OBJETO DO RECURSO
PRESCRIÇÃO
DEVEDORES SOLIDÁRIOS
SOCIEDADE COMERCIAL
GERENTE
DEVER DE LEALDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL DO GERENTE
Sumário


(i) A prescrição, enquanto causa de conversão das obrigações civis em obrigações naturais, diz respeito apenas à relação obrigacional entre o credor e o devedor solidário que a invoca e não a cada uma das relações estabelecidas entre o credor e os demais devedores solidários que não a invocaram, pelo que não aproveita a estes.
(ii) Os poderes dos administradores das sociedades anónimas são poderes-função ou poderes-deveres que, como tal, devem ser exercidos na promoção e prossecução do interesse social, estando assim orientados pela relação fiduciária que a gestão de bens e interesses alheios do ente jurídico social implica.
(iii) Os pressupostos da responsabilidade civil dos administradores para com a sociedade estão reunidos no n.º 1 do art. 72 do CSC, a saber: atuação dos administradores com inobservância de deveres funcionais, legais ou contratuais (facto humano voluntário ilícito); culpa/presunção de culpa (a imputação do facto ao agente); dano sofrido pela sociedade e nexo de causalidade entre a atuação do administrador e o dano sofrido.
(iv) Trata-se de responsabilidade obrigacional, pela violação das obrigações funcionais do administrador.
(v) Os deveres gerais dos administradores estão previstos no art. 64 do CSC, sendo o dever de cuidado e o dever de lealdade.
(vi) O dever de cuidado consiste na obrigação de os administradores cum­prirem com diligência as obrigações derivadas do seu ofício-função, de acordo com o máximo interesse da sociedade e com o cuidado que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situ­ações similares.
(vii) O legislador densifica o conteúdo do dever de cuidado mediante a indicação das qualidades de um gestor criterioso e orde­nado.
(viii) A previsão normativa deste dever de cuidado deve conjugar-se com a do art. 72/2 do CSC, onde se consagra a exclusão da responsabilidade dos administradores para com a sociedade no que tange às suas decisões de gestão dis­cricionária e autónoma – ou atos propriamente de gestão – se o gerente ou o administrador (i) “atuou em termos informados” e (ii) “segundo critérios de racionalidade empresarial”, o que corresponde à regra business judgment rule.
(ix) O dever de lealdade impõe que os administradores, no exercício das suas funções, considerem e intentem em exclusivo o interesse da sociedade, omitindo comportamentos que visem a realização de outros interesses, próprios e/ou alheios, definição que pode ser complementada, pela negativa, como impondo uma proibição geral de atuação em conflito de interesses.
(x) O dever de lealdade não admite ponderações entre o “interesse da sociedade” e o interesse próprio e/ou de terceiros, sendo, por isso, um dever absoluto.
(xi) Como corolário, não cabe no âmbito de aplicação do referido art. 72/2 sindicar se o administrador cumpre ou não cumpre com o dever geral de leal­dade.
(xii) A conduta do administrador merece censura do direito quando, atendendo às circunstâncias, ele podia ter agido de outro modo.
(xiii) O padrão geral para ajuizar da culpa (aplicável a todos os administradores) é o da (abstrata) “diligência de um gestor criterioso e ordenado” (art. 64/1, a)).
(xiv) A sociedade (e quem, em vez dela, efetive a responsabilidade interna) beneficia da presunção de culpa prevista no art. 72/1, in fine, donde decorre a inversão do ónus da prova, dispensando a sociedade-autora (ou quem tenha legitimidade para intentar a ação social de responsabilidade) de provar a culpa (art. 344/1, do Código Civil).
(xv) A presunção prevista no art. 72.º, 1, não abrange a ilicitude.
(xvi) Sem prejuízo, a prova da ilicitude deverá bastar-se com factos que, analisados à luz das regras do id quod plerumque accidit, indiquem a violação dos indicados deveres.
(xvii) Viola o dever de lealdade o gerente de uma sociedade por quotas que, a um tempo, arrenda, a título pessoal, um prédio propriedade da sociedade, cobrando e integrando as rendas recebidas no seu património e, a outro, não integra no património da sociedade dinheiro que lhe foi entregue para pagamento de rendas devidas à sociedade no âmbito de contratos de arrendamento em que esta figurava como senhoria.
(xviii) O art. 73/1 do CSC prevê a solidariedade da responsabilidade dos fundadores, gerentes ou administradores perante a sociedade.
(xix) Não se trata de uma fonte autónoma de responsabilidade dos administradores, que altere o critério de imputação de responsabilidade, tornando os administradores responsáveis por facto e culpa de outrem.

Texto Integral


I.
1) Massa Insolvente de EMP01..., Lda., representada pelo respetivo administrador judicial, Dr. AA, intentou, por apenso aos autos de insolvência, a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra BB e  CC, pedindo a condenação destes: (A)) “(…) solidariamente, no pagamento à Autora do montante global de € 65 000,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais que (…) causaram à Sociedade EMP02..., Lda.”; e (B)) “(…) solidariamente, (…) no pagamento de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação.”
Alegou, em síntese, que: a Sociedade EMP02..., Lda., foi constituída em 8 de setembro de 2004, tendo como objeto a indústria de construção civil e empreitadas de obras públicas, bem como a compra e venda de imóveis; o seu capital social, no montante de € 50 000,00, ficou distribuído em duas quotas de igual valor, pertencentes a cada um dos Réus; até ../../2017, os dois Réus exerceram a gerência da sociedade, sendo necessária a intervenção de ambos para a sua vinculação; na referida data, o Réu CC renunciou à gerência; a sociedade foi declarada insolvente por sentença de 15 de novembro de 2017; no exercício da sua atividade, a sociedade construiu um edifício, composto por várias frações, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., ... e ..., Concelho ...; uma dessas frações (...) foi arrendada, em junho de 2011, pelo Réu BB e respetivo cônjuge à sociedade EMP03..., Lda., mediante o pagamento de uma renda mensal de € 450,00; até dezembro de 2017, foram pagas rendas no montante total de € 35 000,00, que o Réu BB recebeu e não fez entrar nas contas da sociedade; em julho de 2015, o Réu BB, em representação da sociedade, arrendou a DD uma outra fração (H), mediante o pagamento de uma renda mensal de € 200,00; até dezembro de 2017, foram pagas rendas no montante total de € 5 200,00, que o Réu BB recebeu e não fez entrar nas contas da sociedade; em fevereiro de 2011, os Réus, em representação da sociedade, arrendaram uma outra fração (D), mediante o pagamento de uma renda mensal de € 300,00; até dezembro de 2017, foram pagas rendas no montante total de € 24 900,00, que o Réu BB recebeu e não fez entrar nas contas da sociedade; todos os atos do Réu BB tiveram a anuência do Réu CC; deles resultou um prejuízo de € 65 650,00 para a sociedade.
Citados, os Réus contestaram.
O Réu BB disse, em síntese, que: conforme acordado com o Réu CC, cabia-lhe a gestão das frações ..., ... e ... do referido edifício; nessa medida,  procurou interessados na compra ou no arrendamento de tais frações; foi assim que, ainda na fase de construção, celebrou, verbalmente, com EE, um contrato-promessa de compra e venda relativo às frações ... e ..., pelo preço global de € 60 000,00; o referido promitente-comprador pagou logo a totalidade do preço; o montante assim obtido foi utilizado pela sociedade para custear a construção; entretanto, devido a desentendimentos entre as partes, o contrato-promessa foi revogado; como a sociedade não tinha liquidez para restituir o preço já recebido, foi ele próprio quem entregou essa quantia, à custa do seu património pessoal; acordou então com o Réu CC que as referidas frações ficariam para si; ciente disto, juntamento com o seu cônjuge, celebrou o contrato de arrendamento relativo à fração ...; entretanto, continuou a ter de injetar dinheiro na sociedade, para conclusão da obra, pelo que não lhe foi possível ficar com o dinheiro das rendas; por esse motivo, o contrato de arrendamento relativo à fração ... foi já celebrado pela sociedade; todo o dinheiro proveniente dos arrendamentos entrou nas contas da sociedade e foi utilizado para pagar despesas desta, o que sucedeu com o conhecimento do Réu CC; entre 2008 e 2014, transferiu para a sociedade a quantia global de € 112 840,00, para evitar que esta entrasse em incumprimento bancário ou ficasse impossibilitada de pagar aos seus fornecedores, trabalhadores e subcontratados; assim, jamais agiu no sentido de lesar os interesses da sociedade.
O Réu CC, por seu turno, disse que: na sequência de desentendimentos entre os sócios, ocorreu uma “separação de facto” (sic) da sociedade, nos termos da qual a gestão do lote ...01 ficou a caber ao Réu BB; assim, nada teve a ver com os atos por este praticados, os quais não eram sequer do seu conhecimento; de qualquer modo, uma vez que já decorreu o prazo previsto no art. 498/1 do Código Civil, desde que o administrador da insolvência teve conhecimento dos arrendamentos, prescreveu o direito invocado pela Autora; por outro lado, tendo a insolvência sido qualificada como fortuita, os atos dos gerentes devem ser considerados como de mera gestão.
Em conformidade, ambos pugnaram pela improcedência da ação.
A Autora apresentou resposta, dizendo, sempre em síntese, que: o prazo de prescrição é de cinco anos, cf. previsto no art. 174/1 do CSC; o seu cômputo apenas teve início com o conhecimento da apropriação das rendas, pois é este o facto ilícito, o que ocorreu no dia 19 de março de 2019, pelo que o prazo de prescrição não estava ainda esgotado aquando da citação do Réu CC.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho a: afirmar, em termos tabulares, verificados os pressupostos processuais; fixar, em € 65 650,00, o valor processual; delimitar o objeto do litígio [“A responsabilidade dos gerentes ou administradores da insolvente para com a sociedade nos termos do disposto no art. 72.º do CSC.”]; e enunciar os temas da prova [“- o R. BB e a sua mulher - FF-, com a anuência do R. CC, na qualidade de ”Senhorios” deram de arrendamento, verbalmente, à sociedade “EMP03..., Lda.”, NIPC: ...43 e com sede no Lugar ..., freguesia ..., ... e ..., Concelho ..., na qualidade de “Arrendatária” uma fração autónoma da propriedade da ora insolvente. / - Nos termos do sobredito contrato o R. BB e a sua mulher acordaram com a sociedade “EMP03..., Lda.” que: “No primeiro ano de vigência do contrato, a renda anual será de EUROS 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos euros), pagos em duodécimos mensais no valor de EUR 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros). / - Desde junho de 2011 até dezembro de 2017, a sociedade “EMP03..., Lda.” efetuou o pagamento ao R. BB, com a anuência do R. CC, das rendas mensais, no valor de 450,00 €, cada. / - Valor esse que o R. BB, com a anuência do R. CC, recebeu e nunca fez entrar nas contas da sociedade ora insolvente. / - A ora insolvente, representada pelos RR., na qualidade de ”Senhoria” contratou verbalmente, com a Sr.ª GG, NIF ...13 e marido Sr. HH, NIF ...07..., na qualidade de “Arrendatários” o arrendamento de uma fração autónoma da propriedade da ora insolvente. / - Nos termos do sobredito contrato a insolvente e os arrendatários acordaram que a renda mensal era de € 300,00. / - Ocorre que, desde fevereiro de 2011 até dezembro de 2017, os arrendatários efetuaram o pagamento ao R. BB, com a anuência do R. CC, das rendas mensais, no valor de 300,00 €, cada. / - Valor esse que o R. BB recebeu e nunca fez entrar nas contas da sociedade ora insolvente, tudo com a anuência do R. CC. / - O conhecimento por parte do AI de que as quantias em causa nunca entraram nas contas da sociedade ora insolvente, tendo integrado o património pessoal do R. BB que as utilizou em benefício próprio, tudo a com a anuência do R. CC, surge após a data de 18-03-2019. / - O 1.º Réu iria adquirir para o seu património conjugal as frações autónomas designadas pelas letras ... e ..., cujo preço já estava integralmente pago. / - Mas por ser necessário injetar dinheiro na sociedade ora insolvente, o contrato de arrendamento ficou no nome desta, inclusive, o valor das rendas mensais da fração ... sempre foi utlizado pela sociedade, fazendo face ao pagamento de pequenas contas da empreitada. / - Injetando o 1º R. na sociedade ora insolvente a quantia de € 112.840,00, ainda tem de acrescer o valor de € 60.000,00 que foi pelo 1. R. pago ao Sr. EE. - O Réu CC nunca exerceu qualquer função de gerência ou administração relativamente ao lote ...01, mormente sobre as frações ..., ... e ..., não sendo conhecedor da realidade económica e financeira da sociedade relativamente a esses bens imóveis.”].
Realizou-se a audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença a julgar: (i) improcedente a exceção da prescrição, adrede arguida pelo Réu CC; e (ii) a ação parcialmente procedente, condenando o Réu BB no pagamento à Massa Insolvente da quantia de € 65 650,00, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a citação até efetivo e até integral pagamento, e absolvendo o Réu CC do pedido.

***
2). Inconformado, o Réu BB (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor, na parte relevante[1] (transcrição):

