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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário
I - É de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor quando este, dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tiver renunciado ao direito de usufruto de que era titular sobre os únicos bens imóveis que integravam o seu património. II - Nessa situação, subsumível à previsão do artigo 186º, n.º 2, alínea d), do CIRE, aplicável por força do artigo 238º, n.º 1, alínea e), do mesmo diploma legal, presume-se, “iuris et de iure”, não só o carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, como o nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO:
Inconformada com o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que formulou no requerimento inicial de apresentação à insolvência, AA interpôs o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
Primeira: A insolvente/recorrente não se conforma com o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por si formulado na petição inicial.
Segunda: São os seguintes os fundamentos do recurso:
a) Nulidade, por violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes;
b) Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
c) Não preenchimento dos pressuspostos de que depende a aplicação do artigo 238.º, n.º 1, alínea d) do CIRE;
d) Não preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação do artigo 238.º, n.º 1, alínea e) do CIRE.
Terceira: o Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão num elenco de factos que vão muito para além do elenco dos factos provados constantes da sentença já proferida que decretou a insolvência e já transitada em julgado.
Quarta: o Tribunal recorrido, em momento algum do processo, advertiu a insolvente que, para a decisão a tomar sobre o pedido de exoneração do passivo restante, tomaria em conta o conteúdo do apenso da reclamação de créditos.
Quinta: a insolvente não foi notificada das reclamações de créditos apresentadas e dos documentos que os acompanham, para o exercício do contraditório.
Sexta: Do citius, apenas constam as reclamações de créditos dos credores BB e mulher, CC; EMP01..., DAC; e Instituto da Segurança Social, I.P.
Sétima: o Tribunal recorrido, no despacho proferido no dia 1 de Março de 2023 – referência ...35 – e a propósito da matéria de facto sobre a qual se afigurava necessário produzir prova para a decisão a proferir sobre o pedido de exoneração do passivo restante, se limitou a determinar, no que diz respeito à insolvente, que esta juntasse aos autos certificado de registo criminal actualizado; sendo certo que, sobre os factos relativamente aos quais se mostrava necessária a produção de prova para a decisão a proferir sobre o pedido de exoneração do passivo restante, esta foi a única notificação / solicitação feita pelo Tribunal recorrido à insolvente.
Oitava: No entanto, do nosso ponto de vista, em clara violação dos princípios do contraditório (artigo 3.º, números 2 e 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE) e da igualdade das partes (artigo 4.º do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE), o Tribunal recorrido foi muito mais “diligente” no que diz respeito às notificações efectuadas ao senhor Administrador de Insolvência e à credora EMP02..., S.A., credora que se opôs ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante.
Nona: Em momento algum, o Tribunal recorrido notificou a insolvente para se pronunciar sobre a informação a prestar ou prestada pelo senhor Administrador de Insolvência relativamente à data de constituição e de incumprimento de cada um dos créditos reclamados e por si reconhecidos.
Décima: E tal notificação impunha-se, em nome dos referidos princípios do contraditório e da igualdade das partes, pois, no que diz respeito à prova dos factos que interessava provar à credora EMP02..., S.A., o Tribunal recorrido teve atitude diferente.
Décima-primeira: Ou seja, «dois pesos e duas medidas». No caso da credora oponente, total diligência do Tribunal quanto à prova a produzir pela referida credora e designadamente sobre os factos cujo ónus da prova era seu. No caso da insolvente, nenhuma notificação, solicitação ou convite, para a prova a produzir sobre os factos considerados ou a considerar como relevantes pelo Tribunal, concretamente sobre a data de constituição e de incumprimento de cada um dos créditos reclamados e reconhecidos; os motivos subjacentes à venda do veículo automóvel e renúncia ao usufruto; o valor pelo qual foi vendido o veículo automóvel e o destino dado ao produto da venda; a existência, montante, origem e razão de ser das dívidas alegadamente constituídas após a data da venda do veículo automóvel e da renúncia ao usufruto; a existência ou não de perspectiva séria, por parte da insolvente, de melhoria da sua situação económica.
Décima-segunda: Permitimo-nos convocar o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 6 de Dezembro de 2011, citado por João Botelho, in “Exoneração do Passivo Restante (artigos 235.º a 248.º do C.I.R.E.)”, página 66, Nova Causa, Edições Jurídicas, Maio de 2020; e o decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em Acórdão de 25 de Junho de 2009, citado por João Botelho, in “Exoneração do Passivo Restante (artigos 235.º a 248.º do C.I.R.E.)”, páginas 83 e 84, Nova Causa, Edições Jurídicas, Maio de 2020; Acórdão que teve como Relatora a Exma. Senhora Juíza Desembargadora Isabel Rocha e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Décima-terceira: O que antecede configure nulidade, nos termos do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 195.º, uma vez que a omissão das notificações pode ter infuência na decisão a proferir, no caso o despacho liminar respeitante ao pedido de exoneração do passivo. Isto porque, caso a insolvente pretendesse pronunciar-se, a decisão liminar em causa teria de ter em conta o que viesse a ser alegado.
Décima-quarta: Assim, deve ser anulada a decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo, com todas as legais consequências.
