PLATAFORMA DIGITAL
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
Sumário

I. A presunção contida no art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, delimita, por via do n.º 2 deste preceito, o seu âmbito de aplicação objectiva e subjectiva, aplicando-se às relações jurídicas que se estabeleçam entre a plataforma digital e os indivíduos que, a troco de pagamento, lhe prestem trabalho e às actividades organizadas de disponibilização de serviços à distância através de sítio na internet ou aplicação informática que envolve justamente o recurso àqueles indivíduos.
II. Em ordem ao preenchimento da alínea a) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho há-de estar presente, a par do poder de a plataforma unilateralmente fixar o valor devido ao trabalhador, também a natureza periódica e regular dos pagamentos – porque são estas características que assinalam a expectativa de ganho do trabalhador e evidenciam a dependência económica típica do trabalho subordinado – e a sua directa associação à actividade que é desenvolvida.
III A al. b) do n.º 1 do art.º 12.º do Código do Trabalho convoca a presença, na relação jurídica que se estabeleça entre a plataforma e o trabalhador, do poder de direcção, sendo que embora a lei indique, ainda que a título meramente exemplificativo, situações nas quais se surpreende o exercício desse poder, a realidade poderá ser muito mais abrangente e projectar-se o seu exercício, até pela sua natureza multifacetada, em muitos outros aspectos da actividade do trabalhador.
IV. A al. c) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho alude ao poder de controlo, supervisão e qualidade da prestação do trabalhador, traduzindo-se a sua especificidade no modo como este poder de fiscalização se poderá, entre outras formas, manifestar: os meios electrónicos ou de gestão algorítmica.
V. A al. d) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho condensa o que inere à situação de subordinação em que se coloca o trabalhador no âmbito do vínculo laboral, nela se salientando a disponibilidade a ele associada e a possibilidade de, por essa via, o empregador garantir que tem à disposição trabalhadores que permitem a prossecução da sua actividade ou objecto social.
VI. A al. e) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho alude ao exercício do poder disciplinar, sendo que este, seja em que caso for e seja qual for a forma por via do qual se manifeste, não sobrevive sem que, a montante, existam os poderes de direcção e de conformação da actividade.
VII. O elemento caracterizador do facto base presuntivo previsto na al. f) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho consiste na disponibilização, pelo destinatário da atividade prestada, dos bens necessários à sua concretização que se enquadrem nos conceitos de equipamentos e instrumentos de trabalho.
VIII. Resultando provado que não é a plataforma quem procede ao pagamento de quaisquer valores ao estafeta, que este não se encontra sujeito aos poderes de direcção, de fiscalização e disciplinar por parte da plataforma, que só se integra na organização da plataforma, a fim de receber pedidos de entrega e de os executar, quando entende e que, mesmo recebendo-os, pode recusá-los sem qualquer justificação adicional, e que, no exercício da sua actividade não utiliza bens ou instrumentos de trabalho pertença ou disponibilizados pela plataforma, não será de reconhecer a existência, entre o prestador e a plataforma, de um contrato de trabalho.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Trabalho de Lisboa, intentou a presente acção especial de reconhecimento de contrato de trabalho contra “Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda.” peticionando que fosse declarada a existência de contrato de trabalho entre a empregadora e o trabalhador AA desde 28 de Junho de 2023.
Alegou o Ministério Público, em síntese, que: (i) desde Junho de 2023 que entre a empregadora1 e AA existe uma relação laboral, uma vez que integra este a estrutura organizativa da empregadora; (ii) o trabalhador recebe uma quantia mensal variável, sem negociação; (iii) toda a sua atividade é controlada pela empregadora, apesar de existir intermediária, sendo que aquela assim procede através dos meios eletrónicos ou de gestão algorítmica, fazendo uso da geolocalização; (iv) o trabalhador, que observa, por regra, um horário de trabalho, é avaliado pela empregadora; (v) o trabalhador não se pode fazer substituir, tendo uma credencial unipessoal e confidencial; (vi) a empregadora pode restringir o acesso do trabalhador à plataforma; (vii) todas as regras da prestação de trabalho do trabalhador são fixadas pela empregadora, supervisionando esta, em tempo real, esse trabalho por meio da geolocalização; (viii) a plataforma é o instrumento de trabalho utilizado.
2. A empregadora contestou a acção, alegando, em breve síntese, que: (i) o trabalhador presta a sua actividade de modo autónomo, inexistindo ordens, subordinação, poder disciplinar, horário ou qualquer controlo do modo como assim procede; (ii) o trabalhador pode trabalhar quando quer e onde quer, durante o tempo que quer, podendo até ficar longos meses ou anos sem se ligar na plataforma; (iii) o trabalhador pode escolher o percurso que entende para entregar os pedidos, sem qualquer interferência da empregadora, e decidir, ele próprio, aceitar ou recusar pedidos; (iv) é também o trabalhador quem fixa o valor mínimo que quer receber (valor mínimo das propostas), embora possa, ainda assim, aceitar abaixo desse valor; (v) a existência do sistema de geolocalização apenas existe para que o trabalhador possa receber as propostas e para o cliente poder acompanhar a entrega e contactá-lo sendo caso disso; (vi) o trabalhador, durante o mesmo período de tempo em que trabalha para a empregadora, pode trabalhar para outras plataformas, não tendo exclusividade, ou ter os seus próprios clientes.
Conclui, assim, pela inexistência de indícios permitam concluir pela existência de contrato de trabalho.
3. O trabalhador, notificado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 186.º-L, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, nenhuma pretensão ajuizou nos autos.
4. Efectuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a empregadora do pedido.
5. O Ministério Público, irresignado com a sentença da 1.ª instância, dela interpôs recurso, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:
«1. O Ministério Público não se conformando com a decisão proferida por entender, conforme ab initio entendeu, que a relação existente entre o indicado estafeta AA e o Uber Eats – Portugal – Unipessoal, Lda. configura uma relação laboral, o que é patente da prova colhida e produzida nos autos, mas que não encontra respaldo, na respectiva fundamentação proferida pelo tribunal a quo.
2. Assim, remetendo-nos ao caso concreto devemos analisar os factos provados à luz do método indiciário.
3. A titularidade dos meios de produção ou dos instrumentos de trabalho: resulta verificado este indício na medida em que a Uber Eats opera e gere uma plataforma eletrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva.
4. Assim, podemos concluir que infraestrutura essencial da actividade aqui em causa é o software gerido pela Ré, sendo a propriedade do veículo, do telemóvel e da mochila térmica acessórias, na medida em que na mera posse destes instrumentos de trabalho a prestação dos estafetas seria inviável, sendo a própria aplicação o único meio de subsistência deste sistema de entregas e deste modelo de negócio.
5. O poder de direcção e de conformação do modo como é prestada a actividade: também resulta verificado dado que e a Ré através da sua aplicação informática, organiza e gere a actividade de recolha, transporte e entrega de mercadorias.
6. Encontrando-se este procedimento perfeitamente padronizado visto que decorrerá da mesma forma, independentemente do ponto geográfico onde é prestado e da concreta pessoa do estafeta, que se limitará a seguir todo o esquema previamente definido pela Ré.
7. O exercício do poder sancionatório: também resulta verificado, entre outros motivos pelo facto da “plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desactivar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta (…)”.
8. O modo de cálculo da retribuição: que também indica subordinação, visto que é a Ré quem determina as regras essenciais de fixação da retribuição, tal como concluem os factos provados onde se diz que “a plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efectua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta filtrar, aceitando ou não os pedidos que aceita no ecrã”.
9. Pelo que depois de proceder à análise dos items que supra referimos, parece-nos que resultam provados indícios relevantes de um contrato de trabalho, que deveria ter sido declarado na douta sentença recorrida.
10. Acresce que, o legislador estabeleceu, no artigo 12º-A do Código do Trabalho, uma presunção de laboralidade que tem por objectivo dispensar o encargo do ónus da prova que recairia sobre o trabalhador de todos os elementos que caracterizam o contrato de trabalho.
11. Ou seja, de acordo com o normativo transcrito, o preenchimento da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital está dependente da verificação de pelo menos dois dos seguintes requisitos dos seguintes requisitos que passamos a analisar.
12. a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela: resulta verificado tal como consta do ponto 18 dos factos provados “a plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efectua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta filtrar, aceitando ou não os pedidos que aceita no ecrã”.
13. b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade, também resulta verificado, dado que a Ré determina a conduta do prestador de actividade perante o utilizador do serviço e determina ainda regras especificas quanto à prestação da actividade em si mesmo.
14. Desde a fase inicial, que o estafeta para poder prestar a sua actividade tem obrigatoriamente de proceder ao seu registo no site da Ré, entregando a documentação que lhe é solicitada (incluindo certificado de registo criminal), declarar o meio de transporte que vai usar, diligenciar pelo seguro do mesmo e aderir ao “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”.
15. Acresce ainda que a Ré determina a conduta do prestador de actividade perante o utilizador do serviço e determina ainda regras especificas quanto à prestação da actividade em si mesmo.
16. Ou seja, o procedimento de recolha e entrega de mercadorias gerido pela Ré encontra-se perfeitamente padronizado e decorrerá da mesma forma, independentemente do ponto geográfico onde é prestado e da concreta pessoa do estafeta, que se limitará a seguir todo o esquema previamente definido pela Ré.
17. c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica, também resulta provado dado que para lhe ser atribuído um pedido, por banda da Ré, o estafeta tem que estar ligado na plataforma da Ré e para terminar tem que concluir o procedimento, nessa mesma plataforma, pelo que é manifesto que a Ré consegue controlar e supervisionar a prestação da actividade e o a sua execução.
18. Assim, a necessidade de manter o GPS activo não se circunscreve ao momento da proposta de entrega, prolonga-se durante o período de execução da tarefa, cedendo a Ré este registo de geolocalização ao cliente, para que este possa consultar em tempo real, qual o tempo que a encomenda irá demorar a chegar ao seu destino final.
19. e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta, resulta dos factos provados 48 e 49, que “a plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desactivar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta (…)”.
20. f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação, resulta dos factos provados que a Uber Eats opera e gere uma plataforma eletrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva que é sua, sendo ela quem recebe as solicitações de entrega por parte dos seus clientes e o distribui o trabalho de entrega conforme os seus critérios de gestão pelos estafetas.
21. Assim, podemos concluir com segurança que a infraestrutura essencial da actividade aqui em causa é o software gerido pela Ré, sendo a propriedade do veículo, do telemóvel e da mochila térmica acessórias, na medida em que na mera posse destes instrumentos de trabalho a prestação dos estafetas seria inviável, sendo a própria aplicação o único meio de subsistência deste sistema de entregas e deste modelo de negócio.
22. Estão, assim, como vimos, preenchidos os factos índice da presunção enumerados nas alíneas a), b), c), d) e f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, pelo que podemos concluir que, no caso, operou a presunção de laboralidade plasmada naquele artigo ao contrário do que considerou a sentença recorrida que não considerou preenchido nenhuma item elencado nesta presunção de inocência.
23. Perante esta evidência cumpre aquilatar se a Ré ilidiu a presunção de laboralidade.
24. No nosso ponto de vista tal não acontece porque indícios como o horário, a exclusividade, a assiduidade, não se adequam a analisar o trabalho prestado no âmbito de uma plataforma digital.
25. Sintetizando, a Ré não se limita a ser um mero intermediário na prestação de serviços entre comerciantes e estafetas.
26. A Ré tem como fim a prestação de um serviço de recolha e entregas, que fixa o preço e as condições do pagamento do serviço, assim como as condições essencias para a prestação do referido serviço.
27. Resulta ainda dos autos que os estafetas que não dispõe de uma organização empresarial própria e autónoma, prestando os seus serviços enxertados na organização de trabalho da Ré, submetidos à sua direcção e organização, como demonstra o modo como a Ré estabelece os preços dos serviços de entrega.
28. O estafeta não negoceia preços ou condições do serviço com os proprietários dos estabelecimentos onde efectua a recolha dos bens, nem recebe a retribuição dos clientes finais.
29. Em suma, concluímos que a prestação de trabalho do estafeta está sujeita a uma organização do trabalho determinada pela Ré, que estabeleceu meios de controle do processo produtivo em tempo real que operam sobre a actividade e não apenas sobre o resultado final, mediante a gestão algorítmica do serviço e a possibilidade de conhecer constantemente a geolocalização dos estafetas, o que evidência a ocorrência do requisito da dependência e subordinação jurídica própria da relação laboral
30. Assim, entendemos, com o devido respeito, que a decisão recorrida viola normas e princípios jurídicos que regem a matéria sub judice, designadamente o artigo 11.º e 12-A do Código do Trabalho.
