INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
CRÉDITOS LABORAIS
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
ABUSO DE DIREITO
Sumário

1- Não actua em abuso do direito a empregadora que peticiona contra o trabalhador as quantias que entregou ao Estado a título de IRS e à Segurança Social, não obstante por lapso seu ter pago retribuições superiores às devidas, por sobre ela recaírem aquelas obrigações e o trabalhador poder pedir a devolução dos valores entregues para além do devido.
2- Não tendo o Recorrente alegado e provado que o seu crédito já foi reconhecido no processo de insolvência, não pode operar a compensação que invoca nestes autos.

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório
SPDH – SERVIÇOS PORTUGUESES DE HANDLING, S.A., pessoa colectiva n.º ..., com sede no Aeroporto de Lisboa, Lisboa, requereu contra AA, contribuinte n.º ..., residente na ..., ... Lisboa, o presente incidente de liquidação que fundamentou nos seguintes termos:
- Por sentença confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o Requerido foi condenado a devolver à Requerente o diferencial correspondente à retribuição de cargo que lhe foi paga e a retribuição base que deveria ter recebido, de acordo com a sua categoria profissional e escalão em que estava inserido, no período compreendido entre 16 de Junho de 2008 e 15 de Junho de 2009, cujo exacto apuramento será igualmente efectuado, se necessário, em incidente de liquidação;
- Em 16/06/2008 após o termo das funções de Director por parte do Requerido, exercidas nos termos do Acordo de Gestão antes em vigor, de 16/06/2008 a 15/06/2009 foi pago indevidamente ao mesmo a retribuição de cargo de € 5.150, quando devia ter sido paga uma retribuição base de € 3.069,50, como, aliás, passou a ser paga a partir de 16 de Junho de 2009;
- Conforme demonstrado nas Notas de Vencimento que constituem os docs. n.ºs 109 a 120 juntos com a petição inicial, foi indevidamente pago ao Autor, no período de 16/06/2008 a 15/06/2009, o diferencial mensal ilíquido que identifica e que perfaz o total de € 26.019,55, valor que liquida como sendo aquele que deve ser devolvido pelo Requerido; e
- Ao referido montante acrescem juros de mora a contar da data do último pagamento, ou seja, 1 de Julho de 2009 e até integral pagamento e que em 10.11.2022 ascendem ao valor de € 13.915,11.
Finalizou pedindo que o incidente de liquidação seja julgado procedente e o Requerido condenado a pagar à Requerente a quantia de € 26.019,55, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 01/07/2009 e até integral pagamento e que em 10.11.2022 ascendem a € 13.915,11, tudo com as demais consequências legais.
Regularmente citado, o Requerido deduziu oposição invocando, em síntese:
- Por sentença confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2020, a Requerente foi condenada a pagar ao Requerido “o subsidio de chefia correspondente ao exercício das funções de responsável pela Área de Qualidade e Informática, no período compreendido entre Dezembro de 2011 e Abril de 2014 e que o Requerido, por seu turno, foi condenado a pagar à Requerente o diferencial correspondente à retribuição de cargo que lhe foi paga e a retribuição base que deveria ter recebido, de acordo com a sua categoria profissional e escalão em que estava inserido, que deveria devolver à Ré, cujo exacto apuramento seria igualmente efectuado, se necessário, em incidente de liquidação, operando-se a compensação com a quantia que se liquidar em dívida ao autor;
-O Requerido também já deduziu incidente de liquidação relativamente ao crédito que tem sobre a Requerente;
- Assim, devem os dois incidentes de liquidação ser apensados por ser a apensação solução que melhor assegura o cumprimento dos princípios da celeridade e eficácia processuais, porquanto permitirá a apreciação conjunta da mesma questão, a produção conjunta da prova e a efectivação da compensação de créditos;
- Por excepção, alegou ser detentor de um crédito sobre a Requerente, no valor de €43.843,00, valor que liquidou no mencionado incidente de liquidação, bem como invocou a compensação de créditos até ao limite do crédito de que reconhece que a Requerente é titular;
- Reconhece que a Requerente é titular de um crédito sobre si no valor de €15.091,34 o qual corresponde ao montante líquido que auferiu (o montante peticionado pela Requerente, deduzidas as quantias a título de imposto entregues pelo requerente e retidas pela Requerida),
- Subsidiariamente, apenas no caso de se entender que o crédito de que a Requerente é titular deve ser quantificado no montante de €26.019,55, deve a compensação operar relativamente a este montante;
- O pedido de condenação de juros é manifestamente infundado, sendo a sentença clara relativamente à inexistência de mora;
- A Requerente só pagou ao Requerido a quantia de €15.091,34, pelo que a Requerente age em abuso do direito ao pretender exigir do Autor o montante ilíquido que sabe não ter pago ao Requerido mas à Autoridade Tributária e à Segurança Social;
- Sucede que, neste momento, mesmo que o quisesse fazer, nunca poderia o Requerido apresentar declarações de IRS de substituição ou requerer a revisão de actos tributários relativos aos anos em questão;
- O Requerido apenas pode devolver o que recebeu;
- Em virtude de, entre Junho de 2008 e Junho de 2009, ter auferido a remuneração ilíquida mensal que agora a Requerente peticiona que lhe seja devolvida (€ 26.019,55), foi aplicada a título de taxa social única 11% sobre o rendimento mensal, no total de €2.862,15 e em sede de IRS (27% sobre o rendimento mensal), o Requerido suportou o montante total de € 7.025,28, bem como sofreu ainda um acréscimo de 4%, face ao diferencial de remuneração auferida, subida de escalão, sobre o rendimento ilíquido mensal, o montante total de € 1.040,78, pelo que as quantias reclamadas pela Requerente incluem € 10.928, 21 relativos a quotizações e IRS, valor que nunca foi recebido pelo Requerido nem pode agora recuperar, visto que não é possível reabrir esses anos fiscais, pois o prazo para revisão dos actos tributários é de 4 anos; e
- A diferença salarial sob litígio foi paga ao Requerido por decisão unilateral da Requerente, que procedeu do mesmo modo relativamente a todos os trabalhadores que se encontravam na situação do Requerido e que se este fosse agora condenado a entregar esta quantia seria penalizado por um erro exclusivamente imputado à Requerente, pelo que, verificar-se-ia um locupletamento manifestamente injusto daquela à custa deste.
Terminou pedindo que apenas seja reconhecido à Requerente um crédito no montante de € 15.091,34 e julgada procedente a excepção peremptória de compensação de créditos, nesse preciso montante, operando-se a necessária compensação em relação ao crédito que o Requerido detém sobre a Requerente no montante de € 43.843 e, consequentemente, ser o crédito a liquidar compensado na exacta medida relativamente ao crédito de que o Requerido é titular perante a Requerente e, em consequência, extinguir-se o crédito da Requerente e ser o Requerido absolvido do pedido.