Décima-quinta: Foi assim cometida nulidade, o que expressamente se argui e que se afigura como relevante, pois, do elenco dos factos dados como provados, consta um conjunto de factos que a recorrente confia que teriam um conteúdo diferente, caso não tivesse sido cometida a nulidade e que – também confia a recorrente – passarão a ter um conteúdo diferente na sequência da prova produzida após a declaração da nulidade invocada;
Décima-sexta: o que terá, necessariamente, implicações na decisão final a proferir sobre o pedido de exoneração do passivo restante, uma vez que tais factos contendem directamente com a data de constituição e de incumprimento de cada um dos créditos reclamados e reconhecidos; os motivos subjacentes à venda do veículo automóvel e renúncia ao usufruto; o valor pelo qual foi vendido o veículo automóvel e o destino dado ao produto da venda; a existência, montante, origem e razão de ser das dívidas alegadamente constituídas após a data da venda do veículo automóvel e da renúncia ao usufruto; a existência ou não de perspectiva séria, por parte da insolvente, de melhoria da sua situação económica.
Sem prescindir,
Décima-sétima: O Tribunal recorrido decidiu mal ao ter dado como provado que: 21. A insolvente vendeu o seu veículo automóvel, da marca ..., em Julho de 2019, não tendo efetuado qualquer pagamento aos credores, tal como resulta das informações obtidas junto da Conservatória do Registo competente e da consulta realizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, juntas a estes autos pela Credora EMP02... a 26/02/2024 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
Décima-oitava: ao invés do decidido, o Tribunal recorrido deveria ter antes decidido que: 21. A insolvente, para fazer face às suas dificuldades financeiras e assegurar a sua sobrevivência, vendeu o seu veículo automóvel, da marca ..., em Julho de 2019, tal como resulta das informações obtidas junto da Conservatória do Registo competente e da consulta realizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, juntas a estes autos pela Credora EMP02... a 26/02/2024 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
Décima-nona: Percorrido o elenco dos factos considerados como provados, verifica-se que, em momento algum, o Tribunal recorrido considerou como provado que a insolvente não tinha qualquer perspectiva séria de melhoria da sua condição económica ou que não podia ignorar não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Vigésima: O elenco dos factos dados como provados é totalmente omisso no que diz respeito ao preenchimento do elemento subjectivo da conduta da insolvente – quer quanto à consciência, quer quanto à impossibilidade de desconhecimento, quer quanto à existência de culpa, quer quanto à natureza / gravidade dessa culpa -, pois, os factos relativos a esse aspecto, com a formulação anteriormente referida ou com outra formulação que conduzisse ao mesmo resultado e à mesma conclusão, pura e simplesmente não existem, no sentido em que não constam do aludido elenco dos factos provados.
Vigésima-primeira: A factualidade dada como provada é insuficiente para o preenchimento deste pressuposto/requisito, pelo que, por ausência de factos, tal pressuposto / requisito não poderia ter sido considerado como preenchido / verificado.
Vigésima-segunda: Caso se entenda que o que antecede configura a nulidade expressamente prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, aplicável aos despachos por via do disposto no artigo 613.º, n.º 3 do CPC, por cautela, argui-se expressamente a nulidade, o que deve ser feito no recurso, como resulta expressamente do artigo 615.º, n.º 4 do CPC.
Vigésima-terceira: No caso dos autos, o prejuízo, nos casos em que exista, não se reveste das características imprescindíveis para que releve, em sede de indeferimento do pedido de exoneração do passive restante: irreversível, grave, real e efectivo e que implique patente agravamento da situação dos credores que, assim, ficam mais onerados pela atitude culposa do devedor.
Vigésima-quarta: Foram razões de “sobrevivência” e de “necessidade” que levaram a insolvente a vender o veículo automóvel.
Vigésima-quinta: Resulta dos autos que a insolvente não vendeu o veículo automóvel com o intuito de alienar património, mas antes em verdadeiro “estado de necessidade”.
Vigésima-sexta: Como resulta dos documentos juntos aos autos pela credora EMP02..., o veículo automóvel tem matrícula de 2010, pelo que, facilmente se concluirá que, quer hoje, quer em 2019, estaremos a falar de um património cujo valor rondaria os cerca de cinco mil euros, como o Tribunal recorrido poderia ter facilmente concluído pela pesquisa de informação disponível na internet. Ou seja, um prejuízo insignificante.
Vigésima-sétima: O Tribunal recorrido optou por nem sequer cuidar de saber qual o valor do veículo, nem o valor pelo qual foi vendido.
Vigésima-oitava: Acresce que, como resultará da reclamação de créditos apresentada pelo credor DD, que sucedeu na titularidade do crédito do Banco 1..., S.A., na data da venda do veículo automóvel os pagamentos ao Banco 1..., S.A.encontravam-se em dia e continuaram em dia até 10 de Junho de 2020, de acordo com a informação prestada nos autos pelo senhor Administrador de Insolvência em 14 de Julho de 2023 (memorando).
Vigésima-nona: No que diz respeito à renúncia ao usufruto de que a insolvente era titular sobre cinco imóveis, como resulta dos documentos juntos aos autos pela credora EMP02..., através de requerimento apresentado em 26 de Fevereiro de 2024, sobre os cinco imóveis – o que abrange o aludido usufruto, bem como a propriedade plena - incide, desde 29 de Dezembro de 2016, uma hipoteca voluntária constituída a favor do Banco 1..., S.A., para garantia do pagamento de um “montante máximo” de EUR 231.800,00 (duzentos e trinta e um mil e oitocentos euros).
Trigésima: Como resulta do documento junto aos autos em 19 de Setembro de 2022, pelo credor DD, o crédito garantido pela aludida hipoteca voluntária foi cedido, acompanhado da referida garantia, pelo Banco 1..., S.A. ao aludido credor DD.