31. Patente se torna a existência de um contrato de trabalho no âmbito da relação jurídica aqui em causa».
Conclui o Ministério Público no sentido de a sentença da 1.ª instância dever ser «revogada na parte das suas conclusões jurídicas e substituída por outra, ou por Douto Acórdão, que declare a existência do presumido e, em concreto, provado pelo Ministério Público, aqui recorrente, contrato de trabalho entre AA e o Réu, Uber Eats Portugal – Unipessoal, Lda., desde 28 de junho de 2023».
6. A empregadora, notificada do recurso interposto pelo Ministério Público, apresentou as suas contra-alegações, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
«1) A matéria de facto que resultou provada nos presentes autos não permite alcançar uma decisão distinta daquela que foi proferida pelo douto Tribunal a quo.
2) Conforme se pode ler, designadamente, no sumário do acórdão datado de 04 de julho de 2018, processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1 (Relator: Chambel Mourisco), disponível em www.dgsi.pt, “a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que, estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes”.
3) Este em sido, aliás, o entendimento dos nossos Tribunais superiores, nomeadamente o Tribunal da Relação de Évora, que chamado a pronunciar-se relativamente a esta questão, concluiu pela inaplicabilidade da presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho – e consequente aplicação da presunção prevista noa artigo 12.º do mesmo normativo legal – a relações cuja vigência tenha iniciado em data anterior a 1 de maio de 2023, como é o caso do estafeta visado na presente ação.
4) Em face do exposto, e percorrendo os factos provados, não se vislumbra que alguma das características previstas nas várias alíneas do indicado artigo 12.º esteja verificada. Vejamos:
5) Foi o prestador de atividade que escolheu a cidade onde querem prestar atividade e que escolhem o local onde aguardam o pedido e ainda que escolhem o caminho que os leva aos locais de recolha e de entrega que livremente aceitaram realizar – Factos Provados 15, 17 e 33.
6) Não se provou que os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam à Recorrida.
7) Resultou provado (Factos Provados 35, 36, 37) que é o próprio prestador de atividade que escolhe quando se ligam à aplicação e, dentro desse período, escolhe os pedidos que quer fazer ou não, sendo ainda livre de estar desligado vários dias, semanas ou meses (Facto Provado 41) sem necessidade de apresentar qualquer justificação.
8) Não se provou que a Recorrida paga uma quantia certa com periodicidade aos estafetas, sendo que o estafeta pode resgatar o valor das entregas que concluiu a qualquer momento (Facto Provado 24).
9) Por fim, não se provou que os prestadores de atividade desempenhem quaisquer funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da Recorrida.
10) Assim, não se verifica a presunção da existência de contrato de trabalho, pelo que, sem necessidade de maiores considerações e desenvolvimentos, aplicando-se o artigo 12.º do Código do Trabalho, deve a sentença recorrida ser mantida, não se reconhecendo a existência de um contrato de trabalho.
11) Defende o Recorrente que os factos que resultaram provados permitem funcionar a presunção de laboralidade consagrada pelo legislador no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, nomeadamente por se verificarem as características previstas nas alíneas a), b), c), e) e f). Todavia, tal entendimento está errado:
12) A alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho refere-se a “retribuição” e não a taxa de entrega ou preço do serviço de entrega. Trata-se de um conceito definido no Código do Trabalho, no artigo 258.º, e que consiste numa contrapartida pelo trabalho/atividade prestada.
13) Como entendeu o Tribunal a quo, não só a Recorrida não fixa unilateralmente a retribuição, como não determina limites mínimos e máximos da taxa de entrega.
14) O elemento copulativo «e» inserido pelo legislador na alínea a) reconduz-nos à convicção de que pretendeu que tal pressuposto se baseasse na inflexibilidade da componente remuneração, ou seja, que esta fosse fixada com a intervenção exclusiva da plataforma, pelo menos em termos de moldura de retribuição, e não numa flexibilidade mitigada, em que o estafeta tem o poder de impor limites mínimos, como sucede na relação em apreço – Facto Provado 18.
15) Como aponta o douto Tribunal a quo “Não é a plataforma que estabelece o limite mínimo de cada entrega, mas sim o próprio estafeta que o faz. Ele é que fixa o seu valor mínimo. No entanto, mesmo depois de o fazer ele pode aceitar algo que esteja aquém desse valor”.
16) Para além disso, o prestador de atividade tem sempre a possibilidade de recusar as propostas que lhe são apresentadas (Facto Provado 38), o que não seria possível se o mesmo não tivesse qualquer palavra a dizer relativamente ao preço que é proposto.
17) Na verdade, a possibilidade expressa de recusar as propostas apresentadas, independentemente do motivo e sem que qualquer consequência negativa daí advenha não pode deixar de ser vista como uma forma de negociação, na medida em que, com essa recusa, o prestador da atividade não está a aceitar o preço proposto e, assim, está a exigir um preço mais elevado para os serviços que presta, nomeadamente por não concordar com o preço originalmente proposto.
18) A retribuição por cada serviço não é, pois, fixada unilateralmente pela Recorrida, antes é proposta por esta ao prestador da atividade, tendo em conta o preço mínimo por quilómetro por si definido, sendo que o estafeta pode, ainda assim, recusá-la. Trata-se de uma proposta de serviço, não de uma imposição da sua prática.
19) Assim, dificilmente se poderá concluir pela fixação da retribuição – como aconteceria se o pagamento do serviço fosse apresentado depois de ele ser realizado ou se o estafeta não pudesse recusar a sua realização com a inerente imposição do seu pagamento.
20) Podendo o estafeta recusar o serviço (já se está no domínio da possibilidade de uma negociação e, portanto, não se pode concluir que a Recorrida fixe a retribuição.
21) No que concerne ao exercício do poder de direção e da determinação de regras específicas quanto à prestação da atividade, conclui o Recorrente que “resultou provado que o estafeta para iniciar a sua atividade por conta da Ré registou-se na plataforma da Ré e teve que demonstrar cumprir todos os requisitos por esta exigidos designadamente ter conta bancária, ter atividade aberta, ter uma mochila térmica”, bem assim, que a Recorrida impõe “a necessidade de utilização da aplicação onde são inseridas todas as informações necessárias à execução do serviço, por exemplo os tramites necessários quando o cliente escolhe na aplicação da Ré pagar em numerário” e ainda a instalação do GPS aos estafetas.
22) É certo que existem regras para que os prestadores de atividade iniciem o seu relacionamento com a Recorrida, como a forma de inscrição na plataforma. Não menos certo é que não se pode falar, nessa fase, de qualquer prestação de atividade, pelo que tais regras não têm a virtualidade de fazer funcionar a presunção.
23) Note-se que a alínea b) do art.º 12.º-A do Código do Trabalho se refere expressamente a “regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade” e não a regras específicas para o acesso à prestação da atividade na plataforma, diferença que pode passar despercebida numa leitura menos atenta e que deve, por isso, ser salientada.
24) Por conseguinte, assumir a definição de regras para registo na plataforma como uma regra específica quanto à prestação da atividade não pode deixar de ser vista como uma interpretação demasiado extensiva, sem qualquer base legal ou interpretativa que o sustente.
25) A necessidade de registo não é (nem pode ser) uma regra quanto à prestação da atividade, antes sim um passo essencial para aceder a qualquer tipo de plataforma ou aplicação informática.
26) Por outro lado, a Recorrida acredita que a referência à existência de “tramites necessários quando o cliente escolhe na aplicação da Ré pagar em numerário” se trate de um mero lapso, uma vez que tal referência não tem qualquer sustentação no elenco de factualidade dada como provada.
27) O mesmo se diga em relação à imposição de instalação do GPS aos estafetas, uma vez que tal facto não resultou provado, antes pelo contrário, uma vez que ficou provado que o prestador de atividade tem total liberdade para utilizar qualquer GPS ou até não utilizar qualquer GPS.
28) A factualidade relevante para este efeito deve consistir na prova e demonstração de factos concretos de onde resulte, no fundo, o poder de direção, mas da análise dos presentes autos verifica-se que não foi alegado nem apurado um único facto concreto que permita concluir pela verificação destas características, nem os factos provados conseguem cumprir esse desiderato.
29) No que concerne à característica da alínea c), a Recorrida não compreende a alegação de que controla o prestador de atividade em tempo real através de GPS, uma vez que do elenco de factos provados não se vislumbra um único facto passível de concluir por qualquer controlo por parte da Recorrida, antes pelo contrário.
30) De facto, e como acertadamente aponta o Tribunal a quo, o estafeta “escolhe o modo como executa o seu trabalho. Este escolhe de forma totalmente livre o percurso” (Facto Provado 33), bem assim, a utilização de GPS “não importa controlo algum pela R. pois esta nem sequer pode interferir no percurso, nem impor que seja seguido o do GPS”.
31) Em consonância, ficou ainda provado que os prestadores de atividade podem utilizar os sistemas de navegação GPS que preferirem utilizar ou até mesmo não utilizar nenhum sistema de navegação GPS (Facto Provado 33), pelo que não é possível concluir pelo controlo ou orientação por parte da Recorrida na forma como os estafetas se apresentam ou como prestam a sua atividade – tal conclusão mostra-se totalmente ilógica com os factos provados em causa.
32) Note-se que o legislador não quis estabelecer a verificação do indício com a simples existência de um sistema de geolocalização, sendo que do elenco dos factos provados não constam sequer factos que permitam concluir que o Sr. AA alguma vez tenha sido sujeito a controlo e supervisão através do GPS, antes pelo contrário.
33) O invocado pelo Recorrente a este propósito não faz referência a uma única regra específica que permita aferir direção ou controlo relativamente à apresentação, conduta ou prestação de atividade do prestador de atividade.
34) Entende o Recorrente que tendo em conta os factos provados 48 e 49 a plataforma digital exerce o poder disciplinar sobre o prestador de atividade mediante a exclusão da possibilidade de realização de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta.
35) A alínea e) do artigo 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho reporta-se ao exercício de poderes laborais (poder disciplinar) sobre o prestador de atividade, sendo que o poder disciplinar visa sancionar o trabalhador pela violação de deveres laborais.
36) O poder disciplinar corresponde a um poder punitivo do empregador, que visa atuar sobre condutas do trabalhador consideradas censuráveis no contexto da relação laboral estabelecida.
37) Percorrido o elenco dos factos provados, não se encontra um único facto que evidencie que a Recorrida, de algum modo, exerce ou exerceu algum tipo de poder disciplinar sobre o prestador de atividade, no sentido de ter a possibilidade de sancionar um comportamento do prestador que não respeitasse as suas obrigações/deveres ou os padrões de comportamento determinados pela mesma.
38) Sem prejuízo da ausência de factualidade concreta, sempre se refira que nenhuma das situações que se encontra elencada nos termos e condições aplicáveis consiste na violação de um dever laboral, sendo que, como aponta o Tribunal a quo “qualquer contrato, de qualquer natureza, pode ser resolvido, desde que as condições contratuais sejam violadas, e o cometimento de uma fraude, a colocação em causa da segurança dos clientes, ou a não observância de obrigações legais têm necessariamente de conduzir ao mesmo resultado de resolução do contrato. Se a Uber não o fizesse, e permitisse aos estafetas continuar a fazer entregas nessas circunstâncias, estaria a prestar um mau serviço aos comerciantes e clientes que a ela recorrem”
39) No caso concreto, trata-se, inclusivamente, de uma prorrogativa dos serviços de intermediação em linha, que se encontra prevista no artigo 4.º do Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (Regulamento P2B), como o da Recorrida.
40) Não se vislumbra, assim, como é que a Recorrida exerce poderes laborais, nomeadamente o poder disciplinar, já que, como ficou demonstrado, a desativação de contas (i) não constitui uma manifestação do poder disciplinar, (ii) não é exercida como forma de orientar comportamentos e (iii) é reconhecida pelo Direito da União Europeia como sendo uma prerrogativa das plataformas digitais perante profissionais independentes, pelo que não se pode concluir pela verificação da característica prevista na alínea e) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
41) Defende a Recorrente que a aplicação é o instrumento de trabalho essencial do estafeta.
42) Um software não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware (um bem corpóreo), ou seja, o equipamento de trabalho é o telemóvel onde é instalada a aplicação informática e não esta (da mesma forma que o instrumento de trabalho de um advogado é o computador que utiliza, não o software “word” onde escreve as suas peças processuais ou o software “adobe reader” com o qual abre as notificações do tribunal em formato pdf).
43) Para além disso, a referência do legislador à possibilidade de exploração de instrumentos de trabalho por contrato de locação não pode deixar de ser salientada e vista como um indício de que o legislador estava claramente a pensar em bens corpóreos.