“(…)
5.º -- DAS NULIDADES DA SENTENÇA-- O Tribunal a quo omitiu na sentença proferida, e de que se recorre, os fundamentos de facto e de direito que justificam essa decisão, bem como existem fundamentos que estão em oposição com a decisão e ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível (cf. artigos 154.º, 607.º e 615.º, n.º 1, do CPC, artigo 205.º, n.º 1 da CRP).
6.º A Lei determina que o Julgador deve expor, de forma clara, o seu percurso lógico para as conclusões que extrai e a motivação é efetuada com a apreciação crítica e a especificação dos fundamentos, para que se compreenda o porquê da decisão face às provas concretamente produzidas, as quais, conforme é consabido, são, por vezes, contraditórias entre si, apreciadas em face das regras da ciência, da lógica e de experiência de vida, que são os critérios subjacentes ao princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 607.º, n.º 5, do CPC.
7.º O Tribunal recorrido não deu, pois, cabal cumprimento ao legalmente preceituado quanto à elaboração da sentença, uma vez que não apresentou uma exposição completa dos motivos de facto que fundamentaram a decisão, com o exame crítico da prova que serviu para formar a sua convicção, vindo, ainda, a verificar-se que o sentido da decisão em crise é contrário à factualidade provada.
8.º Melhor, o Tribunal a quo não fundamentou devidamente a sua decisão, nem esclareceu o processo lógico da convicção que conduziu à decisão aqui posta em crise, e, por isso, não habilita ou possibilita ao tribunal superior – in casu este Venerando Tribunal da Relação de Guimarães – e nem sequer ao Recorrente fazer uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo que serviu de suporte ao respetivo conteúdo decisório, sendo evidente que para tomar tal decisão o fez contra a Lei.
9.º Na verdade, da leitura dos factos provados e não provados, desde logo é percetível que o Tribunal a quo baralhou quer a sua qualificação quer o respetivo peso na balança da fundamentação da sua decisão.
10.º Ademais, o Tribunal a quo não especificou as razões concretas que conduziram à credibilidade das testemunhas da Autora e das declarações do seu legal representante e a uma total desconsideração dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Recorrente, atenta a parca referência ao seu teor, em relação às quais se limitou a fazer um pré-juízo e considerou-os insipientes, e desmerecedores de qualquer valoração favorável ao Réu.
11.º Igualmente, não apresentou fundamentação bastante para a conclusão pela improcedência da exceção de prescrição, tendo-se limitado a emitir parecer, em contradição com os factos que elenca, e sem qualquer suporte legal, doutrinal e jurisprudencial.
12.º A) DA CONTRADIÇÃO E INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO PARA A IMPROCEDÊNCIA DA EXCEPÇÃO DE PRESCRIÇÃO:
(…)
14.º A 1ª Instância entendeu, portanto, que o prazo prescricional se iniciou em 23/02/2018, com a junção aos autos de insolvência de um documento cujo sentido e alcance foi nestes impugnado (e cujo teor, no facto provado 63, está incompleto!), o que fez apesar de considerar provado que o Sr. AI já tinha conhecimento dos factos, pelo menos, em 22/11/2017.
15.º Mais, o tribunal a quo deu como provado que “47. (…). / 48. (…).”
16.º Ora, há aqui uma pujante contradição, pois, então, se o Sr. AI sabia dos factos em 22 de novembro, aquele prazo prescricional começou a correr, pelo menos, nessa data, e não volvidos meses. Qual é a justificação para o entendimento no sentido do início deste prazo em 23 de fevereiro seguinte? Desconhece-se!
17.º O Tribunal recorrido nada fundamenta quanto a esta sua opção que, necessariamente, influiu no resultado desta contenda. Isto é, ocorre um salto lógico (inexplicável e inexplicado) que conduz a uma decisão contrária ao decurso do prazo prescricional e preclusão do direito na data de entrada dos presentes autos.
18.º Pior, a sentença em crise defende que o prazo prescricional estava suspenso por via dos embargos à declaração de insolvência, mas também aqui não expõe a tese e fundamentação desta sua conclusão. Limita-se, tão só, a concluir! Quando basta atentar à interpretação conjugada dos artigos 40.º, n.º 3, 156.º, n.º 3, 206.º, n.º 1 e 225.º todos do CIRE e ainda o disposto nos artigos 100.º e 174.º, n.º 2 daquele mesmo diploma legal, para se concluir diversamente. Sendo óbvio que, a excecionalidade da suspensão da liquidação do ativo não contempla a excecionalidade da suspensão da prescrição.
19.º A sentença em crise nada acrescenta para convencer da sua tese, não indica um normativo legal, não transcreve o teor de uma decisão de um tribunal superior e nem identifica doutrina nesse sentido, isto é, é totalmente inexistente qualquer fundamentação de facto ou de direito na formação da sua convicção e obtenção do sentido decisório.
20.º Pelo vindo de explanar, facilmente se constata que a decisão do tribunal recorrido no sentido da improcedência da exceção de prescrição é errada, atropelando violentamente as regras e normas legais aplicáveis, pelo que a mesma terá de ser alterada por este Tribunal Superior, que julgará procedente a exceção da prescrição.
21.º B) DA CONTRADIÇÃO ENTRE OS FACTOS PROVADOS E A JULGADA CULPA DO RECORRENTE: Novamente, o traçado lógico-dedutivo do Julgador mostra-se confuso e contraditório na parte em que condena o Recorrente por considerar que houve culpa na sua atuação, que “o prejuízo para a Massa Insolvente, é proveniente do incumprimento do gerente BB, nomeadamente, da obrigação que sobre si recaía no âmbito da gestão que lhe estava acometida, enquanto gerente de facto do lote ...01, e também pela prática de factos ilícitos que, não resultaram da vontade da sociedade mas apenas de uma conduta levada a cabo à margem da sociedade e por iniciativa exclusiva do Réu BB.”
22.º Lendo-se na sentença recorrida que “À luz do artº 72º, nº1, do CSC, um dos requisitos para o administrador de uma sociedade (no caso a requerida) ilidir a presunção de culpa que sobre si recaía, era a de provar a ausência de conflito de interesses entre a sua atuação e o interesse da sociedade. Ao descapitalizar a conta bancária em proveito próprio, e não pagando os salários das trabalhadoras já vencidos, criou, ela sim, um problema para a empresa, num comportamento que terá de ser considerado desleal, culposo e ilícito.”
23.º Ora, in casu, o Recorrente nenhum comportamento teve que levasse à descapitalização da conta bancária da insolvente, e tampouco que causasse o incumprimento da obrigação de pagamento de salários. Sendo, pois, nesta parte, totalmente incompreensível o teor da decisão.
24.º E, se para ilidir a presunção de culpa, basta a demonstração da ausência de conflito de interesses entre a sua atuação e o interesse da sociedade, tal prova é, aqui, gritante.
25.º Atentemos, então, que nos factos provados 58 e 62, o tribunal recorrido reconhece que o Recorrente usou dinheiro pessoal para honrar os compromissos da sociedade, nos montantes de, pelo menos, € 60.000,00 (sessenta mil euros) e € 112.840,00 (cento e doze mil e oitocentos e quarenta euros);
26.º E, no facto provado 51 o Tribunal a quo considera demonstrado, como foi, que o Recorrente “encontrou compradores e arrendatários para as referidas frações autónomas, de forma a fazer entrar na sociedade as quantias provenientes quer dos sinais pagos, quer das rendas mensais fixadas”.
27.º Sendo assim, de que forma o gerente que atua no sentido de cumprir o objeto social e o escopo lucrativo da sociedade e que, inclusive, injeta capitais próprios na sociedade, em montantes elevados, causou danos à sociedade e contribuiu para a verificação de prejuízos? A sentença recorrida, uma vez mais, não esclarece, nem fundamenta e justifica a contradição entre os factos provados e a consequência que deles extrai (em sentido inverso aos mesmos).
28.º Decidiu o Tribunal a quo “Ora da factualidade supra alegada dúvidas não existem de que o R. BB ao receber as quantias que eram devidas à sociedade, porque provinham de rendas pagas pelos arrendatários de imóveis da propriedade da sociedade ora insolvente, não as fazendo entrar nas contas da sociedade, mas antes ingressando-as nos seus patrimónios ou de terceiros em seu benefício e com claro prejuízo do património da sociedade, no valor recebido e não entregue.”
29.º Mas a que factualidade se refere o tribunal recorrido? Em que documento junto aos autos consta que o Recorrente se apropriou daquelas quantias? Ou que as entregou a terceiros? De que depoimento se extrai, sem qualquer dúvida, tal conclusão? Ignora-se… Sendo que, antes, foi dado como provado que o Recorrente teve o comportamento oposto, beneficiando a sociedade em prejuízo do seu património particular. Novamente, não se alcança como o Julgador chegou à convicção oposta à matéria que deu por provada.
30.º Certo é, o tribunal a quo faz tábua rasa dos depoimentos prestados nos autos quando foi referido que o Recorrente agia na convicção de proprietário, por via da promessa de compra e venda que assumiu no lugar da testemunha EE, o que foi explicado pelo próprio, e pelas testemunhas II, JJ e KK, ou seja, afirmado e confirmado nos autos;
31.º E, também escolhe ignorar o que o Sr. AI declarou sobre a inexistência de documentação contabilística relativa às rendas peticionadas, bem como sobre a sua decisão de não solicitar os extratos bancários de forma a certificar se os valores das rendas foram creditados em conta ou não.
32.º Leia-se, então: Depoimento da testemunha EE, prestado na audiência de 08/11/2024, com início às 15.26 horas, entre os minutos 00:04:38 e 00:05:30, nomeadamente: (…).
33.º E leia-se o depoimento do Sr. Administrador da Insolvência, prestado na audiência de 08/11/2024, com início às 15.52 horas, entre os minutos 00:48:23 e 01:00:26, nomeadamente: (…)
34.º E o depoimento da testemunha JJ, prestado na audiência de 03/12/2024, com início às 14.59 horas, entre os minutos 00:01:26 e 00:06:59, nomeadamente: (…)
35.º E ainda, do depoimento da testemunha II, prestado na audiência de 03/12/2024, com início às 15.08 horas, entre os minutos 00:01:36 e 00:04:03 e após intervalo, dos minutos 00:01:53 a 00:06:23, nomeadamente: (…)
36.º No depoimento da testemunha KK, prestado na audiência de 03/12/2024, com início às 15.53 horas, entre os minutos 00:01:29 e 00:06:29, nomeadamente, (…)
37.º Ouvindo os depoimentos prestados, a conclusão nunca seria a da sentença recorrida.
38.º Verdade é, não foi feita demonstração cabal da apropriação pelo Recorrente dos montantes peticionados, tampouco o foi da sua subtração à insolvente, tendo sido julgada verificada a culpa do Recorrente sem fundamentação nesse sentido, quando, ao invés, os factos provados são no sentido inverso, pelo que mal se decidiu na 1ª Instância.
39.º C) DA CONTRADIÇÃO ENTRE OS FACTOS PROVADOS E A CONDENAÇÃO EXCLUSIVA DO RECORRENTE: ora, o Tribunal recorrido deu como provada a “a anuência do réu CC” em diversos pontos, todos relacionados com os arrendamentos subjacentes às rendas peticionadas nos autos, a saber: factos 10, 17 e 19; além disso, no facto 25 refere “a ora insolvente, representada pelos RR., na qualidade de Senhoria, contratou…”.
40.º Isto é, o Julgador dá como provada a concordância do co-Réu na celebração dos contratos de arrendamento, dá como provado que o 2.º R. celebrou o contrato, vinculando a insolvente,
41.º Mas, adiante, nos factos 41 a 45 dá como provado o contrário, lendo-se que aquele co-réu “nunca tendo efetuado negócios com o património do aludido lote” e que “nem era conhecedor dos aludidos contratos de arrendamento das frações ..., ... e ...…”.
42.º Contudo, no seguinte facto 50, o Tribunal a quo dá como demonstrado que sempre foi o 2.º Réu, o sócio-gerente responsável pela gestão económico-financeira da sociedade insolvente, na qual era coadjuvado pela sua esposa.”;
43.º E, no seguinte facto provado 56 lê-se que “ambos os sócios concordaram em desfazer o negócio com o Senhor EE, com o que este também concordou”;
44.º Acrescendo, no facto seguinte, que “foi acordado entre os sócios, aqui RR., que o 1.º Réu iria assumir a posição de promitente comprador no contrato celebrado verbalmente com os Senhor EE”.
45.º É, pois, ininteligível a posição vertida na sentença recorrida. O co-Réu anuiu, mas sem ter conhecimento? O co-Réu contratou, mas não efetuou o negócio? O co-Réu geria a insolvente, mas, afinal, não geria? A decisão é, nesta parte, indecifrável.
46.º Esta contradição é pujante e, conforme amplamente discorrido supra, fere de nulidade a decisão proferida, o que se argui.
47.º Nunca olvidemos que, as circunstâncias espaciotemporais dos factos ocorrem num pequeno município, onde as pessoas se conhecem e reconhecem, principalmente quando falamos de empresários bem implementados no mercado da construção civil (ambos os co-Réus tinham, cada um, a sua própria empresa) e o imóvel em construção situa-se no centro da cidade. Aliás, o que foi atestado por várias pessoas ouvidas nos autos, inclusive pelo Sr. AI que depôs que na visita ao imóvel foi acompanhado pelo credor hipotecário, Sr. LL, que lhe terá mostrado os imóveis e descrito a realidade do prédio, e ainda foi afirmado pelo Sr. II que o Dr. MM, advogado daquele credor era conhecedor de todos os intervenientes, tendo sido da sua lavra a redação dos contratos promessa e dos contratos de arrendamento.
48.º Perante isto, jamais se poderia concluir que o co-Réu “nem era conhecedor dos aludidos contratos de arrendamento das frações ..., ... e .... Lembremo-nos do conceito do homem médio e a inveracidade de tal ilação é incontestável.
49.º Atente-se nas palavras do Sr. AI, na sessão de 08/11/2024, quando entre os minutos 00:40:30 e 00:40:39 diz que teve a colaboração do legal representante do credor hipotecário, o Senhor LL para saber quem ocupava as frações.
50.º Sendo, também, relevantes as palavras da testemunha NN, na audiência de 08/11/2024, com início às 15.39 horas, entre os minutos 00:11:05 e 00:12:24, o qual fez vários negócios com a insolvente e disse que fazia negócios sempre com os dois sócios, o BB e o CC.
51.º E, leia-se, ainda, o depoimento do Sr. II, na sessão de julgamento de 03/12/2024, após intervalo, nos minutos 00:05:00 a 00:05:55 que afirma que o Advogado do credor hipotecário conhece todas as pessoas envolvidas, incluindo inquilinos, sócios, toda a história e enredo desta sociedade, tendo sido ele quem efetuou contratos de compra e venda das frações.
52.º Perante isto, jamais se poderia concluir que o co-Réu “nem era conhecedor dos aludidos contratos de arrendamento das frações ..., ... e .... Lembremo-nos do conceito do homem médio e a inveracidade de tal ilação é incontestável.
53.º Pelo exposto, é, pois, por demais evidente a falta de fundamentação e a contradição entre os fundamentos e a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, ambiguidades que tornam a sentença ininteligível, pelo que se requer a este Alto Tribunal que seja declarada a nulidade da sentença, nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
54.º -- DO ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA -- Dando-se por integralmente reproduzido tudo quando foi alegado supra, entende-se por manifesto o erro notório na apreciação da prova.
55.º No caso sub judice, a 1.ª Instância decidiu sobre a factualidade nos termos supra descritos, sendo cristalino que muito mal andou aquele Tribunal ao dar como provados os factos constantes dos pontos 18, 23, 31, 33, 41, 42, 43, 44 e 45, os quais devem ser dados como não provados.
56.º Bem como, mal decidiu quando deu como não provados os factos elencados sob os parágrafos segundo, terceiro e quarto da matéria de facto não provada, os quais devem ser dados como provados.
57.º A consideração dos indicados factos como provados e não provados atenta contra o sentido da prova produzida em julgamento, impondo-se a sua qualificação por este Tribunal em sentido contrário à efetuada pelo Julgador em primeira instância.
58.º O Tribunal a quo não realizou, convenientemente, o exame crítico às provas, violando, portanto, o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, bem como, não aplicou corretamente o princípio da livre apreciação da prova, uma vez que esta está vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum da lógica e das regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
59.º 1) Quanto aos factos dados como provados sob os números18, 23, 31 e 33: nenhuma prova foi feita de que o Recorrente se tenha apropriado de quantias que eram devidas à sociedade. Pelo contrário, está assente e provado que aquele suportou, com capitais próprios, avultados compromissos e responsabilidades da insolvente, em montantes que ascendem a, pelo menos, € 172.840,00 (cento e setenta e dois mil e oitocentos e quarenta euros). Foi, ainda, amplamente esclarecido nos autos que o Recorrente, apesar de ter assumido a posição de promitente comprador quanto às frações arrendadas, os valores que recebeu a título de rendas foram sendo absorvidos pela própria sociedade, o qual sempre supriu toda e qualquer necessidade financeira da empresa, fosse perante instituições bancárias, fosse perante fornecedores.
60.º Neste sentido ouçam-se os seguintes depoimentos produzidos na audiência de discussão e julgamento:
- Depoimento da testemunha EE, prestado na audiência de 08/11/2024, com início às 15.26 horas, entre os minutos 00:05:09 e 00:05:29;
- Depoimento da testemunha NN, prestado na audiência de 08/11/2024, com início às 15.39 horas, entre os minutos 00:03:04 e 00:03:44;
- Depoimento da testemunha JJ, prestado na audiência de 03/12/2024, com início às 14.59 horas, entre os minutos 00:01:26 e 00:06:57;
- Depoimento da testemunha II, prestado na audiência de 03/12/2024, com início às 15.08 horas, entre os minutos 00:01:36 e 00:04:00, e após intervalo, entre os minutos 00:01:53 e 00:06:22
- Depoimento da testemunha KK, prestado na audiência de 03/12/2024, com início às 15.53 horas, entre os minutos 00:01:29 e 00:06:25
61.º Repare-se que, na motivação da sentença recorrida foi sempre omitido o que ora se transcreve, ou seja, em parte alguma é referido que as testemunhas afirmaram que sabiam que as frações arrendadas seriam para o Recorrente e que o mesmo as havia já pago à sociedade, através da entrega do valor devido ao Sr. EE.
62.º A sentença menciona, muito sucintamente, o depoimento deste EE e não refere que o mesmo declarou que a restituição lhe havia sido efetuada com um cheque pessoal. Todavia, lê-se “devolveu-lhe o dinheiro através de um cheque da Banco 1...”, quando deveria dizer “através de um cheque pessoal”.
63.º É, pois, notória a parcialidade do tribunal a quo.
64.º O mesmo sucedendo na parte em que é citada a testemunha NN, a qual, como supratranscrito, declarou que o Recorrente havia comprado frações, mas esta declaração é totalmente omitida do texto da sentença.
65.º E, uma vez, não consta da motivação que a testemunha JJ depôs no sentido que o Recorrente usava o seu dinheiro pessoal para aprovisionar a conta da sociedade, pois dava-lhe instruções para transferir da sua conta pessoal para a conta da sociedade.
66.º Mais, do depoimento da testemunha II, o tribunal recorrido apenas extraiu que era conhecedor da situação de insolvência e que era o Recorrente que fazia face às dificuldades financeiras da insolvente.
Ora, pela leitura do extrato dessas declarações supra, contata-se que esta testemunha trouxe muitos outros factos e de maior relevância.
67.º Pelo explanado, e olhando à prova testemunhal produzida, conjugada com a prova documental junta pelo Recorrente e com a sua contestação e devidamente apreciada à luz dos princípios e regras do direito probatório, impõe-se que este Alto Tribunal altere a matéria de facto provada, passando os referidos factos provados sob os números18, 23, 31 e 33 a factos não provados.
68.º 2) Quanto aos factos dados como provados sob os números 41, 42, 43, 44 e 45: como já esmiuçado supra, a tese que a 1ª Instância extraiu destes factos dados como provados é desfasada da realidade, o que facilmente se percebe, e, pior, estão em óbvia contradição com os factos 10, 17, 19, 25, 50, 56 e 57.
69.º O Tribunal recorrido, para desresponsabilizar o co-Réu, dá como provados estes factos, contudo, também dá como provado que o co-Réu deu anuência na celebração dos contratos de arrendamento, tendo, inclusive, aposto a sua assinatura num deles, acordou com o Recorrente desfazer o negócio celebrado com o Sr. EE e ainda que o Recorrente ficaria com as frações em causa.
70.º As testemunhas ouvidas em julgamento, inquilinos das referidas frações, declararam que ali instalaram os seus negócios, à vista de todos, portanto é de todo impossível que co-Réu desconhecesse os arrendamentos.
Aliás, tal entendimento atenta, em primeiro lugar, contra o bom-senso.
71.º Vejamos, então, o que foi dito na audiência de julgamento que contraria a tese seguida pelo Juiz a quo:
- Depoimento da testemunha DD, prestado na audiência de 08/11/2024, com início às 12.11 horas, entre os minutos 00:17:19 e 00:17:41;
- Depoimento da testemunha HH, prestado na audiência de 08/11/2024, com início às 14.55 horas, entre os minutos 00:04:52 e 00:07:15;
- Depoimento da testemunha GG, prestado na audiência de 08/11/2024, com início às 15.14 horas, entre os minutos 00:02:44 e 00:03:03;
- Depoimento da testemunha NN, prestado na audiência de 08/11/2024, com início às 15.39 horas, entre os minutos 00:02:50 e 00:12:24
- Depoimento da testemunha II, prestado na audiência de 03/11/2024, com início às 15.39 horas, entre os minutos 00:03:22 e 00:04:00;
- Depoimento da testemunha KK, prestado na audiência de 03/11/2024, com início às 15.53 horas, entre os minutos 00:03:21 e 00:03:57 e entre os minutos 00:12:15 e 00:12:33.
72.º Atentando, pois, a toda a prova produzida, quer testemunhal, quer documental, é irreal defender que o co-Réu desconhecia os aludidos contratos de arrendamento e que o mesmo não beneficiou das inúmeras entregas de dinheiro que o Recorrente fez à insolvente, o qual em parte provinha, como declarado em julgamento, das rendas coletadas.
73.º Assim, a factualidade constante dos factos provados 41, 42, 43, 44 e 45, após devida apreciação e análise da prova produzida por este Venerando Tribunal, terá de ser julgada como não provada, com as demais consequências no sentido da decisão.
74.º 3) Quanto aos factos dados como não provados: Por tudo o que supra se alegou e transcreveu, e a contrario, está deveras demonstrado nos autos que estes factos terão de ser dados como provados.
75.º . Atentemos que, quanto aos factos 18, 23, 31 e 33, verifica-se, para lá de qualquer dúvida, que o co-Réu deles teve conhecimento, soube, consentiu e acordou, mormente a assunção pelo Recorrente da posição de comprador nas frações prometidas ao Sr. EE e a celebração dos contratos de arrendamento.
76.º Quanto à utilização do valor coletado a título de rendas para fazer face às responsabilidades da sociedade, este facto demonstrado nos autos, nomeadamente pelos testemunhos de OO, II e KK.
77.º Observando a prova carreada para os autos e produzida na audiência de julgamento, e dela fazendo uma apreciação isenta e objetiva, a conclusão justa e verdadeira é alterar a referida factualidade não provada para provada.
78.º A sentença recorrida faz uma ERRADA APLICAÇÃO DO DIREITO, quer no julgamento da invocada exceção de prescrição, e da suposta causa de suspensão; quer no julgamento da eventual culpa do Recorrente e do regime solidário da mesma.
79.º Quanto à exceção da prescrição: A responsabilidade dos gerentes ou administradores no plano societário contempla: a responsabilidade para com a sociedade (art. 72.º do CSC); para com os credores sociais (art. 78.º do CSC); para com os sócios ou terceiros (art. 79.º do CSC); com os pressupostos da responsabilidade civil – facto ilícito, culpabilidade, prejuízos, nexo de causalidade, fixando o legislador um período razoável para o exercício dos direitos correspondentes à violação dos deveres impostos – contratuais ou legais –durante o qual seria legítimo que o titular do direito o exercesse.
80.º O n.º 2 do art.º 174º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), estabelece-se que: “Prescrevem no prazo de cinco anos, a partir do momento referido no n.º 1, alínea b), os direitos dos sócios e de terceiros, por responsabilidade para com eles de fundadores, gerentes, administradores, membros do conselho fiscal ou do conselho geral, liquidatários, revisores oficiais de contas, bem como de sócios, nos casos previstos nos arts. 82º e 83º”
81.º A presente ação foi instaurada em 16/02/2023, importando perceber quando se iniciou a contagem do referido prazo de cinco anos, sendo que para o tribunal recorrido “(…) o referido prazo prescricional de 5 anos deve contar-se desde a data provada sob 63.”, ou seja, desde ../../2023, data em que foi junto aos autos de insolvência o requerimento sob a referência ...33, que juntou os contratos de arrendamentos. Acrescentando que, “Acresce que no período referido sob 64 o Sr. A.I. estava impedido de praticar atos respeitante à Massa Insolvente pelo que, a nosso ver também tal prazo estaria suspenso.” Referindo-se à ação de embargos à declaração de insolvência cuja petição entrou em juízo em 27/11/2017, tendo sido alvo de decisão em 06/04/2018 e cujo trânsito em julgado ocorreu em 04/05/2018. Não se compreendendo a partir de que data é que efetivamente o Tribunal a quo considera iniciar-se o prazo prescricional e a existência ou não de suspensão do prazo.
82.º Quanto à data do início da contagem desse prazo prescricional de cinco anos, o art. 174.º, n.º 1, do CSC, prevê nas suas diversas alíneas um conjunto de circunstâncias de cariz predominantemente objetivo que, uma vez verificadas, determinam o início da contagem desse prazo prescricional de cinco anos. Resultando dos factos alegados na petição inicial que os danos alegadamente causados à Autora pelos Réus, que se consubstanciam na recolha das rendas, alegadamente, lesiva dos interesses da Autora, até à data da insolvência (15/11/2017), sendo que o Senhor Administrador de Insolvência teve conhecimento dos termos em que os contratos de arrendamento e seus pagamentos vinham sendo feitos logo em novembro de 2017, antes mesmos do envio das missivas juntas como documento n.º 26 no respetivo relatório, ou seja, desde 22/11/2017, tendo sido instaurada a ação em 16/02/2023, sendo, portanto, de julgar procedente a exceção perentória de prescrição, por decurso do prazo a que se refere o art. 174.º, n.º 2, do CSC.
83.º A Autora, no decurso do processo foi adequando a tese defendida, dado que na Inicial não conseguiu determinar a data em que teve conhecimento da alegada, mas inexistente, conduta dolosa dos Réus; em sede de resposta à contestação, veio dizer que o Sr. AI apenas teve conhecimento dos factos em 18/03/2018, data em que alegadamente teve acesso aos mesmos através do contabilista certificado da insolvente, que os teria ocultado; e na , na audiência de discussão e julgamento surgiu uma nova tese, tendo sido explicado pelo Sr. AI que logo após a sua nomeação começou a tomar as diligências para apreensão dos bens, tendo-se dirigido fisicamente às frações arrendadas e que não conseguiu falar com nenhum dos possuidores, o que foi refutado por todos os arrendatários.
84.º Ouvidos em julgamento, os arrendatários disseram de forma unânime, que ainda no mês de novembro de 2017, falaram com o Sr. Administrador de Insolvência e lhe explicaram os termos do contrato de arrendamento que possuíam e a quem efetuavam os pagamentos, tendo recebido a informação que, doravante, o pagamento seria efetuado, obrigatoriamente, à Autora.
Neste sentido, oiçam-se os depoimentos de DD (minuto 00.12.20 a minuto 00.13.59), de PP (minuto 00.14.25 a minuto 00.14.41), de HH (minuto 00.11.39 a minuto 00.18.08) – todos supra transcritos.
85.º A conclusão óbvia é que no dia 22 de Novembro de 2017, o Sr. AI tinha identificado todos os inquilinos, o que fez pessoalmente e com a colaboração do credor hipotecário, Sr. LL (cf. declarações do AI), e procedeu ao envio das missivas juntas aos autos, na qual solicita cópia do contrato e informa que, doravante, as rendas serão pagas diretamente à Autora, tendo merecido resposta, pelo menos dos inquilinos EMP03..., Lda. e HH (cf. cartas datadas de 06/12/2017, juntas aos autos em 03/12/2024, por requerimento com a referência ...88), e ainda de EMP04... (declarações de II e documento junto aos autos aquando da sua inquirição – carta datada de 04/12/2017). Pelo que, o conhecimento dos factos ocorreu, sem qualquer dúvida, neste momento, ou seja, entre finais de novembro e inícios de dezembro de 2017, e, inclusive, a Autora já recebeu as rendas pagas naquele mês de dezembro.
86.º O AI, nas suas declarações em julgamento, apresentou uma versão conveniente dos factos, consentânea com a postura da Autora que também foi adaptando a sua história, atenta a alegada prescrição, de forma a salvaguardar a entrada em prazo destes autos. Contudo, confirmou que visitou os imóveis e que procedeu à apreensão das rendas com início em dezembro de 2017 (depoimento de minuto 00.02.56 a minuto 00.59.49)
87.º A testemunha II que estava na posse de uma fração autónoma, por via de contrato promessa de compra e venda celebrado com a insolvente, no seu depoimento esclareceu que o seu inquilino também recebeu uma missiva do Sr. AI (minuto 00.04.17 a minuto 00.05.27), a qual foi junta na decorrência desse depoimento, constituindo prova adicional do momento em que o Sr. AI teve conhecimento dos factos, isto é, pelo menos logo no início de Dezembro de 2017 (após o envio das suas cartas aos arrendatários, em 22/11/2017, e receção das respetivas respostas, datadas de 04 e 06/12/2017).
88.º Portanto, é extensa a prova nos autos quanto ao momento em que o Sr. AI teve conhecimento dos factos, pelo que, em 16/02/2023, estava corrido o prazo prescricional do art. 174.º, n.º 2 do CSC, com a consequente preclusão do direito de interpor a presente ação.
89.º Sobre a alegada suspensão do prazo de prescrição, o Tribunal a quo faz apenas uma passageira menção acerca da mesma, dizendo “no período referido sob 64 o Sr. A.I. estava impedido de praticar atos respeitante à Massa Insolvente pelo que, a nosso ver também tal prazo estaria suspenso.”, não concretizando os fundamentos jurídicos, que inexistem, devendo improceder tal entendimento. Desde logo, o artigo 40.º, n.º 3 do CIRE apenas se refere à suspensão da liquidação e partilha do ativo e não à suspensão de atos do Sr. A.I., tais como o de apreensão de bens, tendo por si sido apreendidas as rendas logo em Dezembro e na durante todo o período de pendência dos embargos, mantendo-se a tramitação dos autos de insolvência, onde foi apresentado o relatório do artigo 155º do CIRE, anexando o inventário da insolvente, anexando as missivas enviadas aos possuidores das frações e até mesmo contratos de arrendamento, em 09/01/2018, realizou-se a assembleia de credores, e, foi aberto incidente de qualificação de insolvência.
90.º A suspensão da liquidação do ativo tem natureza excecional, estando prevista nas situações de oposição de embargos à sentença de declaração de insolvência e de recurso da decisão dos embargos que mantiver tal declaração, nos termos do art.º 40.º, nº 3, do CIRE. Todavia, a suspensão da liquidação do ativo não pressupõe a suspensão dos prazos de caducidade em curso, apenas se pretende bloquear qualquer ato de liquidação, seja venda ou partilha, de forma a proteger o património da insolvente enquanto se discute o mérito da declaração de insolvência. Isto, claro, para acautelar que, caso se verifique uma revogação da sentença que decreta a insolvência, o património societário permanece exatamente como existia à data da insolvência.
91.º Inexiste, pois, qualquer causa de suspensão do prazo de prescrição, pelo que o tribunal a quo deveria ter declarado procedente a exceção de prescrição alegada, dessa forma pondo termo ao litígio.
92.º DA INEXISTÊNCIA DE CULPA DO RECORRENTE: A responsabilidade dos gerentes ou administradores no plano societário contempla, entre outras, a responsabilidade para com a sociedade nos termos do disposto no artigo 72.º do CSC.
93.º A responsabilidade dos administradores para com a sociedade, como responsabilidade subjetiva que é, para que possa verificar-se carece, assim, que se mostrem preenchidos os requisitos: facto ilícito, culpabilidade, prejuízo e nexo de causalidade.
94.º E recai sobre o administrador/gerente o ónus de provar a inexistência de culpa (cf. art. 72º nº 1 do CSC). Mas atente-se que trata-se de uma presunção de culpa, com a consequente inversão do ónus da prova, e não uma presunção de ilicitude!
95.º Sendo que, o critério relevante para a determinação da culpa é o indicado, como se viu, no artigo 64.º, n.º 1, a) do CSC, ao referir-se à “diligência de um gestor criterioso e ordenado”.
96.º Ora, o Tribunal a quo deu como provado que o Réu BB depositava elevadas quantias na conta da sociedade, o que fazia sempre que era necessário aprovisionar a conta bancária ou sempre que foi preciso fazer face às responsabilidades da sociedade. Aliás, durante o período em que cobrou rendas, fez estas entregas à sociedade, pelo que, na verdade, os valores correspondentes às rendas foram sendo utilizados pela própria sociedade.
97.º Assim sendo, fazendo-se a correta apreciação da prova e alterando-se os factos provados e não provados em conformidade, também não se provou que o Réu fez suas as quantias cobradas.
98.º Muito mal andou o Tribunal a quo quando decidiu condenar o aqui Recorrente, por entender que o mesmo não logrou ilidir a presunção de culpa prevista no n.º 1 do art. 72º, pois, atenta a matéria de facto dada como provada, tampouco se fez prova da ilicitude da conduta que lhe foi imputada, 99.º Pelo que, também aqui se impõe revogar a sentença recorrida, decidindo-se, quanto ao aqui Recorrente, pela improcedência da ação, em rigoroso cumprimento da correta aplicação do Direito aos factos provados nos autos.
100.º DA RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA: A insolvente era uma sociedade por quotas, competindo, por isso, as funções de administração e representação à gerência (conforme disposto no artigo 252.º CSC), a qual era constituída pelos dois Réus - únicos sócios, em partes iguais -, cabendo-lhes, pois, a orientação e concretização dos negócios sociais e a prática de todos os atos correntes necessários à prossecução do objeto social, em cumprimento do seu escopo lucrativo, sempre observando a exigência legal do artigo 64º do CSC, ou seja, “a diligência de um gestor criterioso e ordenado”.
101.º Ora, o tribunal recorrido excluiu a responsabilidade do co-Réu após a errada apreciação e fixação da matéria de facto provada e não provada, nos moldes já amplamente explicados, tendo, de forma absolutamente infundada, até parcial, concluído pela absolvição do réu CC.
102.º Ora, o direito pretendido exercer nestes autos encontrava-se já prescrito à data da sua entrada em juízo, pelo que, consequentemente, nenhuma responsabilidade recairá sobre os RR.
103.º Contudo, caso este Alto Tribunal assim não entenda, o que não se concebe, nem concede, a sentença em crise sempre terá de ser revogada por não se verificar os requisitos exigidos para a responsabilização dos gerentes nos termos do artigo 72.º do CSC, atenta quer a inexistência de culpa, quer de facto ilícito, quer de danos.
104.º E, caso assim se não entenda, a existir responsabilidade (o que, repete-se, não se concebe, nem concede!) a mesma é solidária pois todas as decisões concernentes à insolvente foram tomadas e acordadas por ambos os sócios e gerentes, na exata medida das suas responsabilidades, por acordo e concordância de ambos. Isto inclusive nos acordos de gestão implementados.
Tudo, conforme estabelecido no artigo 73.º do CSC, sob a epígrafe "Solidariedade na responsabilidade”.
105.º Isto posto, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo decidiu contra legem.
106.º A sentença recorrida violou o artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, os artigos 154.º e 607.º do Código de Processo Civil, os artigos 72.º, 73.º, 174.º, e 252.º do Código das Sociedades Comerciais, os artigos 40, n.º 3, 100.º, 156.º, n.º 3, 206.º, n.º 1 e 225.ºdo Código de Insolvência e Recuperação de Empresa.”
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2). A Autora e o Réu CC (daqui em diante, Recorridos) responderam, pugnando pela improcedência do recurso.
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3). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
No despacho de admissão, o Tribunal de 1.ª instância afirmou, em termos tabulares, que a sentença não enferma das nulidades que lhe foram imputadas pelo Recorrente.
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4) Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
1). As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
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2). Importa considerar, à luz das considerações precedentes, que o Recorrente se insurge contra a sentença recorrida, para além do mais, na parte em que nela foi julgada improcedente a exceção perentória da prescrição. Segundo entende, o Tribunal a quo errou, tanto no julgamento dos factos relativos ao termo a quo do prazo de prescrição, como na interpretação do art. 174 do CSC, conjugado com as normas dos arts. 40/3, 100, 156/3, 206/1 e 225 do CIRE, no que tange às causas de suspensão de tal prazo. Em conformidade, pugna pela alteração do decidido no sentido de ser reconhecido que decorreu o prazo de prescrição do direito que a Recorrida pretende fazer valer através da ação e pela sua absolvição com esse fundamento.
Salvo o devido respeito, esta questão – a da prescrição do crédito indemnizatório na relação entre a Recorrida e o Recorrente – é nova e, como tal, não pode ser conhecida nesta sede de recurso.
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2).1. Explicando a afirmação que antecede, diremos que não suscita dúvida que estamos perante uma ação através da qual a Autora pretende imputar, na esfera jurídica dos Réus, os danos que por estes foram alegadamente causados à sociedade insolvente em consequência de atos que, enquanto gerentes, praticaram com preterição dos deveres legais a que estavam obrigados.
Isto permite-nos enquadrar a ação, em termos substantivo, no art. 72/1 do CSC, onde de trata da responsabilidade civil dos gerentes ou administradores perante a sociedade.
Tal responsabilidade é solidária, conforme resulta do disposto no art. 73/1 do CSC.
Significa isto que, sendo dois ou mais os gerentes ou administradores responsáveis perante a sociedade, esta – ou, em caso de insolvência, a respetiva massa insolvente, ut art. 82/2, a), do CIRE – pode exigir a indemnização integral de qualquer deles, e o cumprimento da obrigação de indemnização efetuado por um a todos libera (arts. 512, 517/1, 518, 519/1, e 523 do Código Civil).
O administrador solidário demandado pode opor ao credor, para se eximir ao cumprimento da obrigação, os meios de defesa que pessoalmente lhe competirem ou que sejam comuns a todos (art. 514/1 do Código Civil). Não se pode valer, todavia, das exceções pessoais de outros administradores.
Daqui resulta que o devedor solidário demandado pode opor ao credor exceções de duas espécies: comuns e pessoais.
As primeiras são as que respeitam à constituição da obrigação (por exemplo, a nulidade do negócio de onde ela provém, por falta de forma, a ilicitude ou a impossibilidade do objeto negocial) e ao funcionamento da relação obrigacional (por exemplo, os mecanismos de reação ao incumprimento da outra parte, como a exceção de não cumprimento do contrato, a resolução por incumprimento, a impossibilidade superveniente objetiva por facto não imputável a nenhum dos devedores). As segundas são aquelas que dizem respeito apenas a um dos devedores, pelo que só por ele podem ser invocadas.
Como ensina Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, I, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 1996, p. 797), enquanto as primeiras atingem a relação obrigacional complexa no seu todo, as segundas atingem apenas uma das várias relações obrigacionais através das quais o credor pode exigir de cada um dos devedores a prestação integral a que tem direito. No mesmo sentido, António Menezes Cordeiro (“Art. 514.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, II, Das Obrigações em Geral, Coimbra: Almedina, 2021, pp. 503-504), Ana Afonso (“Art. 514.º”, AVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Lisboa: UCE, 2021, p. 437).
Ainda segundo a lição de Antunes Varela (Das Obrigações cit., pp. 797-799), os efeitos das exceções pessoais variam, consoante a natureza do facto em que assentam. Assim, umas, apesar de só poderem ser opostas pelo devedor a quem se referem, uma vez invocadas, aproveitam a todos em face do credor. É o caso da compensação, que, embora só possa operar sobre a declaração do titular do crédito compensável (art. 848/1 do Código Civil), produz a extinção do crédito em relação a todos os devedores (art. 523 do Código Civil).
Outras, além de serem invocáveis apenas pelo devedor a quem respeitam, só a ele aproveitam também, na medida em que o libertam definitivamente da obrigação, prejudicando os outros devedores. É o caso da incapacidade do devedor, da anulabilidade proveniente de qualquer vício da vontade ou da não verificação da condição ou termo que apenas se refira a um dos devedores. São, portanto, factos que não libertam os outros devedores a quem se referem do dever de efetuarem toda a prestação, ao mesmo tempo que os prejudicam (definitiva ou temporariamente) no seu direito de regresso.
Outras, finalmente, também só podem ser invocadas pelo devedor a quem respeitam, mas não prejudicam os outros condevedores, embora não lhes aproveitem. São factos que liberam o devedor perante o credor, mas não em face dos outros devedores que contra ele exerçam o direito de regresso.
Entre estas últimas inclui-se a prescrição que, sendo apenas invocável pelo devedor prescribente, não libera este da obrigação de regresso perante os condevedores a quem a prescrição não possa aproveitar (art. 521/1 do Código Civil).  Diz respeito apenas à relação obrigacional entre o credor e o devedor (solidário) que a invoca e não a cada uma das relações estabelecidas entre o credor e os demais devedores solidários Assim, Antunes Varela (idem), Mário Júlio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, 12.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 674), Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 159, nota 351). Especificamente a propósito do art. 74/1 do CSC, J. M. Coutinho de Abreu / Maria Elisabete Ramos (“Art. 74.º”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 920). Na jurisprudência, STJ 30.09.2008 (08A1918), Moreira Alves, RP 4.05.2022 (5489/19.1T8VNG.P1), Paula Leal de Carvalho. Dito de outra forma, a prescrição não é do conhecimento oficioso, necessitando, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (art. 303 do Código Civil). A sede própria para esse efeito é a contestação, consequência do princípio da concentração da defesa, consagrado no art. 573/1 do CPC.
Compreende-se que assim seja: a prescrição mais não é que uma causa de conversão das obrigações civis em obrigações naturais (António Menezes Cordeiro, “Da caducidade no Direito Português”, AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Dias Marques, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 7-30).
Consiste numa exceção de direito material. Exceção porque, com base nela, o devedor pode recusar, legitimamente, o cumprimento da obrigação (STJ 3.02.2009, 08A3952, Alves Velho). E de direito material porque se funda numa vicissitude da relação jurídica substantiva.
Quando invocada como meio de defesa, tem a natureza de exceção perentória, pois extingue o efeito jurídico dos factos alegados pelo autor (art. 576/3 do CPC). Assenta, portanto, na alegação de factos novos que obstam à procedência do pedido – e não à preclusão do direito de interpor a ação, como equivocamente escreve a Recorrente na conclusão 88 –, pelo que o ónus da respetiva prova recai sobre o devedor (art. 342/2 do Código Civil).
Ademais, é uma exceção em sentido próprio, uma vez que a respetiva relevância depende da vontade do demandado. Distingue-se das exceções em sentido impróprio, que são factos cuja eficácia opera ipso iure, que o juiz pode conhecer oficiosamente, sem dependência de alegação da parte a quem aproveitam (art. 579 do CPC). Assim, o devedor, que se queira fazer valer da prescrição, pode opor-se ao exercício do direito pelo credor, pela circunstância de o mesmo não ter sido atuado no lapso de tempo fixado na lei (art. 304/1 do Código Civil). Mas, porque está em causa a titularidade de um direito potestativo (Ana Filipa Morais Antunes, “Algumas questões sobre prescrição e caducidade”, separata de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 35-72), também pode suceder que, por razões variadas, o devedor não invoque a prescrição, como sucedeu, no caso, com o ora Recorrente, que nada disse sobre ela na [sua] contestação.
***
2).2. Do exposto decorre, a um tempo, que a invocação da prescrição pelo Réu CC apenas aproveita a ele próprio (dito de outra forma, respeita, somente, à relação obrigacional entre ele e a Recorrida) e, a outro, que ficou precludida, com a apresentação da contestação, a possibilidade de o Réu BB invocar, também, em seu benefício, esta exceção perentória.
Nesta medida, a sua invocação em sede de recurso, quanto à relação obrigacional entre o Recorrente e a Recorrida, não pode deixar de ser qualificada como uma questão nova, colocada a destempo e que, como tal, deve ser excluída do objeto do recurso, em todas as suas dimensões.
Pelo exposto, fica prejudicado o conhecimento das questões colocadas nas conclusões 12 a 20, 79 a 91 e 106, esta apenas na parte em que são indicadas, como normas jurídicas violadas, a do art. 174 do CSC e as dos arts. 40/3, 100, 156/3, 206/1 e 225 do CIRE.
***
3). Tendo presente o que antecede, as questões que se colocam à apreciação desta Relação podem ser assim enunciadas, segundo a ordem lógica do respetivo conhecimento:
Primeira: Nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação de facto e de direito;
Segunda: Nulidade da sentença recorrida por contradição entre os fundamentos e a decisão;
Terceira: Nulidade da sentença recorrida por obscuridade;
Quarta: Erro de julgamento quanto: (i) aos enunciados dos pontos 18, 23, 31, 33, 41, 42, 43, 44 e 45 dos factos provados, que deve ser corrigido no sentido de os dar como não provados; (ii) aos enunciados dos pontos 2[b], 3[c] e 4[d] dos factos não provados, que deve ser corrigido no sentido de os dar como provados;
Quinta: Erro sobre a matéria de direito, mais concretamente no que tange à interpretação do disposto nos arts. 72, 73 e 252 do CSC.
***
III.
1). Antes de prosseguirmos, respigamos a fundamentação de facto da sentença recorrida, com destaque (itálico) para os concretos pontos cuja impugnação faz parte do objeto do recurso.
Assim, foram ali considerados como factos provados os seguintes enunciados (transcrição):

