nos termos já acima enunciados; ou, ao menos, teria alterado a norma do art. 409º, de modo a alargar o campo de aplicação da cláusula de reserva de propriedade nele prevista a outros tipos contratuais, que não apenas ao contrato de compra e venda.
No sentido vindo a referir escreve Paulo Faria de Ramos Faria que: “O glosador só está habilitado a interpretar atualisticamente a norma quando seja possível afirmar que ocorreu uma alteração das circunstâncias jurídico-sociais presentes no momento da sua alteração (…) e que alguma das manifestações do novo fenómeno já tenha sido merecedor de tutela legal, mediante a consagração de normas orientadas pelo ponto de vista valorativo que se pretende considerar na fixação do sentido da norma a interpretar atualisticamente, ou, ao menos, que essa nova realidade seja digna de uma (primeira) tutela com o sentido pretendido – à luz dos valores que informam o ordenamento jurídico. (…). O legislador de 1966 não desconhecia a existência de uma atividade de empréstimo sobre penhor e não desconhecia a utilidade das garantias mobiliárias sem desapossamento, revelando ainda, mesmo no Código Civil, que não desconhecia os casos em que o devedor cumpre a obrigação com dinheiro emprestado por terceiro (art. 591º). A novidade existe; só que não se trata de uma novidade do “tipo” negocial ou, muito menos, de uma evolução das opções valorativas vertidas no ordenamento jurídico, no sentido pretendido por tais defensores. Consiste ele no exponencial crescimento da concessão de crédito ao consumo, usando as financiadoras de expedientes mais ou menos criativos para evitarem ter de suportar os custos de uma negociação cautelosa, com apuramento da solvabilidade e abonação da contraparte (art. 10º do RJCC), e para obterem uma garantia mais forte do que as que já se encontram predispostas na lei. Aquilo que, para os que concebem as novas ferramentas negociais, é tido por uma maior agilização e informalismo, constitui afinal uma tentativa de contrariar o equilíbrio existente na lei positiva entre os diversos interesses em jogo, predisposto e desejado pelo legislador. Nestes casos, a lei deve reter o poder de lutar contra as conceções dominantes do comércio jurídico (ética ou moral positiva), não aceitando pautar-se ou reger-se por ela”[25].
A posição de que a expressão do art. 409º, n.º 1 do CC – “ou até à verificação de qualquer outro evento” – permite englobar na previsão daquela norma a reserva de propriedade constituída a favor do financiador, desconsidera ou olvida a primeira parte dessa norma, onde expressamente se estabelece que “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa…”, o que não se prefigura consentâneo com uma interpretação minimamente admissível, onde qualquer interpretação de uma norma não pode abstrair de todo o seu teor, além de que desconsidera tudo o quanto acima já se explanou.
Note-se que nessa primeira parte do n.º 1 do art. 409º, o legislador limita expressamente a reserva de propriedade aos “contratos de alienação”, em que essa reserva seja constituída a favor do “alienante”, onerando a coisa objeto do contrato, “até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer evento”, ou seja, aos contratos de compra e venda em que a reserva da propriedade seja constituída sobre o bem objeto daquele, em benefício do vendedor, garantindo o cumprimento pelo comprador das obrigações contratuais que este assumiu perante aquele (normalmente, o pagamento do preço) a que ambos subordinaram a transferência do direito do propriedade sobre o bem  objeto da compra e venda para a esfera jurídico-patrimonial do comprador. 
Deste modo, a expressão “ou até à verificação de qualquer outro evento” tem de ser entendida no contexto do contrato de alienação, ou seja, do contrato de compra e venda, de evento relacionado com as vicissitudes desse contrato,  que o afete, não podendo exorbitar do seu âmbito[26].
