ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
LIMITE MÁXIMO
Sumário


O art. 23/10 do Estatuto do Administrador Judicial consagra um limite máximo absoluto aplicável à remuneração variável do administrador da insolvência como um todo e não um limite parcelar, relativo apenas à componente da remuneração variável sem a majoração prevista no n.º 7 do mesmo preceito.

Texto Integral


I. [1]
1).1. Por sentença de 4 de outubro de 2011, foi declarada a Insolvência da sociedade comercial EMP01..., SA, nomeada administradora da insolvência, decretada a apreensão dos bens da insolvente, agendada assembleia de credores e fixado em vinte dias o prazo para a reclamação de créditos.
Na sequência, realizou-se, no dia 28 de novembro de 2011, assembleia de credores, na qual foi aprovada a elaboração de um plano de insolvência.
Tal plano foi apresentado, aprovado pelos credores, em assembleia para esse efeito convocada, e homologado, por despacho de 13 de julho de 2012. Este veio, porém, a ser revogado por esta Relação, através de acórdão datado de 19 de fevereiro de 2013 (apenso G).
Entretanto, apresentadas as reclamações de créditos, foram reconhecidos, por sentença de 10 de fevereiro de 2016, créditos cujo montante total ascendeu a € 62 022 120,52 (apenso D).
Foram ainda reconhecidos, em ações de verificação ulterior de créditos, por sentenças de 9 de julho de 2013, créditos no montante de € 10 600,00 (apenso E) e de € 28 947,39 (apenso F).
Procedeu-se à liquidação dos bens que haviam sido apreendidos para a massa insolvente, a qual veio a ser encerrada, por despacho de 27 de outubro de 2022 (apenso B), sendo o total das receitas obtidas de € 4 334 439,05.
No dia 23 de outubro de 2023, a administradora da insolvência apresentou as contas, com o seguinte resumo final: Totais das receitas obtidas pela Massa Insolvente: € 4 334 439,0; Despesas suportadas pela Massa Insolvente: € 287 862,24; Saldo apurado a favor da Massa Insolvente: € 4 046 576,81; Despesas suportadas pela Administradora da Insolvência: € 10 349,43; Saldo apurado a favor da Massa Insolvente (após despesas suportadas pela AI): € 4.036.227,38; Valor correspondente às dispensas de pagamento da Venda de Imóveis Apreendidos: € 81.450,00.
As contas foram aprovadas, por sentença de 13 de dezembro de 2023, “com exceção das verbas referentes [a] despesas com comunicações e economato, nos valores de € 310,00 e € 697,50” (apenso R).

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1).2. Por requerimento apresentado a 12 de junho de 2024, nos autos de insolvência, a administradora da insolvência veio pedir que o valor final global da remuneração variável seja fixado em € 295 675,24, acrescido do respetivo IVA à taxa legal, o que justificou do seguinte modo (transcrição):

“* Valor do Resultado da liquidação da massa insolvente, apurado nos termos do n.º 6 do art.º 23.º do EAJ, ou seja, o Valor da liquidação da massa insolvente, deduzido das despesas da MI e da AI (conforme prestação de contas da AI) e das custas do processo de insolvência: 4.038.964,88 €
* 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, conforme b), do n.º 4, do art.º 23.º do EAJ – 4.038.964,88 € * 5% = 201.948,24 €
* O valor alcançado nos termos da b), do n.º 4, do art.º 23.º do EAJ é reduzido a 100.000,00 €, por aplicação do n.º 10, do art.º 23.º do EAJ.
* Total de créditos que foi satisfeito, ou seja, o Resultado da liquidação da massa insolvente, deduzido da Remuneração fixa do AI (com o correspondente IVA) e da Remuneração variável do AI a que alude o b), do n.º 4, do art.º 23.º do EAJ (com o correspondente IVA): 4.038.964,88 € - 2.460,00 € - 123.000,00 € = 3.913.504,88 €
* 5% do montante dos créditos satisfeitos, conforme n.º 7, do art.º 23.º do EAJ - 3.913.504,88 € * 5% = 195.675,24 €.”
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1).3. Depois de observado o contraditório, com oposição do credor EMP02..., SA, e do Ministério Público, foi proferido o seguinte despacho, datado de 24 de setembro de 2024 (transcrição):

“Sob a Ref.ª ...90, veio a Senhora AI, além do mais, apresentar cálculo de remuneração variável, que liquida em € 295.675,24, acrescida do IVA à taxa legal.
Aberta vista ao MP, pelo Digno Magistrado do Ministério Público foi dito opor-se ao cálculo apresentado, no que concerne à majoração do artigo 23º, n.º 7 da Lei 22/2013, já que sustenta que a majoração terá de atender ao grau de satisfação dos créditos reclamados e reconhecidos, sob pena de não ser esta proporção devidamente acautelada.