“1. Por decisão de 15-11-2017, já transitada em julgado, proferida no âmbito do processo que sob o n.º 5824/17...., corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Barga, Juízo Comércio de Comércio de ... – Juiz ..., foi declarada insolvente a sociedade “EMP01..., Lda.”
2. Foi ainda, nos termos da referida sentença, nomeado Administrador da Insolvência, o Dr. AA, com domicílio profissional, agora, na Rua ..., no ....
3. O capital social da ora insolvente sempre foi detido pelos RR.
4. A sociedade “EMP01..., Lda.”, ora insolvente, foi constituída em 08/09/2004, sob a forma jurídica de sociedade por quotas, estando o seu capital social dividido em duas quotas, pertencentes a cada um dos RR.
5. A aludida sociedade obrigava-se, até ../../2017, através da assinatura dos dois sócios, ora RR., os quais haviam sido nomeados gerentes.
6. A partir da referida data, a gerência da sociedade ficou cometida apenas ao R. BB, em virtude da renúncia à gerência por parte do R. CC.
7. A aludida sociedade foi constituída em 08/09/2004, sob a forma jurídica de sociedade por quotas, estando o seu capital social, que ascende a 50.000,00 €, dividido em duas quotas iguais, pertencentes a cada um dos RR..
8. A aludida sociedade tinha como objeto social “Indústria da Construção Civil e empreitada de obras públicas, nomeadamente construção de edifícios. Compra e venda de bens imóveis.”
9. No âmbito da sobredita atividade a sociedade “EMP01..., Lda.” construi entre outros, um edifício sito na Prof. ..., ..., na freguesia ..., ... e ..., no Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...36, o qual é composto por várias frações, e, nomeadamente, pela fração designada pela letra ..., correspondente ao primeiro rés-do-chão direito, destinada ao comércio e/ou serviços, composta por uma divisão e casa de banho, com um lugar de estacionamento identificado pela letra ..., sita no ..., integrada no prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...25... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...36.
10. Ocorre que das diligências de averiguação sobre a existência de bens titulados pela aludida insolvente, o Administrador da Insolvência teve conhecimento que o R. BB e a sua mulher - FF-, com a anuência do R. CC, na qualidade de ”Senhorios” deram de arrendamento, verbalmente, à sociedade “EMP03..., Lda.”, NIPC: ...43 e com sede no Lugar ..., freguesia ..., ... e ..., Concelho ..., na qualidade de “Arrendatária” uma fração autónoma da propriedade da ora insolvente.
11. Tal contrato teve o seu início em junho de 2011 e teve como objeto a aludida fração autónoma designada pela letra ....
12. Tendo formalizado o aludido contrato apenas em 19-03-2014.
13. Nos termos do sobredito contrato o R. BB e a sua mulher acordaram com a sociedade “EMP03..., Lda.” que: “No primeiro ano de vigência do contrato, a renda anual será de EUROS 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos euros), pagos em duodécimos mensais no valor de EUR 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).”
14. Acordaram ainda os outorgantes que: “As rendas serão pagas pela arrendatária no dia 1 (um) do mês anterior a que disserem respeito, contra recibo, através de transferência bancária, com o N...88, servindo o comprovativo de operação bancária de recibo até à entrega do mesmo pelos senhorios.”
15. Acresce ainda que, segundo consta do aludido contrato “na data da celebração do presente contrato a arrendatária entrega aos senhorios a quantia de EUR 900,00 (novecentos euros) correspondente às rendas dos meses de março e abril de 2014.”.
16. A sociedade “EMP03..., Lda.” manteve-se na posse do imóvel arrendado até, pelo menos, 21/12/2018, data em que o adquiriu no âmbito da venda judicial levada a cabo no processo de insolvência.
17. Desde junho de 2011 até dezembro de 2017, a sociedade “EMP03..., Lda.” efetuou o pagamento ao R. BB, com a anuência do R. CC, das rendas mensais, no valor de 450,00 €, cada, tendo entregue neste hiato temporal, o valor global de € 35.550,00 (trinta e cinco mil e quinhentos e cinquenta euros) – 79 meses x € 450,00.
18. Valor esse que o R. BB recebeu e nunca fez entrar nas contas da sociedade ora insolvente.
19. Assim o ficou provado na douta sentença proferida no âmbito do apenso do incidente da qualificação da insolvência - apenso B -, nos termos da qual:
“O sócio gerente BB, com anuência do sócio gerente CC, recebeu pelo menos desde junho/julho de 2011 e até à data da declaração de insolvência da empresa, dispôs em proveito pessoal e/ou de terceiros da renda mensal no montante, liquido, de € 337,50 (trezentos e trinta e sete euros e cinquenta cêntimos) (€ 450,00 – € 112,50 retidos na fonte a título de IRS) - liquidada pela sociedade comercial “EMP03..., LDA.”, inquilina da fração autónoma designada pela letra ..., destinada a comércio, no ..., sita na Rua ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...74..., fração esta da propriedade da insolvente.”
20. Em julho de 2015 o R. BB, em representação da insolvente, acordou, verbalmente, com DD, com o NIF ...60..., residente na Rua ..., ..., ..., o arrendamento para comércio da fração autónoma designada pela letra ... correspondente ao primeiro andar centro esquerdo – comércio e/ou serviços – composta por uma divisão, uma casa de banho e uma divisão destinada a armazém, com um lugar de estacionamento identificado pela letra ..., sita no ..., integrado no prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...25... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...36, também esta propriedade da ora insolvente.
21. Nos termos do sobredito contrato a ora insolvente e a Sr.ª DD acordaram que o valor da renda mensal era de € 200,00.
22. Desde outubro de 2015 até dezembro de 2017, a Sr.ª DD efetuou o pagamento ao R. BB, no valor de 200,00 €, tendo entregue neste hiato temporal, o valor global de € 5.200,00 (cinco mil e duzentos euros) – 26 meses x € 200,00.
23. Valor esse que o R. BB recebeu e nunca fez entrar nas contas da sociedade ora insolvente.
24. Assim o ficou provado na douta sentença proferida no âmbito do apenso do incidente da qualificação da insolvência - apenso B -, nos termos da qual: “E, pelo menos desde outubro/novembro de 2015 e até à data da declaração de insolvência da empresa, dispôs em proveito pessoal e/ou de terceiros da renda mensal no montante de € 200,00 (duzentos euros) liquidada por DD, inquilina da fração autónoma designada pela letra ..., destinada a comércio, no primeiro andar centro esquerdo, sita na Rua ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...74..., inscrita na matriz sob o artigo ...36..., fração esta da propriedade da insolvente.”
25. A ora insolvente, representada pelos RR., na qualidade de ”Senhoria” contratou verbalmente, com a Sr.ª GG, NIF ...13 e marido Sr. HH, NIF ...07..., na qualidade de “Arrendatários” o arrendamento de uma fração autónoma da propriedade da ora insolvente.
26. Tal contrato teve o seu início em fevereiro de 2011 e teve como objeto a fração autónoma designada pela letra ... correspondente ao rés-do-chão direito traseiras, destinada ao comércio e/ou serviços, composta por uma divisão e casa de banho, com um lugar de estacionamento identificado pela letra ..., sito nas traseiras do edifício, integrada no prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...25... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...36.
27. Nos termos do sobredito contrato a insolvente e os arrendatários acordaram que a renda mensal era de € 300,00.
28. Em 22/06/2012, a insolvente representada pelos RR. e os arrendatários formalizaram o contrato de arrendamento que até então era verbal.
29. A arrendatária manteve-se na posse do imóvel arrendado até, pelo menos, 21/12/2018, data em que o adquiriu no âmbito da venda judicial levada a cabo no processo de insolvência.
30. Ocorre que, desde fevereiro de 2011 até dezembro de 2017, os arrendatários efetuaram o pagamento ao R. BB, das rendas mensais, no valor de 300,00 €, cada, tendo entregue neste hiato temporal, o valor global de € 24.900,00 (vinte mil e quatro mil e novecentos euros) – 83 meses x 300,00€.
31. Valor esse que o R. BB recebeu e nunca fez entrar nas contas da sociedade ora insolvente.
32. Assim o ficou provado na douta sentença proferida no âmbito do apenso do incidente da qualificação da insolvência - apenso B -, nos termos da qual: “E, pelo menos desde fevereiro de 2011 e até à data da declaração de insolvência da empresa, dispôs em proveito pessoal e/ou de terceiros da renda mensal no montante de € 300,00 (trezentos euros) liquidada por HH, inquilino da fração autónoma designada pela letra ..., destinada a comércio, no rés do chão traseiras, sita na Rua ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...74..., inscrita na matriz sob o artigo ...36..., fração esta da propriedade da insolvente.”
33. O R. BB fez suas as quantias que recebeu a título de rendas referentes a imóveis da sociedade de que era sócio e gerente, integrando-as no seu património pessoal e em benefício próprio, causando prejuízo à sociedade que representava e, consequentemente aos seus credores, e, nomeadamente, o R. BB ingressou no seu património o montante global de € 65.650,00 (sessenta e cinco mil e seiscentos e cinquenta euros), nomeadamente, - o montante de € 35.550,00, que recebeu da sociedade “EMP03..., Lda.”; - o montante global de € 5.200,00, que recebeu da Sr.ª DD; - o montante de € 24.900,00, que recebeu de GG e marido HH.
34. Além disso, a aludida sociedade obrigava-se através da assinatura dos dois sócios, os quais haviam sido nomeados gerentes.
35. Em 18/02/2017, o Réu CC, renunciou à gerência, sendo tal situação levada a registo através da AP. ...07.
36. Pelo que, a partir do dia ../../2017, a gerência da sociedade ficou acometida apenas ao Réu BB.
37. A sociedade insolvente possuía dois lotes em construção, os lotes ...01 e ...03.
38. Na sequência de desentendimentos entre os sócios, estes acordaram em fazer uma separação de facto da aludida sociedade. 39. Neste sentido, o lote ...01 ficou sob a direção do sócio e gerente, e ora Réu, BB, e o lote ...03 sob a direção do aqui Réu CC. 40. Ora, a firma construtora era a firma EMP05..., Lda., da qual também é sócio o aqui Réu CC.
41. Assim, desde que ocorreu a aludida separação de facto, o Réu CC nunca exerceu qualquer função de gerência ou administração relativamente ao lote ...01, mormente sobre as frações ..., ... e ....
42. O Réu CC nunca retirou qualquer proveito pessoal ou patrimonial das rendas obtidas nas frações ..., ... e ... do lote ...01, nunca tendo efetuado negócios com o património do aludido lote, nem retirou quaisquer quantias pertencentes às referidas frações para gastos pessoais e/ou terceiros.
43. Na verdade, o Réu CC nem sequer era conhecedor dos aludidos contratos de arrendamento das frações ..., ... e ... do lote ...01.
44. Relativamente à fração ..., não resultou provado na sentença proferida no âmbito do apenso do incidente da qualificação da insolvência - Apenso B -, que o Réu CC anuiu com o comportamento do Réu BB, em dispor em proveito pessoal e/ou de terceiros da renda mensal da referida fração.
45. Já quanto à fração ..., também não foi dado como provado na sentença proferida no âmbito do apenso do incidente da qualificação da insolvência - Apenso B - , que o Réu CC tenha dado a sua anuência ao Réu BB, para dispor em proveito pessoal e/ou de terceiros da renda mensal da aludida fração.
46. Na fração ... são peticionadas rendas desde junho de 2011 até dezembro de 2017; na fração ... são peticionadas rendas desde outubro de 2015 até dezembro de 2017; e na fração ... são peticionadas rendas desde fevereiro de 2011 até dezembro de 2017, pelo que em parte posteriores ao referido sob 35 e 36.
47. No dia 30/12/2017 o Senhor Administrador de insolvência apresentou o Relatório nos termos do art. 155º do CIRE, sendo que, do aludido Relatório no título “5. Outros elementos importantes para a Tramitação”, consta o seguinte: “De registar que as frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ... e ..., se encontram ocupadas, tendo o Administrador da Insolvência diligenciado junto das pessoas que as ocupam pela apresentação de documento que legitime a posse e, bem assim, pela apreensão de eventuais rendas.
48. Tendo até à data da apresentação do aludido Relatório obtido resposta de todos, com a exceção da referente à fração ..., tendo, todavia, suspendido quaisquer diligências até decisão do apenso de Embargo, cuja sentença data de 06/04/2018.
49. Ao 1.º R. cabia, ainda, a gestão global da obra, ali trabalhando diariamente, lado a lado com os demais trabalhadores, e gerindo as necessidades da construção, nomeadamente quanto à encomenda de materiais e contratação de subempreiteiros das diversas especialidades.
50. Por sua vez, sempre foi o 2.º R. o sócio-gerente responsável pela gestão económico-financeira da sociedade insolvente, na qual era coadjuvado pela sua esposa.
51. O 1.º R. encontrou compradores e arrendatários para as referidas frações autónomas, de forma a fazer entrar na sociedade as quantias provenientes quer dos sinais pagos, quer das rendas mensais fixadas.
52. Na fase muito inicial do projeto de construção, o 1.º Réu acordou com o Senhor EE a venda de duas frações autónomas - ... e ... – pelo preço global de € 60.000 (sessenta mil euros), sendo € 30.000,00 o preço individual de cada uma das frações autónomas.
53. Dinheiro que, imediatamente, entrou nas contas da insolvente e que foi essencial para dar início à execução da obra.
54. Durante a execução da obra, surgiram desentendimentos entre o promitente comprador e a insolvente, nomeadamente com o 1.º R., uma vez que aquele começou a fazer exigências em relação à obra que não eram aceitáveis, atendendo ao preço pago por cada uma das frações autónomas.
55. O preço de € 30.000,00 (trinta mil euros) por cada fração autónoma destinada a comércio deveu-se ao momento da celebração do contrato (ainda em fase de projeto), bem como tinha por base as técnicas e materiais previstas no caderno de encargos, e que foram explicadas ao promitente comprador, que com as mesmas concordou, pelo que não eram aceitáveis as modificações pretendidas mantendo o preço inicial.
56. Perante isto, e porque seria incomportável para a insolvente concretizar a venda das duas frações sem qualquer margem de lucro (o que sucederia caso sucumbissem às exigências do comprador), ambos os sócios concordaram em desfazer o negócio com o Senhor EE, com o que este também concordou.
57. Foi, então, acordado entre os sócios, aqui RR., que o 1.º R. iria assumir a posição de promitente comprador no contrato celebrado verbalmente com o Senhor EE.
58. Assim, o 1.º Réu, pessoalmente e fazendo uso de dinheiro que pertencia ao seu património conjugal, entregou ao referido EE a quantia de € 60.000,00.
59. Os arrendatários das referidas frações ..., ... e ... procediam ao pagamento das rendas mensais ao 1.º Réu.
60. O que faziam sempre pessoalmente, dado que era aquele que se encontrava diariamente no prédio, em numerário, normalmente com dinheiro da caixa, resultado do apuro diário das suas atividades.
61. Consta no Apenso F um documento bancário que atesta o levantamento ao balcão, pela esposa do 2.º R., do cheque entregue pelo Credor II, correspondente a parte de sinal, no valor de € 10.000,00 em 24 de janeiro de 2019.
62. Assim a título meramente exemplificativo, no período compreendido entre 2008 e 2014, o 1.º Réu transferiu para a sociedade a quantia global de € 112.840,00 (cento e doze mil e oitocentos e quarenta euros), como infra se discrimina: a) em 13/03/2008, a quantia de € 10.000,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; b) em 12/01/2009, a quantia de € 46.540,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; c) em 28/09/2009, a quantia de € 40.000,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; d) em 17/08/2010, a quantia de € 2.000,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; e) em 03/01/2011, a quantia de € 2.000,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; f) em 14/02/2011, a quantia de € 2.300,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; g) em 30/09/2014, a quantia de € 9.500,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com NIB  ...05 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o NIB  ...34, ambas domiciliadas no Banco 2...; e h) em 30/09/2014, a quantia de € 500,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com NIB  ...05 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o NIB  ...34, ambas domiciliadas no Banco 2....
63. Em 23/02/2018 foi junto o requerimento sob ref. ...33 documento onde se poder ler: «BB, sócio e gerente da firma EMP01..., Lda. notificada para juntar aos autos cópia dos contratos de arrendamento que celebrou na qualidade de gestor de negócios de QQ com a EMP03... e HH e como gestor de negócios de RR celebrado com DD.”
64. A sentença de declaração foi alvo de Embargo cuja petição entrou em juízo em 27/11/2017, tendo sido alvo de decisão em 06/04/2018 e cujo trânsito em julgado ocorreu em 04/05/2018.
***
2). Como factos não provados, foram considerados os seguintes enunciados (transcrição):