No âmbito do acórdão proferido pelo STJ, em 30/09/2014 (Proc. 344/09.8TVLSB.L1.S1), expende-se que: “O financiamento por uma instituição de crédito da aquisição de um veículo automóvel, contratada sob a condição de reserva de propriedade, poderá dar origem a uma situação que se reconduz à figura legal da sub-rogação voluntária, nas modalidades de sub-rogação pelo credor (art. 589º do CC) ou de sub-rogação pelo devedor, em consequência de empréstimo que lhe tenha sido efetuado (art. 591º do mesmo Código)”. E sustenta-se que “a lei civil permite que, por atos celebrados simultaneamente com intervenção de todos os interessados: 1º) o vendedor aliene o veículo ao comprador, estipulando-se a reserva da propriedade a favor do primeiro até integral pagamento do preço; 2º) o comprador celebre um contrato de mútuo com uma instituição de crédito, para financiamento da aquisição, procedendo aquele à liquidação do preço junto do vendedor ou, em alternativa, sendo tal pagamento efetuado diretamente pela instituição de crédito junto do vendedor substituindo-se ao comprador; 3º) em consequência, o devedor sub-rogue expressamente a instituição de crédito nos direitos do vendedor com o assentimento e a declaração de transmissão da propriedade reservada a favor daquela, por parte do vendedor (na 1ª hipótese referida no número anterior); ou o vendedor sub-rogue expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-se a propriedade reservada, com o conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador (na 2ª hipótese referida no mesmo número)”.
A este propósito dir-se-á que, compulsados os contratos de financiamento juntos em anexo à petição inicial, verifica-se que a situação sobre que se debruça o acórdão acabado de referir não é a que se verifica no âmbito dos presentes autos, na medida em que as sociedades vendedoras dos veículos automóveis não tiveram qualquer intervenção nos contratos de financiamento (mútuos), os quais foram exclusivamente celebrados entre a devedora EMP01... (mutuária) e a recorrida Banco 1... (mutuante), mediante o qual este emprestou à primeira as quantias necessárias à compra dos veículos. 
Por isso, não tendo as vendedoras dos veículos automóveis sobre que versam os autos intervindo nos contratos de financiamento, nem tendo neles a mutuária (EMP01..., Lda.) intervindo como vendedora dos mesmos, naturalmente que neles não ocorreu qualquer declaração de venda daqueles em que o vendedor tivesse reservado para si a propriedade, sub-rogando a mutuante – Banco 1..., S.A. – na reserva de propriedade constituída sobre os mesmos.
Daí que a situação sobre que versa o identificado acórdão nada tenha a ver com o caso em discussão nos presentes autos.
No entanto, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se perfilha do entendimento jurídico acolhido naquele acórdão, de que é possível defender a validade da cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da entidade financeira (mutuante), onerando o bem objeto da compra e venda, através do instituto da sub-rogação legal ou convencional, quando vendedor, comprador e mutuante tenham intervenção no contrato de financiamento celebrado.
Com efeito, semelhante entendimento assenta numa vontade negocial por parte de vendedor, comprador e mutuante (financiador) que não está presente nas declarações negociais que por eles são emitidas em semelhante contrato, além de que assenta numa ficção jurídica, de que, com o recebimento do preço por parte do vendedor, a reserva de propriedade constituída sobre o objeto da compra e venda não se extinguiria, pelo que seria possível sub-rogar-se o mutuante naquela reserva.
Acresce que esse entendimento jurídico desconsidera que a constituição da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante (financiador) consubstancia uma garantia real dissimulada, assente em pressupostos e sujeita a condições proibidos por lei, por consubstanciar um pacto comissório, que o art. 694º do CC declara nulo.
Deste modo, ainda que nos contratos celebrados tivessem outorgado as sociedades vendedoras dos veículos e/ou a devedora EMP01... neles tivesse outorgado como compradora e, em simultâneo, como mutuária, a recorrida Banco 1..., S.A. neles tivesse outorgado como mutuária, em que as primeiras tivessem neles declarado vender à devedora os veículos  automóveis, reservando para si o direito de propriedade sobre aqueles enquanto esta (compradora) não lhes pagasse o respetivo preço, em que o Banco 1... declarasse que emprestava à compradora -  EMP01... - os meios necessários para que pagasse o preço de compra daqueles -, as sociedades vendedoras neles tivessem declarado que, mediante o recebimento do preço de venda sub-rogavam o mutuante (financiadora Banco 1...) na reserva de propriedade constituída sobre aqueles veículos e em seu benefício, e compradora e mutuária EMP01... declarasse concordar com essa transferência da reserva de propriedade para o Banco mutuante (o que, reafirma-se, não é a situação que se verifica nos contratos a que se reportam os autos), não se vê como se possa defender a solução jurídica propugnada naquele aresto.