A credora EMP02..., S.A. pronunciou-se no mesmo sentido do MP, invocando, ademais, jurisprudência que entende ser o limite de € 100.000,00 a que alude o artigo 23º, n.º 10 do EAJ aplicável à remuneração total, designadamente à majoração constante do n.º 7 do mesmo artigo.
Cumpre decidir.
Prevê o art. 23º do Estatuto dos Administradores Judiciais, na sua atual redação, aplicável aos presentes autos, por força do disposto no art. 10º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, no que aqui importa que: “4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes: (…) b) 5 % do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6. (…) 6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 % do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.”
Vejamos agora o cálculo que entendemos correto, desde logo acompanhando o entendimento vertido no acórdão TRG, de 29/02/2024, processo n.º 537/19.8T8VNFE. G1, relatado por Maria João Matos e integralmente disponível em www.dgsi.pt.
Nos presentes autos, o resultado da liquidação, para efeitos de cálculo da remuneração variável referida nos n.ºs 4 e 6, ascende a € 3.913.504,88 [€ 4.038.964,88 - € 2.460,00 - € 123.000,00 (dívidas da massa)].
Cumpre calcular a remuneração variável a que alude o artigo 23º, n.º 4, al. b) do EAJ € 3.913.504,88 x 5% = € 195.675,24 x 23% (IVA) = € 240.680,55.
Portanto, € 240.680,55 seria o valor da 1ª componente da remuneração variável.
Contudo, em hipótese alguma esse valor pode exceder € 100.000,00, por força do disposto no artigo 23º, n.º 10 do EAJ, sem prejuízo do que infra se dirá.
Haverá agora que calcular a majoração a que alude o mesmo artigo 23º, n.º 7 do EAJ.
Temos que foram reconhecidos créditos no valor global de € 62.061.667,90 e que a liquidação permite satisfazer apenas € 3.813.504,88 (por dedução do valor máximo da parcela de remuneração variável já calculada), o que traduz um grau de satisfação dos credores de 6,14%.
Aplicando esta percentagem ao valor disponível para pagamento aos credores (€ 3.813.504,88), temos o valor de € 234.149,20.
Sobre este valor haverá, então, de calcular a majoração de 5% a que alude o n.º7 do artigo 23º do EAJ, resultando um valor de € 11.707,46, a que acresce o IVA à taxa de 23%, no montante global de € 14.400,18.
O mesmo será dizer que a remuneração variável global ascenderia a 111.707,46, acrescida do IVA.
Contudo, acompanhando o entendimento vertido no acórdão supra citado, que remete para muitos outros no mesmo sentido, o limite a que alude o artigo 23º, n.º10 do EAJ aplica-se à totalidade da remuneração variável, pelo que o valor da remuneração variável devida à Sra. A.I. fica limitada ao valor de € 123.000,00, com IVA já incluído, valor que fixo.”
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3). Inconformada, a administradora da insolvência (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

“1. Vem o presente recurso do douto despacho proferido pelo tribunal recorrido, sob a referência citius 192305349, na parte em que limitou a remuneração variável da recorrente, prevista na alínea b) do n.º 4 e n.º 7, ambos do artigo 23.º, da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro, com fundamento no disposto no artigo n.º 10 da mesma norma.
2. Assim, a divergência com o tribunal recorrido prende-se com a formula de cálculo da remuneração variável do administrador de insolvência, prevista no artigo 23.º da Lei n.º22/2013, de 26 de fevereiro, mais concretamente com a interpretação da norma contida no n.º 10 do referido artigo, quanto ao limite da remuneração variável, se aplicável à sua totalidade, como entende o tribunal recorrido, ou apenas à remuneração variável determinada em função do resultado da liquidação, excluindo deste limite a majoração prevista no n.º 7, como entende a recorrente.
3. Nos termos dos artigos 22.º do EAJ e artigo 60.º, n.º 1 do CIRE, o administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas.
4. A remuneração fixa encontra-se prevista no artigo 23.º, n.º 1, do EAJ, que fixou o valor de 2.000,00 €, paga em duas prestações de igual montante, vencendo-se a primeira na data da nomeação e a segunda seis meses após tal nomeação, mas nunca após a data de encerramento do processo.
5. Por sua vez, a remuneração variável encontra-se prevista no artigo 23.º, n.ºs 4 a 11, do EAJ.
6. A determinação da remuneração variável do administrador de insolvência obedece a duas operações sequenciais, uma primeira que faz incidir uma percentagem de 5% sobre o resultado da liquidação, deduzida das dividas da massa insolvente, e uma outra de majoração de 5 % sobre o valor apurado, ou seja, uma majoração de 5% sobre os créditos da massa prontos e disponíveis para pagamento aos credores reclamantes e como tal reconhecidos no processo.