Trigésima-primeira: Como resulta da lista de credores junta aos autos pelo senhor administrador de insolvência em 30 de Janeiro de 2023, o credor DD reclamou créditos nestes autos de insolvência, defendendo que o crédito de que é detentor deve ser classificado como garantido, com fundamento na constituição da referida hipoteca voluntária.
Trigésima-segunda: Como resulta da relação de créditos reconhecidos, junta pelo senhor Administrador de Insolvência, em 14 de Julho de 2023, no apenso da reclamação de créditos, ao referido credor foi reconhecido um crédito garantido, no valor de EUR190.177,71 (cento e noventa mil cento e setenta e sete euros e setenta e um cêntimos).
Trigésima-terceira: Se, porventura, o processo de insolvência não tivesse sido encerrado com fundamento na insuficiência da massa insolvente e se viesse a ser proferida sentença de graduação dos créditos, tendo em conta o que antecede, o produto da liquidação do usufruto (caso não tivesse existido renúncia) sempre reverteria, no essencial, para o referido credor DD, que continua garantido, uma vez que a aludida hipoteca voluntária subsiste.
Trigésima-quarta: Do ponto de vista do valor em causa, importa ter em conta de que estamos a tratar de um usufruto e não da propriedade plena, com tudo o que isso implica, do ponto de vista do valor; facto que o Tribunal recorrido não olvidou, pois, mesmo sem efectuar qualquer avaliação, concluiu facilmente que o produto da liquidação do usufruto apenas permitiria efectuar “pagamentos muito parciais”.
Trigésima-quinta: A esta conclusão do Tribunal recorrido não terão sido alheias as circunstâncias de estarmos na presença de um direito que é sempre temporário; de, como resulta dos factos provados, a insolvente ter sessenta anos e, como resulta dos documentos juntos aos autos pela credora EMP02..., através de requerimento apresentado em 26 de Fevereiro de 2024, dos cinco imóveis, três serem rústicos.
Trigésima-sexta: Ao contrário do que é defendido na decisão recorrida, a insolvente não tratou de andar a “constituir” novas dívidas junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e junto da Segurança Social, após a venda do veículo automóvel e a renúncia ao usufruto.
Tratando-se, no essencial, de reversões, a origem das referidas dividas remonta ao período temporal anterior à venda do veículo automóvel e à renúncia ao usufruto.
Trigésima-sétima: A insolvente nunca foi notificada da reclamação de créditos apresentada pela EMP03...; nunca foi notificada para se pronunciar sobre o seu conteúdo e a reclamação de créditos em causa não está sequer disponível no portal citius; pelo que a insolvente não pode – nem o poderia fazer anteriormente – pronunciar-se, de forma cabal e rigorosa sobre o crédito em causa.
Trigésima-oitava: No que diz respeito ao crédito reclamado pela sociedade de Advogados EMP04... – Sociedade de Advogados, SP, RL, apesar de, tal como sucede com o crédito reclamado pela EMP03..., a insolvente nunca ter sido notificada da reclamação de créditos apresentada; nunca ter sido notificada para se pronunciar sobre o seu conteúdo e a reclamação de créditos em causa não estar sequer disponível no portal citius; a insolvente, caso tivesse sido notificada para tal, sempre diria que sabe que tal crédito está relacionado com serviços prestados pela aludida sociedade de Advogados no âmbito de reclamação de créditos apresentada no processo de insolvência da sociedade comercial por quotas EMP05..., S.A., NIPC ...41, que, com o n.º 1367/15...., correu termos pelo Juiz ... do Juízo do Comércio de Guimarães do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no âmbito do qual a insolvente figurou como credora, reclamou créditos e viu créditos reconhecidos, no valor de um milhão trezentos e cinquenta e um mil duzentos e noventa e cinco euros e noventa e sete cêntimos, tratando-se, assim, de uma dívida, que na sua base, teve uma actuação diligente da insolvente, tendente a alcançar uma melhoria da sua situação económica e financeira e sempre com o objectivo de evitar a sua insolvência.
Trigésima-nona: Acresce que a insolvente também diria que também reclamou créditos, estes no valor de quinhentos e quarenta e nove mil trezentos e oitenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos, no âmbito de processo de insolvência pessoal de EE, que correu termos pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, Juiz ..., com o número 1426/15.....
Quadragésima: Em rigor, não se pode dizer que, até ao encerramento dos referidos processos, a insolvente não tivesse a legítima expectativa de melhoria da sua situação económica e financeira, pelo que, aquando da venda do veículo automóvel e da renúncia ao usufruto, a insolvente não tinha – nem tinha a obrigação de ter – a consciência da sua insuficiência económica, uma vez que, tinha em curso tentativas, por via judicial, de cobrança de créditos de quantias muito significativas e que permitiriam efectuar pagamentos, na mesma ordem de grandeza, aos seus credores.
Quadragésima-primeira: Não se encontra demonstrada a existência de culpa da insolvente na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Quadragésima-segunda: A decisão recorrida violou o disposto no artigo 3.º, números 2 e 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE; no artigo 4.º do CPC, aplicável ex vi artigo 17.º do CIRE; no artigo 238.º, n.º 1, alíneas d) e e) do CIRE.
