DESTITUIÇÃO DE GERENTE
JUSTA CAUSA
Sumário

I - Numa sociedade por quotas com apenas dois sócios, sendo ambos também os seus únicos gerentes, a destituição de um deles das funções de gerência, com fundamento em justa causa, só pode fazer-se através de ação de destituição [prevista no art. 1055º do CPC] intentada por um deles contra o outro, como estabelece o nº 5 do art. 257º do CSC.
II - O conceito de justa causa, previsto no nº 6 do art. 257º do CSC, deve assentar numa ideia de quebra de confiança da sociedade relativamente ao seu gerente, resultante da violação grave, por este, de deveres de cuidado e/ou de lealdade a que está obrigado por lei ou pelo contrato social, ou por incapacidade ou inaptidão [superveniente] para o exercício normal das respetivas funções, quando tal violação ou incapacidade tornem inexigível a manutenção da relação orgânica que o liga à sociedade.
III - Se desde sempre [desde a constituição da sociedade, há mais de 20 anos] foi unicamente o requerente que dirigiu a vida da sociedade, por nunca ter permitido que a requerida nela interferisse, não constitui justa causa para destituição desta o facto de ela não frequentar a sede da empresa há vários anos, não participar ativamente na gestão da mesma, nem ter noção da sua situação de gestão e económico-financeira.
IV - Apresentando-se a procuração que a requerida emitiu a favor da filha, concedendo-lhe todos os poderes de gerência que lhe competem na sociedade, como um «remédio» para manutenção desta [o requerente, por ter sido condenado (por decisão final de 21.10.2020), por crime de violência doméstica cometido contra a requerida, numa pena acessória de proibição de a contactar por qualquer forma ou de dela se aproximar durante o período de três anos, não poderia gerir a sociedade em conjunto com a requerida, caso esta estivesse habitualmente na sede daquela ou decidisse participar nas respetivas assembleias gerais], não pode a sua existência ser, ao mesmo tempo e antagonicamente [não obstante a ilegalidade da procuração e os eventuais vícios de que poderão ser afetados os atos em que a procuradora/representante da requerida tenha intervenção], causa de inexigibilidade da manutenção da relação de gerência da requerida com a sociedade, por violação do que dispõe o nº 6 do art. 252º do CSC.
V - Não constitui justa causa de destituição o facto de a requerida, no mesmo dia em que, em assembleia geral, com o voto do requerente [representativo de 55% do capital social], foi deliberada a sua destituição da gerência e a perda da respetiva remuneração, sua única fonte de rendimento, ter procedido ao levantamento, em numerário, de determinada quantia da conta de depósito à ordem titulada pela sociedade [ficando esta temporariamente desprovida de liquidez], na medida em que esta atuação se reconduz à figura do estado de necessidade previsto no art. 339º do CCiv. [existe ofensa do direito de propriedade da sociedade sobre o referido montante; a apropriação levada a cabo pela requerida constituiu meio necessário para afastar um perigo atual, concretamente o de ficar sem meios para prover à sua subsistência (sendo que foi devido ao que foi deliberado na dita assembleia que a requerida ficou privada da única fonte de rendimento que tinha) e, no confronto entre os dois bens em questão (o direito à subsistência da requerida e o direito de propriedade da sociedade sobre a mencionada quantia), o relativo à requerida apresenta-se manifestamente superior (diz respeito à sua vida e saúde), prevalecendo sobre o dano suportado pela sociedade, tanto mais que o montante em questão se revela pouco significativo].

Texto Integral

Proc. 980/22.5T8VNG.P1 – 2ª Secção (apelação)


Relator: Des. Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Ramos Lopes
Des. Alexandra Pelayo



* * *






Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:



I. Relatório:

AA instaurou a presente ação especial de jurisdição voluntária de destituição de titulares de órgãos sociais contra BB, ambos devidamente sinalizados nos autos, pedindo a destituição desta, com justa causa, das funções de gerente na sociedade comercial A..., Lda. e a imediata suspensão de a mesma exercer as suas funções de gerência.
Alegou, para tal e em síntese, que são casados um com o outro, encontrando-se em processo de divórcio; que constituíram a sociedade A..., Lda., da qual são gerentes, mas que sempre foi o requerente que dirigiu a vida da sociedade; que, desde 2015, a requerida vem adotando condutas [que descreve] que lesam a boa imagem e honra do requerente e prejudicam as relações de negócio participadas pela sociedade, bem como a situação financeira e a credibilidade desta; que a requerida não frequenta a sede da empresa há vários anos e não participa ativamente na gestão da sociedade, tendo, inclusive, outorgado, a favor da filha CC, uma procuração com poderes gerais para a representar na qualidade de gerente da referida sociedade, limitando-se a auferir a remuneração mensal que lhe está fixada.

A , citada, deduziu oposição [em articulado com 379 artigos], defendendo-se por exceção e por impugnação motivada.
No primeiro caso, invocou:
- as exceções dilatórias da ilegitimidade do requerente [por a ré ter um direito especial à gerência na dita sociedade, atribuído pelos sócios no pacto social, e a pretensão que deduz estar dependente de prévia deliberação dos sócios, nos termos do art. 257º nº 3 do CSC, não constando dos autos prova da existência dessa deliberação, nem de concessão de poderes para a instauração da ação] e da sua própria ilegitimidade passiva [por entender que, nos termos do art. 257º nº 4 do CSC, a ação devia ter sido intentada contra a sociedade, o que não aconteceu];
- e a exceção perentória da prescrição do direito de ação [por esta não ter sido instaurada no prazo fixado no art. 254º do CSC];
No segundo, alegou factualidade tendente a demonstrar que a relatada pelo requerente não corresponde à verdade e que não se verificam os pressupostos para a sua suspensão e destituição da gerência da mencionada sociedade, invocando, ainda, que aquele atua em manifesto abuso de direito.
Pugnou, por isso, pela procedência das exceções, com as legais consequência e, assim não se entendendo, pela sua absolvição do pedido e improcedência da ação.

Concedida ao requerente [ao «abrigo do princípio do contraditório e do poder/dever de gestão processual e da flexibilização ínsita à adequação formal»] a possibilidade de se pronunciar, por escrito, sobre a matéria de exceção deduzida pela ré na contestação, o mesmo nada disse.

Foi proferido despacho que:
- Julgou improcedentes as exceções dilatórias da ilegitimidade ativa e da ilegitimidade passiva arguidas pela requerida na contestação;
- Julgou parcialmente procedente a exceção perentória da prescrição do direito de ação – procedente quanto ao alegado nos arts. 27º a 37º da petição inicial aduzidas pela ré e improcedente quanto ao mais –, também aduzida pela requerida.

Determinou-se a produção conjunta da prova destinada ao conhecimento da providência cautelar de suspensão da requerida do exercício da gerência e da ação de destituição da mesma das funções de gerente, com justa causa.

Realizou-se a audiência de produção da prova e, após, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, quanto aos dois pedidos formulados pelo requerente e absolveu a requerida dos mesmos.