7. Findas as operações de liquidação da massa insolvente, a recorrente apresentou nos autos proposta de remuneração variável, tendo em consideração as disposições legais acima citadas, ou seja, uma componente determinada de acordo com a alínea b) do n.º 4 e n.ºs 5 e 6 do artigo 23.º, no montante de 240.680,55 €, mas limitada ao valor de 100.000,00 €, atento o disposto no n.º10, e uma segunda componente, a majoração, determinada de acordo com o previsto no n.º 7, que o tribunal fixou em 11.707,46 €, mas que também acabou por não reconhecer, pois excedia o limite previsto no n.º 10, que a recorrente não aceita.
8. E não se pode aceitar pois a interpretação que o tribunal recorrido fez do n.º 10 do artigo 23.º do EAJ carece de total falta de apoio na letra da lei, para além de desvirtuar os objetivos prosseguidos pelo legislador com a alteração desta norma.
9. O legislador ao acolher no ordenamento jurídico interno a diretiva comunitária que visou agilizar a tramitação dos processos de insolvência no espaço europeu, teve por objetivo o implementar um novo e justo incentivo remuneratório aos administradores de insolvência que premiasse a célere e eficiente liquidação da massa insolvente.
10. Por isso, a interpretação do tribunal recorrido quanto ao n.º 10 do artigo 23.º do EAJ não pode ser aceite, não só porque não tem respaldo no texto da lei, mas também porque foi expressa intenção do legislador reformular o antigo modelo de calculo da remuneração variável do administrador de insolvência, fazendo-o depender do resultado da liquidação da massa insolvente, na dupla vertente do valor apurado para a liquidação e de valor disponível para liquidação.
11. Por outro lado, a interpretação proposta pela recorrente pressupõe a existência simultânea de dois travões à remuneração do administrador de insolvência, um previsto no n.º 8 e outro no n.º 10 da mesma norma, o que contraria não só a lógica da necessidade da existência de um duplo travão sobre a mesma remuneração, pois com apenas um se atingiria o mesmo objetivo.
12. A tese defendida pelo tribunal recorrido sustenta que a remissão prevista no n.º 10 para a alínea b) do n.º 4 deve ser interpretada “habilmente”, no sentido de abranger não apenas a remuneração variável resultante do apuramento da liquidação, mas sim a totalidade da remuneração variável, incluindo a resultante da majoração, pois o legislador ao remeter para a alínea b) do n.º 4 fê-lo por oposição à remuneração do administrador judicial provisório em processo especial de revitalização, prevista na alínea a) do mesmo número.
13. É sabido que o legislador, por vezes, tem dificuldades em expressar corretamente o seu pensamento, como é um claro exemplo as dificuldades sentidas com a interpretação da norma contida no n.º 7 do artigo 23.º, o que é por todos reconhecido.
14. Contudo, a tese adotada pelo tribunal recorrido e o exercício de “habilidade” interpretativa do n.º 10 do artigo 23.º extravasam, e muito, as normais dúvidas que se exigem a qualquer prudente aplicador do direito, pois essa interpretação não tem o mínimo acolhimento no elemento literal da norma, que aponta muito claramente para a limitação apenas se aplicar à remuneração variável obtida no apuramento do resultado da liquidação, prevista no n.º 4.
15. Se a intenção do legislador fosse a de impor um teto à remuneração global do administrador de insolvência, tal propósito resultaria de modo expresso não só na exposição de motivos que precedeu e justificou a alteração da lei, no qual o legislador anunciou com muita clareza as razões e objetivos prosseguidos com a revisão legislativa, mas acima de tudo tê-lo-ia feito na letra da lei, pois tecnicamente seria muto simples expressar essa limitação sem qualquer tipo de dúvida interpretativa.
16. A tese adotada pelo tribunal recorrido pressupõe que se elimine parte escrita da norma, em concreto o elemento literal “calculada nos termos da alínea b) do n.º 4”, de modo a que se conclua que a limitação se impõe à totalidade da remuneração variável do administrador de insolvência, e não apenas à remuneração variável alcançada em função do resultado da liquidação.
17. Ou seja, a tese da recorrente pressupõe uma interpretação ab-rogante da norma.
18. Esta forma de interpretação havia já sido rejeitado pela jurisprudência dominante no que respeita ao diferendo que resultou quanto ao n.º 7 e à interpretação do elemento literal “em função do grau de satisfação”,
19. Não havendo qualquer razão para, quanto ao caso concreto do n.º 10, também não se seguir idêntico entendimento quanto à impossibilidade de interpretação ab-rogante da norma, no sentido da eliminação do elemento literal que aponta muito claramente para que a limitação da remuneração apenas se aplica à remuneração variável alcançada em função do resultado da liquidação e não à totalidade da remuneração, ou seja, incluindo a majoração da remuneração variável.
20. Um último argumento se pode opor à tese do tribunal recorrido, que é a de prever a convivência simultânea de dois travões à remuneração do administrador de insolvência, um previsto no n.º 8 e outro no n.º 10, ambos do artigo 23.º do EAJ.
21. Este seria um caso em que legislador não só se teria expressado mal, mas também de modo ilógico, ao contemplar dois travões sobre o mesmo facto e na mesma norma.