Caso assim não se entenda, deve ser julgada procedente, por provada, a excepção peremptória de compensação de créditos, no montante de € 26.019,55 e, em consequência, ser o crédito a liquidar deduzido no crédito de que o Requerido é titular perante a Requerente, operando-se a compensação de créditos e, assim, ser o Requerido absolvido do pedido. Mesmo que assim não se entenda e se considere que a Requerente é credora de € 26.019,55, deve ser julgada procedente, por provada, a excepção de abuso do direito, julgando-se que a Requerente apenas pode exigir a restituição ao Requerente daquilo que este efetivamente recebeu, ou seja, €15.091,34 e, em qualquer dos casos, deve o pedido de condenação do requerido no pagamento de juros ser julgado improcedente, por ser manifestamente infundado, inexistir título e inclusive contrariar o decidido na sentença proferida nos autos declarativos.
A Requerente respondeu mantendo o alegado no requerimento inicial, nada opondo ao pedido de apensação dos incidentes de liquidação e invocando não alcançar como é que o Requerido chegou ao valor de € 43.843,00 em relação às diferenças devidas a título de subsídio de chefia no período de Dezembro de 2011 a Abril de 2014, que era correspondente a 10 ou 12 % sobre o valor da remuneração base devida, sendo que o Requerido nada liquida, pois não alega especificamente quaisquer factos quanto ao crédito e como chegou ao valor que indica, o que impede a devida oposição, conhecimento desse crédito e possibilidade de operar uma qualquer compensação, que o crédito do Requerido não é superior ao da Requerente, as contribuições e impostos retidos pela Requerente eram obrigações do Requerido, ou seja, a Requerente pagou ao Requerido aqueles montantes que, por força do regime legal aplicável, reteve e entregou-os à autoridade Tributária e à Segurança Social em nome do mesmo, as obrigações contributivas próprias do Requerido que a Requerente cumpriu beneficiaram o próprio Requerido, com reflexo positivo na sua carreira contributiva e na quantificação do valor da sua futura reforma e, em relação aos impostos pagos, desconhece se teve reflexos no escalão de IRS e se até não foram reembolsados pelo Estado e se o Requerido não consegue reaver o que a Requerente pagou em seu nome, que também esta não conseguirá ver reembolsado o que também suportou directamente por causa das retribuições que pagou àquele, sendo certo que, todos os montantes foram efectivamente pagos ao Requerido, devendo este pagar à Requerida o valor ilíquido e não o líquido, não havendo abuso do direito e que se o Requerido apenas restituir o valor "líquido", será este que terá um enriquecimento injustificado.
Foi designada uma tentativa de conciliação não tendo as partes chegado a acordo.
Resultando do apenso B) que a Requerente foi declarada insolvente, foi dado conhecimento da existência dos presentes autos ao Administrador da Insolvência para efeitos do artigo 85.º n.º 1 do CIRE, tendo a Massa Insolvente informado que pretendia que estes prosseguissem no Juízo do Trabalho, para o que juntou procuração e ratificou o processado.
Foi proferido despacho que, nos termos do artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, determinou a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a possibilidade de ser proferida decisão sobre o mérito da causa sem necessidade de mais diligências instrutórias, ao que nada disseram.
Foi fixado à causa o valor de € 39.934,66 e dispensada a realização da audiência prévia.
Foi proferido saneador sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:
“Por tudo o que ficou exposto e nos termos das disposições legais citadas, julgo parcialmente procedente o presente incidente e, em consequência, fixo em € 26.019,55 (vinte e seis mil e dezanove euros e cinquenta e cinco cêntimos) a quantia devida pelo requerido, AA, à requerente, “SPDH – SERVIÇOS PORTUGUESES DE HANDLING, S.A.”, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre a dita quantia, desde o trânsito em julgado da presente decisão e até integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento – art.º 527º, nº 2, do CPC.
Registe e notifique.”
Inconformado, o Autor recorreu e formulou as seguintes conclusões:
“A) O presente recurso submetido à apreciação de V. Exas., vem interposto sentença de 29/09/2024 de fls..., na parte em que decidiu pela existência e exigibilidade do título executivo, objeto dos presentes autos.
B) Decidindo conforme decidiu, o Tribunal a quo violou os artigos 334.º e 854.º do Código Civil e o artigo 78º, nº1, da Lei Geral Tributária.
A. DOS VALORES EFETIVAMENTE PAGOS AO RECORRENTE E, NESSA MEDIDA, DEVIDOS À RECORRIDA
C) A douta sentença sustenta que a o recorrente é responsável pelo pagamento à recorrida, de 26.019,55€. Acontece que,
D) Conforme tais montantes aos valores ilíquidos constantes dos recibos de vencimento do recorrente.
E) Dos 26.019,55€ peticionados, o recorrente só recebeu 15.091,34 € (quinze mil e noventa e um euros e trinta e quatro cêntimos). Nada mais.
Efetivamente, o recorrente não pode devolver valores que nunca foram seus.
Ora,
F) Entre junho de 2008 e junho de 2009, em virtude de ter auferido a remuneração ilíquida mensal que agora a recorrida peticiona que lhe seja devolvida (26.019,55 €), foi aplicada a título de taxa social única (11% sobre o rendimento mensal), o montante total de 2.862,15 € (dois mil, oitocentos e sessenta e dois euros e quinze cêntimos), de fls…
G) Em sede de IRS (27% sobre o rendimento mensal), o recorrente suportou o montante total de 7.025,28 € (sete mil e vinte e cinco euros e vinte e oito cêntimos), de fls…
H) Assim, as quantias reclamadas pela recorrida incluem 10.928,21 € (dez mil, novecentos e vinte e oito euros e vinte e um cêntimos) relativos a cotizações e IRS.
I) Mesmo que o quisesse fazer, nunca poderia apresentar declarações de IRS de substituição ou requerer a revisão de atos tributários relativos aos anos em questão.
J) Efetivamente, o recorrente já não tem forma obter a devolução das quantias que lhe foram deduzidas a título de impostos, porquanto há muito que se encontram decorridos os quatro anos em que poderia pedir a revisão dos respetivos atos tributários (cfr. o artigo 78.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária).
Acresce que,
K) A diferença salarial em causa foi paga ao recorrente por decisão unilateral da recorrida. Ora, se a recorrida efetuou descontos indevidos, não pode vir fazer incidir sobre o recorrente as consequências de um lapso seu, sob pena de estar a exigir-lhe que devolva o que nunca recebeu!
L) A este respeito, dispõe o artigo 334.º do Código Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
M) Pelo que, em face do exposto no artigo 334.º do Código Civil, nunca poderia o requerido ser onerado, em virtude de um lapso para o qual não contribuiu, a pagar 10.928,21€ respeitantes a valores que nunca recebeu, sob pena de uma excessiva violação dos limites impostos quer pela boa-fé.
N) Mas mesmo que assim não fosse,
O) Em face do exposto no artigo 78.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, já não lhe é de todo o modo possível pedir a revisão dos respetivos atos tributários.