Nestes termos, e nos demais que V. Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, com todas as legais consequências.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
No caso vertente, as questões a decidir que relevam das conclusões recursórias são as seguintes:
- Se ocorre nulidade processual atendível, por a recorrente não ter sido advertida de que o tribunal teria em conta o conteúdo do apenso de reclamação de créditos e por preterição do contraditório relativamente às informações prestadas pelo Administrador da Insolvência e por um dos credores, sancionada na decisão recorrida, bem por violação do princípio da igualdade das partes;
- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto relativamente ao ponto 21 do elenco dos factos provados;
- Se, por não se ter provado um dos respectivos requisitos – concretamente o de que a recorrente sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica –, não podia ter-se considerado preenchido o fundamento de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou se, mercê de tal omissão, o despacho recorrido padece de nulidade, por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil;
- Se, ainda que improcedam as duas questões enunciadas no item anterior, o retardamento da apresentação à insolvência não implicou patente agravamento da situação dos credores, pelo que não se mostra preenchida a previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
- Se estão ou não verificados os requisitos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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III. FUNDAMENTAÇÃO:
Os factos
Recorda-se o teor do despacho recorrido: “(…) A Insolvente AA, juntamente com o pedido de declaração de insolvência, requereu a exoneração do passivo, em conformidade com o que dispõem os art.ºs 235.º e 236.º do CIRE. O Sr. Administrador da Insolvência, no relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, pronunciou-se favoravelmente à concessão do benefício em causa à Requerente. A pretensão da Insolvente mereceu oposição da credora EMP02..., S.A..
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Cumpre, atento o disposto nos art.ºs 237.º e 238.º do CIRE, apreciar liminarmente a pretensão da devedora.
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São os seguintes os factos que se mostram provados e que apresentam relevo para a decisão a proferir: 1. A Insolvente nasceu em ../../1964 e é natural de ..., ..., tendo sido registada como filha de FF e de GG, conforme resulta do assento de nascimento junto aos autos com a petição inicial e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 2. A insolvente viu o seu segundo casamento ser dissolvido por divórcio por decisão datada de ../../2008, conforme resulta do assento de nascimento junto aos autos com a petição inicial e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 3. A Insolvente tem averbados antecedentes criminais ao seu Certificado do Registo Criminal pela prática de crimes de abuso de confiança fiscal e abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social, tal como resulta do certificado que juntou a estes autos mediante requerimento datado de 09/03/2023 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 4. Do referido certificado do registo criminal resulta o averbamento de que a Insolvente se encontra inibida para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa ou administração de património alheio, pelo período de 4 anos, nos termos da sentença de 11 de Maio de 2021 proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Comércio de Guimarães, Juiz .... 5. A Insolvente exerce funções profissionais enquanto educadora de infância no Agrupamento de Escolas ..., actualmente a prestar serviço, em regime de mobilidade interna na ..., auferindo um vencimento mensal bruto de EUR 1.536,90. 6. O agregado familiar da insolvente é constituído apenas pela própria. 7. As despesas mensais cifram-se em € 1.190,00, sendo as de luz, internet, telefone e televisão no montante de € 300,00; as de saúde de € 90,00; as de transporte de e para o seu local de trabalho de € 250,00; € 150,00 com almoços em dias de trabalho e € 400,00 com alimentação, vestuário, higiene e outras da casa. 8. A Insolvente é executada no âmbito dos autos de execução, que com o n.º 2921/19...., que corre termos pelo Juízo de Execução de Guimarães, Juiz ..., em que é exequente EMP02..., S. A., processo em que a quantia exequenda é de EUR 362.710,63 (trezentos e sessenta e dois mil setecentos e dez euros e sessenta e três cêntimos). 9. A Insolvente é executada no âmbito dos autos de execução, que com o n.º 3051/20...., corre termos pelo Juízo de Execução de Guimarães, Juiz ..., em que é exequente o Banco 1..., S.A., processo em que a quantia exequenda é de EUR 190.471,39 (cento e noventa mil quatrocentos e setenta e um euros e trinta e nove cêntimos). 10. A requerente tem dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira no valor global de EUR 13.331,84, tal como resulta da lista junta pelo Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência nos autos apensos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 11. A requerente tem dívidas à Segurança Social no valor global de EUR 668.301,60, tal como resulta da lista junta pelo Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência nos autos apensos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 12. O valor global dos créditos reclamados e reconhecidos pelo Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência ascende ao montante de €1.643.278,00. 13. O incumprimento para com a Autoridade Tributária e Aduaneira tem início em Dezembro de 2020 de acordo com a informação prestada pelo Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência a 21 de Novembro de 2023 no apenso da reclamação de créditos. 14. Os incumprimentos com a Segurança Social referentes a créditos por contribuições enquanto trabalhador independente – tem início a 04/2020 a 06/2020; 11/2020 a 12/2020; 08/2021 e 09/2021; Crédito por contribuições devidos enquanto responsável subsidiário EMP06..., S. A. - 10/2014 a 11/2015 e Crédito por contribuições enquanto responsável subsidiário de EMP07..., S.A. - 10/2015, 12/2015 a 01/2016, 03/2016, 05/2016 a 02/2017, 07/2017 a 03/2018, e de 05/2018 a 04/2019, tal como resulta da informação prestada pelo Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência a 21 de Novembro de 2023 no apenso da reclamação de créditos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 15. O crédito da EMP08... foi constituído a 12/01/2015 e incumprido a 13/11/2015, da EMP01... constituído a 18/05/2007 e incumprido a 01/01/2016, da EMP02... constituído a 06/02/2019 e incumprido a 16/02/2019, de BB e CC constituído a 22/12/2015 e incumprido renda de outubro de 2018 a janeiro de 2019, da LISGARANTE constituído a 21/12/2010 e incumprido a 31/05/2022, da EMP09..., S.A.R.L. diversos créditos constituídos ao longo do ano de 2018 e incumpridos ao longo do ano de 2019, da EMP03... constituídos de 14/08/2019 a 24/01/2020 e incumpridos de 04/09/2019 a 13/02/2020, da EMP04...