22. O que o legislador pretendeu, e fez constar em letra de lei, foi apenas o de limitar uma das componentes da remuneração variável, precisamente a obtida com o resultado da liquidação, pois essa não tem aparentemente associada um qualquer coeficiente de satisfação dos credores,
23. E deixar livre a remuneração variável calculada em função do grau de satisfação dos credores, essa sim obtida em razão da eficiência das funções exercidas pelo administrador judicial, no objetivo primordial do processo de insolvência de potenciar ao máximo o reembolso dos créditos reclamados pelos credores, tal como dispõe o n.º 1 do artigo 1.º do CIRE.
24. O legislador deixou incólume a redação do n.º 8, anterior n.º 6, esse sim o único travão à remuneração variável total do administrador de insolvência, não fazendo sentido que após prever um limite a essa remuneração, que é de 50.000,00€, logo previsse um outro limite, desta feita com o valor de 100.000,00 €.
25. Pelo que, seria de todo redundante a existência simultânea destas duas normas com o sentido proposto pelo tribunal recorrido, pois bastaria, e basta, a limitação proposta no n.º 6 para prevenir eventuais excessos remuneratórios resultantes da aplicação da fórmula legal e que desvirtuassem os objetivos prosseguidos pelo legislador.
26. Deste modo, tendo o tribunal recorrido limitado a remuneração variável da recorrente ao valor de 100.000,00 €, com fundamento no disposto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ e, assim, excluído a totalidade da respetiva majoração, determinável nos termos do n.º 7 da mesma norma, o despacho em causa é ilegal por violação de lei, pelo que deverá ser substituído por outro que fixe a remuneração variável da recorrente com a inclusão da totalidade do valor da respetiva majoração.”
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4). A credora EMP02..., SA, apresentou resposta, em que pugnou pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.
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5). O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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6). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
Tendo isto presente, a questão que se coloca no presente recurso consiste em saber se a decisão recorrida, ao estabelecer um limite de € 100 000,00 para toda a remuneração variável devida à Recorrente, incorreu em erro de interpretação e aplicação da norma do n.º 10 do art. 23 do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ), aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26.02, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11.01, devendo ser revogada e substituída por outra que restrinja aquele limite à componente prevista na alínea b) do n.º 4 do mesmo preceito – ou, dito de outra forma, que não o aplique à componente relativa à majoração da remuneração.
Na resposta a esta questão iremos considerar os factos relativos ao iter processual que ficaram descritos no ponto 1) do Relatório que constitui a Parte I deste Acórdão.
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III.
1). Tanto o art. 60/1 do CIRE, como o art. 22 do EAJ, estabelecem que o administrador da insolvência tem direito à remuneração e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis ao exercício das funções que lhe foram cometidas.
O modo de fixação dessa remuneração varia consoante o administrador judicial tenha sido nomeado pelo juiz ou escolhido pela assembleia de credores[2]. Na primeira situação, deve observar-se o estabelecido no art. 23 do EAJ; na segunda, o que for deliberado pelos credores antes da nomeação, conforme prescreve o art. 24 do mesmo diploma.
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2) Uma vez que estamos perante uma situação em que o administrador da insolvência – a ora Recorrente – foi nomeado pelo juiz, centremos a atenção no citado art. 23 do EAJ, no qual, sob a epígrafe “Remuneração do administrador judicial nomeado por iniciativa do juiz”, se diz atualmente, na redação introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11.01, que:

“1 – O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro).
2 – Caso o processo seja tramitado ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração referida no número anterior é reduzida para um quarto.
3 – Sem prejuízo do direito à remuneração variável, calculada nos termos dos números seguintes, no caso de o administrador judicial exercer as suas funções por menos de seis meses devido à sua substituição por outro administrador judicial, aquele apenas aufere a primeira das prestações mencionadas no n.º 2 do artigo 29.º
4 – Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 /prct. Da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 /prct. Do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
5 – Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
6 – Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 – O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. Do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
8 – Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.
9 – À remuneração devida ao administrador judicial comum para os devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo, nomeado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplica-se o limite referido no número anterior acrescido de (euro) 10 000 por cada um dos devedores do mesmo grupo.
10 – A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).
11 – No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.”
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3). Antes de avançarmos, convém deixar claro que, conforme foi entendido pelo Tribunal a quo – sem expressão de dissenso por parte da Recorrente – é à luz desta atual redação do art. 23 do EAJ, já vigente aquando do encerramento da liquidação, que a situação deve ser resolvida, por força da norma de direito transitório especial consagrada no art. 10.º/1 da Lei n.º 9/2022. Neste sentido, a propósito de situações em que, ao contrário da vertente, a liquidação foi encerrada antes da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, vide RL 20.09.2022 (9849/14.6T8LSB-E.L1-1), Fátima Reis Silva, e RL 24.01.2023 (2051/12.3TYLSB-G.L1-1), Manuela Espadaneira Lopes.