Com efeito,
P) Salvo melhor entendimento, não poderia o Tribunal a quo ter condenado o recorrente a pagar à recorrida a quantia de 26.019,55€.
B. DA RETROATIVIDADE DA COMPENSAÇÃO RELATIVAMENTE À DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA DA RECORRIDA – ARTIGO 854.º CC
Q) A douta sentença sustenta que a face da insolvência da recorrida obstaculiza à compensação de créditos, conforme peticionou o recorrente.
R) Não obstante, preceitua o artigo 854.º do Código Civil:
“Artigo 854.º
Retroactividade
Feita a declaração de compensação, os créditos consideram-se extintos desde o momento em que se tornaram compensáveis”
Ora,
S) Acontece que o trânsito em julgado da douta sentença que decretou a sua insolvência ocorreu aos 14/04/2023, cerca de um ano e quatro meses após a data em que deu entrada o incidente de liquidação que originou o processo nº 14510/17.7T8LSB-B, aos 02/12/2022.
T) A inutilidade das ações declarativas propostas por credores contra o devedor insolvente apenas se concretiza no momento em que a douta Sentença da insolvência transita em julgado.
Acresce que,
U) É a própria recorrida quem, na oposição deduzida aceita dever ao recorrente os valores por este subsidiariamente peticionados no requerimento inicial:
“(…) 71.º
Por esse motivo, aceita-se que, ultima ratio, o que tem que prevalecer é o critério usado no pedido subsidiário formulado pelo Requerente, calculando o subsídio de chefia indexado à retribuição base, devendo corrigir-se a percentagem aplicável ao mês de Dezembro de 2011 para 10% sobre a retribuição base de € 3.069,50, enquanto para os restantes meses e subsídios a percentagem será de 12%.
(…) 75.º
Face ao exposto, deve o crédito devido ao título de subsídio de chefia ao Requerente, em relação ao período entre Dezembro de 2011 e Abril de 2014, fixado no total ilíquido de € 12.093,83 (doze mil e noventa e três euros e oitenta e três cêntimos). (cfr. artigos 69.º a 76.º da oposição deduzida pela recorrida, no âmbito do processo nº 14510/17.7T8LSB-B, cujo translado ora se requer)
V) Reconhecido que está o crédito do recorrente, nos termos e para os efeitos do artigo 854.º do CC, devem estes considerar-se extintos desde o momento em que se tornaram compensáveis. Ou, dito de outra forma,
W) Aquando da dedução dos incidentes de liquidação e da oposição deduzida pelo ora recorrente, sendo os créditos peticionados compensáveis, operou, sem mais, a compensação entre ambos, pelo menos, na parte aceite pela recorrida.
Com efeito,
X) Decidindo conforme decidiu, a mui douta Sentença violou o disposto 854.º Código Civil.
Pelo que,
Y) Deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, sendo a mui douta sentença revogada e substituída por outra que que faça uma correta aplicação do direito.
Termos em que, dando provimento ao presente recurso, deve ser revogada a mui douta sentença recorrida, sendo substituída por outro que faça uma correta interpretação e aplicação do direito, e que condene o recorrente na restituição dos montantes líquidos que efetivamente auferiu, ou seja, 15.091,34€ e, ainda, que declare a compensação parcial do crédito da recorrida, no montante por si aceite, de 12.093,83€, nos termos dos artigos 78.º, nº 1 da LGT, e 334.º e 854.º do CPC.
Mais se requer, a V. Exa., o translado da oposição ao incidente de liquidação, deduzida no âmbito do processo nº 14510/17.7T8LSB-B (que correu termos no Juiz 3 do Juízo do Trabalho de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa), para que suba com o presente recurso.”
A Recorrida contra-alegou e apresentou as seguintes conclusões:
“1.ª - A Apelada deu início ao presente processo para liquidar o ponto II da parte decisória da Sentença proferida nos autos principais, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa;
2.ª - O crédito que o Requerido tem que pagar à Requerente foi fixado correctamente no valor de € 26.019,55 e respeita ao "diferencial correspondente à retribuição de cargo que lhe foi paga e a retribuição base que deveria ter recebido, de acordo com a sua categoria profissional e escalão em que estava inserido, no período compreendido entre 16 de Junho de 2008 e 15 de Junho de 2009";
3.ª - Ao valor não se tem que deduzir qualquer quantia referente a impostos e contribuições e que eram obrigações legais do Requerido e que a Requerente teve que reter e entregar à Autoridade Tributária e à Segurança Social em nome do mesmo;
4.ª - A referida quantia foi totalmente processada como auferida pelo Requerido, ainda que parte não tenha sido recebido por razões legais, parte essa que, de todo o modo, nem está definida nos autos;
5.ª - Não existe qualquer abuso de direito da Recorrente em ser restituída também do valor respeitante a impostos e contribuições devidas pelo Requerido, até porque a Sentença liquidada de nenhuma maneira determinou que essas obrigações estavam fora da restituição;
6.ª - O Tribunal a quo também decidiu não poder haver qualquer compensação, pois o crédito que o Requerido detinha sobre a Requerente não foi liquidado no processo;
7.ª - A liquidação do crédito não podia ser considerada por falta de alegação de factos constitutivos e quantitativos do direito no próprio processo e do apenso onde foi alegada a liquidação ter sido extinto por inutilidade superveniente por declaração de insolvência da ora Apelante;
8.ª - Insolvência essa que impedia que no processo existisse qualquer utilidade em fixar o crédito e que a compensação pudesse operar, pois todos os créditos têm que ser reclamados no processo de insolvência para serem considerados, ainda que anteriormente reconhecidos extra ou judicialmente, atenta plenitude desse procedimento e a igualmente de credores;
9.ª - Assim, ao valor fixado não tem que ser deduzido qualquer montante;
10.ª - A douta Sentença não violou qualquer preceito legal nos termos invocados pelo Apelante, nomeadamente o disposto nos art.ºs 334.º e 854.º do Código Civil e art.º 78, n.º 1, da Lei Geral Tributária, pelo que deve improceder a Apelação.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Apelante, assim se fazendo a habitual
JUSTIÇA!”
Foi proferido despacho que admitiu o recurso.
Recebidos os autos neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
O Recorrente respondeu reafirmando o já dito nas alegações do recurso.
A Recorrida respondeu que o Recorrente extravasou claramente a pronúncia sobre o Parecer do Ministério Público, aproveitando a ocasião para apresentar verdadeiras Alegações, pelo que deverá a pronúncia ser desentranhada e que, quando assim não se entenda, a pronúncia deverá ser desatendida uma vez que o Parecer fez boa apreciação da matéria em causa.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º nº 2 do CPC).
Assim, no presente recurso, cumpre apreciar as seguintes questões:
1.ª Se o diferencial devido pelo Requerido à Requerente não inclui o valor das quotizações entregues pela Requerente à Segurança Social, nem os valores retidos pela empregadora a título de IRS e que, ao pedir a sua restituição, a Requerente actua em abuso do direito.