44) Interpretação contrária, para além de absolutamente ilógica, terá o seguinte resultado prático: a alínea f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho estará sempre automaticamente verificada, sem necessidade de quaisquer indagações por parte do Tribunal, o que não pode deixar de ser tido como atentatório dos mais elementares e basilares direitos de defesa.
45) Por fim, o legislador quis claramente distinguir plataforma digital, onde inclui o conceito de aplicação informática (cfr. artigo 12.º-A, n.º 2 do Código de Trabalho), de equipamento e instrumento de trabalho (previsto no artigo 12.º-A, n.º 1, alínea f) do Código do Trabalho). Conforme decorre do artigo 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, a plataforma digital (alegadamente a Recorrida) é o sujeito da relação contratual estabelecida com os prestadores da atividade, logo, a Recorrida não pode ser, simultaneamente, o sujeito da relação contratual e o equipamento ou o instrumento de trabalho do prestador de atividade.
46) Sempre sem conceder, mesmo que se considere a app como um verdadeiro instrumento de trabalho sempre terá de se concluir que o mesmo se revela insuficiente para que se considere esta característica como verificada, tal como concluiu o douto Tribunal a quo, porquanto tal alínea refere-se a equipamentos/instrumentos e não apenas a um único instrumento.
47) In casu, não se verifica qualquer dos indícios presentes no artigo 12.º ou 12.º-A do Código do Trabalho, não podendo, por isso, presumir-se a existência de um contrato de trabalho.
48) No entanto, caso assim não se entenda e se conclua pelo preenchimento de alguns dos pressupostos de aplicação da presunção de laboralidade, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, é certo que a Recorrida ilidiu qualquer presunção que eventualmente se verificasse.
49) O que se afirma resulta expressa e claramente da análise dos seguintes factos provados:
• O prestador de atividade não está obrigado a realizar qualquer número mínimo de entregas, a permanecer conectado na aplicação ou, estando conectado, a aceitar qualquer pedido – Facto Provado 37;
• O prestador de atividade decide quando se liga e desliga da plataforma e pode passar dias, semanas ou meses sem se ligar – Factos Provados 35, 36, 37 e 41;
• O prestador de atividade não faz entregas desde outubro de 2023 – Facto Provado 43;
• O prestador de atividade é livre de recusar qualquer serviço proposto – Facto Provado 38;
• Para além disso, o prestador de atividade é livre de decidir não receber propostas de entrega de determinados clientes e/ou comerciantes, igualmente sem qualquer consequência – Facto Provado 16;
• O Prestador de atividade tem liberdade para estabelecer um valor mínimo por quilómetro abaixo do qual não efetuam entregas – Facto Provado 18;
• O prestador de atividade não está sujeito a qualquer tipo de exclusividade, que resulta da possibilidade de prestar o mesmo serviço para as empresas que diretamente concorrem no mercado com a Recorrida ou até mesmo a título individual em concorrência com a Recorrida ou exercer qualquer outra atividade remunerada, o que sucede in casu, já que a disponibilidade para estar a executar a prestação destes serviços apenas depende do próprio – Facto Provado 63;
• Para se registar e começar a prestar atividade o prestador de atividade não foi sujeito a qualquer tipo de processo de recrutamento, como seja análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção – Facto Provado 64;
• A Recorrida também não restringe ou impõe qualquer obrigatoriedade quanto ao local de exercício de atividade, podendo o prestador de atividade prestar a sua atividade em qualquer localidade e sem qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde deve estar para receber propostas de entregas – Factos Provados 15 e 17;
• Quando presta a sua atividade, o prestador de atividade pode seguir as rotas que desejar, bem como utilizar os sistemas de navegação GPS que preferir utilizar ou até mesmo de não utilizar nenhum sistema de navegação GPS – Facto Provado 33;
• O prestador de atividade tem a possibilidade de designar outras pessoas (também registadas) para substituição no exercício da atividade, o que demonstra que o que interessa à Recorrida não é a atividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua atividade, característica do contrato de prestação de serviços – Facto Provado 62;
• A remuneração auferida é variável e por entrega, e não fixa em função do tempo despendido na realização da atividade;
• O prestador de atividade escolhe a forma como se apresenta, nomeadamente a roupa e o equipamento que quer usar (incluindo utilizar a marca de concorrentes) – Facto Provado 28;
• Por fim, todos os instrumentos utilizados no desempenho da atividade pertencem aos prestadores de atividade e não à Recorrida – Facto Provado 14.
50) Este conjunto de elementos apontam no sentido da inexistência de uma relação com carácter de subordinação jurídica, pelo que, nos termos do artigo 12.º-A, n.º 4, do Código do Trabalho e artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, resulta ilidida qualquer presunção de laboralidade que eventualmente se verificasse.
51) Defende o Recorrente que a aplicação do chamado método indiciário permite concluir pela existência de subordinação jurídica na relação estabelecida entre Sr. AA e a Recorrida e, consequentemente, pela existência de contrato de trabalho.
52) Caracterizando-se a relação jurídica laboral, essencialmente, pela existência de subordinação jurídica, é firme entendimento da Recorrente que, globalmente considerados os factos provados, não se vislumbra que os mesmos permitam concluir pela existência de subordinação jurídica na relação estabelecida entre o prestador de atividade visado e a Recorrida, não se descortinando, nomeadamente, qualquer factualidade de onde se possa concluir a sujeição do mesmo ao controlo, poder de direção e poder disciplinar da Recorrida, pelo que não é possível concluir pela existência de subordinação jurídica e, por consequência, de qualquer contrato de trabalho.
53) Por razões de economia processual – e atendendo que a argumentação do Recorrente a este propósito não passa de uma repetição da argumentação utilizada no que concerne à aplicação da presunção do artigo 12.º-A do Código do Trabalho (ou vice-versa) – dão-se aqui por reproduzidas as considerações acima tecidas quanto à não verificação de qualquer presunção de laboralidade, bem assim, sobre todas as circunstâncias que permitem dar como ilidida qualquer presunção de laboralidade que eventualmente se verificasse no caso concreto, acrescentando-se o seguinte:
54) Do elenco da factualidade dada como provada nos presentes autos resulta que, para além de ser autónomo na fixação do tempo e local de prestação da sua atividade, o prestador de atividade visado tem uma profunda liberdade para definir que tarefas aceita ou não prestar, uma vez que inexistem limites ou consequências para a não aceitação. Aqui reside uma característica que se afigura de difícil compatibilização com a ordenação típica da relação laboral, o que, aliás, foi já apreciado e assim concluído, pelo colendo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão de 9 de janeiro de 2019, no processo n.º 1376/16.3T8CSC.L1.S1.
55) Para além disso, foi essa independência que fundou a decisão do Tribunal Justiça da União Europeia proferido no Caso B/Yodel Delivery Network.
56) As quatro características identificadas pelo TJUE como inconsistentes com a qualificação de trabalhador estejam todas verificadas nos presentes autos, o que cumpre realçar.
57) Em sentido convergente, o Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido, em decisão de 21 de novembro de 2023, decidiu que os estafetas que prestam atividade (no caso, para a plataforma Deliveroo) não podem ser considerados trabalhadores subordinados, uma vez que são “livres de rejeitar ofertas de trabalho, de se tornarem indisponíveis e de realizarem trabalhos para concorrentes”, concluindo que “estas características são fundamentalmente inconsistentes com qualquer noção de relação de trabalho”.
58) Cumpre ainda recordar dois acórdãos do nosso Supremo Tribunal de Justiça, nos quais foi decidido que o facto de prestador de atividade poder escolher o próprio horário, não exercer a atividade em regime de exclusividade, ter a possibilidade de aceitar ou rejeitar serviços, ter a possibilidade de se fazer substituir e a possibilidade de agendar férias sem ser pago durante esse período e ser o titular dos instrumentos de trabalho permite ilidir a presunção do artigo 12.º do Código do Trabalho ou distinguir uma prestação de serviços de um contrato de trabalho, não obstante, nestes casos concretos ser evidente que os prestadores de atividade não têm uma estrutura organizativa própria, não são empresários e não têm os seus próprios clientes.
59) A ausência de exclusividade (Facto Provado 58) – nomeadamente o facto de a Recorrida permitir o “multiapping” – é um fator determinante do trabalho autónomo, que tem sido recorrentemente identificado não só pelos tribunais nacionais, mas também pelo Tribunal de Justiça da UE.
60) A este propósito, argumenta o Recorrente, que “nada impede que o trabalhador subordinado tenha mais do que um contrato de trabalho com diferentes empregadores, ou um contrato de trabalho e um contrato de prestação de serviços, porquanto o pluriemprego não é proibido”.
61) No entanto, cumpre não olvidar que qualquer trabalhador por conta de outrem se encontra vinculado a um conjunto de deveres, entre os quais o dever de lealdade (artigo 128.º, n.º 1, alínea f), do Código do Trabalho).
62) O dever de lealdade do trabalhador para com o empregador manifesta-se na obrigação de não concorrência, obrigação que constitui corolário do dever de lealdade, impondo ao trabalhador o dever de se abster de comportamentos contrários ou lesivos dos interesses da entidade empregadora – “não negociando por conta própria ou alheia em concorrência”.
63) Nesse âmbito, é vedado a qualquer trabalhador “o exercício de actividade concorrencial nos termos aí previstos, proibindo a lei a possibilidade de aquele desenvolver uma atividade, por si ou no seu interesse, que conflua ou entre em concorrência com o empregador, pondo em causa a sua organização em matéria comercial, de produção, negocial ou económica”.
64) É entendimento unânime, tanto na doutrina como na jurisprudência, que o dever de lealdade constitui um valor absoluto, não suscetível de graduações. Assim, o reconhecimento, ainda que hipotético e que por mero dever de patrocínio se concebe, de um contrato de trabalho entre os prestadores de atividade visados e a Recorrida redundaria na obrigatoriedade de os prestadores de atividade deixarem de prestar a sua atividade de estafeta para plataformas concorrentes, sob pena de violação automática do dever de lealdade a que passará a estar vinculado e adstrito.
65) A violação do dever de lealdade e a obrigação legal de não concorrência que impende sobre o trabalhador não dependem da verificação, em concreto, de um efetivo prejuízo para o empregador, nem sequer do efetivo desvio de clientela, sendo suficiente a potencialidade desse prejuízo
66) Na verdade, o próprio legislador, ao estabelecer que o trabalhador não pode negociar por conta própria ou alheia em concorrência com o empregador, está proibir o trabalhador de qualquer atuação que possa entrar em concorrência com a atividade desenvolvida pelo empregador, proibição que é justificada, porquanto “se alguém contrata trabalhadores, não pode estar sujeito ao risco de estes entrarem em concorrência com a sua actividade”.
67) De facto, a contratação de trabalhadores tem como desiderato o desenvolvimento e o sucesso da empresa, pelo que “seria absurdo aceitar que aqueles pudessem desenvolver actividades susceptíveis de conduzir ao desvio de clientela da própria empresa onde trabalham e, consequentemente, dessa forma, potenciar uma limitação do seu volume de negócios e dos seus proveitos”.
68) São estas as razões pelas quais a ausência de exclusividade assume decisiva importância neste tipo de ações e na análise da relação jurídica em apreço, o que não deve ser ignorado: é que os deveres e obrigações a que estão adstritos os trabalhadores não permite a prestação de trabalho simultâneo a duas (ou mais) entidades concorrentes distintas, situação que é admitida no âmbito de uma prestação de serviços, na qual é o próprio prestador, dotado de autonomia na organização da sua atividade, quem decide quando presta a sua atividade, para quem, e de que forma, tal como sucede in casu.
69) Alega ainda o Recorrente, embora sem concretizar em qualquer factualidade concreta, que o estafeta “se encontra inserido numa estrutura organizativa da empresa que gere a plataforma, recebendo ordens e instruções através do procedimento padronizado que se mostra instituído, estando também sujeito ao regime sancionatório por aquela implementado”.
70) Não se provou que existam quaisquer ordens e instruções através de qualquer procedimento padronizado, bem assim, que haja algum tipo de exercício de poder disciplinar da Recorrida perante o estafeta, pelo que tais alegações são totalmente infundadas, não tendo qualquer suporte factual.
71) Quanto ao facto de o estafeta estar inserido na organização produtiva da Recorrida, resultou provado (Facto 40) que não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega e ainda (Facto Provado 6) que a Ré atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma, isto é, estabelecimentos comerciais, os utilizadores estafetas e os utilizadores clientes, nada mais.
72) Um empregador necessita de contar com a disponibilidade dos seus trabalhadores para poder organizar a sua atividade, pelo que, verificando-se que a Recorrida não pode contar com a regularidade efetiva do prestador de atividade, decidida única e exclusivamente por este, não se vislumbra como se poderá considerar o vínculo estabelecido como um contrato de trabalho, porquanto absolutamente incompatível.