– Sociedade De Advogados, Sp RL. constituído e incumprido a 19/07/2022 e do credor DD constituído a 02/01/2017 e incumprido a 10/06/2020, tal como resulta da informação prestada pelo Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência a 21 de Novembro de 2023 no apenso da reclamação de créditos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 16. A maioria das referidas dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e à Segurança Social constituem reversões instauradas contra a requerente devido ao facto de ter sido administradora de pelo menos duas sociedades, a EMP06... e a EMP07..... 17. No período compreendido entre 10 de Outubro de 2014 e 19 de Fevereiro de 2016, a requerente foi membro do Conselho de Administração da sociedade EMP06..., S. A.. 18. No período compreendido entre 10 de Outubro de 2014 e Setembro de 2019, a requerente foi membro do Conselho de Administração da sociedade EMP07..., S. A.. 19. A sociedade “EMP06...” foi declarada insolvente em 05/11/2015, conforme anúncio junto com o requerimento apresentado pela EMP02... a 13/02/2023 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 20. A sociedade “EMP07...” foi declarada insolvente em 09/05/2019, conforme anúncio junto com o requerimento apresentado pela EMP02... a 13/02/2023 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 21. A insolvente vendeu o seu veículo automóvel, da marca ..., em Julho de 2019, não tendo efetuado qualquer pagamento aos credores, tal como resulta das informações obtidas junto da Conservatória do Registo competente e da consulta realizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, juntas a estes autos pela Credora EMP02... a 26/02/2024 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 22. Das informações e consulta identificadas no número antecedente resulta que aquando da pesquisa junto da Autoridade Tributária e Aduaneira a 06/06/2019 o dito veículo estava inscrito em nome da Insolvente e desde ../../2019 encontra-se inscrito em nome de GG. 23. A Insolvente tinha registado a seu favor o usufruto sobre cinco imóveis, tendo renunciado ao referido usufruto quanto a todos os referidos 5 imóveis a 02/04/2020, tal como resulta das informações obtidas junto da Conservatória do Registo competente juntas a estes autos pela Credora EMP02... a 26/02/2024 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 24. A ora Insolvente apresentou-se a requerer a sua insolvência mediante petição entrada em juízo a 17/08/2022, tal como resulta certificado no histórico electrónico destes autos. 25. Por não ter sido possível apreender qualquer bem o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência propôs o encerramento do processo com fundamento na insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, o qual viria a ser declarado por despacho datado de 01/03/2023.
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Os factos supra elencados foram considerados provados em razão dos documentos juntos aos autos pela devedora, bem como do relatório do Sr. Administrador de Insolvência constante dos autos, assim como os documentos juntos pela Credora EMP02..., no qual os factos em apreço são descritos com objetividade e sem que tivessem sido postos em causa por qualquer interveniente processual. Mais foram valoradas as informações prestadas pelo Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência e pelos próprios credores quanto à data de constituição e de incumprimento dos créditos reclamados e reconhecidos e bem assim o constante do apenso da reclamação de créditos.
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A devedora pretende lhe seja concedida a exoneração do passivo restante. Dispõe, a propósito, o art.º 235.º do CIRE que se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. O pedido de exoneração do passivo restante, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 236.º do CIRE, é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório; o juiz decidirá livremente sobre a admissão ou rejeição do pedido apresentado no período intermédio. Nos termos do n.º 3 deste normativo, do requerimento do devedor deve constar expressamente a declaração de que o mesmo preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes. A exoneração do passivo consiste, como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência 4e da Recuperação de Empresas Anotado”, Lisboa, 2008, p. 778) consiste na “liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente”. Trata-se de um instituto jurídico introduzido pelo CIRE, sendo que com ele, de acordo com o relatório do próprio D.L. 53/2004, pretendeu-se instituir uma solução inovadora apontando para a prossecução do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolvente da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”. Traduz, assim, ainda de acordo com o mesmo texto, uma ideia de “fresh start” para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência”, por forma a que estas, vendo extintas as suas dívidas, possam perspetivar a retoma da sua vida económica. O “fresh start” consagrado no CIRE, contudo, não foi previsto em termos radicais de puro perdão do passivo do insolvente. Na verdade, e como decorre do citado art.º 235.º, o benefício em causa só é concedido depois de um período probatório de cinco anos (agora três anos) em que o devedor, não só terá de afetar o seu rendimento disponível ao pagamento dos credores, como terá de adotar um comportamento irrepreensível em termos de não reincidência em condutas semelhantes àquela que conduziu à sua insolvência. Só então, verificados tais pressupostos, é que o mesmo se verá livre do passivo anteriormente contraído e poderá beneficiar do novo impulso proporcionado pelo instituto para retomar a sua vida. Dentro desta lógica, o legislador estabeleceu dois períodos temporais distintos em termos de apreciação pelo tribunal da pretensão de exoneração do passivo restante por parte do devedor. Num primeiro momento - que é aquele em que nos encontramos -, cumpre ao juiz fazer uma apreciação liminar da situação do devedor, por forma a apurar se o mesmo reúne todos os requisitos legais para o efeito e se se encontra em condições de avançar para o período probatório actualmente de três anos. Nessa apreciação liminar, deve ser analisado pelo juiz se se verifica alguma das hipóteses previstas nas diversas alíneas do art.