2.ª- Se a declaração de insolvência da Requerente não obstaculiza à compensação do crédito do Requerido sobre a Requerida, devendo ser declarada a compensação parcial do crédito do Requerido no montante aceite pela Requerente de € 12.093,83.
Fundamentação de facto
O despacho saneador sentença considerou provados os seguintes factos:
A) – Na parte decisória da sentença proferida em 06/04/2019, no processo principal, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa já transitado em julgado, consta:
«Por tudo o que ficou exposto e nos termos das disposições legais citadas, julgo a acção parcialmente procedente e procedente a reconvenção, em consequência:
I – Condeno a ré a pagar ao autor o subsídio de chefia correspondente ao exercício das funções de responsável pela Área de Qualidade e Informática, no período compreendido entre Dezembro de 2011 e Abril de 2014;
II - Condeno o autor a devolver à ré o diferencial correspondente à retribuição de cargo que lhe foi paga e a retribuição base que deveria ter recebido, de acordo com a sua categoria profissional e escalão em que estava inserido, no período compreendido entre 16 de Junho de 2008 e 15 de Junho de 2009.».
B) – Nos factos provados na sentença proferida no processo principal, ficou, além do mais, referido:
«(…)
X) - Por acordo de gestão outorgado em 01/01/2007, cuja cópia consta de fls. 177 e 178 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, o autor passou a exercer o cargo de Director de Finanças e Contabilidade.
Y) - Por força do exercício do referido cargo, o autor tinha ainda direito aos seguintes benefícios:
- Telemóvel de serviço, sem limite atribuído;
- Concessão de viagens pessoais para todo o agregado familiar;
- Bónus variável indexado ao cumprimento dos objectivos de gestão.
Z) - Estas condições mantinham-se em vigor para todo o período de exercício do cargo de Director de Finanças e Contabilidade, bem como se mantinham ainda em vigor até um ano após a cessação do exercício das referidas funções.
AA) - No período compreendido entre Janeiro de 2007 e Dezembro de 2007, a “Groundforce Portugal” abonou e descontou ao autor as verbas discriminadas nos recibos cujas cópias constam de fls. 179 a 190 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
AB) - Em 16/06/2008, o autor cessou as funções do cargo de Director de Finanças e Contabilidade, cessação que lhe foi comunicada por carta da mesma data, cuja cópia consta de fls. 191 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
AC) - No período compreendido entre Janeiro de 2008 e Maio de 2009, a “Groundforce Portugal” abonou e descontou ao autor as verbas discriminadas nos recibos cujas cópias constam de fls. 192 a 208 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
AD) - No mês de Junho de 2009, a “Groundforce Portugal” abonou e descontou ao autor as verbas discriminadas na nota de vencimentos cuja cópia consta de fls. 209 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
(…)».
C) – Na fundamentação da mesma sentença, pode, além do mais, ler-se:
«(…)
Em 16/06/2008, o autor cessou as funções do cargo de Director de Finanças e Contabilidade.
Do acordo de gestão, referido e dado por reproduzido em X), por força do qual o autor passou a exercer as funções de Director de Finanças e Contabilidade, resulta que tal acordo regulou expressamente apenas os benefícios nele descritos.
Benefícios esses que deveriam manter-se “até um ano após eventual cessação dessas funções”.
Ora, como se extrai dos recibos e notas de vencimentos referidos e dados por reproduzidos em AC) e AD), após o termo das funções de Director de Finanças e Contabilidade, exercidas pelo autor, foi-lhe paga pela ré a retribuição de cargo, além dos referidos benefícios, no período de 16/06/2008 a 15/06/2009.
Assim, tendo o autor recebido indevidamente, naquele período, um diferencial correspondente à retribuição de cargo que lhe foi paga e a retribuição base que deveria ter recebido, de acordo com a sua categoria profissional e escalão em que estava inserido.
Devendo, por isso, devolver tal montante à ré.
Cujo exacto apuramento será igualmente efectuado, se necessário, em incidente de liquidação.
Operando-se a compensação com a quantia que se liquidar em dívida ao autor, nos termos supra referidos.
(…)
Não se mostrando liquidadas as quantias em dívida, não existe mora no pagamento, não havendo lugar à condenação nos respectivos juros.
(…)».
D) – No período compreendido entre 16/06/2008 e 15/06/2009, foi paga ao requerido a retribuição de cargo de € 5.150, quando devia ter sido paga uma retribuição base de € 3.069,50.
E) – O requerido deduziu contra a requerente incidente de liquidação, que constitui o apenso B, no qual indicou o valor de € 43.843,00.
F) – Por sentença de 08/11/2023, já transitada em julgado, foi julgada extinta a instância incidental, referida em E), por inutilidade superveniente da lide, devido à insolvência da ali requerida.
*
Com interesse para a decisão da causa e resultarem do Processo n.º 14510/17.7T8LSB-B, apensados aos autos principais, ao abrigo do disposto nos artigos 662.º n.º 1 e 663.º n.º 2 do CPC, adita-se aos factos provados os seguintes:
G)- Por sentença proferida em 03.08.2021, no Processo n.º 11437/21.1T8LSB, do Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 2, que transitou em julgado em 14.04.2022, foi declarada a insolvência da Requerida.
H)- O Processo n.º 14510/17.7T8LSB-B, no qual o Requerido deduziu incidente de liquidação contra a Requerida, iniciou-se em 02.12.2022.
I)-Nesse incidente, requereu o ora Recorrente a liquidação da parte da sentença de 06.04.2019, confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2020, que condenou a Requerida “a pagar ao requerido “o subsidio de chefia correspondente ao exercício das funções de responsável pela Área de Qualidade e Informática, no período compreendido entre Dezembro de 2011 e Abril de 2014”.
J)- No referido incidente peticionou o Requerente:
“a) Ser o requerido condenado a pagar ao requerente a quantia de 43.843, 00 € (quarenta e três mil, oitocentos e quarenta e três euros), devida ao requerente pelo exercício de funções de chefia no seio da organização da requerida no período compreendido entre dezembro de 2011 e abril de 2014, acrescido dos respetivos juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Caso assim não se entenda,
b) Ser o requerido condenado a pagar ao requerente, no mínimo, a quantia de 12.523,56 € (doze mil, quinhentos e vinte e três euros e cinquenta e seis cêntimos), devido ao requerente pelo exercício de funções de chefia no seio da organização da requerida no período compreendido entre dezembro de 2011 e abril de 2014, acrescido dos respetivos juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.”
K)- Em 20.01.2023, a Requerida deduziu oposição e no artigo 75.º invocou:
“75.º Face ao exposto, deve o crédito devido ao título de subsídio de chefia ao Requerente, em relação ao período entre Dezembro de 2011 e Abril de 2014, fixado no total ilíquido de € 12.093,83 (doze mil e noventa e três euros e oitenta e três cêntimos).