Com efeito, por um lado, se a reserva de propriedade tem por função garantir ao vendedor do veículo automóvel o pagamento do preço de compra, o vendedor não declarou naquele contrato vender ao Banco 1... (entidade financiadora/mutuante) o veículo em causa, mas sim à compradora EMP01...; e, por sua vez, a financiadora (Banco 1...) não declarou pretender comprar aquele veículo ao vendedor, nem declarou que, na sequência dessa compra, o vendia à compradora EMP01..., mas apenas que concedia à mutuária (compradora EMP01...) a quantia necessária ao pagamento do preço de compra dos veículos.
 Acresce que, atenta a função da cláusula de reserva de propriedade de garantia do pagamento do preço de compra dos veículos, com o seu recebimento pelo vendedor (diretamente do comprador, ou do mutuário, que nesta hipótese faria esse pagamento por conta e em nome do comprador), a reserva de propriedade que se mostrasse constituída sobre os veículos extinguir-se-ia; e, por isso, a transferência da propriedade sobre o veículo, por efeito do contrato de compra e venda com reserva de propriedade celebrado, transmitir-se-ia do vendedor para o comprador, extinguindo-se a dita reserva da propriedade, pelo que o vendedor naturalmente que já não podia transmitir esta à financiadora/mutuante (Banco 1...), por sub-rogação legal ou contratual, em virtude dessa reserva já não existir.
Finalmente, a sub-rogação do mutuante na cláusula de reserva de propriedade constituiria uma garantia real dissimulada, em violação ao disposto no art. 694º do CC, que proíbe o pacto comissório, isto é, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir e que declara nula essa convenção, seja anterior ou posterior à constituição da garantia[27].
Note-se que, contrariamente ao entendimento da recorrida, que pugna pela validade da constituição de reserva de propriedade a favor do financiador com fundamento na liberdade contratual que o art. 405º do CC reconhece aos contraentes (conferindo-lhes o direito de fixarem livremente o conteúdo dos contratos, celebrarem contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou incluírem nestes as cláusulas que lhes aprovar), essa liberdade tem como limite intransponível os limites estabelecidos na lei.
Ora, como acabado de demonstrar, a constituição de uma reserva de propriedade a favor do financiador mediante o recurso ao instituto da sub-rogação, além de levar a que se tivesse que ficcionar que o financiador tinha adquirido, por sub-rogação legal do vendedor do veículo, a reserva de propriedade constituída pelo comprador em seu benefício (ou seja, teríamos de aceitar uma impossibilidade jurídica - por a garantia real conferida pela cláusula de reserva de propriedade se ter  extinguido com o recebimento pelo vendedor do preço de venda do veículo), levaria a que se tivesse de, adicionalmente, se ficcionar uma vontade negocial da parte de financiador, vendedor e comprador/mutuário que não presidiu às suas declarações negociais que emitiram.
Com efeito, recebendo imediatamente o vendedor (por via do contrato de mútuo celebrado entre o comprador com o mutuante – financiador) o preço de venda do veículo, ele e o comprador não têm naturalmente qualquer intenção de constituir qualquer reserva de propriedade sobre o veículo, a fim de garantir o pagamento ao vendedor do preço de venda deste; muito menos  têm intenção de transmitir essa pretensa reserva de propriedade do veículo ao mutuante, o qual, por sua vez, nunca foi proprietário do veículo, nem nunca teve intenção de o comprar ao vendedor para, imediatamente, o vender ao mutuário; nem este  último teve qualquer intenção de lho comprar, agindo apenas o mutuante com a intenção de constituir uma garantia real sobre o bem objeto da compra e venda que lhe garantisse o cumprimento pelo mutuário das obrigações contratuais que perante si assumiu no contrato de mútuo celebrado.
E, finalmente, a ser assim, teríamos de aceitar que a lei consente que os contraentes, no uso da sua liberdade contratual, abstraindo dos pressupostos contidos no art. 409º, n.º 2 do CC para a reserva de propriedade, a contornem, nomeadamente, as finalidades para que o legislador a concebeu e afastem a norma imperativa e de ordem pública do art. 694º do CC, que proíbe o pacto comissório.