º 238.º do CIRE, na certeza de que, verificando-se alguma delas, o pedido será liminarmente indeferido. Assim, o pedido será liminarmente indeferido se: a) for apresentado fora do prazo; b) o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; c) o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; d) o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a apresentar-se, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores e sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica; e) constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador de insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art.º 186.º; f) o devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos nos art.ºs 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data de entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência ou posteriormente a esta data; g) o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente código, no decurso do processo de insolvência. Tal decisão, nos termos do n.º 2 do preceito em análise, é proferida após a audição dos credores e do administrador de insolvência na assembleia de apreciação do relatório, excepto se este for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no n.º anterior. Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido, nos termos do art.º 239.º, n.º 1 do CIRE, o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes. Tal despacho, de acordo com o n.º 2, determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – o designado período de cessão – o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade – o fiduciário – escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência. Além disso, e nos termos do n.º 4, nesse período de cessão o devedor fica adstrito ao cumprimento das seguintes obrigações: a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto da cessão; d) informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar vantagem especial para algum desses credores. O instituto jurídico da exoneração do passivo restante constitui uma medida de proteção do devedor. Todavia, a sua concessão é susceptível de afectar de forma indelével a posição jurídica dos seus credores, pelo que, tal como se referiu no acórdão da Relação de Coimbra de 17 de dezembro de 2008 (disponível em www.dgsi.pt), não pode traduzir-se “num instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas quantias”. Deste modo, e segundo o mesmo aresto, a sua concessão pressupõe “a apreciação da conduta anterior e actual da insolvente pautada pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, com vista a determinar se reúne condições para que lhe seja dada uma nova oportunidade, ainda que sujeito a um período probatório de cinco anos”.
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No caso dos autos, a Requerente pretende beneficiar do instituto jurídico em apreço, sendo que cumpre, pois, aferir se se verifica alguma das situações que, à luz das diversas alíneas que integram o supra-citado n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, conduzirão ao indeferimento do pedido em apreço. A Requerente formulou o pedido de exoneração do passivo na petição inicial, juntamente com o pedido de declaração da sua insolvência. Trata-se, deste modo, de pedido tempestivo, não se verificando a hipótese prevista na alínea a) do normativo em apreço. Não há qualquer facto que permita subsumir a conduta da Requerente à previsão das alíneas b), c), f) e g). O preceito legal em referência - artigo 238º, 1, d), do CIRE – determina o seguinte: O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”. Há, pois, que averiguar se o caso “sub-judice” se enquadra na previsão legal acima referida.
Daquela disposição resulta que terá de haver indeferimento liminar 1 - se o devedor não cumpriu o dever de apresentação à insolvência, com prejuízo para os credores (a exigência deste último pressuposto resulta da expressão “com prejuízo em qualquer dos casos”); 2 - ou, se não existir esse dever, se se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os credores e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica. Em qualquer dessas duas situações os respectivos pressupostos são cumulativos. Isto posto, daqui resulta que temos de considerar o “prejuízo” previsto nessa alínea como algo mais do que o que já resulta da demais previsão desse dispositivo. Esse prejuízo não pode consistir no aumento da dívida e atraso na cobrança dos créditos por parte dos credores, pois que tal já resultava da demais previsão dessa alínea. Isto é, tais situações são insuficientes para levar ao indeferimento liminar. Tanto mais que o artigo 9º, nº 3, do Código Civil determina que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Ora, a Insolvente já depois de ver as sociedades de que foi administradora serem declaradas insolventes, a última das quais (EMP07...) em Maio de 2019 e de conhecer as responsabilidades a que estava obrigada por força de tais funções e o montante das garantias que prestou a favor das mesmas e relativamente às quais teria de responder, decidiu desfazer-se de todo o património que ainda detinha, vendendo o seu veículo em Julho de 2019 e renunciou ao usufruto que detinha sobre cinco imóveis em Abril de 2020 e constituiu mais dívida após tal venda e renúncia, pois tal como resulta da informação prestada pelo Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência a 21/11/2023 no apenso de reclamação, há créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social constituídos após a data da venda do veículo e da renúncia ao usufruto, assim como os créditos da EMP03... e EMP04... advogados que se encontram na mesma situação. A Insolvente viu reduzido totalmente o seu activo, com excepção do seu vencimento. A Insolvente aufere um vencimento bruto de pouco mais de €1.500,00 pelo que a mesma não podia ignorar que ao vender o seu veículo e renunciar ao usufruto que detinha estava a reduzir o seu activo e consequentemente estava a prejudicar os seus credores, pois ainda que não obrigada a apresentar-se à insolvência, a mesma absteve-se dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores e sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica, pois não só diminuiu o seu activo, como aquando da transmissão do seu activo por via da venda e da renúncia já se encontrava em situação de incumprimento para com a generalidade dos seus credores e ainda constituiu mais dívida após a dita venda e renúncia. O ónus da prova da verificação dos factos e circunstâncias a que se alude no art. 238.