I – A massa insolvente não abrange os bens isentos de penhora, isto é os absoluta ou totalmente impenhoráveis e também os relativamente impenhoráveis, a não ser que, quanto a estes, o devedor os apresente voluntariamente.
II – No que toca ao saldo bancário é impenhorável o valor global correspondente ao salário mínimo nacional, não podendo este integrar a massa insolvente.
III – Assim, não pode o Banco cativar ou recusar ao insolvente a movimentação do dinheiro que se encontra depositado na sua conta, até ao valor do salário mínimo nacional.
Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro – J3
Apelação
Recorrentes: AA e BB
Recorridos: Banco 1..., SA e Banco 2..., SA
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira e Maria Eiró
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Os autores AA e BB intentaram ação declarativa de condenação em processo comum contra os réus Banco 2... e Banco 1..., alegando em resumo que:
Os autores foram declarados insolventes em março de 2019, ocorrendo a exoneração do passivo restante com despacho final em 13.3.2023.
Em março de 2022 fizeram, com dinheiro emprestado por familiares, uma viagem a ....
Quando partiram tinham na conta bancária a quantia de 719,00€.
No momento em que iam pagar a conta de um restaurante, não o conseguiram fazer, porque a operação foi recusada.
O facto de não conseguirem efetuar o pagamento causou-lhes angústia e constrangimento.
Quando chegaram a Portugal, constataram que o valor da conta tinha sido bloqueado por decisão do Banco 2..., dado ter tido conhecimento da situação de insolvência, o que foi feito centralmente, pelo Banco 1..., ligado ao Banco 2....
Por ordem do fiduciário, foi o saldo desbloqueado.
A situação repetiu-se em julho de 2022.
Os réus tiveram uma conduta ilícita e abusiva, causando danos não patrimoniais aos autores.
Concluem, pedindo que a presente ação seja julgada procedente por provada e que, em consequência, sejam os réus condenados a pagar a cada um dos autores a quantia de 26.000,00€ por danos não patrimoniais sofridos.
Citado os réus, estes contestaram, impugnando os factos invocados pelos autores e alegando, em resumo, que:
O bloqueio da conta foi feito, ao abrigo de normas legais e para salvaguarda dos credores do insolvente.
Concluem assim pedindo a improcedência da ação.
Procedeu-se à elaboração despacho saneador, à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas de prova.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
Por fim, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os réus do pedido formulado.
Inconformados com o decidido, interpuseram recurso os autores, os quais finalizaram as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª A decisão recorrida não teve em conta os seguintes dados incontroversos, que se requer sejam tidos em conta pelo tribunal ad quem:
1. O salário mínimo em 2022 era de 705€;
2. No momento em que a conta bancária foi bloqueada o saldo era de 501,10€;
3. 150 dirames marroquinos, correspondem a cerca de 15€ (+ ou -);
4. Nem o Banco 1... nem o Banco 2... eram credores dos autores, ora recorrentes;
5. Não havia ordem nem do Fiduciário, nem do Tribunal de cativação de quaisquer valores, sendo que o fiduciário mandou, nas duas vezes que os réus cativaram a conta, de imediato, desbloqueá-la;
6. O Acórdão do STJ referido na decisão do tribunal a quo, considerou obrigatoriamente isento de penhora um valor correspondente ao Salário Mínimo Nacional.
2ª Nos termos do artigo 738º, nºs 1 e 3 do Código Processo Civil o salário mínimo é impenhorável e o valor que estava na conta dos autores e mandado bloquear era inferior ao salário mínimo nacional.
3ª O valor do SMN é a referência por pessoa e o casal dos autores ora recorrentes, são duas pessoas pelo que nunca o valor de referência poderia ser um salário.
4ª Não sendo os réus credores dos autores o argumento de que procediam para salvaguarda dos credores é falso e serve apenas para parecer [que] são moralmente superiores, apesar da indiferença que revelam pelo facto de deixarem, sem aviso, a conta de pessoas que não conhecem a zero, ou perto do zero.
5ª O tribunal terá considerado que houve na conta dos autores, ora recorrentes, depósitos superiores ao salário mínimo nacional, mas fê-lo sem factos, sem dizer em que montantes foi excedido o SMN, com que depósitos e quando foram feitos, porque não existe na matéria de facto provada e os RR nenhuma prova fizeram da existência de depósitos superiores ao valor do SMN.