Inconformado com o sentenciado, interpôs o requerente o presente recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes [prolixas] conclusões [que se transcrevem, incluindo com os destaques a negrito e a sublinhado]:
«A. A decisão aqui posta em crise, não pode merecer a nossa concordância, porque assente em factos provados e não provados, que assim não podiam resultar face à prova produzida.
B. Nos casos de impugnação, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
C. Contudo, caberá também à Relação analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidente e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
D. E como adiante se demonstrará sem qualquer margem de dúvida, a decisão factual do Tribunal a quo baseia-se numa livre convicção, mas não objetivada numa fundamentação compreensível. Não temos, pois, dúvidas de que as provas indicadas impõem uma outra convicção.
E. Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que caberá a esse Venerando Tribunal fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, no caso em apreço, pela irrazoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado e por não provado o que se deu por não provado.
F. Na aplicação do princípio da livre apreciação da prova oralmente produzida, emergente dos princípios da imediação e da oralidade, atende-se aos factos que as testemunhas relatam por forma convincente, diretamente percecionados pela testemunha e relatados por forma coerente, racional e escorreita, desde que não contraditados por outro meio de prova e também às regras da experiência comum.
G. - QUANTO AO FACTO “O” CONSTANTE DOS FACTOS PROVADOS - “A gerente requerida não frequenta a sede da empresa há vários anos.”
H. Para o tribunal a quo ter como facto provado foi valorado “dos depoimentos da contabilista da empresa DD, desde 2000/2001, EE administrativa na sociedade, FF, prestou serviços na empresa, GG funcionária na empresa até setembro 2017 durante cerca de 5 anos; HH, funcionaria na empresa de julho 2016 a março 2017, todos confirmaram que a requerida é doméstica, nunca a viram na empresa nem nunca interveio de forma ativa na empresa nem nunca os procurou para o que quer que fosse; era a EE…” … “A testemunha II, funcionário da empresa até 2010 referiu que a requerida dificilmente entrava nas instalações pois o requerente dirigia-se a ela em tom arrogante, tinha medo do marido, o qual quase a corria de lá para fora, não a queria lá dentro.”
I. Não se revela em qualquer depoimento de testemunhas isentas de interesse na presente ação que a Requerida não frequentava as instalações porque o Requerente não deixava, muito pelo contrário, se aquela não entrava nas instalações é porque não exercia qualquer função. Isto mesmo se infere do testemunho de EE, antiga funcionária da sociedade em que Requerente e Requerido são sócios e gerentes, quando questionada, aos minutos 07:20 da sua inquirição.
J. E ainda aos minutos 18:46, quando questionada sobre a liberdade da Requerida de circular nas instalações da empresa, a testemunha EE responde o seguinte: ADV - [18:46] Quando ela ia ela podia circular livremente na empresa, ou as Sra. tinha instruções para não a deixar entrar, não a deixar mexer nos documentos, o sr. AA alguma vez lhe deu instrução nesse sentido?
SMO - [18:55] Não”
K. Por outro lado, a Testemunha II que tão categoricamente disse que a Requerida quase que não ia às instalações, apenas para dar recados ao filho, para depois se contradizer e confirmar que a Requerida fazia trabalhos de limpeza e até auxiliava nos trabalhos quando a empresa ainda detinha poucos funcionários para o volume de trabalho.
L. Posteriormente, como é fácil de demonstrar, a Requerida passou a frequentar as instalações da empresa na pessoa da sua Procuradora, a filha CC, pelo menos desde o ano de 2017, conforme se poderá verificar pela Procuração Outorgada pela Requerida à filha, e junta aos autos como documento n.º 13 da petição inicial.
M. E assim também o disse na sua inquirição aos minutos 17:27 da sua inquirição.
N. Assim, sendo, e pelo supra exposto, tal facto considerado provado no ponto “O” deverá ser considerado não provado!
O. - QUANTO AO FACTO “V” CONSTANTE DOS FACTOS PROVADOS “V) - O requerente nunca permitiu que a requerida interferisse na gestão da sociedade”
P. O tribunal a quo para tomar este facto no elenco dos factos provados, teve em conta de igual forma os testemunhas que motivou no ponto que antecede destas alegações. Ora, salvo o devido respeito, não poderíamos discordar mais, na medida em que, tal como esclareceu o Requerente a requerida foi integrada na sociedade como sócia e gerente para prevenir a possibilidade de ter uma reforma na sua velhice, uma vez que se encontrava desempregada há altura da constituição da sociedade.
Q. Nunca foi desígnio do Requerente, nem da Requerida, que sempre se dedicou à vida doméstica e familiar, tomando conta dos filhos e posteriormente dos netos, que esta prestasse efetivamente serviços na sociedade ou que gerisse a mesma enquanto gerente. Tal desígnio foi tomado por ambos enquanto casal e nunca unilateralmente pelo Requerido.
R. Como tal, tal facto deverá constar no elenco dos factos não provados!
S. - QUANTO AO FACTO “Z” CONSTANTE DOS FACTOS PROVADOS – “Z) Pela requerida foi ainda instaurado contra a sociedade “A..., Lda.” um Inquérito Judicial para obtenção de informações, que correu seus termos sob o n.º ..., no qual foi proferida decisão em 11.12.2019, transitada em julgado, tendo sido determinado a realização do inquérito tendo em vista a consulta das informações e documentos solicitados por carta de 31.07.2028, cfr. doc. junto à contestação.”
T. Tal facto dado como provado não o poderia ter sido, na medida em que não foi determinado um inquérito judicial à sociedade A..., Lda., pelo contrário, apenas foi determinada a consulta das informações e de documentos solicitados pela Requerida, conforme Despacho proferido no processo ... e junto aos autos através de Requerimento datado de 06/05/2022, com a referência 42158833.
U. Como tal, tal facto deverá constar no elenco dos factos não provados!
V. DOS FACTOS NÃO PROVADOS:- QUANTO AO FACTO “3” CONSTANTE DOS FACTOS NÃO PROVADOS: “3. Que a requerida tenha entrado em conflito com funcionários”
W. Resulta do depoimento das Testemunha EE que testemunhou o seguinte: [09:37] o mau ambiente que a Requerida incutia nas funcionárias da sociedade.
X. Também a testemunha HH, corroborado depois pelo Requerido nas suas declarações, a Requerida por ciúmes desta funcionária, despediu-a verbalmente impedindo-a de entrar nas instalações da sociedade pelo que aquela se retirou e posteriormente o seu contrato cessou!
Y. E ainda o Testemunho da contabilista da sociedade aos minutos 11:49 da sua inquirição, confirma o desconforto das suas funcionárias sempre que recebiam telefonemas da Requerida.
Z. Dúvidas não existem que a Requerida era quizilenta com os funcionários principalmente quando não conseguia levar avante os seus intentos.
AA. Assim, sendo tal facto não provado deverá ser considerado facto provado!
BB. Nas sociedades por quotas, os mandatos dos gerentes não têm, em princípio, duração limitada no tempo. E, diz-se em princípio, por estipular o artigo 256.º do Código das Sociedades Comerciais que “As funções dos gerentes subsistem enquanto não terminarem por destituição ou renúncia, sem prejuízo de o contrato de sociedade ou o ato de designação poder fixar a duração delas.”
CC. No que respeita à destituição dos gerentes das sociedades por quotas, o princípio regra que a lei consagrou no n.º 1 do artigo 257.º do CSC, em relação aos gerentes das sociedades quotas, foi o da destituição ‘ad nutum’ ou o de a destituição se encontrar apenas dependente da vontade maioritária do coletivo de sócios manifestada através do voto e expressa numa deliberação.
DD. Avança ainda os números 4, 5 e 6 do artigo 257.º que: “4 - Existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em ação intentada contra a sociedade. 5 - Se a sociedade tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em ação intentada pelo outro. 6 - Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções.”
EE. Estipula ainda o artigo 262.º, n.º 6 que “Os gerentes não podem fazer-se representar no exercício do seu cargo, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 261.º, como tal e conforme alegado pelo Requerente na sua petição Inicial, a Requerida faltou aos seus deveres para com a sociedade quando outorgou uma Procuração a favor da sua filha, para a representar como gerente quando não o podia ter feito, devendo, portanto, tal Procuração ter sido considerada nula!
FF. Ora, analisada a douta sentença no que à matéria de Direito diz respeito, a mesma considera que tanto a deliberação tomada na Assembleia Geral de 28/07/2020 como a Acão ora proposta, e de cuja sentença se recorre, foram-no no normal exercício da qualidade de sócio e gerente do Recorrente.
GG. O Recorrente avançou com a presente ação por considerar que existe justa causa para a destituição da Recorrida do cargo de gerente que esta sempre “ocupou”, apenas como gerente de direito, tal como a Recorrida admite em todos os seus articulados, ou seja, gerente no papel, e nunca como gerente de facto, com voz e comando nos desígnios da sociedade.
HH. No entanto, veio a douta Sentença e da qual se recorre que: “O facto de nunca ter exercido funções de gerência na empresa, situação aceite e criada pelo requerente, não é motivo para suspensão/destituição da gerência. S.m.o, tal carece de qualquer sentido, uma vez que não foi praticado, nem tal ficou provado, qualquer ato suscetível de ser considerado violador dos deveres de gerente e que pudesse conduzir a justa causa de destituição.
É certo que a requerida procedeu ao levantamento da quantia de €29.066,33 da conta da sociedade, porém, há que ter em atenção que o fez, no dia da realização da assembleia geral de 28.07.2020, na qual o requerente deliberou a destituição da gerência da requerida, retirando, de imediato, a sua remuneração, único sustento que tinha, pelo que, a filha, aconselhou-a a levantar o dinheiro de forma a prevenir o seu futuro.
Porém, no nosso modesto entendimento, provada apenas tal situação, não preenche os pressupostos necessários para a suspensão/destituição da gerência.”
II. Com o devido respeito que nos merece, não se pode jamais concordar com tal entendimento e motivação.
JJ. Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções, adiantando o artigo 64.º do Código das Sociedades Comercias que constituem deveres fundamentais dos gerentes ou administradores das sociedades “a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores».
KK. Mais especifica o número 2 do mesmo artigo 64.º que: “Os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade.”
LL. Considera o tribunal “a quo” que o facto da Recorrida ter levantado todo o dinheiro que a sociedade detinha depositado no Banco, e que a mesma tinha acesso pela circunstância de ser gerente, e esta obrigar-se apenas com uma assinatura, desprovendo a sociedade dos seus recursos económicos para fazer face, nomeadamente a subsídios de férias e ordenados, não é facto bastante e gravoso que implique a suspensão e destituição da Recorrida como gerente.
MM. Mais considerando que a recorrida com receio de ficar desprovida de meios de subsistência em virtude da sua destituição, retirou a sua retribuição. Porém, ficou demonstrado na audiência de discussão e julgamento que tal não é verdade. A Testemunha DD, contabilista da sociedade confirmou que a Recorrida em determinada altura procedeu ao resgate de todos os PPR’s e aplicações que detinha em seu nome, tal facto foi confirmado pela Testemunha CC, filha do casal que confirmou o levantamento dessas aplicações e esclarecendo que a mãe, Recorrida, detinha um cartão de multibanco que podia utilizar.
NN. A lei também não define, de forma rigorosa, o que deve ser entendido por justa causa no n.º 6 do artigo 257.º. Os deveres de gerente referidos na norma são os deveres de conduta a que o gerente está adstrito, ou seja, os deveres de cuidado e ou de lealdade previstos no artigo 64.º. A violação tem de ser grave no sentido de séria, apreciável, significativa e ou especialmente censurável, de modo a extinguir a confiança essencial à subsistência da relação contratual.
OO. A lesão deverá também causar, ou ser apta a provocar, prejuízos relevantes. O conceito de relevância afere-se em função da dimensão da sociedade e volume de negócios. Mas, há deveres cuja preterição pode justificar, de modo irreversível e irretratável, independentemente da importância do prejuízo, a extinção da confiança essencial à subsistência da relação contratual.