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4). Prosseguindo, diremos que do preceito citado resulta que a remuneração devida ao administrador judicial tem uma natureza mista, sendo constituída de uma parte fixa, no montante de € 2 000,00, e por uma parte variável, esta calculada em função dos resultados da liquidação da massa insolvente e assente num regime de prémios em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.
Conforme escreve Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 81), compreende-se a intenção do legislador: “a parte fixa permite maior certeza na remuneração e a parte variável constitui como que uma motivação para o bom exercício da atividade.”
Por outro lado, o art. 29 do EAJ estabelece, no seu n.º 1, que “[s]em prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 52.º e no n.º 7 do artigo 55.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pela massa insolvente”, sendo, assim, uma dívida da massa insolvente (art. 51/1, b), do CIRE). E acrescenta, nos seus n.ºs 2 e 5, que a parte fixa “é paga em duas prestações de igual montante, vencendo-se a primeira na data da nomeação e a segunda seis meses após tal nomeação, mas nunca após a data de encerramento do processo”, e a parte variável, quando relativa ao produto da liquidação da massa insolvente, “é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo.”
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5).1. Quanto aos critérios de determinação da parte variável, como vimos, o art. 23/4, b), do EAJ estabelece que a mesma corresponde a “5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.”
Este n.º 6 diz que para “efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.”
Esta é, portanto, a primeira operação matemática a realizar com vista à determinação do valor da remuneração variável, como judiciosamente se escreve no Acórdão desta Secção de 29.02.2024 (537/19.8T8VNF-E.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Pinto de Matos, com a intervenção da aqui 2.ª Adjunta, Juíza Desembargadora Rosália Cunha.
O legislador recorre, assim, ao conceito de resultado da liquidação, tomando-o como a base de cálculo ou o critério de referência para determinação da remuneração variável devida.
Esse resultado é obtido mediante a subtração ao “montante apurado para a massa insolvente” dos montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
Aquela primeira parcela (“montante apurado para a massa insolvente”) assenta numa “fórmula em si mesma ambígua” que Luís Carvalho Fernandes / João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª ed., Lisboa: Quid Juris, 2015, p. 349) tomam como sinónimo do resultado da liquidação, o que faz todo o sentido: a liquidação, processada por apenso (art. 170 do CIRE), consiste, essencialmente, na venda de bens e cobrança de créditos que compõem a massa insolvente – que se constituem como atos de liquidação (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 449) –, com a finalidade de converter o património que a integra numa quantia pecuniária destinada à satisfação dos credores, conforme proclama o art. 1.º/1 do CIRE.
Assim, como se considera no citado aresto (RG 29.02.2024), recorrendo às contas da liquidação, já necessariamente prestadas e aprovadas, concluímos que um dos fatores da equação prevista pelo art. 23/4 do EAJ corresponde ao montante das receitas obtidas pelo Administrador da Insolvência para a massa insolvente, “quaisquer que elas sejam e qualquer que seja a respetiva origem.”
Determinado esse primeiro valor (produto da liquidação), deduz-se depois do seu montante, “como valores passivos, digamos, as dívidas da massa insolvente, mas não todas. Na verdade, não são consideradas, nessa dedução, a remuneração fixa do administrador e as custas de processos judiciais pendentes na data da declaração da insolvência. Contudo, em vista da redação do n.º 4, já é deduzida a parte variável da remuneração do administrador, prevista no n.º 2” (Luís Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência cit., p. 349).
O saldo corresponde ao resultado da liquidação, sobre ele incidindo uma taxa de 5%.
Obtemos, deste modo, a primeira componente da remuneração variável do administrador da insolvência.
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5).2. De seguida, há que atentar no n.º 7 do art. 23 do EAJ, onde se pode ler que o “valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.”
É esta a “segunda operação matemática” (cf. citado RG 29.02.2024) a realizar com vista à determinação do valor da segunda componente da remuneração variável.
Na base desta majoração está a intenção do legislador em estimular a diligência do administrador da insolvência no sentido de obter para os bens da massa insolvente o valor mais alto possível. Assim, Luís Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência cit., p. 349.
É aqui que começam as dúvidas.
Desde logo quanto a saber como interpretar o conceito de “montante dos créditos satisfeitos.”