L)-Em 28.08.2023, o Recorrente intentou contra a massa insolvente da Requerente acção declarativa de verificação ulterior de créditos, invocando ser titular sobre a Requerente de créditos reconhecidos por sentença proferida no Processo n.º 14510/17.7T8LSB, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2020, pendente de liquidação.
Formulou o seguinte pedido:
“a) Ser reconhecido, verificado e qualificado como crédito privilegiado, o crédito do autor no valor de 43.843,00€ (quarenta e três mil, oitocentos e quarenta e três euros) devido ao autor pelo exercício de funções de chefia no seio da organização da ré no período compreendido entre dezembro de 2011 e abril de 2014, acrescido dos respetivos juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Subsidiariamente
b) Ser reconhecido, verificado e graduado como crédito privilegiado, o crédito do autor no valor mínimo de 12.523,56 (doze mil quinhentos e vinte e três euros e cinquenta e seis cêntimos), devido ao autor pelo exercício de funções de chefia no seio da organização da ré no período compreendido entre dezembro de 2022 e abril de 2014, acrescido dos respetivos juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.”
*
Fundamentação de direito
Previamente à apreciação das questões suscitadas no recurso importa referir o seguinte:
Na resposta ao Parecer do Ministério Público, a Recorrida invocou que o Recorrente extravasou claramente a pronúncia sobre tal Parecer aproveitando a ocasião para apresentar verdadeiras Alegações, pelo que, deverá a pronúncia ser desentranhada.
Antes de mais, salvo o devido respeito, não cabe à Recorrida pronunciar-se sobre o teor da resposta que a contraparte apresentou ao Parecer do Ministério Público, mas apenas e tão só pronunciar-se sobre tal Parecer. Por outro lado, o exercício do contraditório relativamente ao Parecer não impede que as partes reafirmem o que já alegaram no recurso, sendo certo que, no caso, o Parecer foi no sentido da improcedência do recurso, daí que se compreenda e seja admissível o teor da resposta apresentada pelo Recorrente. Consequentemente, por falta de fundamento legal, não se determina o desentranhamento da resposta apresentada pelo Recorrente.
*
Comecemos por apreciar se o diferencial devido pelo Requerido, ora Recorrente, à Requerente, ora Recorrida, não deve incluir o valor das quotizações entregues pela empregadora à Segurança Social, nem os valores retidos pela empregadora a título de IRS e que, ao pedir a sua restituição, a Requerente actua em abuso do direito.
Ou seja, trata-se de saber se o Recorrente deve pagar à Recorrida o valor de € 26.019,55 (valor ilíquido das retribuições do Requerido relativas ao período compreendido entre 16 de Junho de 2008 e 15 de Junho de 2009) ou se, como defende o Recorrente, deve ser condenado apenas na restituição dos montantes líquidos que auferiu, isto é, € 15.091,34. Pretende, assim, o Recorrente que não seja considerado na restituição à Recorrida o valor de € 10.928,21 € de quotizações pagas à Segurança Social no montante de € 2.862,15, de IRS no valor de € 7.025,28 e de € 1 040,78 relativos a subida de escalão.
Sobre a questão pronunciou-se a sentença recorrida nos seguintes termos:
“(…).
Finalmente, alega o requerido que a requerente, sob pena de incorrer em abuso do direito, só poderá exigir a devolução do montante de € 15.091,34, correspondente à quantia líquida que pagou ao requerido no período em causa, e não o montante de € 26.019,55, que liquida, correspondente à quantia ilíquida paga e que o requerido efectivamente não recebeu.
Vejamos.
Como se extrai dos recibos e notas de vencimentos referidos e dados por reproduzidos em AC) e AD) dos factos provados na sentença proferida no processo principal, no período de 16/06/2008 a 15/06/2009, foi pago indevidamente, pela requerente ao requerido, um diferencial no montante ilíquido de € 26.019,55, valor que não se mostra controvertido.
Relativamente a tais quantias, ilíquidas, pagas ao requerido, a requerente, no cumprimento da obrigação que sobre si impendia enquanto substituto tributário, reteve e entregou à autoridade Tributária e à Segurança Social, em nome do requerido, os montantes correspondentes às contribuições e impostos cujo pagamento era da responsabilidade daquele como contribuinte, enquanto obrigações contributivas próprias.
Assim, tais obrigações contributivas tiveram a virtualidade de beneficiar o requerido, com reflexo positivo na sua carreira contributiva e na quantificação do valor da sua futura reforma, independentemente do reflexo que eventualmente possam ter tido na determinação do escalão do IRS em que o mesmo se inseria.
Sendo certo que, também a requerente cumpriu obrigações contributivas e fiscais próprias pelas retribuições que pagou ao requerido, nos termos do regime legal aplicável.
Não se verificando no pedido efectuado pela requerente a este título, qualquer abuso do direito.
Aqui chegados e sem necessidade de mais alongadas considerações, só podemos concluir pela procedência parcial do presente incidente.”
Discordando da sentença recorrida sustenta o Recorrente, em suma, que, dos € 26.019,55 peticionados pela Requerente, o Recorrente só recebeu € 15.091,34 dado que, dos mencionados € 26.019,55, € 10.928,21 respeitam a quotizações para a Segurança Social e retenção a título de IRS, que, face ao disposto no artigo 78.º n.º 1 da Lei Geral Tributária, o Recorrente já não tem forma de obter a devolução das quantias que lhe foram deduzidas a título de imposto, que a diferença salarial foi-lhe paga por decisão unilateral da Requerente e se esta efectuou descontos indevidos não pode agora fazer recair sobre o Recorrente as consequências de lapso seu para o qual o Requerido nunca contribuiu, que ao exigir que o Requerido lhe restitua o que nunca recebeu está a agir em abuso do direito, por excessiva violação dos limites impostos pela boa fé e que o Recorrente não teve um benefício pelo facto de ter descontos em seu nome, nem tal contribuiu para a sua carreira contributiva, tal fez com que a taxa de IRS que lhe foi aplicada no final do ano tenha sido superior e a Recorrida teve, também ela, um benefício pois pode levar tais quantias que suportou a custos, não sendo taxada com lucros.
Vejamos:
De acordo com o artigo 334.º do Código Civil “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como escrevem Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, no “Código Civil Anotado”, Volume I, 3.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pags. 296 e 297, “A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Basta que se excedam esses limites.
(…).
Exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria geral das obrigações, pág. 63). Vaz Serra refere-se, igualmente, «à clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante» (Abuso do direito, no B.M.J., n.º 85, pág. 253). (…).
4. Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade.
Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei.
(…).
7. O abuso do direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido: (…)”
A sentença de 06.04.2019 reconheceu à Recorrida o direito a que lhe fosse restituído o diferencial que pagou ao Recorrente “correspondente à retribuição de cargo que lhe foi paga e a retribuição base que deveria ter recebido, de acordo com a sua categoria profissional e escalão em que estava inserido, no período compreendido entre 16 de Junho de 2008 e 15 de Junho de 2009.”