6ª Os réus arrogaram-se administradores de um direito que por lei (art. 81º do CIRE) é cometido ao administrador de insolvência, pelo que usurparam poderes e funções e a usurpação de funções é um crime público previsto e punido pelo artigo 358º do Código Penal.
7ª Portanto, mesmo que direito tivessem, e não têm, o seu exercício, neste caso, é claramente abusivo porque fere o mais elementar sentido de justiça.
8ª O Acórdão do STJ a que o tribunal a quo faz referência, deixa muito claro que o valor do SMN é intocável.
9ª Os danos não patrimoniais referidos no referido Acórdão e os provados nestes autos não são comparáveis: não é necessária muita sensibilidade para se perceber que estando os autores sozinhos num país estrangeiro, sem qualquer tipo de conhecimentos, sem possibilidade de pagar uma quantia correspondente a 15€, sem falar a mesma língua, sem ajudas, sem saber como sair da situação absolutamente constrangedora, porque ameaçados com a chamada de polícia, os danos não patrimoniais nada têm a ver com a constatação, em Portugal, de que foi cativado um saldo de conta, onde é possível recorrer a amigos, familiares e em tempo útil, evitar situações embaraçosas.
10ª Os danos não patrimoniais sofridos pelos autores são consequência direta da atitude ilícita dos réus, são graves e devem ser ressarcidos tendo em conta a situação patrimonial dos lesantes e dos lesados.
11ª A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 738º nº 1 e 3 do Código de Processo Civil, artigos 483º e 496º do Código Civil, subsidiariamente o artigo 334º do mesmo Código Civil e ainda os artigos 81º e 239º nº 3 b) i do CIRE, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que acolha a pretensão dos autores.
Os réus apresentaram resposta, na qual se pronunciaram pela confirmação do decidido.
Formularam as seguintes conclusões:
1. A Douta Sentença recorrida julgou de forma exemplar o litígio;
2. Após terem sido declarados insolventes e em pleno período de exoneração do passivo restante, os Apelantes decidiram alocar parte do dinheiro que tinham disponível para fins lúdicos, nomeadamente para viajar para ...;
3. Não há certeza de que os Apelantes tenham frequentado qualquer restaurante em ..., onde alegadamente não terão conseguido pagar a despesa de um almoço;
4. É impossível de estabelecer um nexo de causalidade entre o hipotético acontecimento e os eventuais danos “alegados” (mas não provados), nomeadamente no estado de saúde dos Apelantes;
5. Não tendo os Autores, ora Apelantes, alegado quaisquer danos não patrimoniais, não existem quaisquer danos não patrimoniais provados;
6. O alegado pelos Apelantes é vago e genérico, enquadrável em qualquer minuta de ação em que se peticionem danos morais;
7. Não concretizando os Apelantes de que forma sofrem agora de mais stress, estão angustiados e mais nervosos do que alguma vez foram, e necessitam de novo acompanhamento médico e de tomar ansiolíticos;
8. A Recorrente BB não é titular da conta bancária aqui em causa;
9. Os Recorridos sempre agiram de acordo com a lei, normativos e diretivas em vigor;
10. A atuação dos Recorridos não merece qualquer reparo ou censura, antes pelo contrário;
11. Os Recorridos atuaram neste, como nos demais processos de insolvência, com o fim último e único de cumprir a lei e salvaguardar a satisfação dos direitos dos credores da insolvência;
12. O bloqueio de contas, a débito e com as salvaguardas legais, é o mecanismo adequado para salvaguardar a satisfação dos direitos dos credores;
13. Sendo que a notícia, mediante publicação de edital no portal Citius, da declaração de insolvência gera, desde logo, um conjunto de procedimentos implementados pelos Bancos – sistema bancário em geral – com vista à salvaguarda dos direitos dos credores;
14. Consequentemente – e de forma automática – surgem alterações na esfera de atuação do cliente bancário insolvente, nomeadamente no acesso aos respetivos fundos, no montante que ultrapasse o valor do salário mínimo nacional;
15. Tem entendido a jurisprudência que, ainda que o Administrador da Insolvência não decrete a apreensão de contas dos insolventes, estes ficam privados de movimentar a referida conta na medida em que exceda o valor do salário mínimo nacional;
16. Só deixando de o estar mediante uma instrução expressa do Administrador de Insolvência, do Fiduciário ou do Tribunal;
17. Medida que se mantém no período compreendido entre o despacho inicial de exoneração e o despacho final de exoneração do passivo restante, a menos que haja indicação, necessariamente prévia, do Fiduciário em sentido contrário – o que não foi manifestamente o caso.