Para uma corrente, que se apresenta como minoritária ao nível da jurisprudência, está em causa o montante dos créditos a satisfazer ou, dito de outra forma, dos créditos reclamados e reconhecidos. Neste sentido, RL 20.09.2022 (9849/14.6T8LSB-E.L1-1); RL 20.12.2022 (415/13.4TYLSB-E.L1-1) e RL 20.12.2022 (22770/19.2T8LSB-F.L1-1), todos relatados por Fátima Reis Silva. Também RP 10.01.2013 (3454/20.5T8STS-K.P1), RP 7.03.2023 (965/15.8T8AMT-E.P1) e RP 19.09.2023, o primeiro relatado por Alexandra Pelayo e os últimos relatados por Artur Dionísio Oliveira. Na doutrina, Nuno Marcelo de Freitas Araújo (“A remuneração do Administrador Judicial depois das alterações da Lei n.º 9/2022, de 11-01. Parte II - A remuneração variável, Data Venia, ano XI, n.º 14, pp. 22-76[3]), Alexandre de Soveral Martins (“A propósito da remuneração variável do administrador da insolvência nomeado pelo juiz: pequenos grandes problemas”, RLJ, Ano 152, n.º 4039, págs. 273-288) e Raul Gonzalez (“A remuneração do administrador judicial - novas questões suscitadas, AAVV, Seminário sobre Insolvência - 2023, Lisboa: CEJ, 2023, pp. 39-56[4]).
Para outra corrente, está em causa a percentagem dos créditos satisfeitos relativamente aos créditos reclamados e admitidos, exigindo, por isso, a realização de uma operação aritmética prévia destinada a apurar aquele grau de satisfação.
É esta a orientação claramente maioritária na jurisprudência, designadamente na da 6.ª Secção do STJ (a única com competência nesta matéria).
Assim, vide os seguintes arestos da 6.ª Secção do STJ: 18.04.2023 (3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1), 16.05.2023 (453/11.1TBCDN-M.C1.S1) e 17.10.2023 (1892/19.5T8AVR-L.P1.S1), todos relatados por Maria Olinda Garcia. Também, 2.11.2023 (476/12.3TYLSB-K.L1.S1) e 2.11.2023 (1027/13.8TYVNG-K.P1.S1), ambos relatados por Ricardo Costa. Finalmente, STJ 16.01.2024 (345/17.0T8OLH-F.E1.S1), relatado por Luís Espírito Santo.
Ao nível da jurisprudência das Relações, vide: RC 22.09.2022 (2495/20.7T8ACB.C1), Maria Catarina Gonçalves, RC 28.09.2022 (2495/20.7T8ACB.C1), Maria Catarina Gonçalves, RE 29.09.2022 (260/14.0TBVTR.E1), Tomé de Carvalho, RC de 11.10.2022 (3947/08.2TJCBR-AY.C1), Arlindo Oliveira, RP 11.10.2022 (2631/20.3T8OAZ-E.P1), João Diogo Rodrigues), RC 25.10.2022 (318/12.0TBCNT-V.C1), Emídio Santos, RC 09.11.2022 (462/12.3TJCBR-AF.C1), Helena Melo, RE 15.12.2022 (1157/17.7T8OLH-M.E1), Maria Domingas Simões, RL 20.12.2022 (7269/14.1T2SNT-F.L1), Manuela Espadaneira Lopes, RL 24.01.2023 (2051/12.3TYLSBG.L1-1), Manuela Espadaneira Lopes, RP 24.01.2023 (1910/17.1T8STS-F.P1), Rodrigues Pires, RC 28.03.2023 (1529/12.3TBPBL-J.C1), Emídio Santos, RE 30.03.2023 (1456/15.4T8OLH-L.E1), Tomé de Carvalho, RP 18.04.2023 (1027/13.8TYVNG-K.P1), João Ramos Lopes, RP 18.04.2023 (1024/10.5TYVNG-N.P1), Fernando Vilares Ferreira, RL 2.05.2023 (29823/11.3T2SNT-L.L1-1), Isabel Fonseca, RE 11.05.2023 (4233/17.2T8STBG.E1), José Manuel Barata, e RE 7.03.2024 (2344/19.9T8STR-E.E1.), Tomé de Carvalho.  Igualmente, RL 4.07.2023 (416/11.7TBHRT-G.L1-1), Fátima Reis Silva, e RP 19.03.2024 (1375/14.0TBVCD-T.P1), Artur Dionísio Oliveira, que reviram o entendimento expresso em arestos anteriores no sentido da primeira corrente, por razões de uniformidade jurisprudencial e segurança jurídica.
É também esta a jurisprudência desta 1.ª Secção da RG, à qual cabe a apreciação dos recursos em matéria de comércio, expressa nos seguintes arestos: 25.05.2023 (601/22.6T8VRL-A.G1), José Carlos Pereira Duarte, 25.05.2023 (3465/20.0T8VIS-G.G1), José Carlos Pereira Duarte, RG 10.07.2023 (690/14.7TBVVD-I.G1), Maria Eugénia Pedro, RG 12.10.2023 (2102/16.2T8CHV-I.G1), José Carlos Pereira Duarte (com intervenção do ora Relator, como 2.º Adjunto), RG 7.12.2023 (2898/14.6TBBTG-W.G1), José Alberto Moreira Dias, RG 19.12.2023 (26/14.7T8ALJ-R.G1), Pedro Maurício, RG 29.02.2024 (2509/22.6T8GMR-E.G1), Rosália Cunha, aqui 2.ª Adjunta;  RG 11.07.2024 (751/23.1T8VCT-E.G1), Fernando Barroso Cabanelas, e RG 16.05.2024 (142/16.0T8VLN-F.G1), Fernando Barroso Cabanelas (com intervenção do ora Relator como 2.º Adjunto).