Não concretizou o conteúdo do mencionado diferencial e se no mesmo cabiam os valores retidos e entregues pela Recorrida ao Estado, a título de IRS e a título de quotizações à Segurança Social.
Atentemos em cada uma desses valores de per si.
Nos termos do artigo 1.º n.º 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares “O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias seguintes, mesmo quando provenientes de atos ilícitos, depois de efetuadas as correspondentes deduções e abatimentos:
Categoria A - Rendimentos do trabalho dependente;
(…).”
E de acordo com o n.º 2 da mesma norma, “Os rendimentos, quer em dinheiro quer em espécie, ficam sujeitos a tributação, seja qual for o local onde se obtenham, a moeda e a forma por que sejam auferidos.”
O n.º 1 do artigo 2.º do mesmo Código (Rendimentos da categoria A) estabelece:
“1- Consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de:
a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado;
(…).”
E nos termos do n.º 2 “As remunerações referidas no número anterior compreendem, designadamente, ordenados, salários, vencimentos, gratificações, percentagens, comissões, participações, subsídios ou prémios, senhas de presença, emolumentos, participações em multas e outras remunerações acessórias, ainda que periódicas, fixas ou variáveis, de natureza contratual ou não.”
O artigo 13.º do mesmo Código, relativo ao sujeito passivo, determina no seu n.º 1 que “Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.”
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 99.º estatui que “São obrigadas a reter o imposto no momento do seu pagamento ou colocação à disposição dos respetivos titulares as entidades devedoras:
a) De rendimentos de trabalho dependente, com exceção dos rendimentos em espécie e dos previstos na alínea g) do n.º 3 do artigo 2.º; e
(…).”
Nos termos do artigo 99.º-C:
“1 - Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 8 do artigo 99.º, a retenção de IRS é efetuada sobre as remunerações mensalmente pagas ou postas à disposição dos seus titulares, mediante a aplicação das taxas que lhes correspondam, constantes da respetiva tabela.
2 - Considera-se remuneração mensal o montante pago a título de remuneração fixa, acrescido de quaisquer outras importâncias que tenham a natureza de rendimentos de trabalho dependente, tal como são definidos no artigo 2.º, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
(…).”
Do exposto resulta que a Recorrida estava obrigada a proceder às retenções e entrega ao Estado das quantias relativas a IRS, na qualidade de substituto e, nessa medida, de sujeito passivo. Com efeito, refere o n.º 3 do artigo 18.º da Lei Geral Tributária (DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro) que “O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.”
E de acordo com o artigo 20.º da LGT, “A substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte (n.º 1) e “A substituição tributária é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido.” (n.º 2)
No período em causa (16 de Junho de 2008 e 15 de Junho de 2009) o Recorrente prestou trabalho e auferiu as retribuições que lhe foram pagas pela Requerente tendo esta retido na fonte os valores devidos ao Estado a título de IRS (cfr. artigo 34.º da LGT).
E como já vimos, a Recorrida estava obrigada a reter na fonte o imposto devido, isto é, o imposto correspondente às retribuições que efectivamente pagou, independentemente do valor destas dever ser inferior ao que pagou, como se veio a apurar na sentença de 06.04.2019.
No que se refere aos valores das contribuições para a Segurança Social, resulta que a Recorrida reteve e entregou à Segurança Social o valor de €2 862,15 que resultou da aplicação da taxa de 11% sobre o rendimento do Recorrente
A Taxa Social Única (TSU) foi instituída pelo artigo 74º da Lei nº 9/86, de 30 de Abril.
Estatui a referida norma:
“1- Fica o Governo autorizado a instituir uma taxa social única, mediante a extinção das quotizações para o Fundo de Desemprego e o aumento, ou criação, se for caso disso, das taxas das contribuições para a Segurança Social.
2- Fica o Governo autorizado a fixar em 11% e 24%, respectivamente para os trabalhadores e para as entidades empregadoras, as taxas das contribuições para o regime geral da Segurança Social, sem prejuízo da manutenção da taxa a que se refere o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 200/81, de 9 de Julho, destinada ao financiamento do risco de doença profissional.
3- O disposto no número anterior não prejudica a fixação pelo Governo de taxas mais favoráveis que tenham em conta a existência de regimes ou esquemas contributivos especiais.”
Assim, a TSU traduz-se num encargo contributivo que incide sobre o salário bruto mensal dos trabalhadores e que é entregue à Segurança Social pelo trabalhador e pelo empregador nos montantes fixados pela lei. Ou seja, trata-se de uma obrigação quer do trabalhador, quer da empregadora.
A Requerente reteve para entrega à Segurança Social o valor que o Requerido/Recorrente estava obrigado a entregar àquela instituição (11%)
Contudo, não podemos acompanhar a afirmação do Tribunal a quo de que tais descontos têm “a virtualidade de beneficiar o requerido, com reflexo positivo na sua carreira contributiva e na quantificação do valor da sua futura reforma.” Na verdade, considerando os cálculos para a obtenção dos valores das reformas, a circunstância de, no período em causa ter sido descontado ao Recorrente valor superior ao devido, pode não ser igual a um aumento do valor da futura reforma.
Em suma, a Recorrida estava obrigada a efectuar as retenções e entregas que efectuou
É certo que, por lapso que lhe é exclusivamente imputável, a Recorrida pagou ao Recorrente mais do que lhe era devido e, por isso, também descontou mais a título de IRS e de quotizações para a Segurança Social.
E também não ignoramos que não se provou que o Recorrente contribuiu, de algum modo, para o lapso da Requerente. Mas será que, perante este cenário será de afirmar, como afirma o Recorrente, que ao pedir a restituição daqueles valores que entregou ao Estado e à Segurança Social, a Requerente excede, manifestamente, os limites impostos pela boa fé e actua em abuso do direito?
Entendemos que não. Senão vejamos.
Independentemente de a retribuição paga ao Recorrente decorrer de lapso da Recorrida, o certo é que, como já dissemos, esta estava obrigada a pagar os valores que reteve e entregou ao Estado e à Segurança Social.
Invoca o Recorrente que, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, já não pode pedir a revisão do acto tributário por já ter decorrido o prazo de quatro anos.
Porém, salvo o devido respeito, entendemos que a mencionada norma não é a aplicável ao caso, antes sendo o regime relativo ao procedimento de reclamação graciosa regulado nos artigos 68.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro.
Nos termos do n.º 1 do artigo 68.º do mencionado Código, “1 - O procedimento de reclamação graciosa visa a anulação total ou parcial dos actos tributários por iniciativa do contribuinte, incluindo, nos termos da lei, os substitutos e responsáveis.”