º, n.º 1 do CIRE compete aos credores, por se tratarem de facto impeditivos, excepto se os autos demonstrarem cabalmente os mesmos, atento o disposto no art. 11.º do CIRE (Vide neste sentido, entre outros, o Ac. da Relação de Guimarães, em que figura como Relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. Estelita de Mendonça, proferido no âmbito do proc. 467/12.4TBPTL-G.G1, 26.2.2015, e que pode ser consultado em www.dgsi.pt). A regra é pois da admissibilidade do pedido, apenas sendo de indeferir verificando-se e provando-se as situações taxativas vertidas no art. 238.º, n.º 1 do CIRE (neste sentido vide o Ac. da Relação de Guimarães, em que figura como Relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. Jorge Teixeira, no âmbito do proc. 1494/12.2TBBCL-F.G1, 10.7.2014, consultado em www.dgsi.pt). Tal como já supra referimos, a credora Opoente logrou demonstrar o prejuízo causado aos credores por via da venda do veículo e da renúncia ao usufruto relativamente a cinco imóveis e que poderia assegurar o pagamento (ainda que muito parcial) dos créditos contraídos. Os prejuízos não podem consistir no aumento da dívida e atraso na cobrança dos créditos por parte dos credores, é necessário algo mais que neste caso foi alegado e que se traduz essencialmente na alienação do único património conhecido pela insolvente numa altura em que prévia e posteriormente continuou a contrair mais créditos, mais dívida (cfr. neste sentido os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/12/2012, da Relação de Lisboa de 17/04/2012 e da Relação de Guimarães de 22/09/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt). O incumprimento da Insolvente para com os credores tinha mais de seis meses, e resulta dos autos que a Insolvente constituiu novas obrigações após os incumprimentos com o a generalidade dos seus credores. O retardamento na apresentação à insolvência não é, ipso facto, causa de prejuízos para os credores, devendo exigir-se um nexo de causalidade entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores que, em qualquer caso, deve ser irreversível e grave e tem de ser tal que implique patente agravamento da situação dos credores que, assim, ficam mais onerados pela atitude culposa do devedor Daqui resulta ser manifesto que a Insolvente causou prejuízo real e efectivo aos seus credores ao subtrair a totalidade do seu activo à acção dos mesmos quando já havia situações de incumprimento para com a generalidade dos seus credores não se tendo apresentado à insolvência em momento anterior, pelo que se verificam os pressupostos conducentes ao indeferimento liminar da pretensão da insolvente com base na al. d) do art. 238º nº 1 do CIRE. Importa ainda apurar se se verifica a situação da al. e), ou seja, se constam já no processo, ou se foram fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador de insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa da devedora na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art.º 186.º. Dos autos resulta que a Devedora vendeu o seu veículo automóvel e renunciou ao usufruto que detinha sobre cinco imóveis quando já se encontrava em incumprimento com a generalidade dos seus credores. Para além do que vai dito a Devedora continuou a constituir mais dívida quer junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, quer junto da Segurança Social (enquanto trabalhadora independente) e até mesmo constituindo novas dívidas com a EMP03... e com um escritório de Advogados. A apresentação à insolvência ocorre volvidos pouco mais de dois anos após a renúncia e três anos após a venda do veículo o que inviabilizou qualquer tentativa de eventual resolução por parte do Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência (cfr. art. 120º e 121º do CIRE). A Devedora estava em incumprimento para com a generalidade dos seus credores e sabia que o valor do seu vencimento bruto não seria suficiente a assegurar as suas necessidades básicas e o seu passivo (superior a um milhão de euros como já refere na petição inicial com que se apresentou à insolvência), e ainda assim em Julho de 2019 e em Abril de 2020, ficou sem qualquer activo e continuou a constituir dívida depois de tais venda e renúncia ao usufruto. A alienação voluntária do seu único activo e a constituição de mais dívidas depois da referida alienação denotam ou indiciam com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art.º 186.º nº 2 al. d) do CIRE, na medida em que dispôs dos seus bens em favor ou proveito de terceiros. De igual modo, e tal como já supra se referiu, estando igualmente preenchida a previsão das als. d) e e) do artigo 238º nº 1 do CIRE, conclui-se que não há qualquer outra conclusão a retirar que não seja indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo formulado pela Insolvente em sede de petição inicial com que se apresentou à presente insolvência. (…)”
Vejamos
Sustenta a recorrente que ocorre nulidade processual atendível, que expressamente argui, por não ter sido advertida de que o tribunal teria em conta o conteúdo do apenso de reclamação de créditos e por preterição do contraditório relativamente às informações prestadas pelo Administrador da Insolvência e por um dos credores “EMP02..., S.A.”, sancionada na decisão recorrida, bem como por violação do princípio da igualdade das partes.
Prescreve o artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil (doravante CPC) que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Esse princípio constitui uma manifestação do princípio da igualdade das partes, inscrito no preceito seguinte, segundo o qual “O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou sanções processuais” – nesse sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2022 (proc. n.º 2715/16.2T8VFR.P1.S1), relatado por Fernando Baptista e disponível, tal como os demais adiante citados, em www.dgsi.pt.
Consagra-se, assim, a proibição das “decisões surpresa”, o que, como sublinha Abílio Neto[1], “constitui uma garantia cuja manifestação predominante se situa no âmbito das questões de conhecimento oficioso não levantadas no decurso do processo, das quais o tribunal se propõe conhecer no momento da decisão”.