Não sendo esta a questão que se coloca no recurso – quer o Tribunal a quo, quer a Recorrente defendem a correção do segundo entendimento, ao qual aderimos –, é despicienda a exposição dos argumentos, pelo que prosseguimos com a etapa seguinte, que é aquela que importa para dar resposta à questão decidenda.
***
5).3. Uma vez apurado o montante correspondente a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente e calculada a respetiva majoração, há que verificar se se mostram respeitados os limites máximos da remuneração determinada, sejam de natureza eventual, por ponderação das especificidades do caso concreto, sejam de natureza absoluta.
Com efeito, lê-se no art.º 23.º, do EAJ, que: se, “por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções” (n.º 8); e a “remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro)” (n.º 10).
Há, assim, lugar a uma “terceira operação matemática” (citado RG 29.02.2024), embora de natureza eventual (apenas quando a remuneração exceder o montante de € 50 000,00), por forma a que se fixe casuisticamente (tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções) uma parte (em excesso) da remuneração (a fim de se obter um resultado inferior ao que resultaria da singela aplicação dos critérios legais), somando-a depois à outra parte (cujo apuramento decorreu, precisamente, da aplicação dos ditos critérios legais).
Em qualquer caso, se o montante obtido for superior a € 100 000,00, haverá que aplicar o limite máximo absoluto, surgindo então a questão de saber se este tem em vista a remuneração variável total (compreendendo, portanto, a majoração), funcionando como limite da mesma, tal como foi entendido na decisão recorrida, ou se incide apenas sobre a parcela achada com a operação de cálculo prevista na al. b) do n.º 4 e no n.º 6 do mesmo artigo, conforme sustenta a Recorrente.
Quid inde?
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5).3.1. Dir-se-ia, numa primeira abordagem, que a letra da lei, ao aludir à “remuneração calculada nos termos da al. b) do nº4”, sem fazer qualquer menção à majoração, esta prevista no n.º 7, parece dar arrimo à tese da Recorrente. Este é o entendimento de Raul Gonzalez (A remuneração do administrador judicial cit., p. 48).
Simplesmente, a interpretação da lei não se cinge ao elemento literal. Conforme proclama o art. 9.º/1 do Código Civil, nessa tarefa, o intérprete deve procurar “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”
Ora, partindo desta premissa, a 6.ª Secção do STJ produziu já jurisprudência sobre a questão, toda ela no sentido que foi sufragado na decisão recorrida, a saber:
STJ 1.10.2024 (14878/16.2TBLSB-G.L1.S1), Maria Olinda Garcia;
STJ 17.12.2024 (380/12.5TYVNG-N.P1.S1), Luís Espírito Santo;
STJ 14.01.2025 (1663/15.8PDL.Y.L1.S1), Maria Olinda Garcia;
STJ 13.02.2025 (578/12.6TYLSB-M.L1.S1), Luís Espírito Santo.
De acordo com esta jurisprudência – à qual, data venia, aderimos – a norma em causa (n.º 10 do art. 23 do EAJ), ao estabelecer que “a remuneração calculada nos termos da alínea b) do nº 4 não pode ser superior a € 100 000,00”, refere-se ao total da remuneração variável, incluindo, portanto, a sua majoração, “o que resulta do facto de o disposto no número 7 do mesmo preceito se encontrar direta e intrinsecamente relacionado com o seu nº 4, onde se prevê a remuneração variável do administrador da insolvência sobre que poderá incidir a dita majoração, não havendo justificação alguma para destrinçar, em termos de limite final e global, entre estas duas vertentes da dita (e única) remuneração variável” (Ac. de 13.02.2025).
Com efeito, o legislador refere-se ao conceito de remuneração (do administrador da insolvência) reportando-se à sua remuneração global nos termos que constam do art. 60 do CIRE – onde se prevê precisamente que “[o] administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis” – e do art 23/1 do EAJ, onde se diz que “[o] administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de € 2 000,00.”  Nenhuma dúvida se pode colocar quanto à circunstância de a majoração da remuneração fazer parte integrante do próprio conceito de remuneração, sem qualquer tipo de autonomia relativamente a esta. Deste modo, afigura-se-nos que o n.º 10 do art. 23 do EAJ tem exatamente a mesma natureza e alcance, ou seja, o de referir-se à remuneração global, enquanto limite final e absoluto, compreendendo a remuneração variável e a majoração (que também se integra na remuneração variável) que seja devida.
A própria inserção sistemática da norma que estabelece o limite absoluto, na parte final do mesmo preceito, só pode querer significar que se trata de uma operação a realizar na fase derradeira da sequência de procedimentos utilizados com vista ao apuramento da remuneração global a atribuir ao administrador da insolvência.