De acordo com o artigo 70.º n.º 1 do mesmo Código, “1 - A reclamação graciosa pode ser deduzida com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial e será apresentada no prazo de 120 dias contados a partir dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º”
Contudo, o n.º 4 do artigo 70.º estabelece que “4 - Em caso de documento ou sentença superveniente, bem como de qualquer outro facto que não tivesse sido possível invocar no prazo previsto no n.º 1, este conta-se a partir da data em que se tornou possível ao reclamante obter o documento ou conhecer o facto.”
Com base nas citadas normas, entendemos que o Recorrente sempre poderá reclamar e requerer a anulação dos actos tributários que incidiram sobre as retribuições pagas indevidamente e que determinaram a subida de escalão, repondo-se, assim, a situação que deveria existir não fosse o lapso da Recorrida.
E o mesmo raciocínio é aplicável às quotizações para a Segurança Social, isto é, tendo sido descontado ao Recorrente valor superior ao devido, assiste-lhe o direito de, perante aquela entidade, pedir a devolução das quantias pagas a mais.
Assim, sopesando, por um lado, que a Recorrida estava obrigada a proceder aos descontos que efectuou e que o Recorrente pode ver reposta a situação tributária e contributiva perante a Segurança Social que se deveria ter verificado caso não lhe tivessem sido pagas retribuições em valor superior às devidas, não se pode afirmar que a Requerente exerceu o seu direito “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
*
Debrucemo-nos, agora, sobre a questão de saber se a declaração de insolvência da Requerente não obstaculiza à compensação do crédito do Requerido sobre a Requerida devendo ser declarada a compensação parcial do crédito do Requerido no montante aceite pela Requerente de €12.093,83.
Sobre a questão escreve-se na sentença recorrida o seguinte:
“Na mesma oposição, vem o requerido excepcionar a compensação do crédito que detém sobre a requerente, no montante de € 43.843,00, pedido no dito incidente de liquidação.
Ora, como se deixou dito em F) dos fatos provados, tal instância incidental foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, devido à insolvência da ali requerida, por sentença de 08/11/2023, já transitada em julgado.
Assim, não tendo sido liquidado qualquer crédito do requerido sobre a requerente, não se mostra possível operar a pretendida compensação.”
Invoca o Recorrente, em suma, que o trânsito em julgado da sentença que decretou a insolvência da Requerente ocorreu aos 14/04/2023, cerca de um ano e quatro meses após a data em que deu entrada o incidente de liquidação que originou o processo nº 14510/17.7T8LSB-B, aos 02/12/2022, que a inutilidade das ações declarativas propostas por credores contra o devedor insolvente apenas se concretiza no momento em que a sentença da insolvência transita em julgado, que foi a própria Recorrida quem, nos artigos 71.º e 75.º da oposição deduzida, aceitou dever ao Recorrente os valores por este subsidiariamente peticionados no requerimento inicial (€ 12.093,83), e que, face ao disposto no artigo 854.º do CC, aquando da dedução dos incidentes de liquidação e da oposição deduzida pelo Recorrente, sendo os créditos peticionados compensáveis, operou, sem mais, a compensação entre ambos, pelo menos, na parte aceite pela Recorrida.
Vejamos.
A compensação é uma das formas de extinção das obrigações.
O artigo 847.º do Código Civil sob a epígrafe Requisitos estatui:
“1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.
3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.”
E de acordo com o nº 1 do artigo 848.º do Código Civil, a compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra.
Por seu turno, estatui o artigo 854.º do CC (retroactividade da compensação) que feita a declaração de compensação, os créditos consideram-se extintos desde o momento em que se tornaram compensáveis.
Sobre a noção de compensação e suas modalidades escreve João de Matos Antunes Varela, na obra “Das Obrigações em geral”, vol. II, 3.ª Edição, Almedina. Coimbra, pág. 161:” A compensação é exactamente o meio de o devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o credor.
Logo que se verifiquem determinados requisitos, a lei prescinde do acordo de ambos os interessados, para admitir a extinção das dívidas compensáveis, por simples imposição de um deles ao outro. Diz-se, quando assim é, que as dívidas (ou os créditos) se extinguem por compensação legal (unilateral).
Havendo acordo das partes, a extinção pode operar-se mesmo sem a verificação de alguns dos requisitos exigidos para a compensação legal. Há nesse caso, a chamada compensação voluntária, contratual ou convencional.”
No presente caso está em causa a denominada compensação legal.
E de acordo com o mesmo autor e obra, págs. 165 a 172, para que a compensação opere, além da declaração a que alude o artigo 848.º do CC, é necessário que se verifiquem os seguintes pressupostos: reciprocidade dos créditos; validade, exigibilidade e exequibilidade do contra crédito (do compensante); fungibilidade do objecto das obrigações, o que não pressupõe que as prestações em dívida tenham de ser do mesmo montante, pois não sendo do mesmo montante a compensação pode dar-se na parte correspondente conforme dispõe o n.º 2 do artigo 848.º; e existência e validade do crédito principal.
Em anotação ao artigo 854.º refere-se no Código Civil citado supra, Volume II, pág. 127: “A extinção das obrigações deixou de resultar imediatamente da lei, verificados certos pressupostos ou requisitos, passando a assentar sobre a declaração de vontade de uma das partes dirigida à outra. Feita, porém, a declaração, tudo se passa como se as obrigações se tivessem extinguido no momento da verificação dos pressupostos que condicionam a compensação.”
Revertendo ao caso, analisado o dispositivo da sentença proferida em 06.04.2019 que condenou ambas as partes, dúvidas não existem de que se verifica o requisito da reciprocidade de créditos. E também estão verificados os requisitos das alíneas a) e b) do artigo 847.º do CC.
Cremos que a mencionada sentença também reconhece que aqueles se verificam, pois, na fundamentação refere:
Operando-se a compensação com a quantia que se liquidar em dívida ao autor, nos termos supra referidos.”
Desconhece-se, no momento, o montante do crédito do Recorrente sobre a Recorrida, pois o incidente de liquidação que aquele deduziu contra esta foi julgado extinto por inutilidade superveniente da lide em virtude de a Recorrida ter sido declarada insolvente (cfr. Apenso B).
Acrescenta-se que, apesar de em 28.08.2023 o Recorrente ter intentado, agora contra a massa insolvente da Recorrida, acção declarativa de verificação ulterior de créditos, invocando ser titular sobre a mesma de créditos reconhecidos por sentença proferida no Processo n.º 14510/17.7T8LSB, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2020, pendente de liquidação, na qual pediu que fosse reconhecido, verificado e qualificado como crédito privilegiado, o seu crédito no valor de € 43.843,00 e, subsidiariamente, fosse reconhecido, verificado e graduado como crédito privilegiado, o seu crédito no valor mínimo de € 12.523,56, a verdade é que desconhece-se se o crédito do Recorrente já foi liquidado.
E, nessa medida, o saneador sentença recorrido, considerando que, não tendo sido liquidado qualquer crédito do Recorrente sobre a Recorrida, entendeu não ser possível operar a compensação pretendida pelo Recorrente.