PP. E neste mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/02/2022, processo 1917/18.1T8AMT.P2.SI, sumaria o seguinte: “I - A destituição de funções de gerência pressupõe a demonstração da justa causa traduzida na violação dos deveres cometidos ao gerente, que não se basta com a simples violação de algum deles, exigindo a lei que se trate de uma violação grave que comprometa a confiança, desaconselhando ou impedindo a manutenção do vínculo contratual. II - Não definindo a lei o conceito de justa causa, cabe à jurisprudência e à doutrina a sua concretização e pode ser reconduzido às situações em que, segundo a boa-fé, ocorra uma quebra de confiança por forma a que não seja exigível à sociedade a continuidade da relação contratual com o seu gerente. III - O dever de cuidado a que o gerente da sociedade se encontra vinculado consiste na obrigação de cumprir com diligência todos os encargos decorrentes do exercício da respetiva função, nele cabendo o de controlar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade, traduzido na vertente do dever de agir de acordo com uma adequada gestão visando o interesse social. IV - O dever de lealdade adstrito ao gerente impõe-lhe uma exigência comportamental decorrente do princípio geral da boa-fé, acrescida em função da relação fiduciária que estabelece com a sociedade gerando o imperativo de prosseguir (como regra e em primeira linha) o fim (lucrativo) que os sócios perseguem quando constituem a sociedade.”
QQ. O conceito de justa causa pode abranger comportamentos ou situações para além das indicadas no preceito legal, ainda que o perímetro das previsões abrangidas pela norma seja suficientemente lato para nele caber um conjunto infindável de condutas ou de situações de impedimento para o exercício do cargo.
RR. Raul Ventura, em Sociedade por Quotas, Almedina, 1991, vol. III, p. 93., aponta como exemplos de situações de justa causa para a destituição: “o facto de o gerente se ter deixado subornar, em prejuízo da sociedade, de ter praticado um abuso de confiança, de estar insolvente ou fortemente endividado, de fazer concorrência à sociedade, de ficar impossibilitado, por doença, de exercer as suas funções durante um largo período de tempo, a subscrição de uma letra com a firma social para garantir uma dívida pessoal, a falsificação da escrita ou do balanço, a diminuição injustificada do volume de negócios para conseguir a destituição de outros gerentes, a discórdia permanente entre os gerentes que se reflita na boa marcha dos negócios sociais”. – Negrito e sublinhado nosso.
SS. Ora, ficou determinantemente patente e provado que a relação entre Recorrente e Recorrida, ambos sócios e gerentes da sociedade, se veio a deteriorar ao longo dos anos o que implicou pouca convivência e trato entre ambos.
TT. Mais, a sociedade foi constituída em 2001 por aconselhamento técnico e por se demonstrar mais vantajoso para a atividade que o Recorrente exercia já há vários anos como serralheiro. O facto é que a Recorrente reconhecia que era gerente de direito, não tinha e não queria qualquer intervenção de gerente.
UU. Note-se que a Recorrida, ao contrário do que a Testemunha CC tentou demonstrar no seu depoimento, a Recorrida não deixou a sua atividade profissional por imposição, mas sim porque Recorrente e Recorrida, enquanto casal, decidiram que a mesma cuidaria dos filhos e posteriormente viria também a tomar conta dos netos, o que aliás era comum em muitas famílias e não porque o Recorrente é, alegadamente, uma pessoa autoritária.
VV. Aliás, nos primeiros minutos dos esclarecimentos prestados pelo Recorrente, o mesmo diz que se decidiu pela sociedade, e ainda pela gerência partilhada com a Recorrida, para pensar no futuro das mesmas, nomeadamente descontos para conseguir obter uma reforma de velhice e por que aquela estria desempregada.
WW. Influenciada, ou não, o facto é que a Recorrida, com noção do que fazia, dirigiu-se ao Banco onde a sociedade detém conta bancária e levantou todo o dinheiro que a mesma tinha, com total leviandade, e assente em falsos pretextos, deixando a sociedade desprovida de rendimentos para fazer face às suas despesas.
XX. Veja-se pelas declarações da Testemunha DD, contabilidade da sociedade aos minutos 12:58 da sua inquirição.
YY. E ainda a Testemunha EE corrobora isto mesmo aos minutos 12:07 da sua inquirição.
ZZ. Por tudo isto, e tal como ficou demonstrado pelo facto provado no ponto M “- No mesmo dia de tal assembleia e na sequencia da deliberação tomada da sua destituição da gerência deixou de auferir o seu vencimento, sua única fonte de rendimento, a Requerida procedeu ao levantamento, em numerário, da quantia de 29.066,33 Euros da conta de deposito à ordem titulada pela sociedade, pelo que, esta ficou desprovida de liquidez.”
AAA. Tal facto provado está alicerçado nos documentos juntos aos autos e ainda nas declarações de várias testemunhas, que indicam que após o levantamento a sociedade ficou sem dinheiro para pagar, inclusivamente os ordenados e subsídios de férias aos seus funcionários.
BBB. Durante a inquirição da Testemunha CC, questionada sobre o levantamento do valor de € 29.066,33, todo o valor da sociedade, e de quem foi a ideia de proceder ao levantamento, confirmando isto mesmo aos minutos 41:16, da sua inquirição.
CCC. Como supra se expos os gerentes devem atender a um comportamento para com a sociedade de lealdade
DDD. Este dever engloba uma dimensão positiva e uma dimensão negativa (non facere), quanto à primeira prende-se como referido inicialmente, ou seja, os administradores no exercício das suas funções devem atender exclusivamente ao interesse da sociedade seguindo assim, as regras do ‘corporate governance’. Por outro lado, a dimensão negativa “implica que os administradores se abstenham para não criarem situações de conflito de interesses”, tal situação ocorrerá sempre que “de uma tomada de decisão possa resultar um benefício para o administrador e um dano para a sociedade”, in Lopes Barata, Junho de 2015, p. 18.
EEE. Como fundamento deste dever podemos apontar a regra da boa-fé e a própria relação fiduciária existente entre a sociedade e o administrador, uma vez que, o artigo 64º, nº1, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais se inspira no princípio geral de boa-fé previsto no artigo 762º, nº2 do Código Civil.
FFF. Embora ambos os preceitos tenham em comum a existência de uma relação obrigacional, o dever de lealdade apresenta algumas especificidades próprias, uma vez que, está em causa uma especial relação de confiança.
GGG. O dever de lealdade, segundo o autor Coutinho de Abreu, in Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades, 2007, p. 26 - pode ser reconduzido ao dever de: − Comportar-se com correção (fairness) quando contratam com a sociedade; − Não concorrência com a sociedade; − Não aproveitar em benefício próprio ou alheio, oportunidades de negócio societário, assim como bens e informações da mesma; − Não abusar do estatuto ou posição de administrador.
HHH. Desde logo se pode retirar do comportamento da Recorrida que esta atuou, ainda que sob orientações ou influenciada pela sua filha, ao arrepio do Princípio da boa fé, aproveitando-se do seu estatuto de gerente de Direito para levantar todo o dinheiro da sociedade com recurso a “desculpas” que, salvo o devido respeito, não podem nunca colher, uma vez que a Recorrida conforme ficou plasmado nos vários testemunhos, a mesma para além do dinheiro da sociedade que levantou no dia da Assembleia Geral, levantou todo o dinheiro dos PPR’s em seu nome, aplicações financeiras e contas bancárias de que era titular. Não estando assim em situação de carência económica como alega.
III. A Recorrida apropriou-se de um montante que não era seu, é certo que sendo sócia tem alguns direitos, no entanto, como bem se sabe uma sociedade limitada pressupõe a separação de patrimónios, pelo que a Recorrida não podia ter-se apropriado de tal montante, ou no limite, devia ter devolvido tal montante quando interpelada para tal, o que não fez!
JJJ. Sem qualquer consciência colocou em causa a sustentabilidade da sociedade que apenas, e só apenas, devido aos esforços do Recorrente é que conseguiu dar a volta ao sucedido, pedindo clemência aos seus credores, colocando dinheiro próprio e pedindo aos seus funcionários compreensão no atraso do pagamento de ordenados e subsídios.
KKK. Se tal comportamento de má fé por parte da Recorrida não poderá ser considerado um motivo suficiente de justa causa para destituição da gerência, então, com o devido respeito, todo e qualquer ato poderá ser perpetrado pela Recorrida que não terá qualquer consequência para os seus atos.
LLL. Entende a sentença que ora se recorre que “É certo que a requerida procedeu ao levantamento da quantia de €29.066,33 da conta da sociedade, porém, há que ter em atenção que o fez, no dia da realização da assembleia geral de 28.07.2020, na qual o requerente deliberou a destituição da gerência da requerida, retirando, de imediato, a sua remuneração, único sustento que tinha, pelo que, a filha, aconselhou-a a levantar o dinheiro de forma a prevenir o seu futuro.”
MMM. Não se aceita tal consideração, pois não se coaduna com os factos provados.
NNN. Veja-se que, a filha aos minutos 41:04 da sua inquirição diz que: “IC [41:04] Quer-se dizer, sem outra fonte de rendimento qualquer, eu confesso que não vi ali outra forma a não ser chamá-la e fazê-la ver que aquela seria a forma de conseguir garantir que tinha ali algum valor algum sustento para um período de tempo até arranjar uma alternativa aquela decisão tomada pelo pai assim do nada…”
OOO. A mesma testemunha também confirmou no seu depoimento que a mãe resgatou todas as aplicações e PPR’s que tinha em seu nome, e confirmou ainda que a mãe era e é possuidora de um cartão de multibanco, utilizado somente por ela, “para a vida deles” já que muito perentoriamente disse que as despesas normais de casa eram pagas em dinheiro que o pai dava à mãe. O Requerido adiantou também que a Requerente ficou com todo o dinheiro que tinham em numerário na habitação e que levantou todo o dinheiro que tinham nas constas conjuntas.
PPP. Ora, releva-se que a Requerente não necessitava, à data em que levantou o dinheiro da conta da sociedade, daquele montante para viver, fê-lo por despeito e por retaliação contra o Requerente na sequência da deliberação da sua destituição, agindo levianamente e em clara má-fé, comportamento que deverá ser punível.
QQQ. Para além de que, a sociedade continua à mercê dos intentos da Requerida através da sua filha que muita influência detém na mãe, pelo que se mantendo a Requerida como gerente da sociedade, tais comportamentos poderão repetir-se sempre que aquela entenda que necessita de dinheiro para viver os seus luxos.
RRR. Mais, justifica a Requerida e a filha que por medo de ficar sem remuneração, a mesma levantou o dinheiro que considerava seu, o que é falso. Ao longo da sua inquirição, a filha CC, que confirmou ser a força motriz por trás das decisões da Requerida, demonstrou ter conhecimento dos vários mecanismos legais ao dispor para reverter a deliberação da destituição da gerência da sua mãe decida na Assembleia Geral de 28/07/2020, pelo que uma vez mais se reitera, o levantamento de todo o montante que a sociedade tinha disponível foi um ato de má fé e de retaliação que em muito prejudicou a sociedade e consequências mais graves não se verificaram pelos esforços e zelo do Requerente.
SSS. Acresce que ficou demonstrado claramente que a mesma, pelos motivos que foi designada de gerente, para acautelar o seu futuro e cujo objetivo se vê cumprido, uma vez que já estará a beneficiar de reforma, não se revela necessário que a mesma se mantenha como gerente uma vez que não possui nenhum tipo de conhecimento da atividade, dever fundamental de um gerente, nem da vida da sociedade, como aliás a sua filha e Procuradora CC confirmou na sua inquirição aos minutos 17:27, tendo esta adiantando que o único objetivo da mãe, Requerida são as partilhas: IC [17:27] Ora, eu sei que não existiam. As assembleias passaram a existir, nunca existiriam, e as assembleias passaram a existir a partir do momento em que eu assumo a representação da minha mãe, pelo facto da medida de coação do processo de violência doméstica em que o meu pai ficou com a pulseira eletrónica, em que teria de estar afastado da minha mãe e então nós achamos que pronto, na verdade o meu pai é que domina em termos de conhecimento, a matéria, o meu pai é que domina a empresa. Não faria sentido a minha mãe, o meu pai tinha que se afastar da minha mãe, mas nós achamos que não íamos afastar, para a minha poder ir à empresa o meu pai tinha que sair, achamos por bem deixá-lo estar na empresa porque é ele que realmente domina a matéria e passei eu a representar a minha mãe e então sim, nessa altura passaram a haver assembleias e eu passei a ir a essa assembleia, que até então nunca aconteceu uma assembleia.
TTT. Pelo que tudo permite concluir pela existência de justa causa para destituição da Requerida do cargo de gerente da sociedade A..., Lda.
NESTES TERMOS,
E nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta, nomeadamente destituindo a Requerida do cargo de gerência da sociedade A..., Lda. daí retirando as necessárias e legais consequências.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!».