73) No caso concreto, o prestador de atividade nunca assumiu qualquer vinculação, muito menos com o grau de compromisso esperado e que é expetável num contrato de trabalho.
74) O prestador de atividade não presta atividade desde outubro de 2023 – Facto Provado 43.
75) Uma organização produtiva pressupõe isso mesmo: organização, o que implica planeamento e disponibilidade de mão-de-obra para o efeito.
76) Contrariamente ao que sucede numa relação laboral, a Recorrida não organiza a atividade do prestador de atividade de maneira alguma, pois este é livre para escolher o seu horário, ligar e desligar-se da plataforma, e decidir durante quanto tempo permanece ligado, sendo ainda livre para rejeitar e aceitar as propostas de entrega que bem entender, conforme decorre da factualidade provada.
77) Tudo isto resulta na impossibilidade prática de a Recorrida saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as propostas de entrega disponibilizadas.
78) Não se pode, assim, concluir que a Recorrida disponha de uma organização de prestação de serviços de entrega.
79) Sem prejuízo, ainda que se possa considerar a integração do estafeta na organização produtiva da Recorrida, o que por mero dever de patrocínio se concebe, é necessário ponderar a natureza da atividade em questão, pois não se pode afirmar que esta atividade específica — a recolha e entrega de produtos — exija o recurso a meios produtivos de grande envergadura ou uma complexidade organizativa considerável.
80) Por fim, cumpre realçar que o prestador de atividade tem a possibilidade de designar outras pessoas para substituição no exercício da atividade, o que demonstra que o que interessa à Recorrida não é a atividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua atividade, característica do contrato de prestação de serviços.
81) De facto, e como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12 de setembro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º 3842/23.5T8PTM.E1 (Relator: João Luís Nunes), “Particularmente decisivo apresenta-se o facto do estafeta poder subcontratar outro prestador de serviço para realizar a entrega: sendo o contrato de trabalho um contrato intuitu personae, em que as qualidades pessoais do trabalhador são elementos essenciais para a conformação da relação de trabalho, a possibilidade de subcontratação de outro prestador da atividade não se harmoniza com tal caraterística.
Como bem assinala o tribunal a quo, através da possibilidade de os estafetas se fazerem substituir por outras pessoas o que demonstra é que à ré não interessa a atividade em si daquele concreto estafeta, mas sim o resultado da mesma (entrega dos produtos), caraterística do contrato de prestação de serviço”.
82) E nem se diga que o facto de se poder fazer substituir por estafeta também registado se trata de uma faculdade mitigada.
83) Nos termos do artigo 3.º, n.º 5, do Regulamento P2B “Os prestadores de serviços de intermediação em linha garantem que a identidade do utilizador profissional que propõe os bens ou serviços no serviço de intermediação em linha seja claramente visível”.
84) Assim, a Recorrente tem o direito, mas mais ainda o dever, de restringir o acesso à plataforma que opera àqueles que nela se registem e cumpram as suas condições de acesso, não só por razões de segurança de todos os utilizadores, mas também porque a Recorrente tem o dever de garantir que quem nela opera cumpre os requisitos legais para o exercício da atividade de estafeta (por exemplo ser maior de idade, ter carta de condução se conduzir uma motorizada, ter autorização de residência ou visto de trabalho, se for estrangeiro), e que cumpre as suas obrigações tributárias. Nessa medida, a Recorrente, em cumprimento da legislação aplicável, tem o dever de exibir, de forma transparente, a identidade do prestador de atividade, por forma a garantir a segurança a todos os utilizadores, para além de conduzir a uma melhor orientação do consumidor no mercado.
85) A verdade é que o prestador de atividade tem efetivamente o direito de se fazer substituir na prestação da sua atividade, o que pode fazer a qualquer momento e por qualquer razão, que não tem de justificar. O processo de substituição não está sujeito a qualquer autorização por parte da Recorrente, existindo apenas a necessidade de o substituto ter também de estar registado na plataforma Uber Eats, o que se prende com questões legais e de segurança, como referido e especificado.
86) Não é necessário fazer um grande esforço para concluir que a substituição indiscriminada e sem qualquer critério seria suscetível de provocar efeitos bastante perversos, nomeadamente de colocar em risco a segurança de todos os utilizadores da aplicação, bem como, e sobretudo, de promover o trabalho e a imigração ilegais, o que constituiria um efeito bastante pernicioso, uma vez que é também isso que, pelo menos em parte, este tipo de ações visa acautelar.
87) Isto já aconteceu, aliás, noutros ordenamentos jurídicos, como por exemplo no Reino Unido (onde não é aplicável o Regulamento P2B), onde o próprio Governo teve de intervir e requerer às plataformas digitais para deixarem de permitir a substituição não verificada de estafetas, como se pode confirmar através do seguinte link no site oficial do Governo do Reino Unido: Deliveroo, Just Eat and Uber Eats to enhance security checks to prevent illegal working - GOV.UK.
88) Tendo em conta a factualidade provada constata-se que não existe o mínimo resquício de subordinação jurídica.
89) Ao concluir o registo na plataforma e concordar com os termos e condições aplicáveis, o prestador de atividade não se comprometeu a prestar qualquer atividade em nome da Recorrida.
90) A Recorrida não conseguirá garantir a disponibilidade de mão-de-obra, que é aquilo que permite um contrato de trabalho, sem retirar a liberdade de os prestadores de atividade organizarem a sua atividade.
91) Por isso, caso se entendesse que existe um contrato de trabalho entre os prestadores de atividade e a Recorrida, esse contrato nunca poderá ser igual aquele que atualmente vincula as partes, de outro modo, os prestadores de atividade poderiam sempre imiscuir-se de cumprir a principal obrigação de um trabalhador (a de trabalhar) e a Recorrida nada poderia fazer quanto a isso.
92) Um contrato de trabalho é o que é, conforme definido na lei, não o que alguma doutrina e jurisprudência quer que seja, sem qualquer alteração legislativa que o sustente.
93) Ainda que a doutrina ou a jurisprudência possam ser sensíveis à alegada precaridade e dependência económica de alguns prestadores de serviços (precariedade essa que, existindo, impõe a intervenção do legislador para os proteger), a verdade é que a solução não poderá passar por alterar aquela que é a definição de contrato de trabalho prevista na lei (definição essa que não é dada nem pelo art.º 12º-A, nem pelo art.º 12º nem pelo método indiciário, que preveem apenas factos índice da sua existência).
94) Nestes termos, deve a sentença recorrida ser mantida, não se reconhecendo qualquer contrato de trabalho entre a Recorrida e o prestador de atividade visado, o Sr. AA».
Conclui a apelada no sentido de o recurso apresentado «pelo Autor/Recorrente ser julgado totalmente improcedente».
7. O recurso foi admitido por despacho datado de 27 de Fevereiro de 2025.
9. Cumprido o disposto na primeira parte do n.º 2 do art.º 657.º do Código de Processo Civil (CPC2), aplicável ex vi do art.º 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT3), e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II. Objecto do Recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – art.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis ex vi do art.º 1.º, n.º 2, alínea a), do CPT –, temos que a única questão a apreciar é a da existência, ou não, de uma relação jurídica de natureza laboral entre a apelada e o trabalhador AA cujo reconhecimento se reportará a Junho de 2023.
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III. Fundamentação de Facto
Os factos4 materiais relevantes para a decisão da causa – que não foram objecto de impugnação pelas partes – são os seguintes:
1. A empregadora é uma sociedade que tem como objeto social: “prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; Atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração; Consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; Aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais”;
2. A empregadora é uma plataforma de prestação de serviços de entregas on line, nomeadamente de refeições, através de uma aplicação informática criada e desenvolvida para tal efeito, efetuando a mencionada plataforma a gestão de um negócio que estabelece a ligação entre o estafeta e o cliente, assegurando ainda as necessárias parcerias com empresas do setor da restauração e do comércio;
3. Para a execução das referidas atividades, a empregadora explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet – atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;
4. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a empregadora utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito;
5. As funções desempenhadas pelo estafeta consistem na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente final.
6. Assim, a empregadora atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo); - Os utilizadores estafetas; e - Os utilizadores clientes;
7. A atividade da empregadora inclui: - A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e - A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas;
8. AA, natural da República Árabe do Egipto, NIF ..., Título de Residência n.º ..., com residência na ..., com o n.º de telefone ... presta a referida atividade de estafeta para a plataforma UBER EATS pelo menos desde Junho de 2023.
9. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
10. No decurso de uma ação inspetiva realizada pela ACT no dia 28/06/2023, pelas 11H, foi verificado que AA se encontrava em frente à entrada do Av. da República, 12, Lisboa, a aguardar a preparação para recolha de pedido efetuado por cliente na aplicação móvel Uber Eats e posterior entrega na morada indicada pelo cliente, tendo-se apurado que desenvolve a sua atividade da seguinte forma: - O estafeta estava registado na plataforma digital UBER EATS, como “Parceiro de Entregas Independente”, através da criação de uma conta na plataforma, na aplicação disponibilizada na internet para o efeito; - Visando o registo em causa, e de acordo com exigência da aplicação UBER EATS, foram submetidos pelo estafeta na referida aplicação os seus documentos de identificação, bem como o certificado de registo criminal, o comprovativo de abertura de atividade como trabalhador independente, entre outros; - Foi ainda associado à conta do estafeta o meio de transporte em que este se desloca, no caso, a mota, conforme requerido pela plataforma; - O estafeta, para finalizar o registo, ficou ainda obrigado a aderir aos termos e condições aplicáveis constantes do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”;
11. Embora a UBER EATS não mantenha um suporte em papel da adesão aos termos e condições aplicáveis, tem um registo eletrónico de adesão aos mesmos com data e hora;
12. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
13. Para iniciar a prestação do serviço na plataforma UBER EATS, AA teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e ativa sendo que, uma vez ativada a conta, é iniciada a atividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;
14. Para se poder registar e exercer as referidas funções de estafeta para a empregadora, AA tinha que ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;
15. Os prestadores de atividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua atividade, ou seja, se prestam a sua atividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país.
16. Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.
17. A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efetuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique aceite e efetuado por parte da UBER;
18. A plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta “filtrar", aceitando ou não os pedidos que aparecem no ecrã, através do preço por quilómetro (designado de “Taxa Mínima por Quilómetro”)";
19. Com efeito, apesar de o estafeta poder definir na aplicação o valor mínimo por quilómetro, ou seja, o montante mínimo que aceita para proceder à entrega de cada pedido, não existe qualquer negociação entre o prestador e a plataforma quanto aos critérios que estão subjacentes à definição dos valores;
20. Não existe também qualquer intervenção do estafeta no processo de negociação de preços entre a plataforma e os parceiros de negócio, nomeadamente, restaurantes e estabelecimentos comerciais;
21. Cada serviço tem o seu valor definido que o estafeta vê na plataforma e é livre de aceitar, ou não, mas apenas por esse valor;
22. Na Plataforma, os prestadores de atividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”;
23. Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem sem o baixar e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma;
24. Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Cashout", tendo o estafeta em apreço escolhido ser pago semanalmente. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Cash Out é que os mesmos são pagos semanalmente;
25. O estafeta é pago por transferência bancária e fica disponível na plataforma o registo de todos os pagamentos recebidos ao longo de um ano, assim como o comprovativo da transferência.