18. A Douta Decisão recorrida deve ser mantida na integra, com as legais consequências.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
Apurar se os réus devem ser condenados a pagar aos autores indemnização por danos não patrimoniais sofridos.
1 – Os autores são casados entre si desde ../../1987.
2 - Foram declarados insolventes por decisão proferida em 03 de Outubro de 2019, transitada em julgado, com despacho final de exoneração do passivo restante de 10 de março de 2023.
3 – Por força do processo de insolvência foi-lhes nomeado fiduciário o Dr. CC.
4 - No dia 24 de março de 2022 iniciaram uma viagem a ....
5 – No dia 24.03.2022, e após um crédito no valor de Euro 400,00, a conta ficou com um saldo bancário no valor de Euro 501,10€
6 – No dia seguinte, após o almoço, quando se preparavam para pagar a conta do restaurante, no valor de 150 dirames, constataram que a operação foi recusada.
7 – O autor marido tentou levantar dinheiro numa caixa multibanco, mas a operação foi igualmente recusada.
8 – Os autores não dispunham naquele local e momento de qualquer outro meio de pagamento, nem tinham qualquer pessoa conhecida a quem pudessem recorrer no local.
9 – A situação causou-lhes angústia e constrangimento, tendo chegado a ser ameaçados com a polícia e impedidos de se movimentar dentro do restaurante.
10 – A conta acabou por ser paga por pessoas que se encontravam no local e que, para tanto, se prontificaram.
11 – Os Autores regressaram a Portugal em 28 de março de 2022.
12 – Contactaram o banco e souberam que o valor da conta tinha sido bloqueado, por decisão do Banco 2..., dado ter tido conhecimento da situação de insolvência.
13 - O bloqueio foi feito pelo Banco 1... de quem o Banco 2... dependia, para o efeito.
14 – Esse bloqueio foi feito sem ordem ou indicação expressa do tribunal ou do fiduciário.
15 - Os Bancos encontram-se vinculados a procedimentos internos, um dos quais é a sinalização automática, no sistema informático bancário, dos clientes declarados insolventes.
16 - Assim, a mera declaração de insolvência no portal Citius gera, por cruzamento de informação a partir do N.I.F./Nome do insolvente, e de forma automática, a perda do acesso, por parte do cliente bancário insolvente, aos respetivos fundos, no montante que ultrapasse o valor do salário mínimo nacional.
17 - O desbloqueio dos saldos cativos no referido enquadramento, fica dependente de uma instrução, seja um Administrador de Insolvência, um Fiduciário ou do próprio Tribunal.
18 - A referida sinalização mantém-se no período compreendido entre o despacho inicial de exoneração e o despacho final de exoneração do passivo restante, a menos que haja indicação do Fiduciário em sentido contrário.
19 - O bloqueio ocorreu no dia 25.03.2022.
20 - Dos 400,00€ referidos em 5 ficaram imediatamente cativos, por via do procedimento descrito de 15 a 18 dos factos provados, 240,00€, pelo que, do valor total de Euro 501,10€ estavam apenas disponíveis Euro 261,10€.
21 - Já no dia 25, e após ter sido efetuada uma compra no valor de Euro 127,50 (24.03.2022), foi efetuado um levantamento bancário no valor de Euro 101,75€,
22 - Pelo que, considerando a cobrança de comissões e impostos sobre comissões inerentes aos levantamentos efetuados no estrangeiro, a conta bancária ficou sem fundos disponíveis para assegurar o pagamento de uma conta de 150,00 dirames.
23 – Em 04 de Abril de 2022, considerando os factos descritos, o autor marido apresentou reclamação ao banco.
24 – Reclamação que teve a seguinte resposta:
“Após análise, verifica-se que consta no Portal Citius o seguinte processo em fase de despacho inicial de exoneração do passivo:
Proc. 3226/19.08AVR,
Insolventes: AA – NIF ...09 e BB – NIF ...89
Administrador de Insolvência. CC
Tribunal: Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Aveiro, Juiz 1
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25 – Pediram os autores a intervenção do fiduciário em 04 de Abril de 2022.