A requerida não apresentou contra-alegações.

* * *



II. Questões a apreciar e decidir:

Em atenção às conclusões das alegações das partes, que, de acordo com o estabelecido nos arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do CPC, fixam o thema decidendum deste recurso, as questões a apreciar e decidir consistem em saber [sendo certo que inexistem outras de conhecimento oficioso – art. 608º nº 2 in fine do mesmo Código]:
1. Se houve erro no julgamento da matéria de facto que o recorrente põe em causa e se há que alterá-la nos termos que pretende [conclusões A a AA das alegações];
2. Se ocorre justa causa para a destituição da recorrida das funções de gerência da sociedade em apreço [conclusões BB a TTT das alegações].
* * *


III. Factos provados e não provados:

i) A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos [assinalam-se a negrito os factos impugnados]:
A) O Requerente e a Requerida são sócios da sociedade por quotas A..., Lda., com o capital social de €100.000,00 e que tem como o objeto social a indústria da serralharia da construção civil.
B) A sociedade tem como únicos sócios e gerentes o requerente, titular de uma quota social no valor de €55.000,00 do capital da sociedade e a requerida titular de uma quota social no valor de €45.000,00 do capital da sociedade (cf. certidão permanente ora junta como documento 1 ao RI).
C) O requerente e requerida, casados, tendo decidido criar a Sociedade A..., Lda. em 08.08.2001 (cfr. certidão de casamento junta à contestação).
D) O requerente já exercia a atividade de serralheiro há largos anos, antes da constituição da Sociedade.
E) O sócio fundador, requerente, apesar de partilhar formalmente a gerência com a Requerida, sempre foi quem dirigiu a vida da sociedade.
F) O requerente e requerida encontram-se no presente momento a meio de um processo de divórcio litigioso (N.º Processo 4037/19.8T8VNG), estando separados (vd. contestação do R. à ação de divorcio junta à contestação apresentada nestes nossos autos).
G) A Requerida outorgou a favor da filha CC uma procuração com poderes gerais, de modo a que esta atue como sua representante em todas as funções que seriam da sua responsabilidade, onde se pode ler que são dados poderes à Procuradora CC para: “a representar na qualidade de gerente da sociedade por quotas que usa a firma A..., Lda. (…), podendo exercer todos os poderes de gerência que lhe competem, junto de quaisquer entidades e nomeadamente, efetuar consultas bancárias, consultar saldos e movimentos, solicitar extratos e efetuar todos os demais atos para os indicados fins” e para “movimentar quaisquer contas bancárias das quais seja titular em nome pessoal, podendo efetuar consultas bancárias, consultar saldos e movimentos, solicitar extratos e efetuar todos os demais atos para os indicados fins” (conforme procuração que se junta como documento 13 ao RI).
H) Vindo a sua representante, CC, fazendo uso dessa procuração para entrar nas instalações da empresa e consultar documentos internos desta.
I) No dia 28 de julho de 2020, realizou-se uma assembleia geral da Sociedade na qual estiveram presentes o requerente e a filha deste e da Requerida, CC, que atuou na qualidade de procuradora da Requerida.
J) Nessa assembleia geral, com o voto do maioritário do requerente a sociedade A..., Lda., foi decidida a destituição com justa causa das funções de gerente da Requerida com efeitos imediatos, deixando de auferir a partir daí a remuneração de gerente (cf. ata que se junta como documento n.º 8 ao RI).
K) A requerida impugnou tal deliberação social, Deliberação essa que foi declarada nula no âmbito do processo ....
L) Tendo igualmente instaurado um procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, com n.º de processo ... (cfr. sentença junta como documento n.º 11 ao RI).
M) No mesmo dia de tal assembleia e na sequencia da deliberação tomada da sua destituição da gerência deixou de auferir o seu vencimento, sua única fonte de rendimento, a Requerida procedeu ao levantamento, em numerário, da quantia de 29.066,33 Euros da conta de depósito à ordem titulada pela sociedade, pelo que, esta ficou desprovida de liquidez.
N) A Sociedade notificou a Requerida por via postal para devolver a quantia levantada até às 15 horas do dia 31/7. (carta anexa e integralmente se reproduz para todos efeitos legais como documento n.º 10 junto ao RI), o que não foi cumprido.
O) A gerente requerida não frequenta a sede da empresa há vários anos.
P) Não participa ativamente na gestão da empresa.
Q) Não tem noção da situação de gestão e da situação económico-financeira da empresa.
R) No processo nº ... que correu termos pelo Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia – Juiz 3 foi proferida sentença que condenou o ora requerente pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, sujeita à obrigação de o arguido não contactar por qualquer forma nem se aproximar da assistente BB, e ainda ao pagamento de uma indemnização à aqui R. no valor de 3.000,00 €, bem como no pagamento das custas do processo, taxas de justiça e demais encargos, cfr. doc. junto à contestação).
S) O ora requerente não se conformou com tal sentença, pelo que interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual decidiu, por acórdão de 21/10/2020, condenar o A. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita à obrigação de o arguido não contactar por qualquer forma nem se aproximar da assistente BB, e ainda ao pagamento de uma indemnização à aqui R. no valor de 2.000,00 € a títulos de danos não patrimoniais.
T) O referido acórdão de 21/10/2020, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no processo ... transitou em julgado (cfr. doc. junto à contestação).
U) Deste Acórdão resulta que, ao longo dos anos o requerente levou a cabo, designadamente, os seguintes atos na requerida, dados como provados naquele acórdão proferido no processo nº ...: dava-lhe bofetadas, puxava-lhe os cabelos e desferia-lhe murros nos braços e pontapés nas pernas, agredia psicologicamente, insultava.
V) O requerente nunca permitiu que a requerida interferisse na gestão da sociedade.
W) A Requerida apenas desempenhava funções como arrumar materiais, embalar produtos, cortar ferro e outras funções que não implicassem atos de gestão.
X) O Requerente é pessoa autoritária por vezes arrogante, porém, trabalhador, bom profissional e bom gerente.
Y) O requerente sempre cuidou bem da empresa, sendo o motor da mesma, sempre fez tudo pela empresa, vivendo para a mesma.
Z) Pela requerida foi ainda instaurado contra a sociedade “A..., Lda.” um Inquérito Judicial para obtenção de informações, que correu seus termos sob o n.º ..., no qual foi proferida decisão em 11.12.2019, transitada em julgado, tendo sido determinado a realização do inquérito tendo em vista a consulta das informações e documentos solicitados por carta de 31.07.2028 [trata-se de lapso manifesto, pois quis-se dizer «31.07.2018»], cfr. doc. junto à contestação.
AA) A requerida, após a separação, procedeu ao levantamento dos PPRs que tinha em nome dela.
*

ii) … E como não provados os seguintes factos:
1. A Requerida desde 2015 venha a adotar uma conduta de lesar a boa imagem e honra do requerente e prejudicar as relações de negócio participadas pela Sociedade A..., Lda.
2. Tal conduta foi prejudicando gravemente a situação financeira da Sociedade e a sua credibilidade.
3. Que a requerida tenha entrado em conflito com funcionários.
4. Qualquer comportamento descontrolado da requerida.

* * *


IV. Apreciação das questões indicadas em II:

1. Se houve erro no julgamento da matéria de facto que o recorrente põe em causa e se há que alterá-la nos termos que pretende [conclusões A a AA das alegações].
Mostram-se suficientemente cumpridos os ónus primários da impugnação da matéria de facto estabelecidos nas als. a) a c) do nº 1 do art. 640º do CPC, embora outro tanto não aconteça, quanto a alguns depoimentos/declarações invocados [relativamente aos quais o recorrente não indica com exatidão as passagens da gravação em que se apoia], com o ónus secundário previsto na al. a) do nº 2 do mesmo preceito, deficiência que, contudo, de acordo com a jurisprudência maioritária, não implica a rejeição do recurso no respetivo segmento, nem obsta à reapreciação das provas relativamente à factologia que vem impugnada [no sentido de que o não cumprimento do ónus secundário da al. a) do nº 2 do art. 640º não implica, por regra, a rejeição do recurso da matéria de facto, nem obsta à reapreciação da prova, vejam-se, i. a., os Acórdãos do STJ de 14.03.2024, proc. 8176/21.7TSLSB.L1.S1, de 27.02.2024, proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1, de 25.01.2024, proc. 1007/17.4T8VCT.G1.S1, de 21.03.2023, proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1, de 13.10.2022, proc. 1700/20.4T8LRS.L1.S1, de 03.10.2019, proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2 e de 29.10.2015, proc. 233/09.4T8VNC.G1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Há, por isso, sem necessidade de outros considerandos acerca de tais ónus de impugnação, que indagar, à luz do nº 1 do art. 662º do CPC, se a decisão de facto da 1ª instância deve ser alterada quanto aos concretos pontos impugnados.
Importa, porém, recordar que o poder de reapreciação da prova pelos tribunais da Relação, quando assenta, no todo ou em parte, em depoimentos/declarações gravados [como acontece no caso em apreço], não tem hoje o alcance restrito, quase residual, que teve no passado, em que se sustentava que a 2ª Instância não podia procurar uma nova convicção e que devia limitar-se, apenas e só, a aferir se a do julgador a quo, vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação, em conjugação com os demais elementos probatórios dos autos, permitiam percecionar. Pelo contrário, atualmente impera uma conceção mais ampla de tal poder que, embora reconheça que a gravação áudio ou vídeo dos depoimentos e declarações [ainda assim, mais no primeiro caso que no segundo] não consegue traduzir tudo quanto pôde ser percecionado pelo tribunal da 1ª instância, designadamente, o modo como as declarações foram prestadas, as hesitações que as acompanharam, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória e que existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, entende, ainda assim, que os tribunais da Relação têm a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos e fazer incidir as regras da experiência, como efetiva garantia de um segundo grau de jurisdição.
Por isso, quando, ao reapreciar a prova e valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, o tribunal da Relação deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um efetivo segundo grau de jurisdição [neste sentido, i. a., Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., 2022, pgs. 333-334; relativamente ao art. 712º nº 1 do CPC na versão anterior a 2013, mas válidos para o atual art. 662º nº 1 do CPC, ainda, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2008, pgs. 213-218 e Remédio Marques, in A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., 2011, pgs. 638-646; na jurisprudência, entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 27.02.2024 (proc. 7997/20.2T8SNT.L1.S2), de 17.10.2023 (proc. 2154/07.6TBPVZ.P2.S1), de 28.11.2023 (proc. 2898/17.4T8CSC.L1.S1), de 12.10.2023 (proc. 1358/19.3T8PTM.E2.S1) e de 10.03.2022 (proc. 6640/12.3TBMAI.P2.S2), todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Antes de procedermos à apreciação da materialidade fáctica que vem impugnada, importa fazer dois breves esclarecimentos:
- O primeiro, relacionado com o âmbito da reapreciação da matéria de facto nestes autos, para dizer que, tendo o recurso [que subiu em separado a esta Relação] a que se reporta o apenso A [proc. 980/22.5T8VNG-A.P1] sido julgado improcedente [nele o também aqui recorrente pedia que se declarasse nulo o despacho da 1ª instância de 28.02.2024, que admitiu a produção dos meios de prova oferecidos pela requerida (por não pagamento atempado da 2ª prestação da taxa de justiça, nos termos do art. 14º nºs 2, 3 e 4 do RCP) e, caso o acórdão final viesse a ser proferido depois de produzida a prova no tribunal recorrido, como aconteceu, a prova arrolada pela requerida fosse desconsiderada], por acórdão de 11.02.2025, transitado em julgado em 05.03.2025, com a consequente manutenção de toda a prova produzida no tribunal a quo, incluindo a oferecida e produzida pela requerida, não existe qualquer obstáculo ou limitação quanto à sua (re)apreciação no presente recurso [interposto da sentença final proferida na ação].
- O segundo, referente ao que consta das als. MM, UU, XX, YY, BBB, MMM, NNN, RRR e SSS das conclusões das alegações do recorrente. Em todas estas alíneas, incluídas no segmento das conclusões reportado à impugnação da fundamentação jurídica da decisão recorrida e respetivo dispositivo final [absolvição da requerida dos pedidos formulados no requerimento inicial, que o recorrente pretende ver revertida], o recorrente chama à colação e transcreve diversos depoimentos e declarações produzidos na audiência final, indicando até as passagens das respetivas gravações. Mas nelas [e alíneas com elas relacionadas] não põe em causa nenhum facto concreto dos que a decisão recorrida deu como provados ou não provados, nem pretende o aditamento de qualquer novo facto provado à luz do que permitem as als. a) a c) do nº 2 do art. 5º do CPC. Constatação que decorre também da motivação [corpo das alegações] em que radicam aquelas conclusões, onde, igualmente, não é feita alusão a quaisquer factos que, com assento nos depoimentos e declarações ali indicados/transcritos, o recorrente pretenda ver reapreciados. O que significa que se trata transcrições e indicações que não relevam para reapreciação da matéria de facto, nem estão aqui em questão.