26. O estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo;
27. A plataforma exige que a prestação da atividade do estafeta seja efetuada fazendo uso de uma mochila térmica para transporte dos pedidos UBER EATS, sendo que, para a plataforma validar o perfil no ato de criação da conta o estafeta tem de submeter prova de detenção da mochila de transporte, a qual deve cumprir requisitos mínimos quanto às dimensões – 44 cm de largura x 35 cm de profundidade x 40 cm de altura - assim como quanto ao estado de conservação e limpeza;
28. O estafeta não está obrigado a usar roupa distintiva da marca UBER EATS nem a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal;
29. A partir do momento em que o estafeta AA faz login na aplicação e passa a estar online, a plataforma, ora empregadora, fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização do dispositivo que tem de estar obrigatoriamente ligado para que a aplicação funcione e permita ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes;
30. O GPS é uma ferramenta necessária para o funcionamento da Plataforma e para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;
31. A localização é um dos fatores relevantes para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;
32. O GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que o estafeta a recolhe;
33. O Estafeta é livre de escolher o percurso que entender para fazer cada entrega, assim como o tempo que cada entrega possa levar escolhendo o sistema de GPS que entende para efetuar o percurso ou até nem o utilizar;
34. A plataforma tem a possibilidade de recolher a classificação efetuada ao estafeta, quer pelo cliente quer pelo comerciante/restaurante, através de meios eletrónicos inseridos na aplicação;
35. O estafeta é livre para escolher o seu horário;
36. É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma;
37. E durante quanto tempo permanece ligado;
38. Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar a ofertas de entrega que entender;
39. O que resulta na impossibilidade de a empregadora saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.
40. Não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega;
41. O Prestador de Atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si.
42. E a sua conta continua ativa;
43. O estafeta não fez entregas desde Outubro de 2023;
44. O estabelecimento, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega são indicados ao estafeta pela plataforma UBER EATS através da referida aplicação que deve consultar no telemóvel;
45. A prática de partilha de contas, por motivos de segurança e conformidade legal, não é permitida na Plataforma, conforme decorre da cláusula 5.ª, dos termos e condições aplicáveis;
46. Ou seja, o estafeta não pode permitir que terceiros utilizem a sua conta, devendo manter os seus detalhes de login confidenciais a todo o tempo;
47. Só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;
48. A plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta ao vincular-se aos termos do contrato de utilização da aplicação, designadamente, se permitir a utilização de conta por terceiros não autorizados, ou por comportamentos fraudulentos";
49. Conforme decorre da cláusula 9 e da cláusula 16.b. dos termos e condições aplicáveis a empregadora tem o direito de restringir o acesso à Plataforma e a resolver o contrato com o prestador de serviços nas seguintes situações:
50. Quando a empregadora está a cumprir uma obrigação legal;
51. Quando o prestador de atividade não cumpre as suas obrigações contratuais;
52. Quando está em causa a segurança dos clientes; e
53. Por motivos de autoproteção (situações de fraude)
54. O sinal de GPS deve encontrar-se ativo entre os pontos de recolha e de entrega, de outro modo, o bom funcionamento da aplicação e o próprio serviço ficam comprometidos;
55. O estafeta autoriza a UBER a aceder à localização do seu dispositivo quando está logado;
56. Aliás, se os estafetas não tiverem o GPS ligado a aplicação não funciona para entregas, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha;
57. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido podem introduzir dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega;
58. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes;
59. A aplicação e o site da Uber Eats Portugal (ora ré) são pertença da Uber Eats dos Estados Unidos;
60. A empregadora contratou um seguro de responsabilidade civil com a Zurich Insurance e um seguro de proteção de parceiros de entrega que abrange o Prestador de Atividade.";
61. Após aceitar a entrega o estafeta não se pode fazer substituir por ninguém.
62. Antes de aceitar uma entrega existe na plataforma a possibilidade de o estafeta designar um substituto, o qual tem que estar registado na Uber com conta ativa e como substituto, para que este aceite os pedidos que entre ambos entenderem, sendo que a empregadora procederá ao pagamento ao estafeta substituído.
63. O estafeta pode prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma. A Plataforma é uma das muitas ferramentas que eles têm para realizar entregas. Os prestadores de atividade podem ter sua própria clientela e atendê-la com liberdade e sem necessidade de comunicar isso à Uber Eats. Eles também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na Plataforma. Cabe esclarecer que os prestadores de atividade não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
64. Para se registarem na Plataforma, os prestadores de atividade não estão sujeitos a qualquer tipo de processo de recrutamento, no sentido de não haver análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção, exceto o preenchimento dos requisitos contratuais já mencionados supra;
65. A empregadora não faz uso do feedback dado pelos clientes a cada entrega do estafeta, apenas lhe atribuindo pontos por cada entrega que efetua para efeitos de descontos na aquisição de material diverso.
66. O estafeta em apreço sempre se encontrou associado a um intermediário, inicialmente transitou do Parceiro de Frota BB, no dia 20 de junho de 2023, para o Parceiro de Frota Apogeu Magnata, Unipessoal, Lda., para o Parceiro de Frota Discreta Mistura, Lda., no dia 10 de julho de 2023, por sua livre e exclusiva iniciativa, sendo este que procedia ao pagamento das entregas que este efetuava, ficando registado na plataforma toda a atividade de entrega por este realizada;
67. O estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, descontando a comissão do intermediário, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo.
*
V. Fundamentação de Direito
1. A questão, pois, que cumpre enfrentar no presente capítulo prende-se com a caracterização do vínculo jurídico estabelecido entre a recorrida e o trabalhador AA.
2. A relação jurídica cuja caracterização constitui o objecto da presente acção iniciou-se, ponderando os factos provados (facto provado sob o ponto 8.), em Junho de 2023, de sorte que à subsunção dos factos no direito é aplicável o Código do Trabalho de 2009, na versão que nele foi introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril, entrada em vigor em vigor no dia 1 de Maio de 2023 (cfr., o art.º 37.º, n.º 1, da Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril, e o artigo 12.º do Código Civil).
3. Seguiremos de perto, na medida em que para o caso sub iudice as considerações aí tecidas lhe sejam transponíveis, os fundamentos expostos no Acórdão desta Relação de 15 de Janeiro de 2025, proferido no Processo n.º 31164/23.4T8LSB.L15..
Há muito que os tribunais são chamados a pronunciar-se sobre a natureza de relações jurídicas estabelecidas entre sujeitos e cuja atracção a um ou outro modelo contratual é decisiva do ponto de vista do seu enquadramento jurídico. O direito do trabalho não é imune a esses dissídios e, por conseguinte, são os tribunais de trabalho amiúde confrontados com a necessidade de, perante situações jurídicas de maior ou menor complexidade, qualificar as relações jurídicas que lhes subjazem e nas quais se possa surpreender aquilo que é típico do contrato de trabalho, a saber, a subordinação jurídica: de um lado, uma parte que, pela forma como actua, conforma a prestação do outro contraente, deixando-lhe escassa ou nula autonomia ou reservando-a para aspectos puramente acessórios da sua actividade; do outro, a parte que está obrigada à prestação e que, por razões várias – desde o local onde a exerce até aos meios a que recorre para a prestar e o tempo que lhe está reservado para o efeito – vê hétero-determinada a forma como a executa.
Fruto justamente da indefinição do modelo contratual eleito na conformação da prestação ou da sua inadequação à sua regulação surgiu a necessidade de recorrer a modelos cujo desiderato era o de, de entre as várias características subjacentes ao vínculo laboral e que, por regra, nele estavam presentes, justamente atrair para a sua regulação as situações que nele se enquadrassem.
Na verdade, se a definição de contrato de trabalho não encerrava, em si mesma, consideráveis dúvidas ou dificuldades interpretativas relativamente aos elementos que a compunham – a sua natureza onerosa, a essencial relevância da actividade em detrimento do resultado, o destinatário da prestação, a inserção numa organização e a sujeição a poderes de autoridade (art.º 11.º, do Código do Trabalho) –, sobretudo quando confrontada com definições de modelos contratuais mais ou menos afins, como era a prestação de serviço, idêntica facilidade não se estendia à sua aplicação a relações jurídicas que reclamavam nela a sua subsunção. Assim se passava em casos complexos ou em que os contornos que densificavam os apontados elementos surgiam de forma indefinida ou difusa ou mesmo em concurso com outros associados à autonomia característica de outros contratos que, naturalmente, adensavam a dificuldade na integração normativa das relações jurídicas.
Assim surgiu o chamado modelo indiciário a que, durante largas décadas, se recorreu para afastar da indevida ou desadequada subsunção noutras figuras contratuais afins as situações tipicamente subordinadas e que, por isso, deveriam ser tuteladas pelo direito do trabalho.
Conforme se ponderou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Fevereiro de 201266, «nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a actividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da actividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da actividade, existência de controlo externo do modo de prestação da actividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e indícios negociais externos (o número de beneficiários a quem a actividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a inscrição do prestador da actividade na Segurança Social e a sua sindicalização)».
O recurso a este modelo não dispensava, contudo, a ponderação global dos elementos indiciários constatados, tentando aferir qual o sentido dominante dos mesmos em ordem a estabelecer uma maior ou menor correspondência dessa dimensão global com o conceito-tipo de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço7, não sendo de olvidar, neste âmbito, a vontade real das partes aquando da celebração do contrato8.
A densificação dos factos indiciários estava a cargo da parte que reclamava a sujeição do seu vínculo ao regime próprio do contrato de trabalho, a par, naturalmente, do seu ónus probatório, à luz do regime previsto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Seguramente consciente das dificuldades de demonstração da existência de uma relação de trabalho subordinado e da proliferação do recurso a outros modelos contratuais, maxime, os contratos de prestação de serviço, como forma jurídica de enquadramento de verdadeiras relações de trabalho, o legislador consagrou no art.º 12.º, do Código do Trabalho de 2009, a presunção de contrato de trabalho, assim “libertando” o trabalhador, nos termos do regime geral da distribuição do ónus da prova, constante do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, da prova dos elementos constitutivos do contrato de trabalho, tal como eles resultam definidos no art.º 11.º, do Código do Trabalho
Assim, e tal como decorre do citado art.º 12.º, desde que se demonstrasse a existência de alguns dos índices discriminados nas várias alíneas do seu número 1, na relação entre a pessoa que presta alguma actividade e a outra ou outras que dela beneficiam, presumia-se a existência de contrato de trabalho.
Conforme se ponderou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Julho de 201599, «[a] técnica da presunção da existência de contrato de trabalho, consagrada no artigo 12.º do Código do Trabalho, embora seja inspirada no modelo indiciário tradicional, altera radicalmente o cenário da prova dos elementos integrativos do contrato de trabalho.
Na verdade, ao contrário do modelo indiciário, que apelava a uma ponderação global dos elementos caracterizadores da concreta relação estabelecida entre partes, destacando nos mesmos aqueles que apontam para a subordinação jurídica, a sopesar com os que apontem no sentido da autonomia, de forma a encontrar o sentido global caracterizador da relação, a demonstração da existência de contrato de trabalho vai ficar agora dependente, e apenas, da demonstração de «alguns» dos índices consagrados nas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º».
O tempo e a evolução tecnológica têm feito surgir no tecido social novas formas de vinculação das partes cuja atracção a um modelo contratual já definido, designadamente ao contrato de trabalho, encerra sérias e fundadas dúvidas decorrentes da circunstância de, as mais das vezes, não estarem presentes certos indícios que tínhamos por certos aquando da qualificação de situações pretéritas e de outros surgirem de forma diluída ou difusa e, nessa medida, de difícil captação. Falamos, claro está, da actual prestação de actividade através ou com recurso a aplicações ou sítios de internet, disponibilizados através de plataformas digitais, na qual avultam, de sobremaneira, o carácter quase impessoal da relação jurídica que assim se estabelece e a ausência, por via de regra, de certos elementos a que tradicionalmente se recorria em ordem ao seu enquadramento – ou não – na figura do contrato de trabalho.
Conforme enfatizado, a este propósito, no “Livro Verde Sobre o Futuro do Trabalho 2021”, «a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital»10.
Citando Jorge Leite11, «para poder desempenhar o seu papel, deve o Direito do Trabalho moldar-se às realidades que visa organizar e disciplinar, pelo que, sendo estas diversificadas, diversificado deve ser aquele».
Vocacionada a regular estas novas realidades, surgiu a actual presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, prevista no art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, cuja operacionalidade não diverge da já antes consagrada no art.º 12.º, do Código do Trabalho: desde que se demonstre a existência de alguns dos índices discriminados nas várias alíneas do número 1, na relação entre a pessoa que presta alguma actividade e a outra ou outras que dela beneficiam, presume-se a existência de contrato de trabalho.
Seja como for, a constatação da diversidade social e a complexidade dos vínculos que origina não nos deve conduzir à desconsideração do que é essencial no contrato de trabalho, cuja definição não se alterou, qual seja a subordinação jurídica, aferível em função da inserção do trabalhador num determinado contexto organizativo que modela e estrutura a sua prestação e da sua sujeição ao poder de autoridade, estando os factos índice previstos nas várias alíneas do actual 12.º-A, do Código do Trabalho, que estabelecem a presunção da existência de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, justamente vocacionados a integrar esta que é a principal característica deste vínculo, ainda que para ela olhando de forma dinâmica e ajustada aos modelos actuais que, obviamente, não são os mesmos que estão na génese do Direito do Trabalho. Do mesmo passo, e não obstante a novidade e a singularidade que enformam esta nova realidade, nestes processos, como nos demais, ao juiz cabe subsumir os factos – provados na acção – no direito, interpretando este apenas e tão-só à luz dos cânones instituídos no art.º 9.º, do Código Civil12.
4. Antes, porém, importa delimitar os termos do conhecimento do objecto do recurso pela precedência lógica normativa que, no nosso modesto entendimento, se impõe.
É que, olvidando os critérios de precedência lógica normativa, o recorrente faz apelo, num primeiro momento, no recurso que interpôs, ao método indiciário, considerando ser ele, por si só, suficiente para que se reconheça a existência de um contrato de trabalho entre a apelada e o trabalhador AA. Só depois apela à presunção contida no art.º 12.º-A, do Código do Trabalho.