“[a]- Se o Réu CC assinou quaisquer documentos que lhe eram entregues, sempre seria a título esporádico e não no âmbito de gestão do lote ...01 e, bem assim, sempre a pedido do sócio-gerente da firma BB, quem, na verdade, se encarregava da gestão do aludido lote.
[b]- Inclusive, o valor das rendas mensais da fração ... sempre foi utlizado pela sociedade, fazendo face ao pagamento de pequenas contas da empreitada.
[c]- O 1.º R., apesar de assumido a posição de promitente comprador no contrato promessa celebrado pela insolvente com o Sr. EE, utilizou o dinheiro correspondente às rendas das duas frações para suprir as necessidades da insolvente.
[d]- Que o R. CC tivesse conhecimento dos factos nºs 18, 23, 31 e 33.”
***
3). Finalmente, a decisão da matéria de facto foi motivada do seguinte modo (transcrição):

“A nível de prova documental, os factos 1º e 2º assentam no documento junto com a p.i. sob o n.º 1; os factos 3 e 8 assentam no documento nº2; o facto 9 na fotocópia certificada que sob o n.º 3 se junta; o facto 12 no documento nº4; assim como facto 13 no doc. n.º 3 clausula 4.ª; e o 14 -no doc. n.º 3 clausula 5.ª; e o facto 15 no doc. n.º 3 clausula 4.ª ponto 2; o facto 16 no documento junto sob o n.º 5; os factos 19 e 21 no documento junto sob o n.º 6; o facto 20 no documento junto sob o n.º 7; o facto 26 no documento junto sob o n.º 8; o facto 29 no documento que sob o n.º 10; o facto 28 no documento junto sob o n.º 9;o facto 47 no documento nº26; o facto 48 nos docs. nºs 27, 28, 29 e 30;o facto 61 no documento nº1 junto com a contestação; e o facto 62 nos documentos n.os 2 a 7 juntos com esse articulado.
A testemunha DD afirmou que arrendou uma loja sita em ..., pensa que em 2015 tendo tratado disso com o R. BB. Segunda a testemunha este R. disse que a dita loja era pertença dele e do sócio, co-R.
O contrato não foi formalizado por iniciativa do R. BB, devido a um processo no Tribunal, mas em 4 anos nunca foi formalizado.
Disse que a renda era de 200 euros mensais a pagar em dinheiro e a pagar à esposa do R. BB.
Não sabe se o outro sócio tinha conhecimento deste contrato.
Disse que mais tarde foi abordada pelo Sr. A.I. e que recebeu uma carta para as rendas serem pagas a favor da Massa Insolvente. Todavia continuou a pagar a renda ao R. BB por insistência deste até segundo se lembra 2019 quando o imóvel mudou de dono.
Disse ainda que relativamente a 2018 fez pagamentos renda à MI.
A testemunha PP, gerente da forma EMP03... e que juntou cópia do contrato de arrendamento aos autos, identificou o imóvel objeto da presente ação.
Disse que «alugaram» a loja ao R. BB em 2011 que de início pagava a renda por cheque e mais tarde por transferência bancária.
Disse que pagou todas as rendas que eram devidas e que disso foi emitido recibo conforme consta dos autos. Foi arrendatário até à data em que a própria EMP03... adquiriu esse prédio.
A testemunha HH igualmente confirmou que celebrou um contrato de arrendamento dizendo que foi com o 1ª R. BB na fração supra identificada.
Mais disse que o contrato de arrendamento é de 2012, mas estava a ocupar o local desde 2011. Existe cópia do referido contrato com data de junho de 2012, em que o primeiro outorgante é a insolvente.
Mais disse que o valor de renda mensal eram 300 euros entregues em numerário ao R. BB.
A testemunha GG acabou por confirmar que assinou o contrato de arrendamento com os RR., junto aos autos (junto em 11/2023) sendo que isso foi tratado principalmente pelo seu marido.
A testemunha EE depôs sobre os factos provados sob 56 a 58, confirmando que entregou 60 mil euros e que houve um contrato escrito assinado por si e o 1ª R., mas mais tarde este disse que devolvia o dinheiro e que a loja seria adquirida por outra pessoa, e desfizeram o negócio. Devolveu-lhe o dinheiro através de um cheque da Banco 1....
A testemunha SS, construtor civil, foi quem vendeu os lotes ...01 e ...03 acima referidos à insolvente, confirmou o teor do facto do facto 39 quanto ao que aí se diz sobre o R. CC. Aliás apenas tem conhecimento direto quanto a factos que possam estar relacionadas com o facto 103 que, diga-se não, era o que deu origem aos contratos de arrendamento aqui em causa. Disse, todavia, que nos seus negócios com a insolvente sempre tratou com ambos os sócios.
Ainda sobre os factos 47 e 48 o Sr. A.I. disse que quando foi aos imóveis deu conta que os mesmos estavam ocupados, em termos temporais, disse que terá sido uma ou duas semanas depois da sua nomeação (provavelmente outubro/ novembro de 2017). Mas não tinha conhecimento de valores de rendas, nem o que estava pago quando emitiu as cartas a notificar os locatários. No fim do relatório não fez qualquer outra diligência de apreensão porque estavam pendentes um embargo à insolvência ou que só foi decidido por sentença de 06/04/2018. Nas semanas seguintes a essa data retomou as diligências, contactando os ocupantes das frações. Quanto ao documento junto em 04/04/2023 disse que o mesmo foi junto aos Embargos e é da autoria do primeiro R. e que se presta a dúvidas sobre os contornos desta questão e se as mesmas deveriam reverter para a MI o que só sucedeu mais tarde. Veio ainda a constatar que havia pagamentos de rendas feitas para o IBAN do 1ª R.
JJ, ex-bancário, conhecedor dos RR, disse que a insolvente passou por problemas de tesouraria, mas que o R. BB sempre foi resolvendo os problemas financeiros designadamente quando a conta bancária estava a descoberto.
A testemunha II, que conhece bem os RR., sobre a matéria em causa, as rendas recebidas, confirmou a matéria do facto provado sob 57. No mais, referiu que quando havia dificuldades financeiras era o R. BB que fazia face a essa situação. Disse ser conhecedor da situação da insolvente porquanto mediou a obtenção de um crédito entre esta e o Banco 3....
No mais, as suas afirmações derivaram daquilo que o R. BB lhe ia contando. Disse desconhecer o destino dado aos valores recebidos a título de renda.
A testemunha KK, filha do R. BB, disse ter pouco conhecimento da vida da sociedade declarada insolvente, sobre a fração onde está a EMP03... e aquela onde está um barbeiro, referiu-se, todavia, aos factos provados sob 52, 56 e 58, dizendo que o seu pai devolveu o dinheiro que o promitente comprador havia pago e ficou com as frações. Assim teria agido na convicção de tais lojas iriam reverter para ele e daí ter recebido essas rendas.
O facto 63 além do referido do documento consta também do documento junto com o requerimento com data de entrada de 04/04/23.
Relativamente à factualidade não provada, além da separação de facto da sociedade e da gestão separada dos lotes referidos e em que houve comum acordo, sobre a gestão concreta realizada, negócios e proventos, não houve prova concreta de que tivesse disso conhecimento o sócio CC, sendo que a anuência a que se refere na decisão citada seria sempre a título genérico, sobre a gestão que lhe foi atribuída do lote ...01.”

IV.
1).1. Transcrita a fundamentação de facto da decisão recorrida, passamos a conhecer da primeira das questões elencadas – a da arguida nulidade da decisão recorrida, por não especificar os respetivos fundamentos de facto e de direito.
A sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), Eugénia Cunha, RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), Maria João Matos, e RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), Rosália Cunha.
Diz o n.º 1 do art. 615 do CPC, na parte que releva, que “[é] nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
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1).2. Sobre esta causa de nulidade da sentença – a falta de fundamentação –, importa dizer que as regras a observar pelo juiz na elaboração da sentença estão enunciadas nos números 2 e 3 do art. 607 do CPC, nos termos dos quais a “sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.
O n.º 4 do mesmo preceito acrescenta que, na “fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; e “tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
Finalmente, o n.º 5 diz que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Reafirma-se, assim, em sede de sentença cível, a obrigação imposta pelo art. 154 do CPC, que é concretização do mandamento consagrado no art. 205/1 da Constituição da República, do juiz fundamentar as suas decisões, apenas o podendo fazer por simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Conforme se pondera em RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), já citado, “visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, do CPC), a paz social só será efetivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação.”
No mesmo aresto escreve-se que, “[e]m termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respetiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objeto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respetiva decisão (“o que” decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram (“o porquê” de ter decidido assim).”
Esta parte final enfatiza bem a relevância da imposição de uma análise crítica das provas que é consequência de uma das traves-mestras do nosso processo civil: o processo deve ser orientado para a busca e averiguação da verdade dos factos. Esta não pode ser o resultado de uma atividade imperscrutável que ocorre no íntimo do juiz, mas o resultado de uma atividade cognoscitiva que se articula em passos controláveis como sejam a recolha da informação, a verificação da sua fidedignidade, a análise da sua relevância e a formulação de inferências logicamente válidas que conduzam a conclusões racionalmente justificadas. Nas palavras de Michele Taruffo, “Verdad, prueba e motivación en la decisión sobre los hechos”, Cuadernos de Divulgación de la Justicia Electoral, n.º 20, México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2013, p. 101[2], “a verdade não emana de uma misteriosa intuição individual, mas de um procedimento cognoscitivo articulado e verificável de maneira intersubjetiva.” Por isso, o juiz tem o dever de racionalizar os fundamentos da decisão e articular os argumentos – rectius, as razões –, que a justificam à luz da prova produzida. A motivação consiste, assim, num “discurso justificativo constituído por argumentos racionais” (Michele Taruffo, ob. cit., p. 103). Tem, desde logo, uma função endoprocessual que consiste em facilitar a impugnação, que é condição de um processo participado, a que acresce uma função extraprocessual: no dizer de Michele Taruffo (ob. cit., p. 104), “a motivação representa (…) a garantia do controlo do exercício do poder judicial fora do contexto processual por quivis de populo e pela opinião pública em geral”, o que, como o autor nota, “deriva de uma conceção democrática do poder, segundo a qual o exercício deste tem de ser controlado sempre de fora.”
Daqui decorre que da motivação têm de transparecer todas as opções que o juiz fez para chegar à decisão final. Se assim não suceder, é impossível o controlo sobre a sua racionalidade.
Isto leva a falar-se num princípio de completude da motivação, o qual tem, também segundo a lição de Michele Taruffo (idem), a seguinte implicação: a motivação completa deve incluir tanto uma justificação interna, relacionada com a conexão entre a premissa de direito e a premissa de facto (a subsunção do facto à norma), como uma justificação externa, relacionada com as razões pelas quais o juiz reconstruiu e averiguou daquela concreta forma os factos da causa. Esta última vertente implica que o juiz exponha os argumentos racionais relativos à avaliação que fez das provas e às inferências lógicas por meio das quais chegou a determinadas conclusões sobre os factos. No fundo, é o que António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 359-360), sintetiza quando escreve que “[a] exigência legal impõe que se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva apreciação crítica nos seus aspetos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 607/5), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos.” Esta é, acrescentamos, a pedra de toque da função jurisdicional nos tribunais de instância, com competência para decidir a matéria de facto, não podendo considerar-se realizada com a mera enunciação dos meios de prova produzidos nem com a sua reprodução, as mais das vezes fastidiosa e desnecessária. Também não pode considerar-se realizada com expressões vagas, genéricas e não substanciadas.
Perante o exposto, afigura-se que é de refutar o entendimento jurisprudencial expresso, a título de exemplo, em RP 29.09.2014 (2494/14.8TBVNG.P1), Alberto Ruço, segundo o qual a nulidade por falta de fundamentação diz respeito apenas ao julgamento de provado / não provado (art. 607/3, 1.ª parte, e 4, 1.ª parte) e não, também, à motivação ou à convicção (art. 607/4, 2.ª parte) que o sustenta. Com efeito, no CPC de 2013, ao contrário do que sucedia no CPC de 1961, o julgamento da matéria de facto incorpora-se, in totum, nos fundamentos da sentença, não havendo, assim, razão para o cindir, designadamente fazendo a distinção entre sentença lato sensu e sentença tout court (RC 19.12.2017, 2206/07.2TBCBR.C1), Carlos Moreira. O art. 615/1, b), refere-se à sentença em si mesma, como um todo, harmonizando-se com o art. 607/3 e 4. Tanto a decisão de provado / não provado como a respetiva motivação constituem fundamentos de facto. A falta de qualquer um deles tem como consequência a nulidade da sentença. Neste sentido, conclui Rui Pinto (“Os meios impugnatórios comuns da decisão civil (arts. 613.º a 617.º do CPC), Julgar Online, maio de 2020, p. 16) que “[n]ão é rigoroso vislumbrar uma decisão sobre a matéria de facto como existiu no passado, especialmente invocando a letra do art. 662.º; se assim fosse haveria recurso autónomo de uma tal decisão, o que, sabemos, não sucede: o recurso em matéria de facto é sempre da sentença em si mesma, atacando-se os respetivos fundamentos de direito ou de facto.” Aplicando este entendimento, STJ 19.12.2023 (26936/15.6T8PRT.P2.S1), Maria Clara Sottomayor.
Por outro lado, vem sendo pacificamente defendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito é geradora da nulidade em causa e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação. Na doutrina, Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 687; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa: Lex, 1997, p. 221, Lebre de Freitas, A Ação declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 332, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra: Almedina, 2018, p. 737, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 179. Na jurisprudência, STJ 2.06.2016 (781/11.6TBMTJ.L1.S1), Fernanda Isabel Pereira, STJ 3.03.2021 (3157/17.8T8VFX.L1.S1), Ana Paula Boularot, RP 5.06.2015 (1644/11.0TMPRT-A.P1), Aristides Rodrigues de Almeida, RG 2.11.2017 (42/14.9TBMDB.G1), António Barroca Penha, e RC 13.12.2022 (98/17.2T8SRT.C1), Paulo Correia. Na clássica lição de José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 140), “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”; e, por “falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto (…).”A concreta medida da fundamentação é, portanto, “aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto” (RC 29.04.2014, 772/11.7TBVNO-A.C1, Henrique Antunes).
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1).3. Verificada a nulidade, cabe ao Tribunal ad quem supri-la, salvo se não dispuser dos elementos necessários para esse efeito, por força do disposto no art. 665/1 do CPC, donde resulta que, ainda “que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1); e, se “o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2).
Deste modo, como escreve António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, julho de 2022, pp. 387-388), “ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das (…) nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, nº 2.” Logo, “a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários”, já que só “nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.”
Daqui não resulta qualquer preterição do contraditório do duplo grau de jurisdição: conforme escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Nulidade da sentença; regra da substituição – Jurisprudência 2019 (83)”, Blog do IPPC [4.11.2023)), “a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo. Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.” Acrescentamos que já no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12, se afirmava expressamente a opção do legislador pela supressão de um grau de jurisdição, a qual seria, no seu entendimento, largamente compensada pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal ad quem.
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1).4. Distintas das situações de falta de fundamentação de facto são aquelas em que essa fundamentação existe, mas se apresenta como deficiente, obscura ou contraditória. Nestas, segue-se o regime do art. 662/2, c) e d), do CPC (assim, RG 7.12.2013, 1285/21.4T8VCT-G.G1, RG 28.09.2023, 2539/22.8T8VNF-C.G1, ambos relatados por José Carlos Pereira Duarte; RG 7.12.2023, 455/18.7T8EPS.G1, relatado por Maria Amália Santos), cabendo à parte interessada, no recurso da sentença, o ónus de impugnar a decisão da matéria de facto e sustentar a presença desses vícios.
Confrontada com essa arguição, ou mesmo oficiosamente, a Relação pode anular a decisão, mas apenas se não tiver à sua disposição todos os meios de prova que lhe permitiriam sanar, por si mesma, a deficiência, obscuridade ou contradição. Tendo esses meios de prova à sua disposição, a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância, cabendo-lhe sanar ela mesma o vício, exceto se se tratar de falta da “devida” fundamentação, caso em que poderá ordenar à 1.ª instância que acrescente a fundamentação em falta, prosseguindo depois com o conhecimento do objeto do recurso. No dizer de António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 798), “quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo [à 1.ª instância] deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova.”
O regime acabado de expor deve também ser observado quando, não obstante haver uma situação de verdadeira falta de fundamentação, geradora de nulidade, ut art. 615/1, b), esta não foi invocada pelo recorrente, ficando, assim, sanada. Neste sentido, RG 7.06.2023 (3096/17.2T8VNF-J.G1), Maria João Pinto de Matos. Partimos aqui, obviamente, do pressuposto de que o conhecimento da nulidade – em rigor, anulabilidade – prevista no art. 615/, b), não é oficioso, entendimento que se estriba na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) aludirem, em determinadas circunstâncias, à possibilidade do suprimento oficioso de nulidades da sentença de modo que indicia que o conhecimento desse vício constituirá a exceção e não a regra que, em contrapartida, é a necessidade de alegação. Neste sentido, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1), Maria da Graça Trigo, RG 1.02.2018  (1806/17.7T8GMR-C.G1), José Amaral, RG 4.10.2018 (4981/15.1T8VNF-A.G1), Maria João Pinto de Matos, RG 7.02.2019 (5569/17.8T8BRG.G1), José Alberto Moreira Dias, RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1), José Carlos Pereira Duarte; na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil  (artigos 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10.
De acordo com a lição de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, IV, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 553), a decisão é deficiente quando aquilo que se deu como provado e não provado não corresponde a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado – i. é, não foram considerados todos os pontos de facto controvertidos, ou a totalidade de um facto controvertido; é obscura quando o seu significado não pode ser apreendido com clareza e segurança – i. é, os pontos de facto considerados na sentença são ambíguos ou poucos claros, permitindo várias interpretações; e é contraditória quando pontos concretos que a integram têm um conteúdo logicamente incompatível, não podendo subsistir ambos utilmente – i. é, diversos pontos de facto colidem entre si, de forma inconciliável. Logo, quando se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a “pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, possui uma “natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa”, ou revela “incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível suprir tais vícios (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos cit., p. 356-357).
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1).5. Isto dito, no caso vertente, sustenta o Recorrente que a sentença recorrida é nula por não conter a exposição completa das razões que levaram o Tribunal a quo a dar como provados determinados enunciados e como não provados outros.
O adjetivo utilizado evidencia logo que não estamos perante um caso de falta de fundamentação, mas, quando muito, de deficiência de fundamentação.
Sem necessidade de outras considerações, a resposta à 1.ª questão é negativa
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2).1. Passamos para a 2.ª questão, para cuja resposta valem as considerações feitas em 1).1. e 1).3.
Está em causa a nulidade da sentença com fundamento em contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615/1, c), 1.ª parte, do CPC).
Como a jurisprudência vem assinalando, o vício ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se, pois, de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. A propósito, inter alia STJ 8.10.2020 (361/14.4T8VLG.P1.G1), Maria do Rosário Morgado, 20.05.2021 (69/11.2TBPPS.C1.S1), Nuno Pinto Oliveira, e 15.11.2021 (2534/17.9T8STR.E2.S1), Isaías Pádua.
Não se trata de um simples erro material (em que o julgador, por lapso, escreveu coisa diversa da que pretendia – contradição ou oposição meramente aparente), mas de um erro lógico-discursivo, em que os fundamentos invocados pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, direção diferente (contradição ou oposição real).
Por outro lado, o vício em apreço também não se confunde com o denominado erro de julgamento – isto é, com “a errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal, nem, tão pouco, a uma errada interpretação da norma aplicada, vícios estes apenas sindicáveis em sede de recurso jurisdicional”, cf. STJ 17.11.2020 (6471/17.9T8BRG.G1.S1), Maria João Vaz Tomé.
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2).2. De acordo com o Recorrente, a sentença enferma de contradição na medida em que resultaram provados factos que indicam que usou “dinheiro pessoal para honrar os compromissos da sociedade” o que está em contradição com a afirmação de que causou danos à sociedade, tanto que, “ouvida a prova produzida”, tem de concluir-se que “não foi feita demonstração cabal da apropriação” pelo Recorrente dos “montantes peticionados.”
É manifesta a confusão em que incorre o Recorrente: por um lado, o enfoque da decisão está na apropriação de quantias que deviam integrar o património da sociedade, atos cujas consequências danosas não são, de acordo com a fundamentação aduzida, afastadas pelo facto, também provado, de o Recorrente ter transferido capitais em proveito da sociedade; por outro, a afirmação de que houve apropriação daquelas quantias destinadas ao património da sociedade encontra apoio nos factos considerados provados sob os pontos 18, 23, 31 e 33, sucedendo apenas que o Recorrente considera que estes foram incorretamente julgados.
Deste modo, não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, mas, quando muito, um erro na decisão da matéria de facto e um erro na aplicação e interpretação das normas jurídicas de direito substantivo convocadas.
A resposta à segunda questão é, portanto, negativa.
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3).1. A terceira causa de nulidade que os apelantes imputam à sentença é a sua ininteligibilidade por suposta obscuridade ou ambiguidade.
Na vigência do CPC de 1961, o art. 669/1, a), permitia que qualquer das partes requeresse no tribunal que proferiu a sentença o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade.
Discutia-se então se o pedido de aclaração apenas podia recair sobre o segmento decisório ou se também podia ter como objeto a fundamentação. Na doutrina e na jurisprudência prevalecia o segundo entendimento. A propósito, Lebre de Freitas / A. Montalvão Machado / Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 672-673.
A decisão que deferisse o pedido de aclaração considerava-se complemento e parte integrante da sentença (art. 670/2, parte final). Sendo requerida a aclaração da sentença, o prazo para a interposição de recurso só começava a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento (art. 686/1).
No CPC de 2013, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26.06, o regime é substancialmente diferente. Assim, o Código atual eliminou os pedidos de aclaração da sentença, conforme resulta do respetivo art. 616 (que corresponde ao art. 669 do CPC de 1961). Concomitantemente, passou a considerar causa de nulidade da sentença a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art. 615/1, c)). O legislador parte do pressuposto de que uma decisão ambígua ou obscura padece de um vício estrutural que a torna imprestável e justifica que seja considerada nula.
Na 2.ª parte da alínea c) do n.º 1 do citado art. 615 estão em causa as situações em que o sentido da decisão não é percetível (obscuridade) ou em que se presta a interpretações diferentes (ambiguidade). No dizer de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 152), “[n]um caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz.” No mesmo sentido, na jurisprudência, STJ 11.10.2022 (77/18.2T8CLD-C.C1.S2), Maria João Vaz Tomé, STJ 31.01.2023 (2759/17.7T8VNG.P2.S1), Jorge Dias, STJ 1.06.2023 (1203/19.0T8MTS.P1.S2), Ramalho Pinto, RE 3.11.2016 (1774/13.4TBLLE.E1), Tomé d’Almeida Ramião, e RG 4.04.2019 (2030/17.4T8VRL.G), Vera Sottomayor.
Lebre de Freitas (“Sobre o novo Código de Processo Civil (uma visão de fora)”, ROA, 73, I, pp. 24-61) critica a solução legal, que considera excessiva, por entender que as partes têm o direito de compreender a sentença, não apenas a sua parte decisória (como agora se prevê) mas também os seus fundamentos, podendo a finalidade de evitar abusos ser prosseguida com a possibilidade de requerer a aclaração em recurso, não esperando a interposição deste pela resposta do juiz quanto ao pedido de aclaração (além de que a sanção para os abusos deve ser encontrada no regime da litigância de má fé): “Em nome da repressão do abuso de direitos processuais, é suprimida a faculdade de pedir o esclarecimento da sentença.
É facto que os advogados das partes frequentemente recorriam sem fundamento à reclamação por obscuridade da decisão, amiúde para assim ganharem tempo antes de se decidirem quanto ao recurso a interpor. E é facto igualmente que os juízes usavam sistematicamente indeferir o pedido de esclarecimento, ainda quando, nos casos em que ele se justificava, iam dizendo qual o sentido da decisão tomada. Por essa ser a realidade de facto, o DL 303/2007 veio determinar que o pedido de esclarecimento passasse a ser feito na alegação de recurso (art. 669.º-3 do código revogado): o juiz não ficava desobrigado de apreciar o requerimento (art. 670.º-1 do código revogado), mas a interposição do recurso deixava de aguardar essa apreciação.
Simultaneamente, o DL 303/2007 deixou expresso, em sentido oposto à interpretação corrente nos tribunais, que não só a parte decisória da sentença, mas também os seus fundamentos, podiam ser objeto do pedido de esclarecimento.
Esta possibilidade é, além do mais, pedagógica: a parte tem direito a compreender integralmente o que o juiz decide e porque decide, tal contribuindo para a transparência da justiça. Quanto ao abuso, a forma adequada para o reprimir é a sanção por má fé, não a supressão dum meio que, criteriosamente utilizado, é útil. Optando por esta via e deixando subsistir apenas, como fundamento de nulidade, a ininteligibilidade da parte decisória, que muito raramente ocorre (art. 615-1-c), a proposta optou pelo caminho mais fácil, mas talvez não pela solução mais equilibrada.”
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3).2. Isto dito, o Recorrente sustenta que a sentença é ininteligível por enfermar das seguintes contradições: (i) ter dado como provado que o Réu CC concordou com a celebração dos contratos de arrendamento e até interveio num deles (factos provados 10, 17, 19 e 25) e, ao mesmo tempo, que os desconhecia (facto provado 45); e (ii) ter dado como provado que o Réu CC não praticou atos de gerência quanto à frações que compunham o lote ...01 (facto provado 41) e, ao mesmo tempo, que foi o responsável pela gestão económico-financeira da sociedade (facto provado 50) e participou no arrendamento de uma das frações do lote ...01 e acordou com a transmissão da posição de promitente comprador no contrato-promessa de compra e venda de uma outra (fração ...) a favor do Recorrente (facto provado 56).
O que aqui se evidencia são possíveis patologias da decisão da matéria de facto, cujo tratamento deve ser enquadrado no art. 662/2, c), do CPC, mas que não tornam a decisão em si mesma ininteligível. Na realidade, a patologia da decisão da matéria de facto resultante da contradição entre factos provados ou, em casos contados, entre factos provados e não provados, resolve-se, mesmo oficiosamente, sempre que constem do processo todos os elementos que o permitam, tal como previsto no nº 1 do citado artigo.
Deste modo, temos, por um lado, que a decisão é, em si mesma, clara. Por outro, mesmo que atentemos nos seus fundamentos, sempre conseguimos perceber que o Tribunal a quo assentou a decisão de absolvição do Recorrido CC na circunstância de o mesmo não ter recebido qualquer uma das quantias que deviam ter integrado o património da sociedade, pelo que, como ali se escreveu, “mesmo que tivesse conhecimento dos referidos arrendamentos[,] dos seus termos e quantias recebidas pelo Réu BB”, não haveria matéria que justificasse “uma extensão da sua responsabilidade.” (sic)
A resposta a esta terceira questão é, pois, também negativa.
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4).1. Passamos para a quarta questão.
Sobre a modificabilidade da decisão de facto pela Relação, discorre-se, no Acórdão desta Relação e Secção de 9.11.2023 (2984/22.9T8GMR.G1)[3], relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Pinto de Matos, nos termos que, data venia, aqui respigamos:

“Mais se lê, no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (art.ºs 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CC), ou quando exista acordo das partes (art.º 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art.º 358.º, do CC, e art.ºs 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos art.ºs 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
(…)
Lê-se no n.º 2, als. a) e b), do art.º 662.º, do CPC, que a “Relação deve ainda, mesmo oficiosamente”: “Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento” (al. a); “Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova” (al. b)”.
“O atual art.º 662.º representa uma clara evolução [face ao art.º 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua atuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos fatores de imediação e da oralidade.
Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efetiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, págs. 29 e segs.).
(…)
Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto ”nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas, tão-somente, “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art.º 640.º, n.º 1, do CPC, que, quando “seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Precisa-se ainda que, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados”, acresce àquele ónus do recorrente, “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (al. a), do n.º 2, do art.º 640.º citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art.º 640.º citado), “vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efetividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional (art.º 205.º, n.º 1, da CRP) e processual civil (art.ºs 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respetiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).
Com efeito, “livre apreciação da prova” não corresponde a ”arbitrária apreciação da prova”. Deste modo, o Juiz deverá objetivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a “identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador”, e ainda “a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
“É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
“Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida “exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional” (José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, setembro de 2013, pág. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, “tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia”, não bastando nomeadamente para o efeito “reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595, com bold apócrifo).
Compreende-se que assim seja, isto é, que a “censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não” possa “assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão” (Ac. do TC n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).
De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).