Feito este introito, vejamos então os factos que vêm impugnados.
São eles os das alíneas O), V) e Z) dos factos provados e o do nº 3 dos factos não provados.
No que concerne aos três primeiros, o recorrente entende que devem ser dados como não provados; quanto ao último, sustenta que deve ser considerado provado.
Relembremos o teor dos mesmos:
- Os provados:
« O) A gerente requerida não frequenta a sede da empresa há vários anos.».
«V) O requerente nunca permitiu que a requerida interferisse na gestão da sociedade.».
«Z) Pela requerida foi ainda instaurado contra a sociedade “A..., Lda.” um Inquérito Judicial para obtenção de informações, que correu seus termos sob o n.º ..., no qual foi proferida decisão em 11.12.2019, transitada em julgado, tendo sido determinado a realização do inquérito tendo em vista a consulta das informações e documentos solicitados por carta de 31.07.2028, cfr. doc. junto à contestação.».
- O não provado:
«3. Que a requerida tenha entrado em conflito com funcionários.».
Começando pelo facto da al. O) dos factos provados.
O recorrente radica a pretendida alteração nos seguintes meios de prova:
- depoimento da testemunha EE – minutos 07:20 (e seguintes) e 18:46 (e seguintes);
- depoimento da testemunha II – não indica a exata passagem da gravação, mas procede a breve menção do que disse;
- e depoimento da testemunha CC – minutos 17:27 (e seguintes).
Na sentença recorrida, a fundamentação atinente a tal facto, conexionado com outros que ali também são referenciados, foi a seguinte:
«As alíneas O), P), Q), V) e W) da matéria de facto assente resultam dos depoimentos da contabilista da empresa DD, desde 2000/2001, EE administrativa na sociedade, FF, prestou serviços na empresa, GG funcionária na empresa até setembro 2017 durante cerca de 5 anos; HH, funcionaria na empresa de julho 2016 a março 2017, todos confirmaram que a requerida é doméstica, nunca a viram na empresa nem nunca interveio de forma ativa na empresa nem nunca os procurou para o que quer que fosse; era a EE que no fim do mês processava os salários e a requerida também recebia; mais confirmaram ainda que a requerida não contatava com clientes, nem se assumiu como gerente, nem nunca interferiu na gestão diária da empresa, nem tomou decisões. A própria filha da requerida, CC, confirmou que a mãe só fazia o que o pai mandava, não tinha poderes de decisão, gestão ou organização. Na empresa, a mãe apenas fazia trabalhos de limpeza. Também a sobrinha do casal, JJ, com eles residente até ao casamento, referiu que a requerida era submissa ao marido, não tinha controlo do dinheiro quando precisava pedia ao marido. A testemunha II, funcionário da empresa até 2010 referiu que a requerida dificilmente entrava nas instalações pois o requerente dirigia-se a ela em tom arrogante, tinha medo do marido, o qual quase a corria de lá para fora, não a queria lá dentro. Mais confirmou que a requerida nunca deu ordens, ajudava nas limpezas a sábado.».
Quanto à mesma alínea O), foram, ainda, atendidas as declarações de parte que o requerente prestou na audiência final, como resulta do seguinte excerto da fundamentação da sentença:
«As alíneas E), O), P), Q), U), W) e X) 1ª parte da matéria de facto assente resulta das declarações em audiência de julgamento do Requerente AA, que de forma clara, espontânea, confirmou esta factualidade (…)».
Importa começar por dizer que se estranha a pretensão do recorrente no que diz respeito a esta alínea O), já que na sua base esteve precisamente o que ele próprio, na qualidade de requerente, alegou no art. 64º do requerimento inicial, cujo teor coincide quase ipsis verbis com a redação daquele alínea [alegou ali que «64º. A gerente Ré, não frequenta a sede da empresa há vários anos.»; a única diferença relativamente ao que consta da alínea O) dos factos provados é a substituição da expressão «Ré» por «requerida»]. Estranheza que aumenta ainda mais quando, como se diz na fundamentação da 1ª instância acima transcrita, o próprio requerente a afirmou no decurso das suas declarações de parte, em audiência.
Como o que foi alegado não pode ser retirado do processo, nem substituído, a pedido do alegante, pelo seu contrário – art. 260º do CPC –, tanto bastaria para que, sem mais, se mantivesse a resposta dada pelo tribunal a quo a tal facto.
E a igual conclusão – manutenção da alínea O) como facto provado – chegámos após audição integral dos depoimentos das três testemunhas indicadas pelo recorrente.
A testemunha EE [que trabalhou, como administrativa, entre 2018 e 2021, na empresa de que requerente e requerido são gerentes – foi ouvida na sessão da audiência final de 28.02.2024] disse que poucas vezes viu a requerida nas instalações da empresa em questão e que isso só aconteceu quando ela ia lá deixar as netas para ir ao cabeleireiro.
A testemunha II [que trabalhou, como serralheiro, entre meados da década de 90 do século passado e 2010 ou 2011, na empresa de que as partes são gerentes – foi ouvido na sessão de 15.05.2024] também depôs em sentido idêntico, mas reportado até à data em que deixou de trabalhar na empresa, dizendo que a requerida só entrava nas instalações desta para falar com o filho e quando o requerente não a via porque se este a visse «corria-a de lá para fora» [sic).
A testemunha CC [filha de requerente e requerida e que, há alguns anos, possui procuração da mãe para a representar na gerência da empresa que é pertença daqueles – foi ouvidas nas sessões de 17.04.2024 e de 15.05.2024] depôs, igualmente, no sentido da não frequência das instalações da empresa por parte da requerida.
Como tal, há que manter a alínea O) no elenco dos factos provados.
Passando à alínea V) dos factos provados.
O recorrente estriba a alteração que pretende quanto a esta alínea no que ele próprio declarou nas declarações de parte que prestou na audiência final [sem indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda] e, mais concretamente, no facto de ali ter declarado que «a requerida foi integrada na sociedade como sócia e gerente para prevenir a possibilidade de ter uma reforma na sua velhice, uma vez que se encontrava desempregada» quando foi constituída a sociedade [afirmação que proferiu, efetivamente, da parte inicial das suas declarações, prestadas em 15.05.2024, como constatámos na audição destas].
Já vimos, face ao que atrás transcrevemos, que, na sentença recorrida, a fundamentação da alínea agora em análise foi feita conjuntamente com outras, incluindo a alínea O), acabada de apreciar.
Do que aí se exarou resulta que a respetiva prova assentou no conjunto dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, EE, FF, GG, HH, CC, JJ e II.
O recorrente não põe em causa o teor dos depoimentos destas testemunhas, nem que elas tivessem deposto no sentido em que a sentença recorrida os tomou/entendeu. Apenas contrapõe o que disse nas declarações de parte que prestou.
A prova testemunhal e a prova por declarações de parte são ambas livremente apreciadas pelo tribunal - arts. 396º do CCiv. e 466º nº 3 do CPC, respetivamente. Estão, por isso, à partida, em pé de igualdade enquanto meios de prova.
Mas, no confronto direto e efetivo entre elas, principalmente, quando, como no caso sub judice, existem, de um lado, várias testemunhas, arroladas pelas duas partes, sem qualquer interesse no desfecho da ação e sem relações de proximidade ou de dependência relativamente a alguma daquelas [só a testemunha CC, além da relação de parentesco com as partes (é filha de ambas), poderia ter algum interesse no desfecho da ação, por ser procuradora da progenitora, representando-a na gerência da sociedade], que depõem de forma essencialmente homogénea, credível, isenta e devidamente fundamentada sobre determinada(s) matéria(s) de facto [diga-se que, não obstante o que atrás assinalámos, o testemunho de CC também apresenta estes atributos] e, do outro, temos uma parte que, nas declarações que prestou [como constatámos da audição das declarações de parte do requerente], se limitou, grosso modo, a reproduzir oralmente, em julgamento, o que havia alegado, por escrito, através do seu mandatário, no articulado inicial da ação, o tribunal não poderá deixar de dar prevalência à prova testemunhal, para mais quando, como aqui acontece, a prova por declarações de parte não vem acompanhada de outro meio de prova que, em conjugação com ela, pudesse ser suscetível de comprometer a credibilidade gerada pelos depoimentos valorados no âmbito daquela primeira prova [no caso, o recorrente não indica outro meio de prova que dê crédito às suas declarações e infirme os depoimentos das ditas testemunhas].
Por isso, também aqui é de manter como provado o facto da alínea V).
Relativamente à alínea Z) dos factos provados.
O recorrente invoca as informações e os documentos que acompanharam o requerimento de 06.05.2022, com a referência 42158833.
A decisão recorrida assentou a materialidade de tal alínea no documento «junto à contestação».
O documento junto à contestação acabado de referir é cópia da sentença que foi proferida na ação nº ..., que correu termos no Juiz 5 do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, datando a mesma de 11.12.2019 [foi junto em 02.03.2022 com um requerimento com a referência 31518716]. Nela, depois de, na parte inicial do relatório, se dizer «BB, residente na Rua ..., ..., ..., veio requerer a realização de inquérito judicial contra “A..., Lda.”, com sede na Rua ..., ..., ..., e AA, residente no mesmo local, pedindo que seja ordenado inquérito para obtenção de informações», declarou-se, a final, no dispositivo, o seguinte [suprimem-se os parágrafos]: «Pelo exposto, julga-se a presente ação intentada por BB contra “A..., Lda.” e AA procedente e, em consequência, determina-se a realização de inquérito judicial à sociedade comercial requerida, tendo em vista a consulta das informações e dos documentos solicitados através da carta datada de 31 de Julho de 2018, descritos na alínea g) dos factos provados, a realizar na sede social, em dia e hora a indicar pela requerente aos requeridos, com a antecedência de 10 dias. Custas pelos requeridos (art. 527º do Código de Processo Civil). Registe e notifique.».
O documento indicado pelo recorrente [apresentado em 06.05.2022, com um requerimento com a referência 32145154] é cópia de um despacho proferido na mesma ação ..., em 23.09.2020, do qual consta que «(…) foi apenas determinada a consulta das informações e dos documentos solicitados (…)» e que «não houve (nem há) lugar à designação de perito.».
Como é fácil de ver, este despacho não invalida nem contraria o que se decidiu na sentença proferida na dita ação, sentença na qual o tribunal a quo se apoiou para dar como provado o que exarou na alínea Z) dos factos provados.
Assim sendo, mantém-se a alínea Z) no elenco dos factos provados.
Resta o nº 3 dos factos não provados.
O recorrente invoca os depoimentos das testemunhas EE [minutos 09:37], HH [sem indicação da exata passagem da respetiva gravação] e DD – indicada por aquele apenas como «contabilista da sociedade», sem menção do nome [minutos 11:49].
Quanto a tal facto, a sentença recorrida, no segmento da fundamentação da matéria de facto, consignou que:
«A matéria de facto não provada resulta de nenhuma prova credível ter sido feita quanto à mesma. As testemunhas inquiridas não demonstraram conhecimento direto sobre factualidade relevante para a boa decisão da causa.».
A testemunha EE limitou-se a dizer, sobre o assunto em apreço, que houve uma fase em que a requerida ia à empresa «buscar o cheque» [presumindo-se que se tratasse do cheque relativo à sua remuneração] e que, por vezes, a testemunha não o tinha na sua posse [por o requerente não o ter emitido], dizendo-lhe ela, nessas ocasiões, que estava a ser «cúmplice» [expressão que utilizou] do requerente. Não referiu, no entanto, qualquer conflito que a requerida tivesse tido com ela ou com outros funcionários da empresa.
A testemunha HH [que trabalhou na empresa, com contrato a termo, durante cerca de 9 meses, em 2017-2018] aludiu a dois episódios que teriam ocorrido entre ela e a requerida, num dos quais esta insinuou que ela teria um relacionamento amoroso com o requerente e tendo-a, no outro, impedido de entrar na empresa, dizendo-lhe que estava despedida. Contudo, a instâncias do mandatário da requerida e confrontada com documento da segurança social relativo ao motivo da cessação do contrato de trabalho a termo, começou a titubear e entrou em diversas contradições, afirmando que quem pôs termo ao contrato foi o requerente [e não a requerida; apesar de contar do documento em questão que o motivo da cessação do contrato foi ter chegado ao seu termo final e não ter sido renovado], ficando, ainda, dúvidas acerca da veracidade da insinuação que teria ocorrido no primeiro daqueles episódios.
A testemunha DD referiu unicamente que, na fase do divórcio de requerente e requerida, esta solicitou-lhe, sem sucesso, por várias vezes, que lhe entregasse diversos documentos da empresa e que não desse conhecimento disso ao requerente e que tais situações lhe causaram algum desconforto. Mas não referiu que, por causa disso, a mesma tenha entrado em conflito consigo ou que lhe tivesse faltado ao respeito.
Perante esta prova, entendemos ser de manter como não provado o facto nº 3 do respetivo elenco.
Improcede, assim, o recurso no segmento relativo à impugnação da matéria de facto.