Sucede, porém, que o n.º 3 do artigo 847.º do Código Civil refere, expressamente, que a iliquidez da dívida não impede a compensação, donde, o fundamento apontado pela sentença recorrida para afastar a compensação não procede.
Como se escreve na obra supra citada, Volume II, pág. 118, “O n.º 3 alterou a doutrina do n.º 1 do artigo 765.º do Código de 1867, ao permitir a compensação de dívidas ilíquidas. Adoptou-se a solução dos Códigos alemão, suíço e grego, que Vaz Serra justifica nestes termos (est.cit., n.º 10): «É esta a orientação que se afigura preferível. Embora a liquidação do crédito seja demorada, a verdade é que o credor não deve ser prejudicado com esse facto, quando, se o montante do crédito estivesse determinado, poderia socorrer-se das vantagens que a compensação lhe assegurava. Mal se compreende que um credor, porque o seu crédito é líquido, possa prevalecer-se dessas vantagens, dispensando-se, por exemplo, de pagar ao seu credor insolvente o que lhe deve, e que outro credor, só porque teve a infelicidade de o seu crédito não estar liquidado, não possa aproveitar-se de idênticas vantagens».”
Contudo, há que relembrar que a Recorrida foi declarada insolvente antes de se mostrar liquidado o crédito do Recorrente e, por isso, para apurar da possibilidade de compensação do seu crédito impõe-se chamar à colação o que, a este propósito, regula o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (DL n.º 53/2004, de 18 de Março).
Com efeito, apesar de no incidente de liquidação deduzido pelo Recorrente contra a ora Recorrida esta, na oposição, ter aceitado a existência de um crédito do Recorrente no valor de €12.093,83, face à declaração de insolvência da Recorrida, entendemos não ser possível retirar da oposição deduzida no processo extinto por inutilidade superveniente da lide, as mesmas consequências que extrai o Recorrente e afirmar que “sendo os créditos peticionados compensáveis, operou, sem mais, a compensação entre ambos, pelo menos, na parte aceite pela recorrida”.
Com efeito, dispõe o artigo 90.º do CIRE que “Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.”
E de acordo com o artigo 99.º do mesmo Código:
“1 - Sem prejuízo do estabelecido noutras disposições deste Código, a partir da declaração de insolvência os titulares de créditos sobre a insolvência só podem compensá-los com dívidas à massa desde que se verifique pelo menos um dos seguintes requisitos:
a) Ser o preenchimento dos pressupostos legais da compensação anterior à data da declaração da insolvência;
b) Ter o crédito sobre a insolvência preenchido antes do contra-crédito da massa os requisitos estabelecidos no artigo 847.º do Código Civil.
2 - Para os efeitos das alíneas a) e b) do número anterior, não relevam:
a) A perda de benefício de prazo prevista no n.º 1 do artigo 780.º do Código Civil;
b) O vencimento antecipado e a conversão em dinheiro resultantes do preceituado no n.º 1 do artigo 91.º e no artigo 96.º
3 - A compensação não é prejudicada pelo facto de as obrigações terem por objecto divisas ou unidades de cálculo distintas, se for livre a sua conversão recíproca no lugar do pagamento do contra-crédito, tendo a conversão lugar à cotação em vigor nesse lugar na data em que a compensação produza os seus efeitos.
4 - A compensação não é admissível:
a) Se a dívida à massa se tiver constituído após a data da declaração de insolvência, designadamente em consequência da resolução de actos em benefício da massa insolvente;
b) Se o credor da insolvência tiver adquirido o seu crédito de outrem, após a data da declaração de insolvência;
c) Com dívidas do insolvente pelas quais a massa não seja responsável;
d) Entre dívidas à massa e créditos subordinados sobre a insolvência.”
Sobre esta norma escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2019, Proc. n.º 146570/14.0YIPRT.C1.S1, consulta em www.dgsi.pt:
“I O CIRE, ao contrário da legislação pregressa, que não admitia a compensação (artigo 153º do CPEREF), prevê expressamente tal possibilidade, nos termos especificamente consignados no artigo 99º, ressalvadas as situações do seu nº4.
II A compensação de créditos em sede insolvencial aparece-nos como uma garantia (tendo em atenção a natureza polissémica deste termo), pois confere ao seu titular a possibilidade de se ver ressarcido do seu crédito de uma forma «privilegiada» em relação aos demais credores comuns, abstendo-se de desembolsar qualquer quantia, fazendo deduzir o montante da sua dívida ao do contra crédito sobre o seu devedor/credor, determinando-se desta forma o valor final do crédito «compensado».
III Instaurada pela massa Insolvente contra uma sua devedora, acção para cobrança de dívida, pode esta opor àquela, em sede de compensação, o crédito que assim lhe foi reconhecido na oportunidade em reclamação de créditos suscitada por apenso ao processo de insolvência, reconhecimento esse que fez caso julgado.”
E como refere o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.09.2016, Proc. n.º 364/14.9T8BRR-F.L1-6, igual consulta:
“Não existe o impedimento à compensação a que se refere o artigo 99.º, n.º 4, alínea a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, quando as dívidas a compensar não se constituíram após a data de declaração da insolvência, estando verificados antes daquela data os requisitos das alíneas b) e a) do n.º 1 do artigo 847.º do Código Civil.”
Ainda sobre o artigo 99.º do CIRE sumaria o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.06.2019, Proc. n.º 3000/16.5T8VNF-A.G1, também consultável e www.dgsi.pt:
“O art.º 99.º do CIRE estabelece o regime geral dos efeitos da declaração de insolvência na compensação de créditos sobre a insolvência, cfr. art.º 47.º do CIRE, com dívidas à massa insolvente, cfr. art.º 51.º do CIRE.
De acordo com o disposto no art.º 90.º do CIRE, só pode ser considerado titular de créditos sobre a insolvência, designadamente para efeitos de compensação de créditos com a massa insolvente, quem como tal tenha sido reconhecido no processo de insolvência como credor.
Para operar a compensação teria a executada que reclamar o seu crédito na insolvência, porque só pode ser considerado credor quem tiver sido reconhecido no respectivo processo.”
Ora, como já vimos supra, o Recorrente interpôs contra a massa insolvente acção declarativa de verificação ulterior de créditos. O Recorrente não alegou nem provou que o seu crédito já foi reconhecido no processo de insolvência.
Consequentemente, não tenho feito essa prova, não pode operar a compensação que invocou, pois, a tanto obsta o que dispõem os artigos 1, n.º 1, 47.º, 90.º e 192.º do CIRE.
Improcede também esta vertente do recurso e o recurso em toda a sua extensão.
Considerando o disposto no artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas do recurso são da responsabilidade do Recorrente
Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e confirmar o despacho saneador sentença recorrido.
Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 9 de Abril de 2025
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Leopoldo Soares
Maria José Costa Pinto