No sentido de que havendo dúvidas no controlo da matéria de facto pela Relação, deve valer o princípio in dubio pro iudicato, pode ver-se também RE 11.01.2024 (129/21.7T8SLV.E1), relatado por Tomé de Carvalho, com anotação favorável de Miguel Teixeira de Sousa (“Jurisprudência 2024 (13): Matéria de facto; recurso; controlo pela Relação”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/), que adjetiva a orientação como pragmática e realista.
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4).2. Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo o Recorrente observado o disposto no art. 640/1 do CPC, vejamos a resposta a dar à questão, começando por dizer, em jeito de enquadramento, que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador.
Como, a propósito, se pode ler em RG 7.12.2023 (573/20.1T8VCH.G1), do presente Relator:

Ademais, nas situações mais comuns, não existem testemunhas presenciais nem outros meios que permitam uma prova direta, minuciosa e irrefutável do facto; há, assim, que recorrer a prova indireta, através de outros factos (ditos secundários, instrumentais ou probatórios), estes suscetíveis de prova direta, que permitam sustentar juízos de inferência.
A este propósito, Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, Madrid: Trotta, 2005, p. 266, ensina que “[o] grau de apoio que a hipótese sobre o facto pode receber dessa prova depende, então, de dois tipos de fatores: o grau de aceitabilidade que a prova confere à afirmação da existência do facto secundário e o grau de aceitabilidade da inferência que se baseia na premissa constituída por aquela afirmação.” Sobre o primeiro fator, as questões que se colocam são as mesmas que surgem no âmbito da prova direta: a atendibilidade e credibilidade da prova sobre o facto secundário. Já o segundo depende essencialmente, no dizer de Michele Taruffo (idem), “da natureza da regra de inferência que se adote para derivar conclusões aptas a representar elementos de confirmação da hipótese sobre o facto principal a partir das afirmações do facto secundário. Assim, o grau de aceitabilidade da prova não equivale ao grau de confirmação daquela hipótese, nem o contrário; o problema principal é precisamente a fundamentação das inferências desde o facto provado ao facto afirmado na hipótese que se tenta confirmar.”
Por outro lado, sabemos que o nosso sistema processual é enformado pelo princípio da prova livre, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente os meios de prova e é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada um deles. Isto não significa o arbítrio, posto que a apreciação da prova está sempre vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Por outras palavras – as de Paulo Saragoça da Matta (“A Livre Apreciação da Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, p. 254) –, “a liberdade concedida ao julgador (…) não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional.” Para que o exercício de tal poder seja justificado e comunicacional é pressuposto que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja suscetível de autocontrolo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo os próprios sujeitos prejudicados com a atividade probatória em questão.
É esta necessidade que explica o disposto no já citado art. 607/4 do CPC que, por imposição constitucional (art. 205/1 da CRP), diz que “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.”
(…)
Perante o referido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal tem liberdade para, em cada caso, considerar suficiente a prova produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório no sentido de ficar convencido da verdade do facto em discussão.
Coloca-se então uma outra questão: a do standard ou padrão de prova, a qual, por sua vez, está relacionada com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus.
Sobre esta última, temos como assente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.”
Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova.
É aqui que surge a questão do standard da prova que, no dizer de Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório cit., pp. 55-56), “consiste numa regra que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira.” De acordo com Jordi Ferrer Beltrán (“La decisión probatória”, AAVV, Jordi Ferrer Beltrán (coord.), Manual de Razonamiento Probatorio, Ciudad de Mexico: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2022, pp. 397-458, disponível em https://bibliotecadigital.scjn.gob.mx/ [18.11.2023)), os standards de prova são regras que determinam o nível de suficiência probatória para que uma hipótese possa ser considerada provada (ou suficientemente corroborada) para fins de uma decisão sobre os factos. Ao realizarem essa determinação, cumprem três funções da máxima importância no marco do processo de decisão probatória: 1) aportam os critérios imprescindíveis para a justificação da própria decisão, no que diz respeito à suficiência probatória; 2) servem de garantia para as partes, pois permitem que tomem as suas próprias decisões sobre a estratégia probatória e controlem a correção da decisão sobre os factos; 3) distribuem o risco de erro entre as partes.
Não existe entre nós norma que se pronuncie diretamente sobre esta questão. Afastadas as teorias baseadas no cálculo matemático de probabilidades, mais concretamente no Teorema de Bayes, há quem entenda que, em processo civil, opera o standard da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não.”
Este standard consubstancia-se, segundo Luís Pires de Sousa (Direito Probatório cit., p. 61), em duas regras fundamentais: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.”
Este critério, salienta o autor, não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.  Por outro lado, leva a que, perante provas contraditórias de um mesmo facto (rectius, afirmação de facto), o julgador deva sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, “deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.”
O autor ressalva que “pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como verdadeira.” Assim, “para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor, é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica.”
Michele Taruffo (La Prueba cit., pp. 266-267 e 277-278) propõe uma metodologia de confirmação do grau de probabilidade das hipóteses sobre o facto em que cada prova concreta é valorável numa escala de 0 a 1 (grau particular de confirmação). Por sua vez, a representação da valoração do conjunto da probabilidade da hipótese deve fazer-se numa escala de valores 0 → ∞, sem limite máximo (grau global de confirmação). As duas escalas combinam-se para determinar a probabilidade do facto. Os números são aqui uma forma de expressar relações lógicas e não supõem medidas quantitativas de nada. Um grau de confirmação da hipótese superior a 0,50 deve considerar-se como o limite mínimo abaixo do qual não é razoável aceitar a hipótese como aceitável. Uma só prova clara e segura pode ultrapassar esse limite mínimo, podendo igualmente ser racional aceitar a hipótese confirmada por várias provas ditas indiretas convergentes, por exemplo.
O mesmo autor nota (La Prueba cit., p. 302) que podem existir contextos em que é sensato aplicar a probabilidade lógica prevalecente no seu estado puro, o que equivale a dizer, sem que se exija que a hipótese dotada de grau de probabilidade comparativamente mais alto seja também aceitável segundo o critério que opera quando está em jogo uma só hipótese (≥ 0,51). A aplicação do critério no seu estado puro poderá ser pertinente em casos em que não se exija a demonstração da aceitabilidade plena da hipótese, bastando algum elemento de confirmação suscetível de atribuir um mínimo de credibilidade a tal hipótese.
Temos dúvidas que esta solução seja compatível com o ordenamento jurídico português, em especial com a regra do non liquet consagrada no art. 414 do CPC, como salienta Miguel Teixeira de Sousa (“Standard probatório. Probabilidade prevalecente. Jurisprudência 2019 (100)” e “Por que razão a “probabilidade prevalecente” não é uma medida da prova aceitável no ordenamento probatório português”, disponíveis no Blog do IPCC [19.11.2023). Com efeito, ficando o juiz com dúvida sobre a verdade de um facto, deve julgá-lo como não provado, ainda que entenda que a probabilidade de ele ser verdadeiro é superior a 0,50, o que não sucede se for aplicado o referido critério. De acordo com ele, a referida probabilidade terá como consequência a prova do facto, ainda que subsista um espaço não despiciendo de dúvida, o que equivale à anulação da referida regra do non liquet.
Ainda segundo Miguel Teixeira de Sousa, o referido critério é igualmente “incompatível com a contraprova, que é um meio de impugnação da prova que se destina a tornar o facto provado duvidoso (art. 346 do Código Civil); se o standard da prova começa em mais de 0,50, isso significa que pode verificar-se uma dúvida sobre a verdade do facto até 0,49; disto resulta necessariamente que: (i) Se a contraprova é suficiente para impugnar uma prova bastante, então não é coerente admitir uma medida da prova que deixa até 0,49 de dúvida sobre a verdade do facto; se a contraparte provar que há uma dúvida até 0,49 sobre a verdade do facto, a prova bastante fica impugnada, pelo que, ao contrário do que resulta da medida da probabilidade prevalecente, o facto não pode ser considerado provado; (ii) Se, em contrapartida, a medida da prova admite uma dúvida até 0,49, então a contraprova (que se destina precisamente, não a tornar o facto não provado, mas a apenas torná-lo duvidoso) não tem nenhuma possibilidade de aplicação.”
Finalmente, “é incoerente com o disposto no art. 368/ 1 do CPC; este preceito determina que, para o decretamento de uma providência cautelar, não é necessária a prova do direito acautelado, mas, em todo o caso, é necessária a prova da probabilidade séria desse direito; a aceitação do critério da probabilidade prevalecente teria como consequência absolutamente surpreendente que a medida da prova seria mais exigente na tutela cautelar ("probabilidade séria") do que na tutela definitiva (probabilidade prevalecente).”
No fundo, face ao disposto no art. 414 do CPC, podemos concluir que o legislador português é especialmente exigente quanto ao grau de convicção que é necessário alcançar para que uma afirmação de facto seja considerada como provada, assumindo que é preferível o erro do juiz dar como não provado o que é verdadeiro em detrimento do erro de dar como provado o que é falso, a que conduziria o standard da probabilidade prevalecente. A propósito, colocando esta opção ao nível da política-legislativa, cf. Marina Gascón Abellán, “Sobre la possibilidade de formular estândares de prueba objetivos”, Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 28, nov. de 2005, pp. 127-139, disponível em https://doi.org/10.14198/DOXA2005.28 [20.11.2023].
Afigura-se-nos, assim, que o importante nesta sede é que a prova produzida tenha a medida bastante para criar no juiz a convicção de que o facto em discussão corresponde à verdade ontológica. Cabe depois ao juiz deixar transparecer na fundamentação as razões que o levaram a concluir dessa forma. Nesta medida, o standard serve essencialmente como uma orientação para o juiz na produção e na valoração da prova, designadamente na atribuição de um peso específico a cada um dos elementos que a compõem, tudo em ordem à formação da sua convicção. Não é mais que um critério de acordo com o qual deve construir, de forma completa, a justificação da sua decisão sobre a matéria de facto, baseada na solidez epistemológica das provas e dos juízos inferenciais que é necessário fazer para chegar delas até à hipótese de facto.
Como referido em RP 23.02.2023 (30/21.9T8PVZ.P1), relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, esta é uma regra que “o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspetos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.”
Como se salienta no aresto acabado de citar, “a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exatas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida."
Nesta apreciação, há que considerar, quando estejam em causa ações humanas, “que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objetivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa atuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de atuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.”
Finalmente, há que dizer, a propósito da prova pessoal, que o processo de formação das memórias é frequentemente condicionado por fatores que as deturpam, ainda que não intencionalmente, podendo levar a relatos não conformes à realidade ontológica. Como se escreve no aresto, “[e]sta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto.” A este propósito, Luís Pires de Sousa (Prova Testemunhal, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 9-10) explica que “a memória, mais do que um processo de replicação, constitui um processo reconstrutivo. A evocação dos factos não constitui uma reprodução da realidade, mas sim uma reconstrução a partir de informação incompleta que guardamos do ocorrido. (…) A reconstrução é levada a cabo preenchendo as lacunas da memória mediante inferências que resultam do conhecimento geral e de outros eventos, vividos pela testemunha ou dela conhecidos, bem como com reativação e reorganização de diversas informações de modo a criar uma evocação. Neste sentido, a memória constitui uma combinação contínua de informação proveniente do que se viu, de pensamentos, da imaginação, conversações e outras fontes (…)”
***
4).3.1. Isto posto, não havendo obstáculo ao conhecimento, vejamos se a impugnação da decisão da matéria de facto feita pelo Recorrente merece provimento.
Para tanto, procedemos à audição integral da prova oralmente produzida na audiência final, a saber:
1.º Sessão de 8 de novembro de 2024
Nesta sessão foram ouvidas as testemunhas DD, PP, HH, GG, EE e NN.

Assim,

a) A testemunha DD disse, em síntese, que: arrendou uma fração do prédio (lote ...01) ao Recorrente, em 2014/2015, para instalar uma loja de costura; o contrato foi verbal, nunca tendo sido reduzido a escrito; o Recorrente disse que a fração era dele e do sócio; pagou as rendas, no montante mensal de € 200,00, em dinheiro, o que fez diretamente ao Recorrente ou à mulher deste (GG); o Recorrente nunca aceitou que a renda fosse paga através de transferência bancária; pagou sempre a renda, exceto nos oito primeiros meses, nos quais o Recorrente lhe permitiu que ocupasse a fração gratuitamente; recebeu uma carta a dizer-lhe que devia passar a pagar a renda a um administrador da insolvência; falou com o Recorrente que lhe disse tratar-se de um engano e que, portanto, devia continuar a entregar-lhe [a ele Recorrente] o dinheiro das rendas, conforme vinha fazendo; assim continuou até 2019, quando voltou a ser confrontada pelo administrador da insolvência; ainda teve de pagar a este rendas que já tinha pago ao Recorrente; a loja tinha sinais identificativos (publicidade) para o exterior.
b) A testemunha PP disse, em síntese, que: é gerente da sociedade EMP03...; nessa qualidade, arrendou uma fração do prédio (lote ...01) ao Recorrente; o contrato apenas foi reduzido a escrito tempos depois; inicialmente pagou as rendas através de cheques entregues ao Recorrente; passou depois a pagar por transferência bancária; pensava que a fração pertencia ao Recorrente.
c) A testemunha HH disse, em síntese, que: arrendou uma fração do prédio (lote ...01) ao Recorrente; foi celebrado um contrato escrito, através de uma imobiliária; assim, quando o documento lhe foi apresentado, já vinha assinado pelo senhorio; a renda, de € 300,00 mensais, foi sempre paga ao Recorrente, em dinheiro; assim sucedeu até que recebeu uma comunicação do administrador da insolvência para a passar a pagar à massa insolvente; o Recorrente nunca lhe entregou recibo; naquele fração instalou uma barbearia, que sempre teve sinais identificativos para o exterior.
d) A testemunha GG disse, em síntese: arrendou, juntamente com o seu marido (a testemunha anterior) uma fração do prédio (lote ...01) ao Recorrente em fevereiro de 2011; o contrato foi formalizado por escrito em 2012; pagaram sempre a renda ao Recorrente, até que receberam uma carta do administrador da insolvência; o Recorrente nunca passou recibos.
e) A testemunha EE disse, em síntese, que: celebrou com o Recorrente e o Recorrido um contrato-promessa escrito de compra e venda de uma fração do prédio (lote ...01); essa fração seria depois dividida em duas; pagou, a título de sinal, € 60 000,00; depois surgiram divergências quanto aos acabamentos e acordaram em pôr termo ao negócio; o Recorrente disse-lhe que a loja ficaria para uma sua tia; entregou-lhe um cheque da Banco 1... para restituição do sinal, dizendo que teria de aguardar cerca de seis meses até que o dinheiro que a dita tia iria enviar chegasse de ...; na referida fração, entretanto dividida em duas,  funcionam agora a barbearia e a EMP03....
f) A testemunha NN disse, em síntese, que: foi o construtor dos lotes ...01 e ...03; foi pago em dinheiro e através da entrega de frações do lote ...03; a escritura de transmissão de tais frações foi assinada, pela insolvente, através dos seus gerentes (Recorrente e Recorrido); “tem ideia” que as frações da barbearia e da EMP03... ficaram para o Recorrente.

2.º Na sessão de 3 de dezembro de 2024, foram ouvidas as testemunhas JJ, II e KK.

Assim,

g) A testemunha JJ disse, em síntese, que: era gerente da agência do Banco 2... de ..., onde a sociedade insolvente tinha conta; eram frequentes as situações em que essa conta ficava com saldo a descoberto; contactava então o Recorrente, que umas vezes ia à agência depositar dinheiro, outras dava-lhe ordem para que transferisse o montante necessário da sua conta pessoal.
h) A testemunha II disse, em síntese, que: teve conhecimento, através do Recorrente, do negócio celebrado com a testemunha EE (o “...”); quando esse negócio foi desfeito, a sociedade não tinha fundos que lhe permitissem reembolsar o valor do sinal; esse reembolso acabou por ser feito pelo Recorrente, que assim tomou posse das frações; era também promitente-comprador de frações do mesmo prédio, que lhe tinham sido já entregues; arrendou essas frações, recendo as respetivas rendas; sempre que a sociedade tinha dificuldades financeiras, era o Recorrente quem adiantava dinheiro; o Recorrente nunca prejudicou a insolvente; é credor do Recorrente; como garantia da satisfação do seu crédito, o Recorrente constituiu uma hipoteca sobre todo o seu património imobiliário; por vezes, o Recorrente comentava que recebia as rendas das frações, mas que as depositava na conta da insolvente.
i) A testemunha KK disse, em síntese, que: é filha do Recorrente; todo o conhecimento que tem advém do que lhe foi dito pelo pai; a fração onde hoje estão instaladas a barbearia e a EMP03... foi vendida ao “...”; esse negócio ficou depois sem efeito; foi o Recorrente quem devolveu o dinheiro, ficando acordado que as frações ficariam para si; a partir daí, o Recorrente passou a agir como se as frações fossem dele; o Recorrente injetava constantemente dinheiro na sociedade; o Recorrida tinha conhecimento de tudo.

Finalmente, na sessão de 8 de novembro de 2024 foram ainda prestadas declarações pelo administrador da insolvência, Dr. AA, o qual disse, também em síntese, que: depois de ter sido nomeado, deslocou-se ao prédio e constatou que as frações referidas estavam ocupadas; conseguiu contactar com os arrendatários das frações ... e ..., que lhe disseram que as rendas estavam a ser pagas ao Recorrente; em finais de abril / princípios de maio, também conseguiu falar com a D. DD, que também lhe disse que as rendas estavam a ser pagas ao Recorrente; na contabilidade da insolvente não havia qualquer registo contabilístico dos arrendamentos.
***
4).3.2. Vejamos agora a impugnação, ponto por ponto.

a) Pontos 18, 23, 31 e 33 do rol dos factos provados
No ponto 18 e na 1.ª parte do ponto 33 estão em causa as rendas recebidas da sociedade EMP03... como contrapartida pela cedência do gozo da fração ..., a qual, está adquirido, foi arrendada pelo Recorrente e respetivo cônjuge, FF, àquela sociedade.
No ponto 23 e na 2.ª parte do ponto 33 estão em causa as rendas recebidas da testemunha DD como contrapartida pela cedência do gozo da fração .... Como está adquirido, esta fração foi arrendada pelo Recorrente em representação da insolvente.
No ponto 31 e na 3.ª parte do ponto 33 estão em causa as rendas recebidas das testemunhas HH e GG como contrapartida da cedência do gozo da fração .... Como está adquirido, esta fração foi arrendada pelo Recorrente e pelo Recorrido, em representação da insolvente.
Pretende o Recorrente que se altere a decisão de considerar como provado que recebeu tais rendas e nunca as fez entrar nas contas da sociedade insolvente por entender que a prova produzida assim o impõe.
Salvo o devido respeito, não tem razão.
Por um lado, quanto ao ponto 18 e à 1.ª parte do ponto 33, resulta inequívoco, até pela análise dos recibos de renda apresentados pela arrendatária, através de email de 30 de outubro de 2024, que as rendas foram sempre recebidas pelo Recorrente. Foi ele, afinal, quem, a título pessoal, declarou o recebimento. É corroborado, também, pelo extrato da conta bancária titulada pela arrendatária no Banco 2..., relativo ao período de 1 a 11 de novembro de 2014, do qual resulta que a transferência para pagamento da renda daquele mês teve como destino uma conta de que o Recorrente era titular. É corroborado, finalmente, pelo testemunho de PP, gerente da EMP03..., que afirmou, perentoriamente, que as rendas foram pagas ao Recorrente.
Por outro lado, é inequívoco que não existia qualquer registo do contrato de arrendamento nem do recebimento das rendas na contabilidade da insolvente, conforme salientado pelo administrador da insolvência, o que se afigura uma consequência lógica de a insolvente não ser parte no contrato nem ser ela a emitente dos recibos.
Quanto ao ponto 23 e à 2.ª parte do ponto 33, resulta do testemunho de DD que as rendas foram sempre pagas ao Recorrente ou ao respetivo cônjuge em numerário. Nunca foi emitido qualquer recibo.
Quanto ao ponto 31 e à 3.ª parte do ponto 33, resulta dos testemunhos de HH e GG que as rendas foram pagas ao Recorrente, em numerário. Também aqui não foi nunca emitido recibo.
Isto por um lado.
Por outro, também em relação às duas últimas situações, à semelhança do que sucede com a primeira, não existe qualquer registo da entrada do dinheiro recebido nas contas da insolvente, o que se conjuga, aliás, com o facto de os pagamentos terem sido feitos em numerário e sem a emissão de recibo.
O que antecede em nada é contrariado pelos depoimentos das testemunhas  EE, NN, JJ, II e KK.
Assim, as três primeiras revelaram total desconhecimento dos arrendamentos, bem como do pagamento e recebimento das rendas e do destino dado a estas.
As duas últimas limitaram-se a reproduzir a tese do Recorrente no sentido de que, depois de ter sido desfeito o contrato-promessa de compra e venda da fração celebrado entre a insolvente e a testemunha EE, ficou acordado que o Recorrente ficaria com as frações para si, pretendendo, com isso, justificar que fosse ele a celebrar o contrato de arrendamento e a receber as rendas respetivas. Não referiram, em momento algum, que, após, o Recorrente deu entrada das rendas no património da insolvente.
É certo que estas duas últimas testemunhas, tal como a testemunha JJ, também disseram que o Recorrente colocou, com frequência, dinheiro seu na conta da insolvente. Não disseram, porém, que isso sucedeu de uma forma regular nem que esse dinheiro era o proveniente das rendas recebidas.
Os enunciados em questão não são contraditórios com o do ponto 62: o facto de o Recorrente ter recebido as rendas e incorporado as mesmas no respetivo património em nada colide com o facto de, noutras ocasiões, de forma pontual, ter realizado transferências bancárias de uma conta pessoal para a conta da sociedade, assim capitalizando esta. Não estando demonstrado um nexo temporal entre o recebimento das rendas e estes movimentos bancários não é possível afirmar que estes foram o meio de fazer entrar aquelas nas contas da sociedade.
Quanto a estes pontos é, portanto, improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto.