26 - No dia 04 de abril de 2022, os Serviços Centrais do Banco 1..., através do Departamento de Meios Operacionais / Gestão de Ofícios e Entidades (DMO/GOE), responsável pelo tratamento de penhoras e insolvências contactou o Sr. Administrador de Insolvência/Fiduciário, solicitando-lhe instruções quanto ao desbloqueio da conta.
27 - O Fiduciário contactou o banco e solicitou, o desbloqueio do montante cativo, fazendo a reserva, de que:
“Só na eventualidade de existir associada a esta conta quaisquer aplicações ou saldos bancários significativos (ex: contas a prazo e demais aplicações) deverão os mesmos ficar apreendidos à ordem da Massa Insolvente”
28 – Em 05 de abril de 2022 o autor apresentou queixa no Portal do Cliente Banco 1....
29 – Tendo obtido resposta do seguinte teor:
Exmo Senhor:
Temos presente a sua exposição efectuada junto do Banco de Portugal, sobre um cativo existente na sua conta de depósito à ordem junto do Banco 2..., a qual mereceu a nossa melhor atenção.
Informamos que, tal como é do seu conhecimento, o cativo resultava de um processo de insolvência e o descativo foi efectuado após rececionarmos ofício do administrador de insolvência, sendo que o banco só pode descativar ou desbloquear o montante mediante ofício do AI ou do tribunal
30 – Em Julho de 2022, o Banco 2... voltou a cativar do montante que estava na conta – 619,94€ -, a quantia de 615,00€, deixando disponível a quantia de 4,94€.
31 – O que motivou nova intervenção do fiduciário.
32 - Em 14 de julho, o Fiduciário deu indicação expressa de que a conta não deveria ser objeto de valores cativos, “(…) salvo instruções em contrário”
33 – Ao verem-se impossibilitados de usar a conta, único rendimento de que dispunham, quer em ..., quer em Portugal, os autores sentiram-se ofendidos, maltratados e humilhados.
Não se provou que:
a) No dia 24 de março, quando partiram, os Autores tivessem na conta bancária a quantia de 719,00€.
b) – O sucedido em ... motivasse acompanhamento médico e a tomada de ansiolíticos.
c) No momento referido nos pontos 6 a 8 dos factos provados, os autores dispusessem de um cartão bancário alternativo da Revolut.
1. Nos presentes autos discute-se se o bloqueio da conta efetuado por decisão do Banco 2..., que depende do “Banco 1...”, por ter tido conhecimento da situação de insolvência dos autores, foi lícito, ou, se não o tendo sido, fez incorrer estas entidades bancárias em responsabilidade civil e na consequente obrigação de indemnizar os danos causados.
Na sentença recorrida entendeu-se que atuação das rés não foi ilícita e, por isso, julgou-se a ação improcedente, o que teve a discordância dos autores em sede recursiva.
Vejamos então.
2. De acordo com o estatuído no art. 36º, nº 1, al. g) do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE] na sentença que declarar a insolvência o juiz decreta a apreensão para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no nº 1 do art. 150º deste mesmo diploma.
Por seu turno, no art. 46º, nº 1 do CIRE estabelece-se que a massa insolvente se destina à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – cfr. art. 81º, nº 1 do CIRE.
Todavia, há a realçar que esta indisponibilidade apenas se verifica no tocante aos bens integrantes da massa insolvente.
Ora, conforme preceitua o art. 46º, nº 2 do CIRE, «os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.»
Da conjugação entre os nºs 1 e 2 do art. 46º do CIRE “resulta que, em rigor, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor suscetíveis de avaliação pecuniária mas tão só os que forem penhoráveis, e não excluídos por disposição especial em contrário, acrescidos dos que, não sendo embora penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo devedor, conquanto a impenhorabilidade não seja absoluta” – cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “CIRE Anotado”, 2º ed., pág. 304.
E mais adiante os mesmos autores (ob. cit., págs. 304/305) acrescentam que “quando o devedor insolvente voluntariamente apresentar bens relativamente impenhoráveis eles passam irreversivelmente a fazer parte da massa não podendo mais ser desafetados dela enquanto o processo decorrer”. “Já se os bens são absolutamente impenhoráveis, a entrega voluntária constitui um ato inválido. Por um lado eles não devem ser recebidos e, por outro, se o forem serão sempre recuperáveis”.