Ora, se o legislador consagrou o método presuntivo, cujo escopo é o que acima deixámos já enunciado, deve a apreciação da questão que se prende com o reconhecimento do vínculo laboral iniciar-se pela aferição ou presença dos vários factos índice presuntivos que o integram, intervindo o denominado método indiciário numa fase subsequente, tendo em vista a análise global dos indícios que tenhamos em presença. Isto para dizer que, com todo o respeito que nos merece a posição do recorrente, não nos faz sentido primeiro apelar ao denominado método indiciário, a que se associam regras de ónus da prova substancialmente mais onerosas, em detrimento de uma norma cujo desiderato é o de justamente facilitar a prova da existência do contrato de trabalho.
Isto posto, a nossa apreciação iniciar-se-á pela presunção ora contida no art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, seguindo-lhe, depois, por apelo à análise global da situação jurídica em presença a que também importa proceder, a apreciação do chamado método indiciário.
5. Estatui o art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, que:
«1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.
4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.
5 - A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
6 - No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário da plataforma digital, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.
(…)».
A nova presunção estabelecida no art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, interpela-nos porventura a uma visão diversa da que resultava da presunção do art.º 12.º, do mesmo diploma substantivo, embora não surja, na economia do regime jurídico, na sua globalidade considerado, como um regime autónomo ou diferenciado, como claramente resulta do n.º 1 do citado art.º 12.º-A. O seu propósito é o mesmo: o de facilitar a prova do facto presumido mediante prova de determinados factos presuntivos e de onerar o beneficiário da actividade com a prova de factos que justamente tenham por desiderato afastar a prova do facto presumido, a saber, factos de onde derive autonomia (art.º 12.º-A, n.º 4, do Código do Trabalho).
A nova presunção delimita, claramente, o seu âmbito de aplicação objectiva e subjectiva, tal como decorre do art.º 12.º-A, n.º 2, do Código do Trabalho, estando, por isso, vocacionada a regular as relações jurídicas que se estabeleçam entre a plataforma digital e os indivíduos que, a troco de pagamento, lhe prestem trabalho. Está, também, vocacionada para actividade, organizada, de disponibilização de serviços à distância através de sítio na internet ou aplicação informática que envolve justamente o recurso àqueles indivíduos.
A organização a que apela o preceito e, bem assim, a forma como opera a plataforma – através de sítio de internet ou aplicação informática – surgem, assim, na economia do regime jurídico em apreço, como elementos integrantes do âmbito de aplicação da presunção, a par, naturalmente, dos sujeitos que se relacionem entre si, não devendo, por isso, concorrer, em si mesmos, para a integração dos factos base presuntivos, sob pena de, assim sendo, com base ao mero recurso a esse âmbito objectivo e subjectivo da norma se terem logo por verificados dois dos indícios: o da al. d) do n.º 1, quando aí se apela ao conceito de organização do trabalho, e o da al. f), ao eleger-se como instrumento de trabalho a forma como a plataforma opera. Será, pois, a actividade prestada pelo trabalhador à plataforma digital que, dentro desta organização e com recurso ao sítio de internet ou aplicação informática, será ou não laboral em função do preenchimento de pelo menos duas das alíneas do n.º 1 do mesmo preceito.
A al. a) do n.º 1 do art.º 12.º encerra, como não poderia deixar de encerrar, um dos elementos típicos do contrato de trabalho, qual seja o da onerosidade. O contrato de trabalho é, pela sua própria definição, um contrato oneroso e, por isso, não há contrato de trabalho onde não haja contrapartida pela prestação que lhe está associada. A citada alínea evidencia, também, a unilateralidade na fixação da retribuição, deixando nula ou escassa possibilidade de o trabalhador a influenciar ou negociar, isto é, é a plataforma que fixa o seu valor ou que estabelece os valores mínimos e/ou máximos dentro dos quais o trabalhador se move.
A presente alínea difere, em termos de redacção, da que surpreendemos na al. d) do n.º 1 do art.º 12.º do Código do Trabalho, pois que aqui se exige, em ordem à operacionalidade do facto presuntivo, que ao trabalhador seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa em contrapartida da actividade. Sem prejuízo, esta distinta redacção não sugere, no nosso ver, o abandono, na presunção do contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, das características próprias do conceito de retribuição e que se traduzem, como sabemos, pela sua periodicidade, regularidade e, muito em especial, pela contrapartida da prestação. Isto é, a al. a) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho não apoia sentido interpretativo diverso do conceito de retribuição tal como o conhecemos e temos por definido no art.º 258.º, do Código do Trabalho, designadamente consentindo, ao arrepio dos elementos dele estruturantes, o acolhimento de pagamentos à peça, sem periodicidade mais ou menos certa – ainda que possa ser variável o seu valor – e muito menos ditados em função do resultado obtido. Isto é, em ordem ao preenchimento da alínea que vimos de citar, há-de estar presente, a par do poder de a plataforma unilateralmente fixar o valor devido ao trabalhador, também a natureza periódica e regular dos pagamentos – porque são estas características que assinalam a expectativa de ganho do trabalhador e evidenciam a dependência económica típica do trabalho subordinado – e a sua directa associação à actividade que é desenvolvida.
A al. b) do n.º 1 do art.º 12.º do Código do Trabalho convoca a presença, na relação jurídica que se estabeleça entre a plataforma e o trabalhador, do poder de direcção, também ele um dos poderes típicos e essenciais que a lei atribui ao empregador, previsto no art.º 97.º, do Código do Trabalho. Embora a lei indique, ainda que a título meramente exemplificativo, situações nas quais se surpreende o exercício desse poder – a forma de apresentação do prestador de actividade, a sua conduta perante o utilizador do serviço e o modo como há-de prestar a actividade – naturalmente que a realidade poderá ser muito mais abrangente e projectar-se o exercício daquele poder, até pela sua natureza multifacetada, em muitos outros aspectos da actividade do trabalhador.
Maria do Rosário Ramalho13 define o poder directivo «como a faculdade, que assiste ao empregador, de determinar a função do trabalhador e de emitir comandos vinculativos da sua actuação (sob a forma de ordens concretas ou de instruções genéricas), quanto ao modo de execução da actividade laboral e de cumprimento dos demais deveres acessórios inerentes a essa actividade» ao qual se contrapõe, como não poderia deixar de ser, o dever de obediência do trabalhador (art.º 128.º, n.º 1, al. e), do Código do Trabalho). Assim sendo, a par, naturalmente, dos exemplos a que alude a lei, também em outras circunstâncias ou, mais propriamente, factos, se poderá o exercício do poder de direcção e, no fundo, de conformação da prestação do trabalhador.
A al. c) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho alude ao poder de controlo, supervisão e qualidade da prestação, também recorrendo, à semelhança da anterior alínea, a formas típicas, exemplificativas, da sua manifestação. Este poder entronca no poder de direcção. Na verdade, se assiste ao empregador, neste caso à plataforma, a possibilidade de dirigir e conformar a prestação, naturalmente que se lhe associará a possibilidade de a controlar, supervisionar e de a verificar em termos qualitativos com vista à aferição do efectivo cumprimento do que deriva daquele primeiro poder. Diremos que um não sobrevive ou se autonomiza, em sentido próprio, do outro, antes ambos concorrendo no que é típico no âmbito de uma actividade subordinada: não fará sentido instruir o trabalhador no sentido de adoptar uma determinada conduta ou afazer – com maior ou menor pormenorização quanto ao modo e tempo em que deve ocorrer – sem que, depois, inexista mecanismo que consinta aferir se o trabalhador acatou o que lhe foi determinado. A especificidade que avulta nesta alínea é o modo como este poder de fiscalização se poderá, entre outras formas, manifestar: os meios electrónicos ou de gestão algorítmica remetem-nos para formas mais sofisticadas de controlo e, por isso mesmo, de maior dificuldade de apreensão e apuramento factual na medida em que lhes subjaz, em elevada medida, a ausência do contacto pessoal típico do contrato de trabalho e que, nestes casos, é substituído por uma espécie de controlo virtual ou à distância.
A al. d) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho assenta, essencialmente, na natureza subordinada que inere aos vínculos laborais. Naturalmente que se há vínculo laboral o trabalhador tem escassa ou nula autonomia ou esta manifesta-se em actos puramente acessórios da sua prestação. Também nesta alínea optou o legislador por tipificar formas por via das quais é restringida ou anulada a autonomia do trabalhador (se é que em qualquer caso se poderá falar de autonomia!), aludindo-se à existência ou fixação de um horário e períodos de ausência (ou descanso, mais propriamente), às condições a que estão sujeitas a aceitação e o declínio de tarefas, a possibilidade de substituição – em estreita conexão com a característica intuito personae associada ao vínculo laboral –, as condições subjacentes à escolha de clientes e, por fim, a exclusividade na prestação da actividade. Obviamente que esta alínea condensa o que inere à situação de subordinação em que se coloca o trabalhador no âmbito do vínculo laboral, nela se salientando a disponibilidade a ele associada e a possibilidade de, por essa via, o empregador garantir que tem à disposição trabalhadores que permitem a prossecução da sua actividade ou objecto social.
A al. e) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho alude aos poderes laborais, como se todos os demais que antes se enunciaram não o fossem também. Seja como for, estará sobretudo vocacionada para o exercício do poder disciplinar, isto é, a faculdade que tem o empregador de aplicar sanções aos trabalhadores quando as suas condutas – activas ou omissivas – conflituem com a disciplina da empresa e assumam, por isso, a violação de deveres por parte do trabalhador. Também nesta sede o legislador opta por enunciar a forma como se pode manifestar este poder, cumprindo salientar, de todo o modo, que a existência do poder disciplinar, seja em que caso for e seja qual for a forma por via do qual se manifeste, não sobrevive sem que, a montante, existam os poderes de direcção e de conformação da actividade. Conforme se teve ensejo de referir no aresto a que, supra, aludimos, de 15 de Janeiro de 2025, «ao poder disciplinar surge associado, naturalmente, o poder de direcção e de fiscalização, bem como o poder de conformação da prestação, destinando-se aquele a sancionar as condutas do trabalhador que sejam desconformes com a disciplina da empresa. Dificilmente, pois, se pode concluir pela sua existência se, a montante, se não provam factos que justamente integrem qualquer um daqueles poderes. O poder disciplinar não sobrevive desligado do substracto que lhe é inerente».
Por fim, a alínea f) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho alude aos instrumentos de trabalho, podendo estes ser pertença da plataforma ou por ela disponibilizados. Não se trata de facto índice presuntivo que se afaste substancialmente do previsto no art.º 12.º, n.º 1, al. b), do Código do Trabalho. Nesta medida e na sua densificação subsistem pertinentes as considerações que, a propósito desta última alínea, se teceram no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Julho de 201514 quando aí se diz estar «em causa uma multiplicidade de elementos que são necessários à concreta prestação da atividade e que cabem nas categorias de equipamentos ou instrumentos de trabalho, com destaque para as máquinas e outros dispositivos que permitem concretizar e efetivar a atividade prestada.
O elemento caracterizador do facto descrito nesta alínea, como índice de uma situação de trabalho subordinado, encontra-se na disponibilização pelo destinatário da atividade prestada de bens necessários à sua concretização que se enquadrem nos conceitos de equipamentos e instrumentos de trabalho.
Não é excludente do preenchimento desta alínea a circunstância de o destinatário da atividade não ser proprietário em sentido técnico-jurídico dos bens em causa, contentando-se a lei com o facto de o mesmo, por um título legítimo, ter a disponibilidade desses bens e de os facultar ao prestador da atividade de que é destinatário».
6. Tecido o enquadramento que nos pareceu ser o significativo, vejamos, então, o que decorre dos factos provados e se o que deles deriva preenche um ou mais dos factos base presuntivos, tal como densificados no art.º 12.º-A, do Código do Trabalho. Mas não sem que antes se reflita sobre o teor dos factos provados e sobre o que tão pouco deles consta que especificamente se refira ao trabalhador AA e à forma como, desde que iniciou a actividade de estafeta, se estabeleceu a sua relação com a apelada.
É o que sucede muito em particular em matéria retributiva ou de pagamentos, em que os únicos factos provados que se reportam à específica situação do mencionado trabalhador são os constantes dos pontos 66. e 67., deles avultando não ser a apelada quem procedia a quaisquer pagamentos ao trabalhador. Conforme destes factos decorre, o estafeta em apreço sempre se encontrou associado a um intermediário, inicialmente transitou do Parceiro de Frota Erlandia Oliveira, no dia 20 de junho de 2023, para o Parceiro de Frota Apogeu Magnata, Unipessoal, Lda., para o Parceiro de Frota Discreta Mistura, Lda., no dia 10 de julho de 2023, por sua livre e exclusiva iniciativa, sendo este que procedia ao pagamento das entregas que este efetuava, ficando registado na plataforma toda a atividade de entrega por este realizada. Por outro lado, o trabalhador recebia os valores das entregas que efetuava, descontando a comissão do intermediário. No que se refere a pagamentos efectuados, sua periocidade, regularidade e valor, nada consta da matéria de facto provada.