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2. Se ocorre justa causa para a destituição da recorrida das funções de gerência da sociedade em apreço [conclusões BB a TTT das alegações].
Importa, como ponto prévio, delimitar o que está em questão neste ponto.
No requerimento inicial, o requerente, ao abrigo do que permite o art. 1055º nºs 1 e 2 do CPC, cumulou os pedidos de suspensão da requerida de exercer as funções de gerência na sociedade comercial A..., Lda. e de destituição da mesma, com justa causa, de tais funções de gerência.
Apesar do primeiro pedido ter natureza cautelar e dever, por isso [pela sua natureza urgente], ser decidido imediatamente [no próprio processo], após realização das diligências necessárias – nº 2 daquele preceito –, a verdade é que acabou por ser processado conjuntamente com o pedido de destituição [assim foi ordenado nos autos] e decidido também na mesma sentença [dois anos e quatro meses depois da entrada do requerimento inicial em tribunal].
Acontece que relativamente ao que foi decidido quanto ao pedido de suspensão [julgado improcedente na sentença] nada vem dito nem pedido nas alegações e conclusões do recurso em análise [apesar da utilização da expressão «nomeadamente» na parte final das conclusões, onde se pede que a sentença seja «revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta, nomeadamente destituindo a Requerida do cargo de gerência da sociedade (…) daí retirando as necessárias e legais consequências»]. Aquelas versam apenas e só sobre o que se decidiu quanto ao pedido de destituição, pretendendo o recorrente unicamente a revogação da sentença no que concerne a este pedido [que foi, igualmente, julgado improcedente].
Por ser assim, está fora do nosso conhecimento a apreciação do mérito do que foi decidido relativamente ao dito pedido de natureza cautelar, pelo que a pronúncia a que somos chamados incidirá apenas sobre o que a sentença recorrida decidiu acerca do pedido de destituição.

O requerente, ora recorrente, instaurou a presente ação com vista à destituição da requerida, com justa causa, das funções de gerência que desempenha na sociedade por quotas A..., Lda..
Trata-se de sociedade com apenas dois sócios, as partes nesta ação, sendo ambos também os seus únicos gerentes, o requerente/recorrente com uma quota de 55% e a requerida/recorrida com uma quota de 45% - factos provados A) e B).
Pretendendo o requerente, como pretendia e pretende, a destituição da requerida das funções de gerência com fundamento em justa causa, tinha obrigatoriamente, como o fez, que instaurar ação com vista à obtenção de tal resultado, já que está vedada, nestes casos, a possibilidade de a destituição ter lugar por deliberação da assembleia geral; assim decorre da norma imperativa do nº 5 por contraposição às dos nºs 1 e 2, todos do art. 257º do CSC [Código das Sociedades Comerciais – diploma a que nos reportaremos daqui em diante quando outra menção não for feita].
Segundo o nº 6 do preceito acabado de citar, «Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções».
Embora a título exemplificativo, são aqui indicados dois vetores de comportamentos que podem constituir justa causa de destituição:
- os que se traduzam em violação grave dos deveres do gerente;
- e os que sejam reveladores de incapacidade para o exercício normal das funções de gerente.
No primeiro caso [violação grave dos deveres de gerente] há que ter em conta o que prevê o art. 64º nº 1 als. a) e b), que consagra como deveres fundamentais dos gerente [e administradores]:
- os deveres de cuidado, relativos à disponibilidade, competência técnica e conhecimento da atividade da sociedade adequados à função, implicando que estes sejam levados a cabo com a diligência de um gestor criterioso e ordenado;
- e os deveres de lealdade, na prossecução do interesse da sociedade, dos sócios e dos seus trabalhadores, clientes a credores.
Comecemos por uma breve incursão pela doutrina e pela jurisprudência para vermos como tem sido definido ou preenchido o conceito de justa causa relevante para os efeitos do nº 6 do referido art. 257º.
Na doutrina:
Raúl Ventura [in Sociedades por Quotas, vol. III, Almedina, 1996, pgs. 91 e segs.], depois de afirmar que “[o] art. 257º não define justa causa, mas aponta, exemplificativa e genericamente, como tal a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções”, dá como exemplos de justa causa, estribando-se na doutrina alemã e no ensinamento de António Caeiro [in Temas de Direito das Sociedades, pg. 165], os seguintes comportamentos: “o facto de o gerente se ter deixado subornar, em prejuízo da sociedade, de ter praticado um abuso de confiança, de estar insolvente ou fortemente endividado, de fazer concorrência à sociedade, de ficar impossibilitado, por doença, de exercer as suas funções durante um largo período de tempo, a subscrição de uma letra com a firma social para garantir uma dívida pessoal, a falsificação da escrita ou do balanço, a diminuição injustificada do volume de negócios para conseguir a destituição de outros gerentes, a discórdia permanente entre os gerentes que se reflita na boa marcha dos negócios sociais”. A estes acrescenta, ainda, a violação do dever de concorrência fixado no nº 1 do art. 254º, por força do que dispõe o nº 5 deste normativo, e os comportamentos que, no título VII do CSC – arts. 509º a 528º, integrados no capítulo «disposições penais» - integram os ilícitos penais e contraordenacionais aí previstos [por ex., falta de cobrança de entradas de capital; aquisição ilícita de quotas ou ações; amortização de quota não liberada; amortização ilícita de quota dada em penhor ou que seja objeto de usufruto; outras infrações às regras da amortização de quotas ou ações; distribuição ilícita de bens da sociedade; participação fraudulenta em assembleia social; recusa ilícita de informações].
Por sua vez, António Menezes Cordeiro [in Direito das Sociedades, II, Das Sociedades em Especial, Almedina, 2006, pgs. 413-419] dá como exemplos de justa causa:
- “(…) o comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, daí decorrendo prejuízos relevantes para a sociedade, efetivos ou potenciais: o sócio, para além de propalar entre os colaboradores da empresa que esta vai fechar por falta de qualidade dos produtos, dá concomitantemente colaboração à empresa concorrente; (…)
- (…) quando o gerente subtraia faturas à contabilidade da sociedade (…);
- (…) numa sociedade com apenas dois sócios, (…) quando o requerido venha impedindo que a requerente exerça quaisquer atos de gerência, nem sequer a autorizando a permanecer nas instalações da sociedade; além disso, falsificou uma ata da sociedade, bem como a sua escrita (…);
- (…) aquele que se mostrou incompetente (…);
- (…) o exercício, sem consentimento dos sócios, de atividade concorrente com a da sociedade;
- (…) qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual: in casu, o sócio-gerente optou por vender um estabelecimento por 83.000c., quando podia tê-lo feito por 260.000c., colocando os seus interesses à frente dos da sociedade; (…)
- (…) caso de gerentes que cumpram tardiamente (3 ou 2 anos depois) o seu dever de relatar a gestão;
- (…) o gerente que deixa caducar alvarás de construção civil, anula seguros dos trabalhadores, passa faturas falsas e aprova tardiamente as contas.”.
E quanto à «incapacidade para o exercício normal» das funções de gerência, da parte final do nº 6 do citado art. 257º, depois de afastar as situações que se prendem com a saúde física e mental do gerente [por estas conduzirem à cessação da situação de gerência por caducidade, não tendo que ver com o preenchimento da cláusula de justa causa] refere que “[a] ‘incapacidade’ deve ser aproximada da ‘incompetência profissional’: o gerente descura a sua formação profissional ou não é capaz de acompanhar as realidades da empresa”, acrescentando que “[q]ualquer dessas eventualidades traduz a violação (grave) dos seus deveres profissionais, com presunção de culpa.”.
Mais refere o mesmo Autor que “[e]m diversas decisões [dos tribunais superiores] avulta o apelo à quebra de confiança. A via é promissora: efetivamente, para além da complexidade dos esquemas destinados a concretizar os conceitos indeterminados, há sempre um consenso alargado, entre os membros de uma comunidade, sobre as circunstâncias nas quais alguém deixa de merecer a confiança necessária para desempenhar certas funções.”.
Jorge Coutinho de Abreu [in Curso de Direito Comercial, vol. II, 8ª ediç., Almedina, 2024, pgs. 624-628] começa por definir a justa causa [embora reportada mais aos administradores das sociedades anónimas que aos gestores das sociedades por quotas, mas que vale também para estes] como “(…) a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do administrador, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o administrador violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções.”. E depois, a título exemplificativo, refere que “[q]uanto à violação dos deveres dos administradores (deveres estatutários, deveres legais específicos e deveres legais gerais), a própria lei comina para certas hipóteses a (possibilidade de) destituição com justa causa: arts. 398º, 5, e 254º, 5 (exercício não autorizado de atividade concorrente com a da sociedade), 447º, 8 (não comunicação à sociedade, com culpa, da posse, aquisição, oneração ou cessação de titularidade de ações e obrigações), 44º, 4 e 450º (abusos de informação) (…) os comportamentos criminosos previstos no CSC: v. g., falta de cobrança de entradas de capital (art. 509º), aquisição ilícita de participações próprias (art. 510º), distribuição ilícita de bens da sociedade (art. 514º), recusa ilícita de informações ou prestação de informações falsas (arts. 518º e 519º), impedimento de fiscalização (art. 522º)”, assim como “os crimes praticados no âmbito da sociedade: v. g., furto, abuso de confiança, infidelidade, falsificação de faturas (CP, arts. 203º e 204º, 205º, 224º, 256º)” e, ainda, “a prática reiterada de atos excedendo o objeto social – art. 6º, 4, do CSC –, a apresentação injustificadamente tardia dos relatórios de gestão e das contas do exercício (arts. 65º, 5, 67º; v. também o art. 20º, 1, h), 2ª parte, do CIRE), o desrespeito de regras básicas da escrituração da sociedade, o aproveitamento em benefício próprio de oportunidades de negócio ou de bens da sociedade, a perda, intencional ou por desleixo, de condições necessárias ou convenientes para a vida da sociedade.”.
E quanto à «incapacidade» de que fala a parte final do nº 6 do art. 257º, divergindo do Autor anteriormente citado, diz que tal expressão significa, no essencial, “quer a (revelada) falta de conhecimentos necessários para uma gestão ordenada, quer a impossibilidade física decorrente, por exemplo, de doença prolongada (incurável, nomeadamente) impeditiva do exercício normal das respetivas funções.”.
Na jurisprudência [citando apenas alguns dos mais recentes]:
No acórdão do STJ de 22.02.2022 [proc. 1917/18.1T8AMT.P2.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, indicado nas alegações/conclusões do recurso] decidiu-se [sumário] que: “I - A destituição de funções de gerência pressupõe a demonstração da justa causa traduzida na violação dos deveres cometidos ao gerente, que não se basta com a simples violação de algum deles, exigindo a lei que se trate de uma violação grave que comprometa a confiança, desaconselhando ou impedindo a manutenção do vínculo contratual. II - Não definindo a lei o conceito de justa causa, cabe à jurisprudência e à doutrina a sua concretização e pode ser reconduzido às situações em que, segundo a boa-fé, ocorra uma quebra de confiança por forma a que não seja exigível à sociedade a continuidade da relação contratual com o seu gerente. III - O dever de cuidado a que o gerente da sociedade se encontra vinculado consiste na obrigação de cumprir com diligência todos os encargos decorrentes do exercício da respetiva função, nele cabendo o de controlar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade, traduzido na vertente do dever de agir de acordo com uma adequada gestão visando o interesse social. IV - O dever de lealdade adstrito ao gerente impõe-lhe uma exigência comportamental decorrente do princípio geral da boa-fé, acrescida em função da relação fiduciária que estabelece com a sociedade gerando o imperativo de prosseguir (como regra e em primeira linha) o fim (lucrativo) que os sócios perseguem quando constituem a sociedade. V - É insuficiente para concluir pela violação grave dos deveres de cuidado e lealdade do gerente ter sido apurado que o gerente nada fez perante a falta de continuidade do pagamento à sociedade requerida de 1% da faturação por parte de outra sociedade levado a cabo no âmbito de um acordo de exploração de uma marca criada por um dos sócios daquela. Para tal efeito, não obstante resultar do processo que a falta comprometia a sustentabilidade financeira da sociedade, mostrava-se indispensável a demonstração do efetivo incumprimento do referido acordo de exploração da marca e dos contornos do contrato.”.
No acórdão do STJ de 26.02.2019 [proc. 219/13.4TYLSB.L2.S3, disponível no mesmo sítio da dgsi] decidiu-se [partes relevantes do sumário] que: “I. A justa causa destitutiva do gerente da sociedade, relaciona-se com os princípios da confiança e a boa fé que devem ser observados por quem detém tal função na sociedade, princípios relevantes nas relações com os credores sociais, sócios e terceiros, de modo a que a transparência dos comportamentos e o rigor ético das condutas, possam ser valorados objetivamente e subjetivamente. A justa causa é uma sanção excludente do “infrator”, que visa defender a sociedade, na sua inserção na vida comercial. (…) VI. A exclusão de sócio, que só pode ser decretada por via judicial, precedida de deliberação societária, depende de atuação do sócio que age de forma desleal ou adota procedimentos que, perturbando gravemente o funcionamento da sociedade, tenham causado, ou possam vir a causar-lhe graves prejuízos. (…) VIII. Se a deliberação para destituição de gerente, tendo a sociedade apenas dois sócios, só pode ser tomada em ação judicial adrede intentada, não faria sentido, sendo a disputa “sócio contra sócio”, que um dos sócios, apenas com o seu voto, pudesse excluir o outro de sócio sem recorrer a tribunal; se assim fosse, o sócio maioritário determinava sozinho a deliberação.”.
No acórdão desta Relação do Porto de 08.05.2023 [proc. 1140/22.0T8AMT.P2, disponível in www.dgsi.pt/jtrp] decidiu-se [parte do sumário] que: “Existe justa causa subjetiva para efeitos de suspensão/destituição de gerente quando este, por ação ou omissão, viola de forma grave e culposa, as suas obrigações de administrador e dos factos apurados se retira que a prática desses atos, atenta a sua natureza e/ou reiteração, impossibilitam a manutenção da relação contratual de gerência estabelecida com a sociedade, por implicarem uma irreversível quebra da relação de confiança que essa relação pressupõe, tornando inexigível à sociedade a manutenção da mesma.”.
No acórdão desta Relação do Porto de 17.05.2022 [proc. 112/14.3T2AND.P1, disponível no mesmo sítio da dgsi] decidiu-se [parte do sumário]: “Constitui justa causa de destituição do gerente: - Qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual e segundo a boa fé, não seja exigível à sociedade a continuação da relação contratual com o seu gerente; - Todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim; - Qualquer conduta que possa fazer desaparecer os pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação contratual societária; - Toda a atuação que, pela sua gravidade, importe, por razões justificadas, a quebra de confiança entre a sociedade e o gerente.”.
No acórdão da Relação de Coimbra de 06.07.2016 [proc. 2315/13.9TBLRA.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc] decidiu-se [parte do sumário]: “(…) 4. O conceito de justa causa, para efeitos de destituição de gerente, previsto no art. 257º, nº 6, do CSC, deve ser interpretado com o fim primacial de proteção da confiança; no sentido de que perante determinada situação fáctica, e atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, se torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, praticando atos nocivos para a sociedade. 5. Deve ser destituído, por justa causa, o único gerente de uma sociedade por quotas com apenas dois sócios, que não elaborou e submeteu à assembleia geral da sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos ao exercício anual, em violação do seu dever legal específico previsto no art. 65º, nº 1, do CSC, nem convoca a respetiva assembleia geral, ou constitui a mesma, para os sócios deliberarem sobre o dito relatório de gestão e contas do exercício (em violação, igualmente, dos arts. 65º, nº 5, 67º, nº 1, 246º, nº 1, e), e 248º, nº 3, do CSC), condutas que são também tipificadas nos arts. 515º e 528º do CSC como crime e contraordenação.”.
Pela nossa parte, como vem acontecendo na maioria dos acórdãos dos tribunais superiores, entendemos que o conceito de justa causa, previsto no nº 6 do art. 257º, deve assentar numa ideia de quebra de confiança da sociedade relativamente ao seu gerente, resultante da violação grave, por este, de deveres de cuidado e/ou de lealdade a que está obrigado por lei ou pelo contrato social, ou por incapacidade ou inaptidão [superveniente] para o exercício normal das respetivas funções, quando tal violação ou incapacidade tornem inexigível a manutenção da relação orgânica que o liga à sociedade.
Este entendimento, diga-se, entronca na conceção civilista do conceito de justa causa [perfilhado, designadamente, por Raúl Ventura e Coutinho de Abreu, nas obras atrás referenciadas (quanto ao segundo Autor veja-se, ainda, Destituição de Administradores – Controvérsias Jurisprudenciais, in Colóquios do Supremo Tribunal de Justiça – Comércio, Sociedades e Insolvências, Coleção Caderno Especial, abril 2020, pgs. 41-42); já Menezes Cordeiro, igualmente na obra indicada, segue a conceção laboral, mais restritiva por exigir que os comportamentos sejam sempre imputáveis ao gerente a título de culpa] que Baptista Machado [in Pressupostos da resolução por incumprimento, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, Jurídica, BFDC, 1979, pgs. 361-362] define como “qualquer circunstância, facto ou situação em face do qual e segundo a boa-fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa)” e conclui que a justa causa “representará, em regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um ‘incumprimento’): será aquela violação contratual que dificulta, de forma insuportável ou inexigível para a parte não inadimplemente a continuação da relação contratual”.
Para terminar estas considerações gerais, resta dizer que sendo, in casu, a justa causa o pressuposto essencial do direito à destituição peticionado pelo requerente [ora recorrente], é sobre ele que impende o ónus da prova da factualidade integradora de tal conceito, nos termos estabelecidos no nº 1 do art. 342º do CCiv..