b) Pontos 41, 42, 43, 44 e 45 dos factos provados
Em primeiro lugar, cumpre dizer que os enunciados dos pontos 44 e 45 são absolutamente inócuos: neles afirma-se apenas que determinados factos não resultaram provados na sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência, o que não assume qualquer efeito preclusivo na presente ação.
Assim, tais enunciados devem ser, pura e simplesmente, eliminados tout court.
Vejamos então os restantes enunciados, começando por relembrar o seu teor:
“41. Assim, desde que ocorreu a aludida separação de facto, o Réu CC nunca exerceu qualquer função de gerência ou administração relativamente ao lote ...01, mormente sobre as frações ..., ... e ....
42. O Réu CC nunca retirou qualquer proveito pessoal ou patrimonial das rendas obtidas nas frações ..., ... e ... do lote ...01, nunca tendo efetuado negócios com o património do aludido lote, nem retirou quaisquer quantias pertencentes às referidas frações para gastos pessoais e/ou terceiros.
43. Na verdade, o Réu CC nem sequer era conhecedor dos aludidos contratos de arrendamento das frações ..., ... e ... do lote ...01.”
Para compreender o enquadramento destes enunciados, importa considerar que, nos factos provados 38 e 39, é dito que Recorrente e Recorrido, devido a desentendimentos, acordaram em “fazer uma separação de facto” (sic) da insolvente, nos termos da qual o lote ...01 ficou sob a direção do primeiro e o lote ...03 do segundo.
É neste enquadramento que se afirma que, desde essa separação, cujo momento temporal é omitido, mas que se deduz ser anterior ao primeiro arrendamento (que data de fevereiro de 2011), o Recorrido “nunca exerceu “qualquer função de gerência ou administração” relativamente ao lote ...01, “mormente sobre as frações ..., ... e ..., formulação que se apresenta, desde logo, como conclusiva e que, há que reconhecê-lo, é contrariada pelos enunciados dos pontos 25, 28, 50 e 57, nos quais se descrevem factos praticados pelo Recorrido na qualidade de sócio e gerente da insolvente, e, bem assim, nos pontos 10 e 17, onde se afirma que o contrato de arrendamento celebrado entre o Recorrente e o respetivo cônjuge, como senhorios, e a EMP03..., como arrendatária, bem como o pagamento das rendas ao Recorrente, tiveram a “anuência” do Recorrido, expressão que é sinónimo de aprovação e que pressupõe o conhecimento dos factos objetivos em questão
Assim, não estando estes últimos enunciados questionados, entendemos que o do ponto 41 deve ser eliminado do rol dos factos provados, o mesmo sucedendo com o segmento “nunca tendo efetuado negócios com o património do aludido lote” constante do ponto 42 e com o enunciado do ponto 43.
Quanto a este último, acrescentamos ainda que não é minimamente aceitável, à luz das regras do id quod plerumque accidit, não apenas que o Recorrido desconhecesse os negócios que foram celebrados pelo Recorrente e, bem assim, o recebimento por este das rendas e a sua não incorporação no património da sociedade. Apesar da afirmada divisão, a sociedade continuou a existir e a desenvolver a sua atividade, sendo ela mesma a proprietária das frações do referido lote ...01. A sua contabilidade era una.
Neste contexto, estranho seria que um dos dois sócios se mantivesse alheado dos atos praticados com incidência sobre o património social.
Nesta parte, a impugnação é, pois, procedente.
Já quanto ao restante conteúdo do ponto 42 (“O Réu CC nunca retirou qualquer proveito pessoal ou patrimonial das rendas obtidas nas frações ..., ... e ... do lote ...01, (…) nem retirou quaisquer quantias pertencentes às referidas frações para gastos pessoais e/ou terceiros”), a prova produzida em nada o contraria: relembrando que as rendas foram recebidas pelo Recorrente, nenhuma das testemunhas ouvidas afirmou que as mesmas foram, depois, repartidas com o Recorrido, seja diretamente, seja indiretamente, através da sua prévia incorporação no património da insolvente.
Nesta parte, a impugnação é improcedente.

c) Pontos [b], [c] e [d] dos factos não provados
Relembremos o teor destes pontos:
[b]- Inclusive, o valor das rendas mensais da fração ... sempre foi utlizado pela sociedade, fazendo face ao pagamento de pequenas contas da empreitada.
[c]- O 1.º R., apesar de assumido a posição de promitente comprador no contrato promessa celebrado pela insolvente com o Sr. EE, utilizou o dinheiro correspondente às rendas das duas frações para suprir as necessidades da insolvente.
[d]- Que o R. CC tivesse conhecimento dos factos nºs 18, 23, 31 e 33.”

Comecemos por este último.
É indiscutível que as realidades de natureza psicológica constituem factos. Como se pode ler, a propósito, em STJ de 17.12.2019, 756/13.0TVPRT.P2.S1, Maria da Graça Trigo, “factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais e os eventos do foro interno, psíquico.” O que sucede, acrescentamos, é que a apreensão de tais realidades não pode ser feita de forma direta. É o que explica Michele Taruffo, La Prueba des los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, 2005, p. 166, quando escreve que “[q]uando o facto juridicamente relevante é verdadeiramente um facto psíquico (não redutível ou reconduzível a uma declaração), quase nunca é determinado diretamente. O verdadeiro objeto do conhecimento do juiz, pelo contrário, são indícios que tendem a ser recolhidos em esquemas tipificados, sob a premissa de que esses indícios típicos produzem com razoável segurança a determinação do facto psíquico em questão, ao qual a norma atribui consequências normativas. No entanto, é muito discutível a ideia de que, realmente, nestas situações, o juiz determina a verdade ou a existência de um facto psíquico interno da mesma forma que determina presuntivamente um facto material do qual não tem prova direta. Em vez disso, o que acontece é que o juiz conhece apenas indícios que se encaixam num esquema típico e, com base nesse conhecimento, considera subjacente o pressuposto de facto que se está a tentar determinar. Dizer que, neste caso, estamos perante uma determinação indireta, mas tipificada do facto psíquico é talvez uma complicação formal inútil.”
Daqui resulta que é provavelmente mais realista pensar que os factos psíquicos não são realmente determinados; são antes substituídos por uma constelação de indícios que são tipicamente considerados equivalentes a eles e que representam o verdadeiro objeto da determinação probatória. Em resumo, como também escreve Michele Taruffo, “o facto psíquico interno não existe como objeto de prova e a sua definição normativa é apenas uma formulação elíptica cujo significado se reduz às circunstâncias específicas do caso concreto.”
Ora, as considerações feitas a propósito dos factos provados dos pontos 41, 42 e 43 permitem-nos afirmar que o Recorrido tinha conhecimento dos factos discriminados nos enunciados dos pontos 18, 23, 31 e 33, pelo que nesta parte procede a impugnação.
Já o mesmo não pode suceder quantos aos enunciados de [b] e [c].
Para justificar, começamos por remeter para aquilo que escrevemos a propósito da impugnação dos pontos 18, 23, 31 e 33.
Acrescentamos que nenhuma prova foi produzida no sentido de que o dinheiro proveniente das rendas tivesse sito utilizado para o “pagamento de pequenas contas da empreitada.”
Sendo a insolvente uma sociedade comercial, com contabilidade organizada, seria expetável que essas pequenas contas estivessem nela refletidas, assim como a entrada de capital proveniente das rendas, o que não sucede.
Acrescentamos, finalmente, que a expressão necessidades da insolvente do enunciado de [c] é vaga e conclusiva. Sem sabermos, em concreto, o que foi pago, não podemos afirmar que se tratou de uma necessidade.
A prova testemunhal já produzida não supre esta aporia: como vimos, as testemunhas JJ, II e KK limitaram-se a dizer que o Recorrente se preocupou sempre com a solvabilidade da insolvente, transferindo dinheiro seu para esta, o que se apresenta como vago e genérico e fruto de uma mera perceção pessoal. Não esclareceram, porém, os montantes, as datas. Também não esclareceram o destino de tais quantias, tudo se apresentando, assim, como demasiado pouco para suportar um juízo positivo quanto a factos concretos aptos à substanciação deste enunciado.
Deste modo, nesta parte, improcede a impugnação.
***
4).4. Aqui chegados, procedemos à (re)organização da matéria de facto provada, de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto retratar[4] e incluindo nela as alterações resultantes da procedência parcial da impugnação:

1 4. A sociedade “EMP01..., Lda.”, ora insolvente, foi constituída em 08/09/2004, sob a forma jurídica de sociedade por quotas, estando o seu capital social dividido em duas quotas, pertencentes a cada um dos RR.
2 5. A aludida sociedade obrigava-se, até ../../2017, através da assinatura dos dois sócios, ora RR., os quais haviam sido nomeados gerentes.
3 7. A aludida sociedade foi constituída em 08/09/2004, sob a forma jurídica de sociedade por quotas, estando o seu capital social, que ascende a 50.000,00 €, dividido em duas quotas iguais, pertencentes a cada um dos RR..
4 8. A aludida sociedade tinha como objeto social “Indústria da Construção Civil e empreitada de obras públicas, nomeadamente construção de edifícios. Compra e venda de bens imóveis.”
5 9. No âmbito da sobredita atividade[,] a sociedade “EMP01..., Lda.” construi[u][,] entre outros, um edifício sito na Prof. ..., ..., na freguesia ..., ... e ..., no Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...36, o qual é composto por várias frações, e, nomeadamente, pela fração designada pela letra ..., correspondente ao primeiro rés-do-chão direito, destinada ao comércio e/ou serviços, composta por uma divisão e casa de banho, com um lugar de estacionamento identificado pela letra ..., sita no ..., integrada no prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...25... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...36.
6 37. A sociedade insolvente possuía dois lotes em construção, os lotes ...01 e ...03.
7 40. A firma construtora era a firma EMP05..., Lda., da qual também é sócio o aqui Réu CC.
8 49. Ao 1.º R. cabia, ainda, a gestão global da obra, ali trabalhando diariamente, lado a lado com os demais trabalhadores, e gerindo as necessidades da construção, nomeadamente quanto à encomenda de materiais e contratação de subempreiteiros das diversas especialidades.
9 50. Por sua vez, sempre foi o 2.º R. o sócio-gerente responsável pela gestão económico-financeira da sociedade insolvente, na qual era coadjuvado pela sua esposa.
10 51. O 1.º R. encontrou compradores e arrendatários para as referidas frações autónomas, de forma a fazer entrar na sociedade as quantias provenientes quer dos sinais pagos, quer das rendas mensais fixadas.
11 52. Na fase muito inicial do projeto de construção, o 1.º Réu acordou com o Senhor EE a venda de duas frações autónomas - ... e ... – pelo preço global de € 60.000 (sessenta mil euros), sendo € 30.000,00 o preço individual de cada uma das frações autónomas.
12 53. Dinheiro que, imediatamente, entrou nas contas da insolvente e que foi essencial para dar início à execução da obra.
13 54. Durante a execução da obra, surgiram desentendimentos entre o promitente comprador e a insolvente, nomeadamente com o 1.º R., uma vez que aquele começou a fazer exigências em relação à obra que não eram aceitáveis, atendendo ao preço pago por cada uma das frações autónomas.
14 55. O preço de € 30.000,00 (trinta mil euros) por cada fração autónoma destinada a comércio deveu-se ao momento da celebração do contrato (ainda em fase de projeto), bem como tinha por base as técnicas e materiais previstas no caderno de encargos, e que foram explicadas ao promitente comprador, que com as mesmas concordou, pelo que não eram aceitáveis as modificações pretendidas mantendo o preço inicial.
15 56. Perante isto, e porque seria incomportável para a insolvente concretizar a venda das duas frações sem qualquer margem de lucro (o que sucederia caso sucumbissem às exigências do comprador), ambos os sócios concordaram em desfazer o negócio com o Senhor EE, com o que este também concordou.
16 57. Foi, então, acordado entre os sócios, aqui RR., que o 1.º R. iria assumir a posição de promitente comprador no contrato celebrado verbalmente com o Senhor EE.
17 58. Assim, o 1.º Réu, pessoalmente e fazendo uso de dinheiro que pertencia ao seu património conjugal, entregou ao referido EE a quantia de € 60.000,00.
18 38. Na sequência de desentendimentos entre os sócios, estes acordaram em fazer uma separação de facto da aludida sociedade. 19 39. Neste sentido, o lote ...01 ficou sob a direção do sócio e gerente, e ora Réu, BB, e o lote ...03 sob a direção do aqui Réu CC. 20 10. Das diligências de averiguação sobre a existência de bens titulados pela aludida insolvente, o Administrador da Insolvência teve conhecimento que o R. BB e a sua mulher - FF-, com a anuência do R. CC, na qualidade de ”Senhorios” deram de arrendamento, verbalmente, à sociedade “EMP03..., Lda.”, NIPC: ...43 e com sede no Lugar ..., freguesia ..., ... e ..., Concelho ..., na qualidade de “Arrendatária” uma fração autónoma da propriedade da ora insolvente.
21 11. Tal contrato teve o seu início em junho de 2011 e teve como objeto a aludida fração autónoma designada pela letra ....
22 12. Tendo formalizado o aludido contrato apenas em 19-03-2014.
23 13. Nos termos do sobredito contrato o R. BB e a sua mulher acordaram com a sociedade “EMP03..., Lda.” que: “No primeiro ano de vigência do contrato, a renda anual será de EUROS 5.400,00 (cinco mil e quatrocentos euros), pagos em duodécimos mensais no valor de EUR 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).”
24 14. Acordaram ainda os outorgantes que: “As rendas serão pagas pela arrendatária no dia 1 (um) do mês anterior a que disserem respeito, contra recibo, através de transferência bancária, com o N...88, servindo o comprovativo de operação bancária de recibo até à entrega do mesmo pelos senhorios.”
25 15. Acresce ainda que, segundo consta do aludido contrato “na data da celebração do presente contrato a arrendatária entrega aos senhorios a quantia de EUR 900,00 (novecentos euros) correspondente às rendas dos meses de março e abril de 2014.”.
26 16. A sociedade “EMP03..., Lda.” manteve-se na posse do imóvel arrendado até, pelo menos, 21/12/2018, data em que o adquiriu no âmbito da venda judicial levada a cabo no processo de insolvência.
27 17. Desde junho de 2011 até dezembro de 2017, a sociedade “EMP03..., Lda.” efetuou o pagamento ao R. BB, com a anuência do R. CC, das rendas mensais, no valor de 450,00 €, cada, tendo entregue neste hiato temporal, o valor global de € 35.550,00 (trinta e cinco mil e quinhentos e cinquenta euros) – 79 meses x € 450,00.
28 18. Valor esse que o R. BB recebeu e nunca fez entrar nas contas da sociedade ora insolvente.
29 19. Assim o ficou provado na douta sentença proferida no âmbito do apenso do incidente da qualificação da insolvência - apenso B -, nos termos da qual:
“O sócio gerente BB, com anuência do sócio gerente CC, recebeu pelo menos desde junho/julho de 2011 e até à data da declaração de insolvência da empresa, dispôs em proveito pessoal e/ou de terceiros da renda mensal no montante, liquido, de € 337,50 (trezentos e trinta e sete euros e cinquenta cêntimos) (€ 450,00 – € 112,50 retidos na fonte a título de IRS) - liquidada pela sociedade comercial “EMP03..., LDA.”, inquilina da fração autónoma designada pela letra ..., destinada a comércio, no ..., sita na Rua ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...74..., fração esta da propriedade da insolvente.”
30 20. Em julho de 2015 o R. BB, em representação da insolvente, acordou, verbalmente, com DD, com o NIF ...60..., residente na Rua ..., ..., ..., o arrendamento para comércio da fração autónoma designada pela letra ... correspondente ao primeiro andar centro esquerdo – comércio e/ou serviços – composta por uma divisão, uma casa de banho e uma divisão destinada a armazém, com um lugar de estacionamento identificado pela letra ..., sita no ..., integrado no prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...25... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...36, também esta propriedade da ora insolvente.
31 21. Nos termos do sobredito contrato a ora insolvente e a Sr.ª DD acordaram que o valor da renda mensal era de € 200,00.
32 22. Desde outubro de 2015 até dezembro de 2017, a Sr.ª DD efetuou o pagamento ao R. BB, no valor de 200,00 €, tendo entregue neste hiato temporal, o valor global de € 5.200,00 (cinco mil e duzentos euros) – 26 meses x € 200,00.
33 23. Valor esse que o R. BB recebeu e nunca fez entrar nas contas da sociedade ora insolvente.
34 24. Assim o ficou provado na douta sentença proferida no âmbito do apenso do incidente da qualificação da insolvência - apenso B -, nos termos da qual: “E, pelo menos desde outubro/novembro de 2015 e até à data da declaração de insolvência da empresa, dispôs em proveito pessoal e/ou de terceiros da renda mensal no montante de € 200,00 (duzentos euros) liquidada por DD, inquilina da fração autónoma designada pela letra ..., destinada a comércio, no primeiro andar centro esquerdo, sita na Rua ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...74..., inscrita na matriz sob o artigo ...36..., fração esta da propriedade da insolvente.”
35 25. A ora insolvente, representada pelos RR., na qualidade de ”Senhoria” contratou verbalmente, com a Sr.ª GG, NIF ...13 e marido Sr. HH, NIF ...07..., na qualidade de “Arrendatários” o arrendamento de uma fração autónoma da propriedade da ora insolvente.
36 26. Tal contrato teve o seu início em fevereiro de 2011 e teve como objeto a fração autónoma designada pela letra ... correspondente ao rés-do-chão direito traseiras, destinada ao comércio e/ou serviços, composta por uma divisão e casa de banho, com um lugar de estacionamento identificado pela letra ..., sito nas traseiras do edifício, integrada no prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...25... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...36.
37 27. Nos termos do sobredito contrato a insolvente e os arrendatários acordaram que a renda mensal era de € 300,00.
38 28. Em 22/06/2012, a insolvente representada pelos RR. e os arrendatários formalizaram o contrato de arrendamento que até então era verbal.
39 29. A arrendatária manteve-se na posse do imóvel arrendado até, pelo menos, 21/12/2018, data em que o adquiriu no âmbito da venda judicial levada a cabo no processo de insolvência.
40 30. Ocorre que, desde fevereiro de 2011 até dezembro de 2017, os arrendatários efetuaram o pagamento ao R. BB, das rendas mensais, no valor de 300,00 €, cada, tendo entregue neste hiato temporal, o valor global de € 24.900,00 (vinte mil e quatro mil e novecentos euros) – 83 meses x 300,00€.
41 31. Valor esse que o R. BB recebeu e nunca fez entrar nas contas da sociedade ora insolvente.
42 32. Assim o ficou provado na douta sentença proferida no âmbito do apenso do incidente da qualificação da insolvência - apenso B -, nos termos da qual: “E, pelo menos desde fevereiro de 2011 e até à data da declaração de insolvência da empresa, dispôs em proveito pessoal e/ou de terceiros da renda mensal no montante de € 300,00 (trezentos euros) liquidada por HH, inquilino da fração autónoma designada pela letra ..., destinada a comércio, no rés do chão traseiras, sita na Rua ..., ..., União das Freguesias ..., ... e ..., Concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...74..., inscrita na matriz sob o artigo ...36..., fração esta da propriedade da insolvente.”
43 59. Os arrendatários das referidas frações ..., ... e ... procediam ao pagamento das rendas mensais ao 1.º Réu.
44 60. O que faziam sempre pessoalmente, dado que era aquele que se encontrava diariamente no prédio, em numerário, normalmente com dinheiro da caixa, resultado do apuro diário das suas atividades.
45 33. O R. BB fez suas as quantias que recebeu a título de rendas referentes a imóveis da sociedade de que era sócio e gerente, integrando-as no seu património pessoal e em benefício próprio, causando prejuízo à sociedade que representava e, consequentemente aos seus credores, e, nomeadamente, o R. BB ingressou no seu património o montante global de € 65.650,00 (sessenta e cinco mil e seiscentos e cinquenta euros), nomeadamente, - o montante de € 35.550,00, que recebeu da sociedade “EMP03..., Lda.”; - o montante global de € 5.200,00, que recebeu da Sr.ª DD; - o montante de € 24.900,00, que recebeu de GG e marido HH.
46 O R. CC teve conhecimento dos factos nºs 28 (18), 33 (23), 42 (31) e 44 (33).
47 42. O Réu CC nunca retirou qualquer proveito pessoal ou patrimonial das rendas obtidas nas frações ..., ... e ... do lote ...01, nem retirou quaisquer quantias pertencentes às referidas frações para gastos pessoais e/ou terceiros.
48 62. No período compreendido entre 2008 e 2014, o 1.º Réu transferiu para a sociedade a quantia global de € 112.840,00 (cento e doze mil e oitocentos e quarenta euros), como infra se discrimina: a) em 13/03/2008, a quantia de € 10.000,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; b) em 12/01/2009, a quantia de € 46.540,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; c) em 28/09/2009, a quantia de € 40.000,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; d) em 17/08/2010, a quantia de € 2.000,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; e) em 03/01/2011, a quantia de € 2.000,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; f) em 14/02/2011, a quantia de € 2.300,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com o n.º ...30 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o n.º ...30, ambas domiciliadas na Banco 1...; g) em 30/09/2014, a quantia de € 9.500,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com NIB  ...05 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o NIB  ...34, ambas domiciliadas no Banco 2...; e h) em 30/09/2014, a quantia de € 500,00, mediante transferência bancária executada por débito na sua conta com NIB  ...05 para contrapartida de crédito na conta da insolvente com o NIB  ...34, ambas domiciliadas no Banco 2....
49 35. Em 18/02/2017, o Réu CC, renunciou à gerência, sendo tal situação levada a registo através da AP. ...07.
50 36. Pelo que, a partir do dia ../../2017, a gerência da sociedade ficou acometida apenas ao Réu BB.
51 1. Por decisão de 15-11-2017, já transitada em julgado, proferida no âmbito do processo que sob o n.º 5824/17...., corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Barga, Juízo Comércio de Comércio de ... – Juiz ..., foi declarada insolvente a sociedade “EMP01..., Lda.”
53 2. Foi ainda, nos termos da referida sentença, nomeado Administrador da Insolvência, o Dr. AA, com domicílio profissional, agora, na Rua ..., no ....
53 3. O capital social da ora insolvente sempre foi detido pelos RR.
54 46. Na fração ... são peticionadas rendas desde junho de 2011 até dezembro de 2017; na fração ... são peticionadas rendas desde outubro de 2015 até dezembro de 2017; e na fração ... são peticionadas rendas desde fevereiro de 2011 até dezembro de 2017, pelo que em parte posteriores ao referido sob 35 e 36.
55 47. No dia 30/12/2017 o Senhor Administrador da insolvência apresentou o Relatório nos termos do art. 155º do CIRE, sendo que, do aludido Relatório no título “5. Outros elementos importantes para a Tramitação”, consta o seguinte: “De registar que as frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ... e ..., se encontram ocupadas, tendo o Administrador da Insolvência diligenciado junto das pessoas que as ocupam pela apresentação de documento que legitime a posse e, bem assim, pela apreensão de eventuais rendas.
56 48. Tendo até à data da apresentação do aludido Relatório obtido resposta de todos, com a exceção da referente à fração ..., tendo, todavia, suspendido quaisquer diligências até decisão do apenso de Embargo, cuja sentença data de 06/04/2018.
57 63. Em 23/02/2018 foi junto o requerimento sob ref. ...33 documento onde se poder ler: «BB, sócio e gerente da firma EMP01..., Lda. notificada para juntar aos autos cópia dos contratos de arrendamento que celebrou na qualidade de gestor de negócios de QQ com a EMP03... e HH e como gestor de negócios de RR celebrado com DD.”
58 64. A sentença de declaração foi alvo de Embargo cuja petição entrou em juízo em 27/11/2017, tendo sido alvo de decisão em 06/04/2018 e cujo trânsito em julgado ocorreu em 04/05/2018.
59 61. Consta no Apenso F um documento bancário que atesta o levantamento ao balcão, pela esposa do 2.º R., do cheque entregue pelo Credor II, correspondente a parte de sinal, no valor de € 10.000,00 em 24 de janeiro de 2019.
***
5).1. Vejamos agora a quinta questão, começando por dizer que, em traços gerais, estão em causa na ação atos praticados pelos Réus, um deles o agora Recorrente, enquanto gerentes da sociedade insolvente, alegadamente em violação do dever legal de lealdade, dos quais resultaram prejuízos para o património social.
Esses atos, consistiram: (i) no arrendamento de uma fração autónoma integrada no património social como se de um bem do próprio gerente se tratasse, com a consequente apropriação das rendas recebidas; (ii) na apropriação de rendas recebidas como contrapartida pela cedência de frações pela sociedade e que eram destinadas ao património desta.
Na sentença de 1.ª instância entendeu-se, por um lado, que tais atos, levados a cabo pelo Recorrente, implicaram a dissipação de património da sociedade em proveito próprio, configurando, portanto, uma infração ao dever de lealdade. Entendeu-se, por outro, que o Réu CC não teve qualquer participação naqueles atos.
O Recorrente sustenta que não se apropriou das referidas rendas, antes as integrando no património da sociedade e, de qualquer modo, que não agiu com culpa, uma vez que, como resultou provado, depositou “elevadas quantias na conta da sociedade” para “aprovisionar” esta sempre que necessário. Sustenta, também, que todas as decisões foram tomadas em conjunto com o Réu CC, pelo que este deve ser também responsabilizado.
Quid inde?
***
5).2.1. O art. 72/1 do CSC, na redação do DL n.º 76-A/2006, de 29.03, diz que “[o]s gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.”
Prevê-se aqui uma responsabilidade de tipo obrigacional (Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade dos Administradores das Sociedades Comerciais, Lisboa: Lex, 1997, pp. 493 e ss.; Jorge Manuel Coutinho de Abreu / Maria Elisabete Ramos, “Art. 72.º”, AAVV, Jorge Manuel Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 899; Rui Pinto Duarte, “Responsabilidade civil dos administradores das sociedades desportivas”, Revista de Direito da Responsabilidade, ano 1, 2019, p. 902) que, para a doutrina mais recente, decorre da violação de vínculos emergentes do contrato de administração (Raul Ventura / Brito Correia, “Responsabilidade civil dos administradores e diretores das sociedades anónimas e dos gerentes das sociedades por quotas: Estudo comparativos dos direitos alemão, francês, italiano e português. Nota explicativa do capítulo II do Decreto-Lei n.º 49381 de 15 de novembro de 1969”, Separata do Boletim do Ministério da Justiça n.ºs 192, 193, 194 e 195, 1970, p. 209) ou até da violação de obrigações funcionais (Menezes Cordeiro, Da responsabilidade dos administradores cit., p. 493), na medida em que se reporta a atos praticados (ou omitidos) pelos administradores no exercício das suas funções e por causa destas.
De facto, nas sociedades anónimas, o administrador é colocado no exercício das suas funções, sob o plano formal, pelo mecanismo do contrato de administração. Este contrato tem como partes a sociedade – propriedade dos sócios – cuja vontade deliberativa de legitimar terceiros é exposta através do contrato de sociedade, da assembleia geral ou assembleia constitutiva (art. 391/1 do CSC) – e o administrador, necessariamente uma pessoa singular (art. 390/3 do CSC), tecnocrata da gestão, a quem são conferidos poderes representativos para a prossecução da atividade administrativa, de acordo com a sua posição na estrutura organizacional da sociedade nas suas três modalidades, cf. art. 278/1 do CSC (conselho de administração e conselho fiscal; conselho de administração, comissão de auditoria e revisor oficial de contas; conselho de administração executivo, conselho geral e de supervisão e, revisor oficial de contas). Já nas sociedades por quotas, os gerentes tanto podem ser sócios como não sócios. A lei apenas impõe que sejam pessoas singulares com capacidade jurídica plena (art. 252/1, parte final, do CSC). O preenchimento da titularidade do órgão pode ocorrer por designação no contrato de sociedade, designação posterior segundo a forma prevista no contrato ou, se o contrato nada dispuser a este respeito, posterior eleição por deliberação dos sócios e, ainda, por nomeação judicial (arts. 252/2 e 253/3 do CSC).
Os referidos poderes administrativos e de gestão não assentam numa mera lógica de representação, mas de verdadeira organicidade, de tal forma que a atuação do administrador deve ser guiada exclusivamente pelos interesses da sociedade, como pessoa jurídica, em contraposição aos seus próprios interesses particulares.  A propósito, A. Barreto Menezes Cordeiro, “Doutrina das Oportunidades Societárias (Corporate Opportunities Doctrine) – Parte II: Direito Português”, Revista de Direito das Sociedades, ano 5 (2013), n.º 4, pp. 741-778. Dito de outra forma, os poderes dos administradores são poderes-função ou poderes-deveres que, como tal, devem ser exercidos na promoção e prossecução do interesse social. Como que estão orientados pela relação fiduciária que a gestão de bens e interesses alheios do ente jurídico social implica. A propósito, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2007, p. 15; Manuel Carneiro da Frada, “A business judgment rule no quadro dos deveres gerais dos administra­dores”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, Vol. I, jan. 2007, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/; Vânia Magalhães, “A conduta dos administradores das sociedades anónimas: deveres gerais e interesse social”, RDS n.º 2, 2009, p. 395.
***
5).2.2. No citado n.º 1 do art. 72 do CSC encontramos os pressupostos exigidos, em geral, no âmbito da responsabilidade civil obrigacional: atuação dos administradores com inobservância de deveres funcionais, legais ou contratuais (facto humano voluntário ilícito); culpa/presunção de culpa (a imputação do facto ao agente); dano sofrido pela sociedade e nexo de causalidade entre a atuação do administrador e o dano sofrido. No dizer de Menezes Cordeiro / A. Barreto Menezes Cordeiro (“Art. 72.º”, AAVV, Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 354), do preceito “resulta uma situação de responsabilidade, nos termos seguintes: (a) prática de danos ilícitos; (b) por inobservância de deveres específicos; (c) com presunção de culpa. Trata-se de responsabilidade obrigacional, pela violação das obrigações funcionais do administrador.”
De acordo com Rui Pinto Duarte (Responsabilidade civil dos administradores das sociedades desportivas cit.), da regra “retira-se que os pressupostos da responsabilidade dos administradores para com a sociedade são (…): - Um ato ou omissão de violação de (quaisquer) deveres legais ou contratuais (art. 72, n.º 1, primeira oração); - O caráter culposo do ato ou omissão (parte final do art. 72, n.º 1, segunda oração); - O dano sofrido pela sociedade (…) (art. 72, n.º 1, primeira oração); - o nexo de causalidade entre o ato ou omissão e o dano sofrido pela sociedade (art. 72, n.º 1, primeira oração).”
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5).2.3. Os pressupostos do dano e do nexo de causalidade não oferecem qualquer novidade relativamente ao regime geral da responsabilidade civil tal como este nos é apresentado no Código Civil (Jorge Manuel Coutinho de Abreu / Maria Elisabete Ramos, loc. cit., p. 901).
Deste modo, o primeiro pressuposto da responsabilidade que importa tratar é o facto, que o art. 72 enuncia como os “atos ou omissões” praticados pelos administradores.
Como escreve Maria Elisabete Ramos (A Responsabilidade dos Membros da Administração, Problemas do Direito das Sociedades, Coimbra: Almedina, pág. 77)., “o art. 72º, nº 1, patenteia um propósito de individualização da responsabilidade – responsáveis são os titulares do órgão administrativo e não o próprio órgão”, o que é indicado, desde logo, pela literalidade da norma. Expressão deste intuito individualizador é, acrescenta a autora, o facto de o ordenamento jurídico ter optado claramente por fundar este tipo de responsabilidade da administração perante a sociedade na culpa dos Organträger e ter rejeitado imputações objetivas.”
Com efeito, os administradores são responsáveis por factos próprios, aspeto que assume especial relevo no caso das sociedades que têm um órgão de administração pluripessoal, pois a mera circunstância de uma pessoa pertencer ao órgão de administração não é suficiente para a sua responsabilização. Compreende-se, por isso, que, conforme foi entendido em RP 10.10.2005 (0553415), relatado por Cunha Barbosa, “a solidariedade, estabelecida no art.º 73º do Código das Sociedades Comerciais, haja de ser entendida por referência aos gerentes responsáveis, isto é, entre os gerentes a quem é imputável a prática do ato gerador de prejuízo para a sociedade e determinante da responsabilidade e consequente obrigação de indemnizar.”
Este aspeto, como veremos, assume importância no caso.
***
5).2.3.1 A expressão “com preterição dos deveres legais e contratuais” do art. 72/1, reflete o pressuposto da ilicitude.
De acordo com a sistematização de Jorge Manuel Coutinho de Abreu / Maria Elisabete Ramos (loc. cit., pp. 898-899), entre os deveres legais encontram-se deveres legais específicos e deveres legais gerais: “os primeiros resultam imediata e especificadamente da lei; os segundos revelam-se de modo relativamente indeterminado, muitas vezes em cláusulas gerais.”
O CSC prevê alguns deveres legais específicos dos administradores, de que são exemplo os seguintes: não ultrapassarem o objeto social (art. 6.º/4), não distribuírem aos sócios bens sociais não distribuíveis ou (em regra) sem autorização (dada, em princípio, por deliberação dos sócios) – arts. 31/ 1, 2, 4, 32, 33/1 e 2 e 33; prontamente convocarem ou requererem a convocação da assembleia geral em caso de perda de metade do capital social, a fim de os sócios tomarem as medidas julgadas convenientes (art. 35); não exercerem por conta própria ou alheia, sem consentimento da sociedade, atividade concorrente com a dela (arts. 254, 398/3 e 5 e 428); promoverem a realização das entradas em dinheiro diferidas (arts. 203 e ss., 285 e 286); não executarem deliberações nulas do órgão de administração (arts. 412/4 e 433/1); não adquirirem para a sociedade, em certas circunstâncias, ações ou quotas dela próprias (arts. 316, 319/2, 323/4, 325/2 e 220). Outros elencos podem ser vistos em Ricardo Costa / Gabriela Figueiredo Dias, “Art. 64.º”, AAVV, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. pp. 768-770, e em Rui Pinto Duarte, “Os deveres dos administradores das sociedades comerciais”, Católica Law Review, II, n.º 2, maio de 2018, pp. 77-97.
Os deveres legais gerais são os deveres de cuidado e de lealdade (art. 64).
Finalmente, a expressão legal “deveres contratuais” compreende os deveres estatutários. Como referem Jorge Manuel Coutinho de Abreu / Maria Elisabete Ramos (idem), o Código usa muitas vezes “contrato” (de sociedade) como equivalente de estatuto(s).
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5).2.3.2. Sobre os referidos deveres gerais, que são os que relevam para a economia da presente ação, diz o art. 64/1 do CSC, na redação do já referido DL n.º 76-A/2006, que “[o]s gerentes ou administradores da sociedade devem observar: a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.”
Na formulação de Ricardo Costa (“Responsabilidade dos administradores e business judgment rule”, Reformas do Código das Sociedades, IDET/Colóquios n.º 3, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 58-59), “o dever de cuidado consiste na obrigação de os administradores cum­prirem com diligência as obrigações derivadas do seu ofício-função, de acordo com o máximo interesse da sociedade e com o cuidado que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situ­ações similares.” Tal obrigação implica, conforme concretiza Jorge Manuel Coutinho de Abreu (Responsabilidade cit., p. 18), que “os administradores hão de aplicar nas atividades de organização, decisão e controlo societários o tempo, esforço e conhecimento requeridos pela natureza das funções, as competências específicas e as circunstâncias.” Na jurisprudência, esta formulação foi seguida em RP 5.02.2009 (0835545), relatado por Pinto de Almeida.
Na densificação do conteúdo do dever de cuidado, o legislador emprega conceitos indeterminados como “disponibili­dade”, “competência técnica” e “conhecimento da atividade” ade­quados às suas funções. Para Carneiro da Frada (A business judgment rule cit.), estão em causa verdadeiros deveres (ou subdeveres) próprios do estatuto do administrador, enquanto “descrições do comportamento objetivamente exigível do adminis­trador.” Já para Ricardo Costa (“Deveres gerais dos administradores e “gestor criterioso e ordenado, AAVV, I Congresso Direito das Sociedades em Revista, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 157-189) não estão em causa verdadeiras manifesta­ções autonomizáveis do dever de cuidado, sendo preferível entender-se que “a lei avança algumas das circunstâncias exigíveis – verdadeiramente qualidades – ao modo como as verdadeiras manifestações do dever de cuidado devem ser realizadas, contribuindo (também subjetivamente) para a avaliação das decisões dos admi­nistradores. A qualificação destas qualidades previstas na lei reside no facto de serem essenciais na densificação do padrão do gestor criterioso e orde­nado – veja-se que o art. 64.º, 1, a), localiza tal padrão no âmbito dessas qualidades legalmente reivindicadas.”
O autor acabado de citar acrescenta que, na concretização do dever de cuidado, há que atender a outras circunstâncias do caso concreto, como sejam “o tipo, objeto e dimensão da sociedade, o sector económico da atividade social, a natureza e a importância (-amplitude) da decisão e/ou negócio e o seu enquadramento na gestão corrente ou na gestão extraordinária, o tempo disponível para obter a informação e para tomar a decisão, os custos de obtenção da informação, a confiança dos administradores naqueles que examinaram o assunto e o apresentaram no conselho, o estado da atividade da empresa social naquele momento, o número de decisões que foi necessário tomar naquele período, os tipos de comportamento normalmente adotados naquele tipo de situações, a experiência do administrador, as funções do administrador (executivas ou não, delegadas ou não) e a sua especialidade técnica, etc.E acrescenta que “[a]s principais manifestações (ou subdeveres) do dever de cuidado con­sistem no (i) dever de controlar, ou vigiar, a organização e a condução da atividade da sociedade, as suas políticas, práticas, etc.; no (ii) dever de se informar e de realizar uma investigação sobre a atendibilidade das infor­mações que são adquiridas e que podem ser causa de danos, seja por via dos normais sistemas de vigilância, seja por vias ocasionais (produzindo informação ou solicitando-a por sua iniciativa) – estes dois subdeveres podem muitas vezes conjugar-se de uma forma muito estrita e até absorve­rem-se em hipóteses concretas enquanto subdever (global e uno) de con­trolar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade e o desempenho dos gestores (não só administradores), em geral sobre a atuação dos restantes administradores, trabalhadores e colaboradores com funções de gestão, em especial na relação entre administradores não executivos e administra­dores executivos; no (iii) dever de se comportar razoavelmente no iter de formação de uma decisão, obtendo a informação suficiente para o habili­tar a tomar uma boa decisão (obtenção razoável de informação no processo de tomada de decisão); no (iv) dever de tomar decisões substancialmente razoáveis, dentro de um catálogo mais ou menos discricionário de alternativas pos­síveis e adequadas.”
No que tange ao padrão da “diligência de um gestor criterioso e ordenado”, conforme se nota em CMVM, Respostas à consulta pública n.º 1/2006 sobre alterações ao Código das Sociedades Comerciais (disponível em www.cmvm.pt, ponto 2.º, A – Temas gerais/Deveres e responsabilidade dos titulares dos órgãos sociais), a alínea a) do n.º 1 do art. 64 divide-se em duas partes: na primeira temos uma “cláusula geral de atuação cuidadosa”; na segunda dispõe­-se o “critério de atuação diligente que serve de bitola do cumprimento daquela.” Esse é a “diligência de um gestor criterioso e ordenado”: é à luz deste parâmetro de esforço e procedimento que, imediatamente, as manifestações do dever de cuidado – mormente, o dever de tomar decisões razoáveis – se realizam, com o fito de verificar se um administrador foi cuidadoso em concreto na gestão social.
Como escreve Ricardo Costa (Deveres gerais dos administradores e “gestor criterioso e ordenado” cit., p. 173-174), “[s]eja para a ilicitude, seja para o juízo de culpa, o administrador qua­lificado apontado pela lei pressupõe uma certa profissionalização e espe­cialização próprias da classe dos gestores, uma competência assente em habilitações técnicas e profissionais (ainda que a lei não exija qualquer capacidade técnica ou académica particular ou experiência profissional para o exercício do cargo, exceto para certas categorias de sociedades).
Para esses juízos de conformidade com o “padrão de diligência espe­cialmente reforçado” do “gestor criterioso e ordenado” devem ser con­sideradas as qualidades legais e as circunstâncias que são mobilizáveis para determinar e densificar em concreto o cumprimento de cada uma das manifestações do dever de cuidado. A começar, portanto, pelos “critérios de concretização” (como são denominados por Pais de Vasconcelos) expressamente fornecidos pelo CSC; a saber, a disponibilidade, a compe­tência técnica e o conhecimento da atividade social adequados às fun­ções. Neste sentido, o “gestor criterioso e ordenado” será, em primeira linha, o administrador qualificado e medianamente disponível, competente tecnicamente (o que acentua a ideia de profissionalização) e conhecedor da atividade, mediado pelas circunstâncias em que uma certa decisão foi tomada. Isto é, a avaliação objetiva e subjetiva do ato (ou omissão) do administrador é feita de acordo com a diligência exigível a um “gestor criterioso e ordenado” colocado nas circunstâncias concretas em que atuou e confrontado com as qualidades que revelou de acordo com o exigível – a admi­nistração lícita e não culposa é aquela que um administrador “criterioso e ordenado”, colocado na posição concreta do administrador real, realizaria.
O mesmo autor – que, data venia, vimos seguindo quanto a este ponto – ressalva que “não pode o administrador exonerar-se de se balizar pelo inte­resse social (interesse comum a todos os sócios enquanto tais na realização do máximo lucro através da atividade da sociedade) e pelos “interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”, delineados na al. b) do art. 64.º, 1 – que hoje desembocam no “interesse da sociedade” (mais extenso e, por isso, de pendor institucionalista) que orienta a atuação dos admi­nistradores. De modo que a deslocação normativa da pauta para a órbita do dever geral de lealdade não obsta a esse compromisso essencial da atuação fiduciária do administrador no campo dos deveres de cuidado.”
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5).2.3.3. No contexto da sindicância do dever de cuidado, o art. 72/2, que se articula com o art. 64/1, a), prevê a exclusão da responsabilidade dos administradores para com a sociedade no que tange às suas decisões de gestão dis­cricionária e autónoma – ou atos propriamente de gestão – se o gerente ou o administrador (i) “atuou em termos informados” e (ii) “segundo critérios de racionalidade empresarial”, o que corresponde à regra business judgment rule. Em tais situações, escreve Ricardo Costa (Deveres gerais dos administradores e “gestor criterioso e ordenado” cit., pp. 177-178) “[d]eve entender-se que os adminis­tradores respeitaram as suas obrigações legais e a sua conduta, no que respeita ao mérito das suas escolhas, é insindicável pelo juiz. É ao admi­nistrador que cabe provar os factos extintivos do direito indemnizatório invocado. Mesmo que se trate de erros consideráveis de gestão e evitáveis por outros administradores, mas justificados por escolhas imprudentes ou por deficiências de juízo (valorações incorretas, equívocos técnicos, etc.), terá ao seu alcance a demonstração que, não obstante o mau resultado, o erro cometido, protagonizou um exercício minimamente cuidadoso dos seus poderes discricionários, seja quanto ao dever de obtenção razoável de informação no processo de tomada de decisão, seja quanto ao dever de tomar decisões razoáveis e adequadas (só não podem ser irracionais, isto é, incompreensíveis, sem explicação coerente ou fundamento plausível). Numa outra perspetiva, terá o administrador a possibilidade de demons­trar que cumpriu a obrigação de meios para com a sociedade e que o resul­tado (consequência final da sua ação) – a cujo êxito não está obrigado – não lhe trará responsabilidade.”
Deste modo, prossegue o autor, “o art. 72.º, 2, fiscaliza o dever geral de cuidado nas suas seguin­tes manifestações: a) dever de tomar decisões razoáveis e adequadas; b) dever de obtenção razoável de informação no processo de tomada de deci­são. O julgador estará legitimado para aferir da responsabilidade pela violação dos outros subdeveres (ou subdever) compreendidos no dever de cuidado que façam parte do seu conteúdo integral, sem que seja possível afastar a responsabilidade decorrente da violação dos subdeveres de cui­dado não integrados no âmbito de aplicação do art. 72.º, 2, por invocação das circunstâncias previstas no art. 72.º, 2. O art. 72.º, 2, estabelece, portanto, um regime especial da responsabilidade pela administração discricionária, que delimita o perímetro relevante do dever geral de cuidado no momento de ava­liar a conduta do administrador.”
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5).2.3.4. O outro dever geral – o dever de lealdade – impõe que os administradores, no exercício das suas funções, considerem e intentem em exclusivo o interesse da sociedade, omitindo comportamentos que visem a realização de outros interesses, próprios e/ou alheios. Esta definição de teor positivo, fornecida por Jorge Manuel Coutinho de Abreu (Responsabilidade cit., p. 25) e seguida por Ricardo Costa (Deveres gerais dos administradores e “gestor criterioso e ordenado” cit., pp. 180-181), pode ser complementada, pela negativa, como “uma proibição geral de atuação em conflito de interesses” (Vânia Magalhães, loc. cit., p. 399). À luz dela, Ricardo Costa (idem) escreve que “[c]onduta desleal é aquela que promove ou potencia, de forma direta ou indireta, situações de benefício ou proveito próprio dos admi­nistradores (ou de terceiros, por si influenciados, ou de familiares), em prejuízo ou sem consideração pelo conjunto dos interesses diversos ati­nentes à sociedade, neles englobando-se desde logo os interesses comuns de sócios enquanto tais, e também os de trabalhadores e (particularmente com a atual versão do art. 64.º, 1) demais stakeholders relacionados com a sociedade.” E acrescenta que “[r]econduzir o dever de lealdade dos administradores e gerentes ao prin­cípio geral da boa fé (art. 762.º, 2, do CCiv.) não será a via mais com­pleta, vista a sua extensão e manifestações em que se precipita. Antes se pode configurar a já vista relação fiduciária – e a confiança especial que lhe subjaz – que se estabelece entre a sociedade e o administrador como o fundamento adequado: gera o imperativo de prosseguir (como regra e em primeira linha) o fim (lucrativo) que os sócios perseguem quando cons­tituem a sociedade, enquanto instrumento que esta é para a consecução desse fim e a correspondente satisfação do interesse social.”
Algumas das manifestações deste dever encontram correspondência na lei e tra­duzem deveres específicos(-vinculados): pelo menos, de acordo com a enumeração de Ricardo Costa (ibidem), (i) não realizar certos negócios com a sociedade (arts. 397.º, 1, 428º) ou, afora estes, sem con­sentimento da sociedade (arts. 397.º, 2 e 5, 428.º), (ii) não exercer atividade concorrente com a da sociedade, desde que não haja autorização da sociedade (arts. 254.º, 1, 398.º, 3, 428º), (iii) não votar nas deliberações do órgão de administração sobre assuntos em que tenha, por conta pró­pria ou de terceiro, interesse em conflito com o da sociedade (art. 410.º, 6), (iv) não “abusar” de informação “não pública” e privilegiada da socie­dade (arts. 449.º e 450.º do CSC, 378.º do CVM), e (v) ser neutral perante ofertas públicas de aquisição (arts. 181.º, 2, d), e 182.º, 1, do CVM). Outra enumeração, parcialmente coincidente, pode ser vista em Rui Pinto Duarte, Os deveres dos administradores das sociedades comerciais cit., p. 83.
Mas outras manifestações são delineadas em resultado da lealdade exigida aos administradores, do que são exemplo, ainda de acordo com Ricardo Costa (ibidem): (vi) não usufruir vantagens de terceiros ligadas à celebração de negócios da sociedade com esses terceiros (as conhecidas “luvas”, “comissões” ou “gratificações”), (vii) não aproveitar as oportu­nidades negociais da sociedade para seu proveito ou de outras pessoas, especialmente a si ligadas, salvo consentimento válido da sociedade, (viii) não utilizar meios ou informações próprios da sociedade para daí retirar proveitos, sem contrapartida para a sociedade, e (ix) guardar sigilo das informações e documentos reservados da sociedade.” No mesmo sentido, Vânia Magalhães (A conduta dos administradores das sociedades anónimas: deveres gerais e interesse social cit., pp. 400-401), escreve que “em nome da segurança do tráfico jurídico, o administrador não deverá invocar a sua qualidade de administrador e o nome da sociedade que administra para a celebração de qualquer negocio realizado por si mesmo ou por alguém a ele vinculado, de forma a que quem com ele está a contratar saiba perfeitamente que não contrata com a sociedade mas com o administrador a título pessoal e não obtenha vantagens no negócio devido à sua qualidade. Deverá, neste âmbito, o administrador não abusar ilegitimamente da sua qualidade mesmo quando realiza negócios em nome da sociedade, como poderá suceder se receber comissões ou mais valias pela celebração de determinado negócio.” A autora acrescenta que “[i]nfringirá o dever de lealdade o administrador que, em benefício próprio, se aproveite de oportunidades de negócio da sociedade em claro e ostensivo conflito de interesses: o pessoal (do administrador) e o social (da sociedade) dando prevalência ao primeiro (indevidamente).”
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5).2.3.5. No que concerne ao conceito de interesse social, ultrapassada a querela entre as teorias institucionalistas e as teorias contratualistas, de que dá nota Vânia Magalhães (A conduta dos administradores das sociedades anónimas: deveres gerais e interesse social cit., pp. 403-408), o art. 64/1, b), fala em “interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”, o que inculca a ideia de que está em causa o interesse da própria sociedade, enquanto instituição diferente dos sócios. Simplesmente, como adverte a autora acabada de citar, “não se pode olvidar que o regime jurídico das sociedades comercias é conformado com a própria noção de sociedade comercial prevista no artigo 980 do Código Civil, sendo nesta norma e não no artigo 64 do CSC que deverá encontrar-se a noção de interesse social. Os sócios visam, com a constituição de uma sociedade comercial, o exercício de uma atividade em comum, definível no respetivo objeto social, a fim de repartirem lucros. O interesse social é, portanto, o interesse comum dos sócios nessa qualidade – interesses intrínsecos à vontade do sócio no momento da decisão de constituir a sociedade com outros sujeitos –, sem que relevem para o efeito outros interesses pessoais dos sócios. Assim, o interesse social identifica-se com o fim para o qual a sociedade foi criada e reconduz-se à obtenção de lucro através do exercício da atividade para a qual a sociedade foi constituída (…) A sociedade, mesmo com a personalidade jurídica que a lei lhe confere no artigo 5.° do CSC, não é um ente autónomo, separável dos respetivos sócios, mas o “instrumento de atuação dos indivíduos e da prossecução de interesses desses indivíduos”. Além do interesse social resultar, em primeira linha, do contrato social através da fixação do respetivo fim pelos sócios contraentes, o interesse social é conformado pelas deliberações sociais, na justa medida em que o binómio da relação entre a necessidade de obtenção de lucro pelos sócios e os meios idóneos à sua satisfação tem, necessariamente, que ser resolvido, durante o iter de atividade da sociedade, por deliberações dos sócios. Mas o interesse social não corresponde necessariamente ao interesse da maioria quando esta toma uma deliberação que tem em vista prosseguir um interesse extrassocial. As deliberações sociais estão sempre limitadas pelo contrato social e pelas regras do abuso de direito.”
Deste modo, pode dizer-se que “[a] lei, mantendo, no entanto, a referência a um interesse da sociedade, dá prevalência aos interesses a longo prazo dos sócios e só por via secundária refere que devem os administradores ponderar outros interesses: dos trabalhadores, credores e clientes. A referência aos interesses a longo prazo dos sócios quererá significar que os de curto e médio prazo já estão incluídos na fórmula terminológica de “interesse da sociedade” e que a atuação dos administradores deverá tender para a concretização duradoura do contrato de sociedade celebrado entre os sócios. O “interesse da sociedade” identificar-se-á, assim, com o interesse comum dos sócios, quer sejam de curto, médio ou longo prazo” (Vânia Magalhães, idem).
Os interesses dos trabalhadores, clientes e credores devem ser ponderados quando “relevantes para a sustentabilidade da sociedade”, o que leva a afastar o entendimento de que interesse social, a observar pelos administradores na sua atuação, compreende, para além do interesse comum dos sócios, de forma altruística, os interesses dos clientes, credores e trabalhadores qua tale. A sua ponderação deve ser observada pelos administradores enquanto forem relevantes para o interesse social tomado como interesse comum dos sócios. Assim, como escreve a citada autora, o art. 64/1, b), não pretende estabelecer “uma norma de proteção de terceiros da mesma forma que eventualmente, na redação anterior, se pretendia proteger os trabalhadores. Ademais, todos os sujeitos elencados têm normas específicas para a sua proteção. Desde logo, as regras gerais da responsabilidade previstas nos artigos 72e ss. do CSC: os administradores responderão civilmente perante os credores nos termos do artigo 78 do CSC. Responderão também perante terceiros, em que se incluem os clientes e trabalhadores, nos termos do artigo 79 do CSC. Os trabalhadores estão protegidos pelas leis laborais, convenções coletivas de trabalho e pela própria Constituição da República Portuguesa. Os clientes, por sua vez, têm mecanismos de ação suficientes para efetivar os seus direitos (tutelados pelo Direito do Consumo, tratando-se de consumidores, e pela Lei Civil e Comercial, em geral).”
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5).2.3.6. Por outro lado, conforme nota Ricardo Costa (Deveres gerais dos administradores e “gestor criterioso e ordenado” cit., pp. 184-185), o padrão do “gestor criterioso e orde­nado” tem “um outro recheio no que respeita ao dever de lealdade”:
“Em primeiro lugar, nas manifestações legais, em rigor não estamos necessitados do “gestor criterioso e ordenado”; estamos perante deveres vinculados e não cláusulas gerais demandantes de concretização.
Em segundo lugar, o dever de lealdade, nas suas manifestações não legais, pode implicar escolhas (desde logo, agir ou não agir num cená­rio de conflito de interesses), mesmo de alcance relativo, que podem ainda ser balizadas pelo “tipo” de administrador concebido pela lei: p. ex., perante uma “oportunidade de negócio” o “administrador-tipo” deve informar-se sobre a existência de interesse objetivo e efetivo da socie­dade nela ou se a sociedade já está envolvida em negociações para a con­clusão do negócio respetivo; ou conhecer necessariamente que a maqui­naria que utiliza gratuitamente numa obra própria pertence à sociedade. Nestas hipóteses, a convocação das qualidades inerentes ao “gestor crite­rioso e ordenado” e das circunstâncias em que ele deve ser examinado em concreto (p. ex., a dimensão da sociedade, ser administrador executivo ou não executivo, ser administrador em exclusividade ou não, etc.) fazem (o seu) sentido.
De todo o modo, não podemos deixar de empreender a seguinte precisão (-limitação): o dever de lealdade não admite ponderações, enquanto não está disponível para fragmentações derivadas de escolhas do administrador, entre o “interesse da sociedade” e o interesse próprio e/ou de terceiros – aqui, é um dever absoluto. Não se pode falar aqui de autonomia e discricionariedade próprias do administrador, que sempre seriam assaz relativas (ou inexistentes), ou, em alternativa, remetidas tão­-só para a escolha da decisão entre os interesses oponíveis. O que deixa pouco (residual ou nenhum) lugar para a diligência qualificada do tipo legal de administrador, particularmente nas manifestações omissivas ou proibidoras do dever de lealdade (p. ex., quando se analisa a perceção de “comissões negociais” indevidas).
Seja como for, a sua transposição para o campo da lealdade envolve, no mínimo e como diferencial, que o administrador “criterioso e ordenado” da sociedade é aquele que a gere para o fim correspondente à maximização do interesse social e à concordância possível com os interesses dos stakeholders (particularmente, credores, trabalhadores, clientes e outros especialmente interessados – a lista não é taxativa).”
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5).2.3.7. Como corolário do que antecede, não cabe no âmbito de aplicação do referido art. 72/2 sindicar se o administrador cumpre ou não cumpre com o dever geral de leal­dade (assim, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Respon­sabilidade civil cit., p. 47, Ricardo Costa, “Responsabilidade dos administradores e busi­ness judgment rule”, loc. cit., p. 69, e Deveres gerais dos administradores e “gestor criterioso e ordenado” cit., p. 186, Carneiro da Frada, “A business judgment rule, loc. cit., pp. 221-222, e Vânia Magalhães, loc. cit., p. 394). Como escreve Ricardo Costa, “[s]e estamos perante manifestações legais, os deveres são específi­cos e não entram, enquanto tal, na tutela do preceito. Se estamos perante manifestações não legais, já vimos que se configura como um dever que exige sem mais a consecução em exclusivo do “interesse da sociedade” (em que se ponderam os outros interesses elencados na al. b) do art. 64.º, 1) e a abstenção de decisões em benefício próprio ou de terceiros, pro­porcionadas pela posição e estatuto de administrador. É esta ausência de discricionariedade – e não (a) outra (ou outras), que, sendo imprópria, realmente propicia somente decisões em nome da prevalência de um interesse(s) – que afasta o art. 72.º, 2. Fosse como fosse, o próprio art. 72º, 2, indica que um terceiro requi­sito de exclusão de responsabilidade do art. 72.º, n.º 2, é a inexistência de interesse pessoal no que toca à decisão (independência: o administra­dor atuou “livre de qualquer interesse pessoal”). Assim, fora do dever de cuidado, a lei salvaguarda a ausência de conflito de interesses e, nessa medida, abrange desde logo a conformação com algumas das manifesta­ções mais relevantes do dever de lealdade (em particular: não aprovei­tamento próprio de oportunidades negociais decorrentes da atividade societária, não utilização em benefício próprio de meios e/ou informações da titularidade e/ou na disponibilidade da sociedade).”
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5).2.4. Quanto ao pressuposto do nexo causal, é ponto assente que, para a existência de causalidade entre o facto e o dano, não basta que aquele tenha sido em concreto causa deste em termos de conditio sine qua non; é necessário que, em abstrato, seja também adequado a produzi-lo, segundo o curso normal das coisas (vide, por todos, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2001, p. 708).
A averiguação da adequação abstrata do facto a produzir o dano só pode ser realizada a posteriori (prognose póstuma). A doutrina da adequação, tratada sobretudo a propósito da responsabilidade civil e da responsabilidade criminal, aceita que essa avaliação tome por base não apenas as circunstâncias normais que levariam um observador externo a efetuar um juízo de previsibilidade, mas também circunstâncias anormais, desde que recognoscíveis ou conhecidas pelo agente. É esta a teoria que se encontra consagrada no art. 563 do Código Civil: a introdução, na norma, do advérbio provavelmente faz supor que não está em causa apenas a imprescindibilidade da condição para o desencadear do processo causal, exigindo-se ainda que essa condição, de acordo com um juízo de probabilidade, seja idónea a produzir um dano (cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 326. Na jurisprudência, STJ 15.01.2002, CJ-STJ, IX, t. 1, pp. 36 a 38).
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5).2.5. No que tange ao pressuposto da culpa, a violação dos deveres (legais ou “contratuais”) há de ser culposa. Na lição de Jorge Coutinho de Abreu / Maria Elisabete Ramos (Art. 72 cit., pp. 900-901), a conduta do administrador merece censura do direito quando, atendendo às circunstâncias, ele podia ter agido de outro modo. Por conseguinte, não se incluem no âmbito da responsabilidade dos administradores perante a sociedade as consequências imputáveis aos riscos de empresa. Estes são suportados pela sociedade e, mediatamente, pelos sócios. Toma-se aqui a culpa como imputação do ato ao agente, o que significa que está afastada a responsabilidade objetiva.
O grau de culpa não releva para fundar a responsabilidade dos administradores perante a sociedade, mas importa para a medida da obrigação de indemnizar (art. 73/2).
Com interesse para o juízo de culpa, convém referir a habilitação técnica e a profissionalização dos membros do órgão de administração. Em geral, o CSC não exige especial habilitação técnica ou académica, nem experiência profissional (arts. 191/3, 252/1, 390/3, 425/5 e 470). Isto não significa, porém, que um administrador considerado sem suficiente habilitação técnica ou experiência profissional fica livre de ser considerado culpado. Outros fatores relevantes para apreciar a culpa dos administradores são, designadamente, a posição ocupada no conselho de administração (de executivo ou não executivo), ou o efetivo acesso à informação (por exemplo, quanto aos pelouros de que outros administradores se encontrem especialmente encarregados).
O padrão geral para ajuizar da culpa (aplicável a todos os administradores) é o da (abstrata) “diligência de um gestor criterioso e ordenado” (art. 64/1, a)).
A sociedade (e quem, em vez dela, efetive a responsabilidade interna) beneficia da presunção de culpa prevista no art. 72/1, in fine, donde decorre a inversão do ónus da prova, dispensando a sociedade-autora (ou quem tenha legitimidade para intentar a ação social de responsabilidade) de provar a culpa (art. 344/1, do Código Civil).
Discute-se se esta presunção abrange a ilicitude.
Para Menezes Cordeiro (Anotação ao art. 72.º cit., p. 279) essa abrangência é “uma implicação lógica irrefutável, a menos que se abdique do conceito ético-normativo de culpa, hoje dominante. A presunção de ilicitude não dispensa o interessado de provar o não-cumprimento do dever em causa (…) perante tal não-cumprimento, presume-se a ilicitude e a culpa, nos termos próprios da responsabilidade obrigacional.”
Já Jorge Manuel Coutinho de Abreu / Maria Elisabete Ramos (Art. 72.º cit., pp. 900-901) entendem que “a presunção prevista no art. 72.º, 1, não abrange a ilicitude” e que “[s]ufragar o entendimento de que o preceito consagra também uma presunção de ilicitude intensifica, por via interpretativa, o risco de responsabilidade dos administradores” pois sob “tal compreensão, bastaria à sociedade alegar e provar a ação/omissão dos administradores adequada a produzir um dano e daí extrair-se-iam as presunções de culpa e de ilicitude. Consequência jurídica que, em termos práticos, deslocaria o regime jurídico-societário da responsabilidade civil pela administração do universo da responsabilidade subjetiva para o aproximar da responsabilidade objetiva.”
Aderindo a este último entendimento, não podemos, porém, deixar de notar, no seguimento da lição de Carneiro da Frada (A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos administradores cit.), que o lesado – a sociedade –, a quem cabe a prova da violação dos deveres legais ou contratuais dos administradores, não está inúmeras vezes em condições de fazer a prova plena da ilicitude assim definida, desde logo por falta ou dificuldade de acesso à informação relevante. Daí que se imponha uma facilitação judicial da prova ao lesado, com admissão de uma prova por verosimilhança (prova prima facie ou Anscheinbewis). Uma prova, portanto, que se contente com a presença de indícios suficientes, quando analisados à luz das regras do id quod plerumque accidit, da violação de tais deveres, instaurando-se de imediato o diálogo probatório mediante a devolução ao administrador da palavra na matéria. A este caberá, assim, alegar factos complementares que afastem aquela aparência (Aschein) do direito.
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5).3.1. Assim esboçado o quadro jurídico necessário à resposta à quinta questão, apreciemos agora a concreta situação dos autos à luz da factualidade considerada como provada.
Ora, o que esta nos evidencia é que o Recorrente, gerente da sociedade insolvente, aproveitando um acordo celebrado com o Recorrido, também ele gerente, nos termos do qual lhe cabia a exclusiva gestão do identificado lote ...01, arrendou a terceiro, a título pessoal, uma fração que era propriedade da insolvente, recebendo ele próprio as respetivas rendas que nunca integrou no património da sociedade. Para além disso, tendo recebido, em numerário, rendas de outras duas frações que eram destinadas à sociedade, apropriou-se delas, também não as integrando no património da sociedade.
Estes singelos factos evidenciam que o Recorrente deu preferência aos seus interesses pessoais em detrimento dos interesses da sociedade, violando, de forma flagrante, o sobredito dever de lealdade.
Em primeiro lugar, quando passou a agir como se fosse proprietário de uma fração autónoma, que integrava o património societário, cedendo, a título pessoal, o gozo dela a terceiro, mediante o pagamento de uma remuneração.
Com este comportamento, inverteu o título da posse sobre tal fração e impediu a sociedade de obter, ela própria, a referida contrapartida e integrar a mesma no respetivo património.
É certo que foi dado como provado que a sociedade tinha celebrado um contrato-promessa de compra e venda da fração a terceiro, tendo recebido antecipadamente o pagamento do respetivo preço. Tendo este contrato-promessa sido revogado, por acordo entre as respetivas partes, foi o Recorrente quem reembolsou o preço adiantado pelo promitente-comprador. Em consequência, acordou (verbalmente) com o Recorrido, ocupar ele a posição de promitente-comprador.
Simplesmente, questões de forma à parte – o contrato-promessa e a cessão da posição contratual do promitente-comprador estavam, necessariamente, sujeitos a forma escrita: arts. 410/2 e 425 do Código Civil; o contrato-promessa estava ainda sujeito ao reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes e à certificação da existência de licença de construção do prédio em que se situava a fração (autónoma) prometida vender –, o que resulta da realidade ontológica é, quando muito, que: (i) o Recorrente era mero titular de um direito, de natureza obrigacional, de exigir da sociedade a venda da fração autónoma; (ii) não havia sequer um ato material de traditio à luz do qual lhe fosse permitido passar a comportar-se como se fosse já o seu proprietário; (iii) do adiantamento do preço decorria apenas o direito de, em caso de incumprimento por facto imputável à promitente-vendedora (a sociedade) o Recorrente obter a restituição do sinal em dobro.
Ainda que o contrato-promessa fosse nulo, por inobservância da forma legal, o que inquinaria o contrato pelo qual foi transmitida a posição jurídica de promitente-comprador, sempre recairia sobre a sociedade a obrigação de restituir os € 60 000,00 entregues pelo Recorrente ao promitente-comprador.
Dito de outra forma, em qualquer caso, o Recorrente seria credor da sociedade, o que não lhe permitia tomar posse do respetivo património, agindo como se este fosse seu. Ao fazê-lo, assim resolvendo em seu proveito, um patente conflito de interesses – de um lado, o seu interesse pessoal; do outro o interesse da sociedade –, o Recorrente infringiu, inequivocamente, o dever de lealdade, do que resultou uma privação do gozo da fração em questão por parte da sociedade, assim se substanciando o dano.
Em segundo lugar, ao receber as rendas das outras duas frações – estas já arrendadas pela própria sociedade – em dinheiro, deste se apropriando, sem o integrar no património da sociedade, o Recorrente apropriou-se de bens societários, também em evidente infração ao dever de lealdade para com a sociedade, que assim se viu privada de dinheiro de que era proprietária.
Ademais, infringiu o dever específico previsto no art. 63-C/1 da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17.12, que desde a redação introduzida pela Lei n.º 55-B/2004, de 30.12, estabelece que “[o] s sujeitos passivos de IRC, bem como os sujeitos passivos de IRS que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada, estão obrigados a possuir, pelo menos, uma conta bancária através da qual devem ser, exclusivamente, movimentados os pagamentos e recebimentos respeitantes à atividade empresarial desenvolvida.”
Como, a propósito, se pode ler em RC 7.03.2017 (698/09.4TBLSA-Z.C1), Vítor Amaral, “a Lei Geral Tributária (…) tem como campo de aplicação natural as relações jurídico-tributárias, as que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e os contribuintes (pessoas singulares e coletivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas). Assim, aquele art.º 63.º-C estabelece deveres/obrigações de pendor tributário, perante a Administração Tributária, mas não se esgota aí, a nosso ver, a eficácia da norma, pois que a LGT, com todos os seus preceitos que consagram direitos ou deveres, se insere no nosso sistema jurídico, cuja unidade a lei visa proteger (cf. art.º 9.º do CCiv.), constituindo a ordem jurídica vigente e atuante.”
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5).3.2. O Recorrente entende que a presunção de culpa decorrente da ilicitude resulta ilidida pelo facto de ter transferido para a conta bancária da sociedade a quantia de € 112 840,00.
É axiomático que esta pretensão carece de qualquer suporte.
Desde logo, desconhece-se a que título foram realizadas essas transferências e, bem assim, a origem dos capitais que delas foram objeto, pelo que o facto não serve para afastar a ilicitude.
Como se pode ler em STJ 11.11.2021 (37/08.1TBSCD.C2.S1), António Abrantes Geraldes, a propósito de um caso semelhante:
 “(…) o referido facto, por si só, é insuficiente para considerar a existência de algum crédito a favor do R. ou a existência de pagamento parcial de alguma dívida”. E acrescenta-se: “Nem por uma via [reembolso de suprimentos] nem pela outra [restituição do enriquecimento sem causa] é possível defender o abatimento do crédito da A. sobre o R., já que a consideração de suprimentos obedece a regras que não foram minimamente respeitadas e que não encontram o menor reflexo na matéria de facto provada. Suprimento constitui um contrato mediante o qual o sócio de sociedade por quotas empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir o que foi entregue; também pode traduzir o diferimento do vencimento de algum crédito para com a sociedade (art. 243º do CSC). Ora, no caso concreto, nada disto se apurou, não havendo qualquer facto que demonstre a que título foram feitos os depósitos em numerário por parte do R. nas contas da sociedade, sendo que a maior responsabilidade pela falta de demonstração é do próprio R. que, ao agir como agiu, no âmbito da gerência de facto da A. e da gerência da (…), Ld.ª, deu azo à confusão de massas patrimoniais, tornando indistinguíveis alguns movimentos efetuados e a razão por que ocorreram. Tão pouco vale para o caso o apoio complementar que a Relação pretendeu encontrar na figura do enriquecimento sem causa, figura que não pode ser utilizada sob qualquer pretexto e designadamente por simplesmente se desconhecer a razão de ser dos depósitos realizados. Para que seja feito uso desse instrumento de equilíbrio patrimonial regulado nos arts. 473º e ss do CC não basta que se apure a existência de uma transferência patrimonial de uma esfera para a outra, sendo necessário que se prove que da transferência resultou um enriquecimento de uma das partes e o empobrecimento da outra, ambos sem causa justificativa. Ora, não se provar a causa de uma transferência não equivale a considerar que a transferência é injustificada e que deva ser reposta na esfera do transferente. Perante aquele singelo facto não pode concluir-se que houve um empobrecimento do R. nem tão pouco que houve o correspondente enriquecimento da A. e muito menos que um e outro sejam injustificados.”
Depois, ainda que na base do facto estivessem empréstimos feitos à sociedade, para acorrer à falta de liquidez desta, sempre seria caso para dizer que o Recorrente mais não teria que o direito de crédito à restituição do tantundem, o que também não lhe conferia qualquer direito de se apropriar do património da sociedade, numa espécie de autotutela do seu interesse, mas apenas o direito de, pelas vias processuais adequadas, exigir o ato de cumprimento.
Um gestor minimamente criterioso e ordenado não podia deixar de saber que assim teria de ser, por o imporem as regras de contabilidade, o art. 63-C/2 da LGT - onde se diz que “[d]evem, ainda, ser efetuados através da conta ou contas referidas no n.º 1 todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimos e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos” - e, bem assim, o respeito pela separação das esferas patrimoniais. Deste modo, sem necessidade de outras considerações, tão evidente é a situação, temos de concluir que o Tribunal a quo apreciou a questão de forma correta, não incorrendo em qualquer erro jurídico.
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 5).4.1. Analisando agora a conduta do Recorrido, começamos por lembrar que o art. 73/1 do CSC prevê a solidariedade da responsabilidade dos fundadores, gerentes ou administradores perante a sociedade.
Como vimos, não se trata de uma fonte autónoma de responsabilidade dos administradores, que altere o critério de imputação de responsabilidade, tornando os administradores responsáveis por facto e culpa de outrem. Como ensinam J. M. Coutinho de Abreu / Maria Elisabete Ramos (“Art. 73.º”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 918), “[a] solidariedade abrange os administradores responsáveis, que o são por facto e culpa próprio. Ou seja, é importante apurar previamente se o administrador é responsável, se se verificam relativamente a ele os pressupostos da responsabilidade. Se a resposta for positiva, poder-se-á afirmar, em face do disposto no art. 73/1, a solidariedade entre os administradores responsáveis. Se, v.g., o órgão é composto por três administradores, mas só um atuou ilicitamente (e com culpa), não há qualquer solidariedade na responsabilidade, apenas este responde; se forem dois os que atuaram indevidamente, somente esses dois respondem solidariamente. (…) ainda que o órgão funcione colegialmente, daí não deriva necessariamente a responsabilidade (solidária) de todos os seus membros (cf. o art. 72/3). Não pode ser ignorado o elemento de garantia que atravessa a solidariedade passiva.” No mesmo sentido, António Menezes Cordeiro / A. Barreto Menezes Cordeiro (“Art. 73.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 357.
Assim, é necessário, para se concluir que Recorrente e Recorrido são responsáveis solidários, concluir-se pela verificação dos pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar em relação a este último.
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5).4.2. A resposta é simples: ainda que a passividade do Recorrido perante as condutas do Recorrente indique, em termos latos, um comportamento passivo desleal para com a sociedade, certo é que não foi esse comportamento, mas o comportamento ativo do Recorrente, a causa (única) do dano. Não foi, de facto, o Recorrido quem arrendou uma fração autónoma da sociedade como se coisa sua fosse. Também não foi o Recorrido quem se apropriou de dinheiro que era destinado à sociedade. Todos estes atos foram praticados (apenas) pelo Recorrente.
Sem necessidade de outras considerações, concluímos que também neste particular a decisão recorrida não incorreu no erro jurídico que lhe foi imputado pelo Recorrente.
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6). Improcedendo, in totum, o Recurso, o Recorrente deve suportar as custas respetivas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em (i) julgar o presente recurso improcedente e (ii) confirmar a sentença recorrida, sem prejuízo da alteração introduzida à decisão da matéria de facto no ponto 4).3.2, b), da Parte IV.
Custas pelo Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 2 de abril de 2025