Decorre do excurso antecedente que, ao reconhecer a validade jurídica das cláusulas constantes dos contratos de financiamento celebrados entre a recorrida Banco 1..., S.A. (financeira/mutuante) e a devedora EMP01..., Lda. (mutuária), nos termos das quais foram constituídas reservas de propriedade sobre os veículos de matrículas ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.., ..-XA-.., ..-XM-.. e ..-XM-.. a favor da primeira, destinadas a garantir o cumprimento pela última das obrigações emergentes desses contratos de financiamento e, em consequência, ao julgar a reconvenção improcedente, a 1ª Instância incorreu em erro de direito, impondo-se revogar a sentença recorrida e julgar procedente a reconvenção.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida e procedem à sua substituição, pela seguinte decisão:
Julgam a reconvenção procedente e, em consequência:

I- Declaram nulas e de nenhum efeito as reservas de propriedade constituídas e registadas a favor da reconvinda, Banco 1..., S.A., sobre os veículos automóveis com as matrículas ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.., ..-XA-.., ..-XM-.. e ..-XM-..;
II- Condenam a reconvinda, Banco 1..., S.A., a reconhecer que os referidos veículos automóveis pertencem à reconvinte, Massa Insolvente de EMP01..., Lda.;
II- Ordenam o cancelamento no registo automóvel das reservas de propriedades constituídas e registadas a favor da reconvinda, Banco 1..., S.A., sobre os veículos automóveis com as matrículas ..-VA-.., ..-VA-.., ..-VA-.., ..-XA-.., ..-XM-.. e ..-XM-...
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Custas do recurso pela reconvinda, Banco 1..., S.A., uma vez que ficou “vencida” (art. 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 02 de abril de 2025

José Alberto Moreira Dias – Relator
Maria João Marques Pinto de Matos – 1ª Adjunta
Gonçalo Oliveira Magalhães – 2º Adjunto

 
[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Ac. RG., de 31/10/2024, Proc. 646/23.4T8VNF-E.G1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os que se venham a fazer referência sem menção em contrário.
[3] Galvão Telles, “Obrigações”, 3ª ed., pág. 61: “A venda com reserva de propriedade é uma alienação sob condição suspensiva. Suspende o efeito translativo, mas os outros efeitos do negócio produzem-se imediatamente. O evento futuro de que depende a transferência da propriedade, será, em regra, o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte”.
[4] Paulo Ramos de Faria, “A Reserva de Propriedade Constituída a Favor de Terceiro Financiado”, Revista Julgar, n.º 16, Coimbra Editora, págs. 14 a 16.
No mesmo sentido Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 234, onde, em anotação ao art. 934º do CC, referem que, na venda a prestações, com reserva de propriedade, esta cláusula tem por função “a permanência da propriedade no património do vendedor, até ser paga a última prestação” e “tem essencialmente em vista uma função de garantia”.
[5] Ac. STJ. de uniformização de jurisprudência de 09/10/2008, Proc. 07A3965, base de dados da DGSI e DR. Iª Série, de 14/11/2008.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 376; Galvão Telles, “Obrigações”, 3ª ed., pág. 61; Paulo Ramos e Faria, ob. cit., págs. 15 a 17; AUJ, de 09/10/2008, Proc. 07A3965 (DR. Iª Série, de 14/11/2008); Ac. RC., de 08/03/2016, Proc. 934/15.8LMG.C1.
No sentido de que a cláusula de reserva de propriedade é uma cláusula atípica, acessória, que funciona como garantia do alienante, se destina a regular os efeitos do contrato, limitando-os quantitativamente, e não uma condição suspensiva ou resolutiva, vide Ac. R.P., de 04/02/1971, B.M.J., 204º, pág. 196.
[7] Ana Maria Peralta, “A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade”, Almedina, 1990, pág. 77, onde defende que: “O gozo da coisa pelo comprador durante o tempo que medeia entre a celebração do contrato e o pagamento completo do preço é um elemento típico essencial da compra e venda com reserva acompanhada da tradição da coisa. Não se fundando na propriedade que ainda não detém, o gozo do comprador deriva da sua posse em nome próprio, resultante da entrega do bem em execução do contrato”. E adianta que “ao vendedor continua a pertencer a posse nos termos o direito de propriedade, direito de que ainda é titular”.