Daqui se conclui que a massa insolvente não abrange os bens isentos de penhora, isto é os absoluta ou totalmente impenhoráveis e também os relativamente impenhoráveis, a não ser que, quanto a estes, o devedor os apresente voluntariamente.
3. Há, porém, bens parcialmente penhoráveis, como sucede, por exemplo, com o saldo bancário, em que é impenhorável o valor global correspondente ao salário mínimo nacional, conforme decorre do art. 738º, nº 5 do Cód. Proc. Civil[1].
Ora, esse valor impenhorável, que no saldo bancário corresponde ao salário mínimo nacional, não pode integrar a massa insolvente para os efeitos do art. 46º do CIRE.
Este regime que só beneficia as pessoas singulares, visa tutelar as condições mínimas de sobrevivência do executado. Justifica-se na medida em que, por regra, a quantia detida pelo executado ou transferida para a sua conta bancária é aplicada, em primeira linha, nas despesas de subsistência do próprio e do respetivo agregado familiar – cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 107.
De resto, se fosse admissível a penhora da totalidade do saldo de depósito bancário, poder-se-ia dar o caso de esse saldo corresponder, na sua totalidade, ao depósito ou à transferência de um salário mensal, logrando-se, por essa via, penhorar a totalidade do salário, quando a lei não o permite – cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, “Lições de Processo Executivo”, 2106, pág. 261.
Por conseguinte, o saldo da conta bancária aqui em causa acha-se parcialmente isento de penhora, no que toca ao valor correspondente ao salário mínimo nacional, donde decorre que os insolventes não estão privados de administrar e dispor desse valor, que à data dos factos ascendia a 705,00€ mensais[2], não fazendo parte da massa insolvente.
Deste modo, não podendo o Banco cativar ou recusar ao insolvente a movimentação do dinheiro que se encontra depositado na sua conta, até àquele valor, terá que se concluir que a atitude que as entidades bancárias assumiram ao bloquear a conta, impedindo a sua movimentação, se tratou de um ato ilícito, por não respeitar o disposto nos arts. 46º e 81º, nº 1 do CIRE – cfr. Ac. STJ de 9.3.2022, p. 9237/20.5 T8LSB.L1.S1, relator ANTÓNIO MAGALHÃES, disponível in www.dgsi.pt.
4. Na sentença recorrida escreveu-se que “caso haja depósitos superiores ao salário mínimo nacional, as entidades bancárias, conhecedoras da apreensão determinada na sentença de insolvência, poderão bloquear os saldos bancários.”
E depois, sem outros considerandos, concluiu-se que a decisão das rés no sentido do bloqueio da conta não fora ilícita e, por esse motivo, sustentou-se não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Cremos que para extrair esta conclusão a Mmª Juíza “a quo”, embora não o tenha escrito, deverá ter considerado que ocorreram na conta dos autores depósitos que terão excedido o salário mínimo nacional.
Tal como já atrás antecipámos, e salvo melhor entendimento, não concordamos com esta posição, desde logo porque esta não se coaduna com a matéria de facto dada como provada.
Com efeito, resultou provado o seguinte:
- No dia 24.3.2022, e após um crédito no valor de 400,00€, a conta ficou com um saldo bancário no valor de 501,10€ [nº 5];
- O bloqueio da conta ocorreu no dia 25.3.2022 [nº 19];
- Dos 400,00€ referidos em 5 ficaram imediatamente cativos 240,00€, pelo que, do valor total de 501,10€, estavam apenas disponíveis 261,10€ [nº 20];
- O bloqueio foi feito pelo Banco 1... de quem o Banco 2... dependia, para o efeito, tendo-se concretizado sem ordem ou indicação expressa do tribunal ou do fiduciário [nºs 14 e 15];
- No dia 25.3.2022 foi efetuado um levantamento bancário no valor de 101,75€, sendo que no dia anterior – 24.3.2022 – tinha sido realizada uma compra no valor de 127,50€ [nº 21];
- No dia 25.3.2022, após o almoço, quando os autores se preparavam para pagar a conta do restaurante, no valor de 150 dirames, constataram que a operação foi recusada [nº 6];
- Em Julho de 2022, o Banco 2... voltou a cativar do montante que estava na conta – 619,94€ -, a quantia de 615,00€, deixando disponível a quantia de 4,94€, o que motivou nova intervenção do fiduciário [nºs 30 e 31].