Os genéricos factos provados constantes dos pontos 19. a 26., pese embora possam corresponder ao que, por norma, se associa à tipologia de actividade em presença, designadamente nas situações em que os estafetas operam em nome próprio, isto é, sem intermediários, em nada relevam neste conspecto na justa medida em que não estabelecem o que porventura de singular ocorresse entre o trabalhador e apelada.
O apelo do recorrente a esta genérica factualidade, olvidando a única que se refere à específica situação do trabalhador, acaba por, em face do exposto, se revelar de escassa ou nula relevância na pretendida demonstração do índice presuntivo contido na al. a) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho, daí que, necessariamente, se tenha que concluir pela sua inverificação.
As alíneas b), c) e e) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho convocam, como vimos, a presença dos poderes típicos do contrato de trabalho, como sejam os poderes de direcção, de fiscalização e disciplinar. A al. d), por seu turno, apela ao conceito de inserção do trabalhador no contexto organizativo da plataforma.
Resultou provado (factos 1. a 9., 12., 13., 28. a 32., 44. a 56., 58 e 66.), no caso, que:
- a empregadora é uma sociedade que tem como objeto social: “prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; Atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração; Consultoria, concepção e produção de publicidade e marketing; Aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais”;
- a empregadora é uma plataforma de prestação de serviços de entregas on line, nomeadamente de refeições, através de uma aplicação informática criada e desenvolvida para tal efeito, efectuando a mencionada plataforma a gestão de um negócio que estabelece a ligação entre o estafeta e o cliente, assegurando ainda as necessárias parcerias com empresas do sector da restauração e do comércio;
- para a execução das referidas atividades, a empregadora explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet – atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;
- para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a empregadora utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito;
- as funções desempenhadas pelo estafeta consistem na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente final;
- a empregadora atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo); - Os utilizadores estafetas; e - Os utilizadores clientes;
- a atividade da empregadora inclui: - A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e - A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas
- AA presta a referida atividade de estafeta para a empregadora plataforma digital UBER EATS desde Junho de 2023, embora sempre assim haja procedido associado a um intermediário, inicialmente transitou do Parceiro de Frota Erlandia Oliveira, no dia 20 de junho de 2023, para o Parceiro de Frota Apogeu Magnata, Unipessoal, Lda., para o Parceiro de Frota Discreta Mistura, Lda., no dia 10 de julho de 2023
- AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
- para iniciar a prestação do serviço na plataforma UBER EATS, o estafeta teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e activa sendo que, uma vez activada a conta, é iniciada a actividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;
- o estafeta não está obrigado a usar roupa distintiva da marca UBER EATS nem a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal;
- a partir do momento em que o estafeta faz login na aplicação e passa a estar online, a plataforma, ora empregadora, fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização do dispositivo que tem de estar obrigatoriamente ligado para que a aplicação funcione e permita ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes;
- o GPS é uma ferramenta necessária para o funcionamento da Plataforma e para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;
- a localização é um dos fatores relevantes para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;
- o GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que o estafeta a recolhe;
- o estabelecimento, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega são indicados ao estafeta pela plataforma UBER EATS através da referida aplicação que deve consultar no telemóvel;
- a prática de partilha de contas, por motivos de segurança e conformidade legal, não é permitida na Plataforma, conforme decorre da cláusula 5.ª, dos termos e condições aplicáveis;
- o estafeta não pode permitir que terceiros utilizem a sua conta, devendo manter os seus detalhes de login confidenciais a todo o tempo;
- só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;
- a plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta ao vincular-se aos termos do contrato de utilização da aplicação, designadamente, se permitir a utilização de conta por terceiros não autorizados, ou por comportamentos fraudulentos";
- conforme decorre da cláusula 9 e da cláusula 16.b. dos termos e condições aplicáveis a empregadora tem o direito de restringir o acesso à Plataforma e a resolver o contrato com o prestador de serviços nas seguintes situações: (i) quando a empregadora está a cumprir uma obrigação legal; (ii) quando o prestador de atividade não cumpre as suas obrigações contratuais; (iii) quando está em causa a segurança dos clientes; e (iv) por motivos de autoproteção (situações de fraude):
- o sinal de GPS deve encontrar-se ativo entre os pontos de recolha e de entrega, de outro modo, o bom funcionamento da aplicação e o próprio serviço ficam comprometidos;
- o estafeta autoriza a UBER a aceder à localização do seu dispositivo quando está logado;
- se os estafetas não tiverem o GPS ligado a aplicação não funciona para entregas, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha;
- a plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes.
Já acima densificamos o poder de direcção e as várias facetas em que se pode projectar, sem prejuízo dos exemplos contidos na lei e, em especial, os vertidos na al. b) do n.º 1 do art.º 12.º do Código do Trabalho.
Neste conspecto e começando justamente nestes exemplos, não se surpreende, nos factos provados, que a apelada enderece ao trabalhador qualquer espécie de directriz quanto ao seu modo de apresentação junto dos parceiros ou quanto à forma como com eles se há-de relacionar. Com excepção da recolha do pedido junto do estabelecimento comercial que disponibiliza os bens e da sua subsequente entrega ao cliente final, seguramente mais vocacionados para a forma de organização da actividade do que para o modo como, em concreto, se executa, nada de relevo se prova apto a integrar os índices exemplificativos contidos na citada alínea b) do preceito em análise.
No mais, nos factos provados não existe um único apto a integrar o conceito de ordem ou conformação da actividade. A indicação do local de recolha e local de entrega dos pedidos e a utilização dos meios por via dos quais o estafeta se coloca em situação de os receber são próprios da metodologia da organização do trabalho e da forma como se operacionaliza o serviço, não podendo, neste conspecto, integrar o conceito de ordem, sob pena de estas características, porque transversais à prestação, serem elegíveis para toda e qualquer integração no método subsuntivo. Acresce que, nesta actividade, sequer se surpreende qualquer poder de conformação quando ao seu modo de execução por parte da apelada, uma vez que o estafeta é livre de escolher o percurso que entender para fazer cada entrega, assim como o tempo que cada entrega possa levar, escolhe o sistema de GPS que entende para efetuar o percurso ou pode até nem o utilizar. Também se não surpreende, nos factos provados, que o estafeta esteja sujeito à disciplina da empresa, na acepção da obediência ou conformação a códigos de conduta ou modos de actuação padronizados. Basta, para o efeito, atentar no facto provado constante do ponto 28., sendo que o uso da mochila deriva da actividade que se exerce, eleito enquanto modo de transporte de pedidos, sendo as suas características ditadas por razões de higiene e segurança (facto provado sob o ponto 27.).
Entende-se, pois, nesta conformidade, pela ausência de preenchimento do facto base presuntivo previsto na alínea que vimos de citar.
A al. c) do n.º 1 do art.º 12.º alude, como já dissemos, aos poderes de fiscalização da actividade do trabalhador.
Dos factos provados decorre, inequivocamente, que é a apelada quem define o parceiro no qual há-de ser recolhido o pedido, do mesmo passo que sabemos que é também ela quem define o cliente final a quem será entregue (embora isso derive da própria natureza da actividade e seja, na sua génese, definido em função da opção do cliente final). Sabemos, também, que, para assim proceder, o estafeta tem que se ligar na aplicação, senão não recebe pedidos, e que entre o ponto de recolha e o ponto de entrega tem que manter activo o sistema de geolocalização. De todo o modo, o que não se apura, de todo, é que este sistema de seja usado, pela apelada, como meio, directo ou indirecto, de controlo da prestação ou mesmo da sua fiscalização. E é fundamentalmente isto que nos interessa, sendo indiferentes as vantagens que, desse ponto de vista, o sistema tenha ou o que potencialmente dele derive se nada, nos factos, o demonstre com clareza. É que, veja-se, o estafeta, entre um ponto e outro – de recolha e entrega – pode escolher o percurso que entenda e, também, o tempo de entrega de cada pedido, elegendo o sistema de geolocalização que lhe aprouver para realizar o percurso ou nem sequer usar nenhum (facto provado constante do ponto 33.). E, ainda que a sua prestação seja apta a classificação, aferível pela plataforma, o certo é que a mesma não deriva de intervenção desta, mas antes do cliente ou do parceiro, do mesmo passo que não é usada para efeitos de fiscalização da prestação (factos provados constantes dos pontos 34. e 65.).
Por outro lado, é o estafeta quem elege o local onde irá prestar a sua actividade, podendo alterá-lo quando bem entenda, isto é, sem sujeição a qualquer autorização da plataforma (ponto 17.); e também não tem que estar, a fim de assegurar um melhor e mais eficaz serviço, num local pré-definido a fim de receber pedidos, sendo que, para este efeito, apenas tem que estar ligado na aplicação (factos provados constantes dos pontos 15. e 17.).
Ante o exposto, entendemos assim, com todo o respeito, que também o facto base presuntivo previsto na al. c) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho se não surpreende no relacionamento entre o estafeta e a apelada, nada nos consentindo concluir, por apelo aos factos provados, que esta, de algum modo, fiscalize ou supervisione a prestação.
A subsequente alínea do preceito a que nos temos vindo a referir apela ao conceito de organização.
Não há dúvida, de entre o elenco dos factos provados, que a apelada se constitui como ente que, de forma organizada, estabelece a ligação entre o parceiro e o cliente final, usando, para o efeito, como elo de conexão entre um e outro, o estafeta, que, no fundo, é quem é encarregue de recolher o pedido junto do parceiro e de o entregar ao cliente final. A ligação entre uns e outros é gerida por via de aplicação informática, sendo que a intervenção humana, se assim se pode dizer, se circunscreve à actividade de entrega em si mesma, estando esta acometida ao estafeta.
O conceito de organização pressuposto pela actividade em presença é-lhe intrínseco, na medida em que qualquer actividade, por mais rudimentar que seja, não sobrevive sem aquela. E na organização que nos é sujeita temos por certo que os estafetas são por ela pressupostos, já que sem a sua existência aquele elo de ligação não era possível.
Neste conspecto, e à semelhança do método que segue na formulação das demais alíneas do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho, o legislador faz apelo a um contexto factual donde se infere o esquema organizativo da prestação a que se contrapõe a subordinação, a ele, do prestador. Alude, por isso, à possibilidade de a plataforma impor a prestação em função de um determinado horário, a imposição quanto à aceitação de pedidos, a impossibilidade de o prestador se poder fazer substituir por outros prestadores e ao dever de não concorrência.
A imposição de um horário, de maior ou menor amplitude ou de maior ou menor flexibilidade, é facto que pura e simplesmente se não apura, antes estando provado que o estafeta é livre para escolher o seu horário, é livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma e o tempo durante o qual permanece ligado (factos provados constantes dos pontos 35. a 37.). Mais, o prestador de atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si (facto provado constante do ponto 41.).
Doutro passo, é, ainda, livre para rejeitar e aceitar as ofertas de entrega que entender (facto provado constante do ponto 38.), sem que nisso intervenha a plataforma ou sequer tenha modo de inverter a opção que haja sido tomada pelo prestador.
Por outro lado, e pese embora, após aceitar a entrega, o prestador não se possa fazer substituir, certo é que, antes disso, pode designar um substituto, o qual tem que estar registado na Uber com conta ativa e como substituto, para que este aceite os pedidos que entre ambos entenderem, sendo que a empregadora procederá ao pagamento ao estafeta substituído (factos provados constantes dos pontos 61. e 62.). A única exigência é, pois, que o substituto seja indivíduo registado na plataforma, caso contrário não poderá, ele próprio, visualizar os pedidos, nada se provando que à substituição presida qualquer espécie de autorização ou consentimento da plataforma.
Finalmente, também inexiste qualquer restrição a que o prestador exerça a sua actividade para terceiros, inclusive cujo objecto seja semelhante e, por isso, concorrente (facto provado constante do ponto 63.).
Vale o exposto por dizer, pois, que dos factos provados nada se extrai, com um mínimo de segurança, que a plataforma, por qualquer meio, restrinja a autonomia do prestador aquando do exercício da sua actividade.