Almeida e Costa, RLJ, ano 1985, pág. 86, onde sustenta que o adquirente, “apesar da reserva, detém a coisa em nome próprio e não a título precário e não a recebe para guardar e posteriormente restituir”
[8] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., pág. 21.
[9] Ac. STJ, de 30/09/2014, Proc. 844/09.8TVLSB.L1.S1.
[10] Luís Lima Pacheco, “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, Coimbra Editora, pág. 115, em que se lê: “O pacto de reserva de propriedade, enquanto cláusula socialmente típica, com a configuração normativa que lhe cabe no ordenamento português é uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva do efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade ergo omnes da resolução. A condição suspensiva subordina a transferência do direito de propriedade, não obsta, porém, à transmissão da posse, que se opera com a tradição da coisa. Enquanto o adquirente detém o conjunto de poderes de gozo e disposição que correspondem ao conteúdo do direito de propriedade, a propriedade reservada do alienante consiste na titularidade «abstrata» do direito de propriedade. O «direito de expectativa do comprador, revela-se assim não só um direito real de aquisição da propriedade ou mesmo como como um direito nos termos do direito de propriedade”.  
[11] Ac. STJ, de 01/02/1995, BMJ, 444º, pág. 609.
[12] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., págs. 17 e 18.
[13] Isabel Meneres Campos, “Algumas Reflexões em torno da Cláusula de Reserva de Propriedade a favor do Financiador”, em “Estudos em Comemoração do Décimo Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho”, Almedina, 2003, págs. 631 a 649.
[14] Nuno Pinto Oliveira, “Contrato de Compra e Venda”, Coimbra Editora, 2007, págs. 56 e 57.
[15] Acs. STJ., de 30/09/2014, Proc. 844/09.8TVLSB.L1.S1; R.L., de 03/12/2009, Proc. 6212/06.6TVLSB.L1-8; de 31/01/2008, Proc. 405/2208-6; de 27/06/2002, Proc. 0053286; voto de vencido no Ac. R.P., de 26/04/2010, Proc. 1710/09.2TBVCD.P1.
[16] Obras já supra identificadas.
[17] Fernando Gravato Morais, “Contratos de Crédito ao Consumo”, Coimbra Editora, 2007, págs. 297 e ss..
[18] Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. III, Coimbra Editora, 11ª ed., 2016, pág. 53.
[19] Paulo Duarte, “Contratos de Concessão de Crédito ao Consumidor: em particular as relações trilaterais resultantes da intervenção de um terceiro financiado”, Coimbra Editora, 2000, págs. 193 e ss..
[20] Acs. do STJ, de 12/07/2011, Proc. 403/07.0TVLS.L1.S1; de  09/10/2009, Proc. 07A3965 (AUJ já supra identificado); de 02/10/2007, Proc. 07A2680; RG., de 11/05/2023, Proc. 1683/23.9TBRG.G1; RP., de 26/04/2010, Proc. 1710/09.2TBVCD.P1; de 30/06/2008, Proc. 0853134; RC., de 08/03/2016, Proc. 934/15.8LMG.C1; RL., de 07/12/2023, Proc. 2883/22.7T8OER-A.L1-2;  de 09/01/2020, Proc. 11755/19.9T8LSC.L1-2; e de 1/05/2012, Proc. 2261/12.3YXLSB.L1-7.
[21] J. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1985, pág. 191.
[22] J. Baptista Machado, ob. cit., págs. 181 a 192.
[23] Baptista Machado, ob. cit., págs. 189 e 190.
[24] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª ed., Almedina, pág. 284, em que propugna que, na coligação de contratos “há já certa dependência entre os contratos coligados, criada pelas cláusulas acessórias (Nebenabrede) ou pela relação de correspetividade ou de motivação que afetam um deles ou ambos eles. Porém, nem as cláusulas acessórias, nem o nexo de correspetividade ou de motivação que prendem um dos contratos ao outro, destroem a sua individualidade”.