Reportando-nos então ao caso sub judice, vejamos se existe factualidade provada que possa integrar o conceito de justa causa para destituição da requerida das funções de gerente.
O recorrente começa por apontar duas situações que, na sua ótica, integram violações graves dos deveres que impendem sobre a requerida e que, por via disso, importam a sua destituição do cargo de gerência que ocupa na sociedade de que ambos são os únicos sócios e gerentes. São elas:
- o facto de a requerida ter outorgado uma procuração a favor da filha de ambos, para a representar como gerente, em violação do que dispõe o art. 252º nº 6 [por lapso referiu o art. 262º] – conclusão EE;
- o facto de a requerida nunca ter exercido efetivamente o cargo de gerente, sendo apenas «gerente no papel» e não possuir «nenhum tipo de conhecimento da atividade», nem «da vida da sociedade – conclusões GG e SSS.
Releva para aqui o que está dado como provado nos seguintes pontos da matéria de facto:
- E) O sócio fundador, requerente, apesar de partilhar formalmente a gerência do a requerida, sempre foi quem dirigiu a vida da sociedade.
- F) A requerida outorgou a favor da filha CC uma procuração com poderes gerais, de modo a que esta atue como sua representante em todas as funções que seriam da sua responsabilidade, onde se pode ler que são dados poderes à Procuradora CC para: “a representar na qualidade de gerente da sociedade por quotas que usa a firma A..., Lda. (…), podendo exercer todos os poderes de gerência que lhe competem, junto de quaisquer entidades e nomeadamente, efetuar consultas bancárias, consultar saldos e movimentos, solicitar extratos e efetuar todos os demais atos para os indicados fins” e para “movimentar quaisquer contas bancárias das quais seja titular em nome pessoal, podendo efetuar consultas bancárias, consultar saldos e movimentos, solicitar extratos e efetuar todos os demais atos para os indicados fins”.
- O) A gerente requerida não frequenta a sede da empresa há vários anos.
- P) Não participa ativamente na gestão da empresa.
- Q) Não tem noção da situação de gestão e da situação económico-financeira da empresa.
- V) O requerente nunca permitiu que a requerida interferisse na gestão da sociedade.
Quanto ao não exercício efetivo das funções de gerente, a decisão recorrida contém a seguinte fundamentação:
«Analisada a factualidade provada, verificamos que a sociedade “A..., Lda.” foi constituída pelo requerente e requerida, casados entre si, ambos sócios e gerentes da mesma, porém, apenas o requerente exerceu funções de facto, sendo ele quem dava as ordens, quem geria a empresa, quem lá permanecia o dia todo, quem contratava os trabalhadores, quem contatava com clientes e fornecedores, quem lidava com o dinheiro. Era o requerente quem “fazia e desfazia”, sem dar conhecimento à gerente mulher. O próprio requerente referiu em audiência de julgamento que constituiu a sociedade a conselho da contabilista, porém, a ideia não era a requerida ir para a empresa pois não tinha conhecimentos para tal. A requerida, mesmo antes da constituição da empresa já não exercia a sua atividade profissional, tendo ficado em casa a tratar dos filhos e depois dos netos, a quem prestou assistência a 100%. Após a constituição da sociedade a requerida apenas era gerente de direito, nunca permanecendo na empresa, nunca teve nela qualquer função, a não ser fazer limpeza ao fim de semana, até porque o requerido sempre a impediu, tal como resultou da audiência de julgamento (…). Portanto, se a requerida BB não participava na atividade ou decisões da empresa, porque motivo, veio agora o requerente imputar-lhe responsabilidades de mau desempenho na empresa nos últimos dois anos. O facto de nunca ter exercido funções de gerência na empresa, situação aceite e criada pelo requerente, não é motivo para suspensão/destituição da gerência. S.m.o, tal carece de qualquer sentido, uma vez que não foi praticado, nem tal ficou provado, qualquer ato suscetível de ser considerado violador dos deveres de gerente e que pudesse conduzir a justa causa de destituição.».
Concorda-se grosso modo com este segmento da sentença recorrida.
Com efeito, se desde sempre [desde a constituição da sociedade – que, segundo a certidão permanente que constitui o doc. 1 junto com o requerimento inicial, ocorreu em 08.08.2001, tendo o respetivo registo sido feito em 09.08.2001] foi unicamente o requerente que dirigiu a vida da sociedade [al. E) dos factos provados], não participando a requerida ativamente na gestão da mesma [porque o requerente nunca permitiu que nela interferisse], nem tem noção da situação de gestão e da situação económico-financeira da empresa [als. P), Q) e V) dos factos provados], é evidente que tal situação não constitui justa causa para a destituição da requerida das funções de gerência.
Por um lado, porque não se trata de facto superveniente [no sentido de facto que tenha surgido no decorrer da atividade da sociedade, mais concretamente nos anos mais próximos da propositura da ação], mas sim de facto que se verifica desde que a sociedade foi constituída.
Por outro, porque a não participação da requerida na gestão da sociedade se deve ao próprio requerente, que nunca permitiu que ela interferisse nessa gestão.
Por fim, porque tal circunstância [não participação da requerida na gestão da sociedade] não constituiu obstáculo, durante quase vinte anos [desde agosto de 2001 até ao momento em que se realizou a assembleia geral indicada nas als. I) e J) dos factos provados, ocorrida em julho de 2020], à manutenção da relação orgânica da requerida com a sociedade, nem interferiu com o desempenho normal da «vida» desta.
Neste ponto, a atuação da requerida não torna inexigível a manutenção da dita relação orgânica, o que significa que não é por aqui que a pretensão do recorrente poderá proceder.