Ora, perante esta factualidade, constata-se não estar demonstrado que na conta dos autores tenha sido feito qualquer depósito em montante superior ao valor do salário mínimo nacional.
A conta, em 24.3.2022, tinha um saldo de 501,10€, inferior ao salário mínimo nacional, e os autores, nesse dia, efetuaram uma compra no valor de 127,50€ e já no dia 25.3.2022 procederam ao levantamento de 101,75€.
A despesa com o almoço nesse dia 25.3.2022 ascendia a 150 dirames[3], o que correspondia a uma quantia aproximada a 15,00€, para a qual os insolventes, não fora a cativação realizado pelo Bancos aqui em causa, dispunham de fundos na sua conta.
Já em Julho de 2022 a conta tinha um saldo de 619,94€, também inferior ao valor do salário mínimo nacional.
5. Assim, divergindo da sentença recorrida, na sequência do que já se referiu anteriormente, entendemos que as entidades bancárias, aqui rés, ao bloquearem a conta, impedindo que os insolventes movimentassem o dinheiro que nela se encontrava depositado, que era inferior ao salário mínimo nacional, incorreram simultaneamente em responsabilidade contratual e extracontratual.
Responsabilidade contratual, porque ao não permitirem a movimentação da conta bancária dos insolventes até ao valor do salário mínimo nacional, os réus praticaram um ilícito contratual, uma vez que incumpriram a obrigação de restituir parte da quantia depositada decorrente do próprio contrato de depósito bancário.
Responsabilidade extracontratual, porque as entidades bancárias, com a sua atuação, violaram as disposições conjugadas dos arts. 46º, nºs 1 e 2 e 81º, nº 2 do CIRE.
Ocorrendo concurso de responsabilidades, deve prevalecer a contratual, aplicando-se o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual, solução que se tem tido como a mais ajustada aos interesses do lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada - cfr. Ac. STJ de 7.3.2017, p. 6669/11.3TBVNG.S1, relator GABRIEL CATARINO, disponível in www.dgsi.pt.
6. Prosseguindo, há a referir que os autores reclamaram a título de indemnização por danos não patrimoniais a importância global de 52.000,00€, sendo 26.000,00€ por cada um deles.
Estatui o art. 496º, nº 1 do Cód. Civil que «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».
Escrevem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação a este preceito (in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 499): “Não se enumeram os casos dos danos não patrimoniais que justificam uma indemnização. Diz-se apenas que devem merecer, pela sua gravidade, a tutela do direito. Cabe, portanto, ao tribunal, em cada caso, dizer se o dano é ou não merecedor da tutela jurídica.”
Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar-se, por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem.
A avaliação da gravidade destes danos tem de fazer-se segundo um padrão objetivo e não à luz de fatores subjetivos, de tal modo que, conforme ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (in ob. e loc. cit.), “os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais”.
Tal como não o justificam os sofrimentos ou desgostos que resultam de uma sensibilidade anómala.[4]
O dano não patrimonial relevante, para efeitos indemnizatórios, mesmo que não seja apenas aquele que é exorbitante ou excecional, terá que ser sempre um dano considerável, que saia da mediania, que ultrapasse as fronteiras da banalidade.[5]
7. Passemos agora ao caso concreto.
Resulta da matéria de facto assente[6] que os autores ao verem-se impedidos, como consequência do bloqueio da conta efetuado pelos Bancos réus, de procederem ao pagamento do almoço, em ..., no dia 25.3.2022, não dispondo no local de qualquer outro meio de pagamento e não tendo aí qualquer pessoa conhecida a quem pudessem recorrer, sofreram angústia e constrangimento. Tanto mais que chegaram a ser ameaçados com a chamada da polícia e impedidos de se movimentar dentro do restaurante – nºs 6 a 9.
Sentiram-se com a impossibilidade de usar a conta ofendidos, maltratados e humilhados – nº 33.
Manifesto é que, mesmo não se tendo provado que após o sucedido os autores passaram a ter acompanhamento médico e a tomar ansiolíticos, nos encontramos perante um dano não patrimonial que sai da mediania e que, pela sua gravidade, justifica a tutela do direito.
Basta visualizar o ocorrido em ..., em que dois cidadãos portugueses, impedidos de usar a conta e assim pagar o almoço que tinham acabado de consumir são confrontados com a ameaça da chamada da polícia e impedidos de se movimentar no restaurante.