[25] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., págs. 32 e 33.
[26] Ac. R.L., de 07/12/2023, Proc. 2883/23.7T8OER-A.L1-2.
[27] Paulo Ramos de Faria, ob. cit., pág. 37, em que expende: “Tendo em conta a função, a estrutura e os efeitos da cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador, conclui-se sem esforço que o pacto comissório está presente nesta estipulação, pois (…) o que é decisivo é resultado económico que se pretende evitar, sendo indiferente o instrumento jurídico empregue pelas partes, que pode consistir na transmissão da propriedade sujeita à condição suspensiva do incumprimento, como na mesma transmissão sujeita à condição resolutiva do cumprimento. Mais do que sinalizar que o acordo visado pelas partes não é uma cláusula com reserva de propriedade, mas sim a estipulação de uma garantia dissimulada (arts. 240º/2 e 241º/2), assente em pressupostos e sujeita a condições proibidas por lei, importa aqui ter presente que a proibição do pacto comissório se estende a todas as demais convenções com função de garantia. Significa isto que esta cláusula de reserva de propriedade não deve ser tratada como sendo um acordo simulado – sendo nulo em razão da desconformidade entre a vontade real e a vontade declarada -, devendo antes ser imediatamente confrontada com as normas que dispõem sobre os limites da liberdade negocial, em razão do seu conteúdo – sendo, então, o acordo reconhecido como nulo, porque celebrado em direta violação da proibição do pacto comissório”. A fls.  39 a 42, adianta que: “Se, em geral, a sub-rogação (por pagamento) na propriedade é de rejeitar, na hipótese que nos ocupa ela é claramente contrária à lei, sendo mesmo contrária à vontade real típica das partes. Independentemente do concreto programa contratual do mútuo – entrega do capital ao mutuário ou diretamente ao vendedor -, o financiador, ao disponibilizar o capital mutuado, não satisfaz um propósito seu de cumprir o contrato de compra e venda, estando, sim, a cumprir uma ordem de pagamento do mutuário. (…). Ao fazer inserir no contrato uma declaração da contraparte sub-rogando-a nos direitos do credor, a financiadora não ambiciona a titularidade do crédito ao preço; deseja, sim, as suas garantias acessórias. E aqui se revela a distorção que este expediente provoca no funcionamento do instituto da sub-rogação. Embora a reserva de propriedade esteja umbilicalmente ligada ao contrato de alienação, a financeira cobiça-a para servir de garantia da pontual execução do mútuo, isto é, da amortização do valor do empréstimo, e não da satisfação do valor do preço. Estas sociedades já protegem os seus créditos com um vasto arsenal de garantias, pelo que a sub-rogação se destina a obter a única garantia de que não podem beneficiar: a titularidade da propriedade. Evidencia-se, assim, que, nesta suposta sub-rogação no crédito (e na propriedade reservada), estamos perante uma conduta que vista defraudar o numerus clausus previsto nos arts. 604º, n.º 2 e 1306º., proibida por força do disposto no art. 294º”.
No mesmo sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, págs. 716 e 718, que, em anotação ao art. 694º do CC, escrevem que nele “proíbe-se o pacto comissório, segundo o qual o credor faria sua a coisa onerada, no caso de o devedor não cumprir. Esta proibição aparece na generalidade das legislações e funda-se no prejuízo que do pacto comissório pode resultar para o devedor, que seria facilmente convencido, dado o seu estado de necessidade, a aceitar cláusulas lesivas dos seus interesses. O fundamento é paralelo ao da proibição da usura. A proibição abrange também, pelo seu espírito, o pacto pelo qual se convencione o direito de venda particular. A doutrina distingue entre pactos comissórios reais e obrigacionais. Pelos primeiros, a coisa transfere-se para o credor pelo não cumprimento; pelos segundos, fica o credor com o direito de crédito às transmissões. A razão da proibição abrange, sem dúvida, qualquer deles”.
Acs. STJ., de 21/12/2005, Proc. 04B4479; de 16/03/2011, Proc. 279/2002.E1.S1; de 09/07/2020, Proc. 112/17.3T8PVZ.P1.S1