E quanto ao facto de a requerida ter outorgado procuração à filha [que também é do requerente] para a representar na qualidade de gerente na dita sociedade, nos termos que constam de tal procuração?
A decisão recorrida não se pronunciou, na respetiva fundamentação jurídica, sobre este ponto.
Quanto a ele, o nº 6 do art. 252º é claro: «[o]s gerentes não podem fazer-se representar no exercício do cargo, sem prejuízo do disposto no nº 2 do art. 261º». Tanto mais que não está aqui em causa a exceção prevista no nº 2 deste art. 261º, que se reporta à delegação de poderes de um gerente noutro gerente relativamente a determinados atos ou negócios.
Raúl Ventura [obra e volume citados, pg. 27] admite a aplicação analógica do disposto no art. 410º nº 5 [que dispõe que «[o] contrato de sociedade pode permitir que qualquer administrador se faça representar numa reunião por outro administrador, mediante carta dirigida ao presidente, mas cada instrumento de representação não pode ser utilizado mais de uma vez»] às sociedades por quotas, mas, para tal, é preciso que o pacto social permita essa representação, o que se desconhece se acontece no caso em análise.
Embora reportado aos administradores, mas que vale, igualmente, para os gerentes das sociedades por quotas, diz Jorge Coutinho de Abreu [obra e volume citados, pgs. 611-612] que “[t]al procuração será ilícita se significar que o procurador substitui-se ao órgão social de administração e representação – este transfere para aquele todas as suas competências. Isto esvaziaria o órgão, necessário segundo a lei e com competências indelegáveis.”. E adiante: “[n]ão assim se o órgão mantiver a «alta direção» da empresa social e a «administração da sociedade», bem como o controlo ou supervisão da gestão-representação corrente confiada ao procurador e a possibilidade de avocar atos compreendidos nessa atividade corrente.”.
Como in casu a procuração outorgada pela requerida confere à procuradora [filha] «todos os poderes de gerência que lhe competem» na sociedade, o que significa que esta passou a substituí-la, representando-a, quanto a todos as competências inerentes ao exercício das funções de gerente, é manifesto que estamos perante procuração ilícita.
Mas daí resulta que a requerida violou gravemente os deveres de cuidado ou de lealdade para com a sociedade, de tal modo que a manutenção da referida relação se tenha tornado inexigível?
Entendemos que não, nem tal solução é adiantada por nenhum dos Autores atrás citados quando se pronunciam sobre a ilicitude da procuração emitida em termos idênticos à que aqui está em questão.
O motivo desta solução resulta, aqui, da articulação do que consta na al. G) [quanto à procuração, resultando, ainda, do documento 13 junto com o requerimento inicial, para que remete, que a mesma foi autenticada por termo datado de 06.10.2017] com o que está relatado nas als. S) e T), todas dos factos provados.
Com efeito, sendo embora verdade que a procuração foi outorgada em data anterior [em 06.10.2017, como acabado de referir] e, por isso, por outros motivos, verdade é também que a mesma, após a condenação do requerente pelo crime indicado na al. S) [condenação final datada de 21.10.2020], acabou por ser o «remédio» para a manutenção da sociedade em funcionamento e para aquele continuar a dirigir/gerir efetivamente a respetiva atividade, como sempre fez. Isto porque em tal condenação, a pena de prisão aplicada ao requerente [ali arguido] ficou suspensa na sua execução pelo período de três anos, sujeita à «obrigação de não contactar por qualquer forma nem se aproximar da assistente BB» [a aqui requerida]. E se não fosse aquela procuração dificilmente o requerente conseguiria dirigir/gerir a sociedade, pois não poderia contactar por qualquer forma a requerida, nem aproximar-se dela, o que significa que não poderiam estar juntos em assembleias gerais, em reuniões relativas a assuntos societários ou com clientes ou credores, etc.; bastaria que a requerida estivesse presente ou tivesse intervenção por outro modo em algum desses atos [e outros relativos à vida da sociedade] para que o requerente não pudesse intervir/tomar parte nos mesmos.
Ou seja, acabando a dita procuração por ser o «remédio» para a manutenção da sociedade de que ambos são os únicos sócios e gerentes, não pode a sua existência ser, ao mesmo tempo e antagonicamente [não obstante a ilegalidade da procuração e os eventuais vícios de que poderão ser afetados os atos em que a procuradora/representante da requerida tem intervenção], causa de inexigibilidade da manutenção da relação de gerência da requerida com a sociedade.
Como tal, também por aqui o recorrente não obtém vencimento da sua pretensão.

Resta a terceira e última situação em que o recorrente estriba a sua pretensão: o que está descrito nas als. M) e N) dos factos provados.
Está aí assente que:
M) No mesmo dia de tal assembleia [ou seja, em 28.07.2020] e na sequencia da deliberação tomada da sua destituição da gerência deixou de auferir o seu vencimento, sua única fonte de rendimento, a Requerida procedeu ao levantamento, em numerário, da quantia de 29.066,33 Euros da conta de depósito à ordem titulada pela sociedade, pelo que, esta ficou desprovida de liquidez.
N) A Sociedade notificou a Requerida por via postal para devolver a quantia levantada até às 15 horas do dia 31/7. (carta anexa e integralmente se reproduz para todos efeitos legais como documento n.º 10 junto ao RI), o que não foi cumprido.
Quanto a esta situação, a sentença recorrida limitou-se a afirmar o seguinte:
«É certo que a requerida procedeu ao levantamento da quantia de €29.066,33 da conta da sociedade, porém, há que ter em atenção que o fez, no dia da realização da assembleia geral de 28.07.2020, na qual o requerente deliberou a destituição da gerência da requerida, retirando, de imediato, a sua remuneração, único sustento que tinha, pelo que, a filha, aconselhou-a a levantar o dinheiro de forma a prevenir o seu futuro. Porém, no nosso modesto entendimento, provada apenas tal situação, não preenche os pressupostos necessários para a suspensão/destituição da gerência.».
Vejamos.
Tomada isoladamente [sem ter em conta o contexto em que aconteceu], não poderia haver dúvidas de que a apropriação de bens [no caso, valor monetário] pertencentes à sociedade, sem autorização ou consentimento desta, seria suscetível de constituir violação grave do dever de lealdade a que a requerida, na qualidade de gerente, estava obrigada e, como tal, seria, em abstrato, causa justificativa da destituição [judicial] desta.
Contudo, tal atuação da requerida ocorreu num determinado contexto, que também está dado como provado nas als. I), J) e parte da M).
Efetivamente, a referida apropriação ocorreu imediatamente após [e no mesmo dia] a realização da assembleia geral indicada na al. I), na qual, com o voto maioritário do requerente, foi deliberada «a destituição com justa causa das funções de gerente da requerida com efeitos imediatos». Deliberação que, diga-se, era ilegal [por isso acabou por ser declarada nula na ação que a requerente veio a instaurar para esse fim – al. K) dos factos provados], porque a requerida não podia ser destituída em assembleia geral, mas apenas por via judicial, como já se notou atrás e resulta do que dispõe o art. 252º nº 6.
E, dessa destituição resultou para a requerida a perda imediata do direito à remuneração que auferia na qualidade de gerente [direito a remuneração que o requerente confessou no art. 77º do requerimento inicial, dizendo aí que a mesma era de 1.100,00€ mensais]. Remuneração que era a sua única fonte de rendimento e da qual ficaria privada, pelo menos, até que fosse proferida decisão no procedimento cautelar que veio a instaurar, referido na al. L) dos factos provados, que determinou a suspensão da aludida deliberação [esta decisão foi proferida em 07.01.2022, conforme se afere do documento 11 junto com o requerimento inicial].
Daqui decorre que a requerida se apropriou da mencionada quantia [mediante levantamento em conta bancária da sociedade] por causa de ficar privada da única fonte de rendimento que tinha e de, por via disso, ficar impossibilitada, durante período que então não podia prever, de fazer face às despesas inerentes à sua subsistência, sendo certo que, como já se referiu, tal apropriação ocorreu na sequência [e no mesmo dia] da deliberação já referenciada.
Esta atuação da requerente é subsumível à figura do estado de necessidade previsto no art. 339º do CCiv., na medida em que ocorrem os respetivos pressupostos [sobre esta figura e os seus pressupostos veja-se Fernando Pessoa Jorge, in Ensaio sobre os pressupostos da Responsabilidade Civil, 1995, Almedina, pgs. 251º e segs.; João de Matos Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ediç., Almedina, pgs. 577 e segs. e António Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, Almedina, pgs. 439 e segs. – o primeiro Autor, não obstante as expressões «destruir» e «danificar» constantes do nº 1 do art. 339º, defende, a pgs. 254, que em tal figura, além dos casos diretamente abarcados por estas expressões, cabem também situações de «simples uso da coisa alheia» e «atos de apropriação ou detenção de coisas»]:
- existe ofensa de um direito alheio [o direito de propriedade da sociedade sobre o montante de que a requerida se apropriou];
- a apropriação levada a cabo pela requerida constituiu meio necessário para afastar um perigo atual [o de aquela ficar sem meios para prover à sua subsistência] a que a sociedade e o requerente não eram estranhos [foi devido ao que foi deliberado na aludida assembleia geral que a requerida ficou privada da única fonte de rendimento que possuía, a sua remuneração pela gerência];
- e, no confronto entre os dois bens em questão [o direito à subsistência da requerida e o direito de propriedade da sociedade sobre a quantia monetária objeto de apropriação], o relativo à requerida apresenta-se manifestamente superior [diz respeito à sua vida e saúde], prevalecendo sobre o dano que foi suportado pela sociedade, tanto mais que o montante em questão [29.066,33€] se revela pouco significativo. É verdade que fez com que a sociedade ficasse desprovida de liquidez, como consta da parte final da al. M) dos factos provados, mas, pelo seu quantum tratou-se, necessariamente, de uma iliquidez momentânea e que não causou problemas relevantes de tesouraria à sociedade [não está provado que tais problemas tenham ocorrido].
Por via disso [preenchimento dos pressupostos do estado de necessidade], a referida conduta da requerida não pode ser apodada de ilícita, porque foi levada a cabo ao abrigo da causa de justificação [ou de exclusão da ilicitude] prevista no nº 1 do citado art. 339º, que a considera lícita.
É verdade que o requerente contrapõe que a remuneração que a requerida auferia enquanto gerente não constituía a sua única fonte de rendimento, em virtude da mesma ter também procedido ao resgate/levantamento de todas as aplicações e PPR’s que tinha em seu nome – conclusões NNN), OOO) e PPP) das alegações.
Mas, acerca disto, mostra-se apenas provado que a requerida, após a separação, procedeu ao levantamento dos PPR’s que tinha em seu nome – al. AA) dos factos provados. Desconhece-se, desde logo, quando ocorreu este levantamento, se antes ou se depois da apropriação referida na al. M), já que só se diz ali que tal levantamento se verificou após a separação, não se sabendo quando é que esta aconteceu [o que se sabe é que quando a ação foi proposta, em 04.02.2022, as partes encontravam-se «a meio de um processo de divórcio litigioso» e estavam separadas, como se diz na al. F) dos factos provados]. Ainda que se soubesse quando se consumou tal separação e esta se situasse em data anterior a 28.07.2020 [data da apropriação mencionada na al. M)], continuaríamos sem saber se o levantamento dos PPR’s aconteceu de imediato ou se passado algum tempo [e quanto: meses, anos?] e, assim, se antes ou se depois desta data. E, além de tudo, desconhece-se, ainda, os montantes dos PPR’s resgatados, para se aferir se permitiam a subsistência da requerida enquanto não visse os resultados da providência cautelar e da ação que intentou, atrás apontadas.
Subsiste, assim, a licitude da atuação da requerida à luz do dito estado de necessidade.
O que significa que, também neste ponto, não assiste razão ao recorrente.
Improcede, pois, in totum, a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

Pelo decaimento, as custas deste recurso ficam a cargo do recorrente – arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC..

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Síntese conclusiva:
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V. Decisão:

Face ao exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:

1º) Julgar o recurso improcedente, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

2º) Condenar o recorrente nas custas do recurso, pelo total decaimento.



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Porto, 8/4/2025.


Pinto dos Santos
João Ramos Lopes
Alexandra Pelayo