No fundo, estamos perante duas realidades (remuneração variável e sua possível majoração) que obedecem, lógica e intrinsecamente, ao mesmo regime jurídico e que se encontram unitariamente subordinadas à mesma limitação final e global (não superior a € 100 000,00). Isto significa que o legislador, atuando em conformidade com a coerência que se impunha, estabeleceu um limite total à remuneração variável acrescida da majoração, ao mesmo tempo em que permitiu ao juiz reduzir, justificadamente, a remuneração variável em si (desde que superior a € 50 000,00).
Neste sentido, é elucidativa a passagem de STJ 1.10.2024 que aqui respigamos:
“(…) a alínea b) do n.º 4 não encerra, em si mesma, um critério de cálculo definitivo, já que o critério nela previsto tem de ser completado pelo disposto no n.º 6 (que fornece a noção de resultado da liquidação). E o n.º 7 estabelece um complemento (uma majoração) do valor alcançado por aplicação do n.º 6.
Existe, assim, uma sequência articulada de disposições [n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7] que traçam o alcance normativo do que deve ser entendido por remuneração variável em caso de liquidação da massa insolvente.
Neste quadro, do ponto de vista da coerência teleológica da norma, não seria compreensível que o legislador fixasse um limite de 100.000 Euros para a primeira parcela da remuneração variável (a que é calculada nos termos do n.º 6), mas que tal limite já não valesse para a segunda parcela (a majoração prevista no n.º 7), que é um complemento da primeira. Efetivamente, a majoração (atualmente prevista no n.º 7) foi, desde a Lei n.º 22/2013 (então prevista no n.º 5 do artigo 23º), legalmente consagrada como um complemento remuneratório da parcela que correspondia a 5% do resultado da liquidação, permitindo, assim, ao administrador receber um valor mais elevado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.
Assim, percebendo a relação entre as duas componentes da remuneração variável, seria incoerente e ilógico fixar um limite máximo à primeira parcela e, depois, continuar a complementar essa parcela com a majoração. E ainda mais ilógico seria entender que esta segunda parcela não teria qualquer limite.
Acresce que, como bem se refere no acórdão recorrido, faria pouco sentido que o legislador não tivesse pretendido aplicar o limite do n.º 10 à parcela da majoração quando, nos termos do n.º 8, o juiz tem o poder de reduzir (de forma justificada) toda a remuneração variável que exceda 50.000 Euros.”
Perante a clareza desta argumentação – e não esquecendo que, como resulta do art. 14 do CIRE, a intervenção do STJ em matérias de insolvência visa a orientação da jurisprudência, em nome da certeza e segurança na aplicação do direito – resta concluir, citando o aresto de 13.02.2025, que a tese, sustentada pela Recorrente, de que o limite previsto no nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial (€ 100 000,00) se aplica exclusivamente à remuneração variável do administrador da insolvência e não à sua majoração “carece de base legal - e mesmo de razoabilidade.” Com efeito, o limite de € 100 000,00, tal como se encontra fixado no art. 23/10 do EAJ, “expressa efetivamente o teto máximo aplicável à remuneração variável do administrador da insolvência, entendida globalmente, como um todo, e não apenas o limite parcelar relativo à componente da mesma remuneração sem a majoração.”
Ao nível da jurisprudência desta Secção da RG pode ver-se, com esta interpretação da lei, o já citado Acórdão de 29.02.2024 (537/19.8T8VNF-E.G1) e o Acórdão de 18.04.2024 (724/22.1T8VCT-H.G1), também relatado por Maria João Pinto de Matos, tendo como Adjuntos José Carlos Pereira Duarte e José Alberto Moreira Dias.
Deste modo, sem necessidade de outras considerações, concluímos que a resposta à questão enunciada é negativa, assim improcedendo o recurso.
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6). Vencida, a Recorrente deve suportar as custas do recurso (art. 527/1 e 2 do CPC).
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em (i) julgar o presente recurso improcedente e (ii) confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 2 de abril de 2025

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Susana Raquel Sousa Pereira
2.ª Adjunto: Rosália Cunha


[1] Para a elaboração do Relatório, procedeu-se à consulta dos autos de insolvência e respetivos apensos através da aplicação informática de apoio à atividade dos Tribunais (Citius).
[2] O art. 24 do CIRE contém uma imprecisão ao referir-se à nomeação do administrador pela assembleia de credores, uma vez que o ato tem sempre de ser praticado pelo juiz, podendo, porém, a escolha ser feita pela assembleia de credores. Assim, Luís Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª ed., Lisboa; Quid Juris, 2015, p. 324, nota 2, e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra: Almedina., 2019, p. 89, nota 247.
[3] Disponível em DataVenia 14 “ A remuneração do Administrador Judicial. Parte II – A remuneração variável [pp 27-76].
[4] Disponível em cej.justica.gov.pt.