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2.ª Adjunta: Susana Raquel Sousa Pereira



[1] De acordo com o preceituado no art. 639/1 do CPC, “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.” Daqui resulta claro que, conforme vem sendo assinalado pela jurisprudência, as conclusões da alegação do recurso devem ser um resumo, uma síntese, explícita e clara, das razões que o recorrente expôs na fundamentação das alegações, de modo a que delas se consigam captar as questões postas ao Tribunal ad quem, quais os supostos erros cometidos na decisão recorrida e quais os fundamentos por que se pretende obter a sua alteração ou revogação. No caso, verificamos que os 48 pontos das “conclusões” de recurso, alguns deles ocupando mais de duas páginas, ao invés de constituírem uma síntese da exposição apresentada nas respetivas alegações, são antes, na sua grande parte, uma repetição da fundamentação expressa no corpo da peça processual, reproduzindo inclusivamente parte do respetivo teor, com a transcrição integral de factos provados na sentença recorrida e de excertos de decisões dos tribunais superiores, assim dificultando, pela sua prolixidade, a perceção das questões que a Recorrente pretende ver decididas por este Tribunal. Não obstante, como tal deficiência não determina a rejeição do recurso com este fundamento – mas, de acordo com o disposto no n.º 3 do citado art. 639, o mero convite ao respetivo aperfeiçoamento – e como conseguimos, ainda assim, compreender a pretensão da Recorrente, de modo a evitar a prática de atos processuais inúteis, com o consequente dispêndio de meios e de tempo, optámos por limitar a transcrição às partes relevantes para que seja cumprida a finalidade da lei processual.
[2] Disponível em http://ru.juridicas.unam.mx/xmlui/handle/123456789/42415.
[3] Disponível, como os demais indicados sem menção expressa de local de publicação, em www.dgsi.pt.
[4] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Pinto de Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”