Ou seja, em país estrangeiro, rapidamente surge um ambiente de hostilidade para com os autores, que, isolados e sem terem o mínimo controlo sobre a situação criada, lhes causa, inevitavelmente, um sentimento de angústia e uma sensação de constrangimento.
Ora, o ressarcimento destes danos não patrimoniais que cremos ser inequívoco será feito de acordo com um juízo equitativo – cfr. art. 496º, nº 4 do Cód. Civil.
Esse juízo equitativo, porém, afasta-nos totalmente das verbas excessivas e pouco razoáveis, que foram reclamadas pelos autores – 52.000,00€, sendo 26.000,00€ por cada um deles.
Assim, a importância ressarcitória deverá ter em conta a natureza pontual do incidente ocorrido em ..., seguramente muito constrangedor, mas que não se projetou, nem era natural que se projetasse, em consequências duradouras no plano médico.
Neste contexto, cremos ajustada a tal ressarcimento a quantia de 1.500,00€ por cada um dos autores, totalizando a importância de 3.000,00€.
8. Antes de finalizar, é de referir que as considerações feitas pelos réus/recorridos, nas suas contra-alegações, sobre a circunstância de os factos em causa nos presentes autos terem ocorrido no decurso de uma viagem a ... realizada pelos autores/insolventes, que beneficiaram de exoneração do passivo restante, durante o respetivo período de cessão, não são de valorizar.
Convém aqui salientar que das obrigações a que os insolventes ficaram sujeitos no período de cessão, previstas no art. 239º, nº 4 do CIRE, não consta qualquer obrigação de não movimentação e de não realização de viagens, porventura lúdicas, para país estrangeiro.
Mesmo que se possa estranhar a realização desta viagem, efetuada para país próximo geograficamente e pelo curto período de quatro dias, certo é que com a mesma os insolventes não violaram obrigação a cujo cumprimento estivessem adstritos, e tanto é assim que por despacho proferido em 10.3.2023 viram estes ser-lhes concedido definitivamente o benefício da exoneração do passivo restante.
9. Deste modo, o recurso interposto pelos autores obterá parcial procedência, com a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene os réus, solidariamente, no pagamento da importância total de 3.000,00€ por danos não patrimoniais sofridos, sendo 1.500,00€ para cada um dos autores.
A esta importância acrescerão juros de mora à taxa legal de 4%[7], os quais, uma vez que o valor agora arbitrado se considera atualizado à data do presente acórdão, serão devidos apenas a partir desta.[8]
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Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos autores AA e BB e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida que se substitui por outra que condena, solidariamente, os réus “Banco 1..., SA” e “Banco 2..., SA” a pagar aos autores, a título de danos não patrimoniais sofridos, a importância total de 3.000,00€ (três mil euros) – 1.500,00€ para cada um dos autores -, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão até integral pagamento.
As custas, em ambas as instâncias, serão suportadas na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário que se mostra concedido aos autores.
Porto, 8.4.2025
Eduardo Rodrigues Pires
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
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[1] É a seguinte a redação deste preceito: «Na penhora de dinheiro ou de saldo bancário, é impenhorável o valor global correspondente ao salário mínimo nacional ou, tratando-se de obrigação de alimentos, o previsto no número anterior.» [quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo]
[2] Dec. Lei nº 109-B/2022, de 7.12.
[3] Em março de 2022, 1 euro correspondia a 10,682 dirhans marroquinos – cfr. Exchange-rates.org.pt/histórico.
[4] Cfr. ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., pág. 601.
[5] Cfr. Ac. STJ de 24.5.2007, p. 07A1187, relator ALVES VELHO, disponível in www.dgsi.pt.; GABRIELA PÁRIS FERNANDES, “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral”, UCP Editora, pág. 359.
[6] Importa referir que a matéria de facto está definitivamente assente por não ter sido objeto de impugnação, sendo certo que os réus sempre a poderiam ter impugnado ao abrigo do art. 636º, nº 3 do Cód. Proc. Civil.
[7] Cfr. Portaria nº 291/2003, de 8.4.
[8] Cfr. AUJ nº 4/2002, de 19.5. e também, por ex., Ac. Rel. Porto de 27.9.2018, p. 75/10.4 TBAMT.P1 (DEOLINDA VARÃO), disponível in www.dgsi.pt.