E, ainda que se conceda, por via do esquema organizativo eleito, pela inserção nele dos estafetas, estamos em crer que a integração organizativa a que apela o método indiciário pressupõe constância e estabilidade, de sorte que o demais elenco dos factos provados acabe por conduzir a uma franca mitigação deste elemento, motivada pela intermitência que se associa à prestação do estafeta. É que, bem vistas as coisas, o estafeta só se integra na organização, a fim de receber pedidos de entrega e de os executar, quando entende; e mesmo recebendo pedidos de entrega, porque se coloca na situação de os poder receber ao ligar-se na aplicação, pode recusá-los sem qualquer justificação adicional. É o que claramente resulta dos factos provados constantes dos pontos 36., 37., 38. e 41... Mais: pode o estafeta, sem que dos factos provados se extraia intervenção da apelada ou necessidade de explicação, bloquear clientes e não aceitar pedidos cujo valor se situe abaixo de um determinado valor (pontos 16. e 18.).
João Leal Amado e Teresa Moreira interpelam-nos, na apreciação desta nova realidade, à ponderação do conceito de crowwork offline ou work on demand via apps que se traduz na gestão «algorítmica de uma multidão de prestadores de atividade disponíveis para trabalhar (daí o termo crowdwork)» por via do qual «estas empresas conseguem desenvolver o seu negócio e usufruir (…) de mão de obra sem necessidade de recorrer a institutos tradicionais do Direito do Trabalho, provindos da era industrial». No fundo, a circunstância de, a dado passo, o empregador poder contar, sempre, com uma multidão de prestadores para levar a bom porto o seu negócio traduzir-se-ia na pouca ou nula importância da intermitência da prestação que fizemos apelo: há sempre alguém disponível para trabalhar.
Neste caso, porém, não é evidente a disponibilidade constante de mão-de-obra que se associa ao conceito em apreço, já que, tal como decorre dos factos provados constantes dos pontos 39. e 40. à intermitência e irregularidade da prestação se associa a impossibilidade de a empregadora saber quantos prestadores de actividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas, não sendo raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de actividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de actividade aceitar uma determinada oferta de entrega.
Isto posto e sendo incontornável a existência de um contexto organizativo no âmbito da actividade prosseguida pela plataforma, é também para nós incontornável que da mesma não deriva, pelas razões expostas, o reverso e que seria a escassa ou nula autonomia do trabalhador, daí que também não tenhamos por verificado, por escassez fáctica, o facto base presuntivo previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho.
O exercício, de entre outros, do poder disciplinar está previsto na al. e) do preceito que vimos de enunciar.
Ao poder disciplinar surge associado, naturalmente, o poder de direcção e de fiscalização, bem como o poder de conformação da prestação, destinando-se aquele a sancionar as condutas do trabalhador que sejam desconformes com a disciplina da empresa. Dificilmente, pois, se pode concluir pela sua existência se, a montante, se não provam factos que justamente integrem qualquer um daqueles poderes. O poder disciplinar não sobrevive desligado do substracto que lhe é inerente. Nesta medida e tendo nós concluído, como concluímos, pela inexistência de factos que, provados, se integrem no exercício de algum daqueles poderes, por maioria de razão não podemos ter por existente o poder disciplinar. Este poder disciplinar destinar-se-ia, então, a sancionar que tipologia de condutas se nenhumas são pré-definidas e ou pré-conformadas? Nesta conformidade, o apelo às condições que permitem à apelada a restrição do acesso do estafeta à plataforma ou mesmo a desactivação da sua conta, densificadas nos factos provados constantes dos pontos 49. a 53., não podem, no nosso modesto entendimento, ser eleitas enquanto manifestação típica do poder disciplinar, posto que as condições ou obrigações a que cada contraente está sujeito quando contratualmente vinculado sempre poderão conduzir à resolução do contrato se incumpridas, o que é próprio dos contratos sinalagmáticos.
Inverificado está, por isso, o facto base presuntivo previsto na citada alínea.
Resta a apreciação dos instrumentos de trabalho, prevista na al. f) do n.º 1 do art.º 12.º.
Resultou provado, com relevo, que, para se que se pudesse registar na plataforma, AA tinha que ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens. No caso, o trabalhador deslocar-se-ia de mota (facto provado constante do ponto 14.), assumindo-se, face a todo o contexto em presença, que utilizaria o seu telemóvel e também a mochila de transporte.
Nenhum destes instrumentos de trabalho é pertença da apelada ou foi por ela disponibilizado, daí que os factos índice integradores da presunção a que alude a citada al. f) se não verifiquem.
Acresce dizer que, neste conspecto, não podemos, de todo, acompanhar as doutas alegações do apelante. Relegar para o âmbito da acessoriedade e, por isso, da irrelevância da pertença, instrumentos como o veículo, o telemóvel ou a mochila de transporte é, no nosso ver, alegação insubsistente já que se não munido de qualquer um deles o prestador não pode desempenhar a sua actividade. Tratam-se, por isso, de instrumentos essenciais na prossecução da actividade e, portanto, não é despicienda a sua não pertença à plataforma, antes se erigindo este facto de muito significativa relevância na ponderação do facto base presuntivo em presença.
Não se desconhece que a jurisprudência, pelo menos em parte , tem vindo a eleger como instrumento de trabalho a aplicação detida pela plataforma digital e/ou o software que à mesma se associa, enfatizando a circunstância de a noção de equipamentos e instrumentos de trabalho não implicar a sua natureza corpórea.
Sem embargo de nada nos impelir a que assim não seja, isto é, que o conceito de instrumentos e equipamentos de trabalho é suficientemente amplo e, por isso, capaz de abranger elementos incorpóreos, há que relevar que, no caso em apreço, o empregador é uma plataforma digital que opera através de meios electrónicos e, em particular, a partir de uma app ou aplicação. Vale o que vem de ser dito, sem prejuízo, naturalmente, de todo o respeito que nos merecem as considerações em sentido oposto, que a aplicação por via da qual a plataforma opera ou se manifesta não pode desta ser autonomizada e, assim, ser considerada um instrumento ou um equipamento de trabalho, do mesmo passo que não o será o software que nela se incorpora. Uma e outra realidades – a plataforma e o meio por que se manifesta – são indissociáveis, afigurando-se-nos a separação uma da outra, para efeitos de erigir a aplicação em um equipamento ou instrumento de trabalho, operação assinalavelmente artificial.
Entendemos, pelo exposto, pela inverificação do facto base presuntivo desta última alínea do n.º 1 do art.º 12.º do Código do Trabalho.
De tudo quanto se expôs decorre, pois, que dos factos provados não nos é lícito concluir pela verificação dos factos índice integradores da presunção prevista no art.º 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, daí que, sob a sua égide, se imponha concluir pela impossibilidade de reconhecimento da existência, entre a apelada e AA, de um contrato de trabalho desde Junho de 2023.
7. Já acima dissemos que se o modelo indiciário for incapaz ou insuficiente à demonstração do facto presumido, o contrato de trabalho, devemos lançar mão do método indiciário, sendo uma evidência que a ele se refere o apelante quando invoca a existência da titularidade dos meios de produção e dos instrumentos de trabalho, do modo de cálculo da retribuição, do poder de direcção e de conformação do modo como é prestada a actividade e do exercício do poder sancionatório.
A todos eles acabámos já por nos referir porquanto a presunção de laboralidade contida no art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, a eles apela.
Dispensamo-nos, naturalmente, de outras ou mais considerações a propósito, posto que, com todo o respeito, o apelante não introduz, neste capítulo do seu recurso, factos distintos dos que alude quando analisa a presunção do citado art.º 12.º-A, recorrendo, aliás, a outros que sequer vislumbramos constem dos factos provados ou a factos de muito duvidosa verificação na relação que nos foi sujeita, como sejam os relativos aos pagamentos. O recorrente olvida que não é a plataforma quem remunera o trabalhador.
Apenas dar nota que a forma como a plataforma organiza a sua actividade e a prossegue não pode desempenhar o papel preponderante que se lhe empresta e, por isso, justificar a existência de todos os poderes integrantes do vínculo laboral. No âmbito do trabalho prestado às denominadas plataformas digitais estamos cientes que lhe estão subjacentes critérios de delimitação objectiva e subjectiva, como, de resto, isso é claro em face da actual redacção do n.º 2 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho. No fundo, temos uma plataforma digital, erigida pela lei como o empregador, que presta ou disponibiliza serviços à distância, designadamente com recurso a uma aplicação, e que, para isso, se constitui como uma organização que recorre a outros indivíduos, a troco de pagamento, para concretizar a execução dos serviços. E o que é essencial, no nosso modesto entendimento, é que se apure o modo como se concretiza justamente esta execução dos serviços, isto é, se é toda ela modelada, conformada e controlada pela plataforma digital ou se, ao invés, o prestador dispõe de autonomia na sua execução. Da essencialidade da prestação, no contexto organizativo, não deriva, automaticamente, que a mesma assuma cariz laboral; há-de, pois, ser, o modo como ela é executada e conformada o traço distintivo e fundamental na caracterização dessa prestação, sendo que, como todo o respeito, os factos provados de todo confirmam essa natureza, conforme concluímos.
Em reforço do que vimos de expor, note-se que não se surpreende, nos factos provados, que ao prestador sejam abonadas quantias cuja natureza se associe às prestações de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal. A circunstância de o prestador, a fim de poder registar-se na plataforma, ter que ter actividade como trabalhador independente na Autoridade Tributária (factos provados constantes dos pontos 10. e 14.), não é elemento típico da relação subordinada. Também as exigências contidas no ponto 10., dos factos provados, situam-se a montante da prestação da actividade, não se reconduzindo, por isso, a factos a que possamos recorrer para concluir que, por essa via, a apelada dirigia, supervisionava ou fiscalizava a prestação do estafeta.
Tudo visto e ponderado, conclui-se, pois, que, por via do método indiciário e dos indícios internos e externos que o integram e a que faz apelo o recorrente, também não é possível concluir que entre a apelada e AA se haja estabelecido um vínculo de natureza laboral.
8. Por todo o exposto e sem prejuízo da sempre respeitável posição do apelante, será de confirmar a sentença do tribunal a quo, sem prejuízo de todo nos revermos nas suas considerações finais e no tom crítico que por via delas se endereça ao trabalho e missão da Autoridade para as Condições do Trabalho. Por muito que haja sido o trabalho que se tenha desenvolvido na sequência das muitas participações que, pela ACT, foram feitas nos tribunais por este país fora e do impacto que isso gerou na tramitação de outros processos, nada justifica que se desmereça o trabalho daquela Autoridade, tantas vezes tão difícil e com tão escassa colaboração por parte dos principais actores das relações laborais, não devendo esquecer-se a especial missão que, na actividade em presença, lhe foi imposta pelo legislador (cfr., o art.º 32.º, n.º 3, da Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril).
9. Não são devidas custas por delas estar isento o apelante (art.º 4.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais).
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VI. Decisão
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se, na integra, a sentença recorrida.
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Não são devidas custas.
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Lisboa, 9 de Abril de 2025
Susana Martins da Silveira
Alda Martins
Eugénia Maria Guerra
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1. Salienta-se que se empregará, por razões de mera associação aos conceitos legais, a terminologia constante da lei processual laboral.
2. De ora em diante assim identificado.
3. De ora em diante assim identificado.
4. Que adequaremos em função da opção pela terminologia legal.
5. Relatado pela também aqui relatora e acessível em www.dgsi.pt. 6. Proferido no Processo n.º 2178/07.3TTLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
7. Por ser esta a figura contratual que, maioritariamente, surgia contraposta ao vínculo laboral.
8. Cfr., neste sentido, Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 14.ª Edição, Almedina, 2009, pág, 149.
9. Proferido na Revista n.º 182/14.4TTGRD.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
10. Embora, vista a actual presunção do art.º 12.º-A, do Código do Trabalho, regime jurídico cuja ratio foi a de justamente conformar as relações jurídicas estabelecidas nos moldes definidos no seu n.º 2, nenhum destes elementos haja, de facto, sido abandonado, conforme disso dá evidente nota a sua al. d).
11. In, Direito do Trabalho, Lições ao 3.º ano da FDUC, 1993, pág. 141.
12. Cfr., neste sentido, João Leal Amado e Teresa Coelho Moreira, in, Prontuário de Direito do Trabalho, 2020-II, Centro de Estudos Judiciários, pág. 147, no Estudo “A Glovo, os riders/estafetas e o Supremo Tribunal de Espanha: another brick in the wall”, quando justamente enfatizam que «qualificar o trabalho em plataformas, o trabalho realizado com recurso a apps, como autónomo ou dependente sempre dependerá de uma apreciação casuística, que leve em conta os dados resultantes de cada tipo de relação, de cada concreto contrato».
13. In, Direito do Trabalho, Parte II – Relações Laborais Individuais, 2.ª Edição, Almedina, 2008, págs. 611 e 612.
14. Já acima citado.