No entanto, como se advertiu, entre muitos outos, no acórdão da Relação do Porto de 02/12/2019 (processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1), relatado por Eugénia Cunha, “O dever de audiência prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito, mesmo que meramente adjetivas, suscetíveis de virem a integrar a base da decisão (…)”.
Tem-se igualmente por líquido que a preterição do contraditório, quando exigível, é susceptível de produzir nulidade processual ao abrigo do disposto no artigo 195º do CPC, por poder influir no exame ou na decisão da causa.
Por outro lado, não obstante a máxima tradicional “das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”, de acordo com a qual só podem ser conhecidas em recurso nulidades processuais cobertas por despacho que sobre elas se tenha pronunciado, a não ser que sejam do conhecimento oficioso, não pode olvidar-se que, como já alertava o Professor Alberto dos Reis[2] a propósito dos casos em que “por trás da irregularidade cometida está um despacho, mas este não contêm uma pronúncia expressa sobre a irregularidade”, deve ter-se em atenção que, “além do julgamento expresso, há o julgamento implícito”, ou seja, a “decisão não vale somente pela vontade declarada que nela se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos”.
Quando assim suceda, a nulidade corporiza-se na decisão e só se manifesta com a notificação desta. Por isso, a impugnação da decisão é incindível da arguição da nulidade, devendo considerar-se tempestiva a arguição desta nas alegações de recurso.
Ora, consultado o histórico electrónico do processo, não constatamos qualquer violação do princípio do contraditório, nem do princípio da igualdade das partes, como explicitou, pormenorizadamente, o Senhor Juiz a quo no despacho proferido ao abrigo do artigo 617º, n.º 1 do CPC, que, dispensando outras considerações, nos permitimos transcrever:
“O contraditório relativamente a todos os actos praticados nos autos foi absolutamente assegurado junto de todos os intervenientes processuais. Afigura-se-nos que em momento algum foi proferida qualquer decisão surpresa. Os factos tidos por demonstrados resultaram do que constava destes autos principais e dos seus demais apensos. O tribunal não tinha de advertir a insolvente que para a decisão a proferir tomaria em conta o conteúdo do apenso de reclamação de créditos ou outro porque no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode até ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes (cfr. 11º do CIRE) e quanto aos mesmos foi cumprido o contraditório prévio. A Insolvente deduziu impugnação à lista de créditos reconhecidos e todo o apenso de reclamação de créditos foi tramitado observando o contraditório junto daquela. Nestes autos, a 22/11/2023, foi a insolvente notificada pela secretaria das informações prestadas pelo Sr. Administrador de Insolvência quanto à data de constituição e de incumprimento dos créditos reclamados e reconhecidos (notificação com a referência CITIUS 187805288) e nada veio invocar. Para a apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante o Tribunal não estava, nem podia estar, balizado unicamente pelo elenco dos factos provados constantes da sentença já proferida e que decretou a insolvência e já transitada em julgado, como parece pretender a Insolvente. A Insolvente foi notificada de todos os actos processuais praticados nos autos e sempre lhe foi permitido o exercício do contraditório, assim como a todos os demais intervenientes processuais sem qualquer distinção, não havendo qualquer indício de preterição da igualdade entre os mesmos e menos ainda a imerecida acusação de “dois pesos e duas medidas”. A Insolvente teve sempre a oportunidade de esgrimir a sua defesa relativamente ao que foi expresso pela credora que se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante, pelo que se nos afigura ser absolutamente manifesta a falta de razão da insolvente quanto à invocada violação dos aludidos princípios da igualdade e contraditório.
(…)”.
Improcede, por conseguinte, este fundamento do recurso.
Sustenta ainda a recorrente que existe erro de julgamento da matéria de facto relativamente ao ponto 21 do elenco dos factos provados, porquanto, mantendo-se a parte restante, o mesmo deveria iniciar-se, acrescendo àquela, pelo segmento “A insolvente, para fazer face às suas dificuldades financeiras e assegurar a sua sobrevivência (…)”.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Por sua vez, estatui o n.º 1 do artigo 662º do mesmo diploma legal que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 07/04/2016, “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Apesar disso, não se pode olvidar que o juiz da 1ª instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para a avaliar, surpreendendo no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação, pelo que, como pertinentemente se observou no acórdão desta Relação de 19/12/2023, proferido no processo n.º 1526/22.0T8VRL.G1 e relatado por Maria João Matos, “em caso de dúvida (face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida), deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova”.
No caso em apreço, a recorrente cumpriu satisfatoriamente os ónus impugnatórios que sobre si impendiam[3], fundamentando, embora apenas no corpo das alegações, a sua discordância quanto ao único ponto de facto impugnado, relativo à venda do veículo automóvel de que era proprietária, na justificação que ela própria apresentou para esse negócio no requerimento de apresentação à insolvência.
Sucede, porém, que, como é sabido, a matéria de facto deve ser expurgada de juízos de valor e de conceitos de direito e matéria conclusiva.
Ora, a justificação apresentada pela recorrente para a venda, acima transcrita, assume, manifestamente, essa natureza, pelo que jamais poderia ser dada como provada e, a tê-lo sido, teria de se considerar como não escrita, solução que constava expressamente do artigo 646º, n.º 4 do Código de Processo Civil pregresso e que, embora não conste do Código de Processo Civil em vigor, aprovado pelo DL 41/2013, de 26 de Junho, deve, na esteira da boa doutrina[4], extrair-se do respectivo artigo 607º, n.º 4, relativo à elaboração da sentença, segundo o qual “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (…)” (sublinhado nosso) .
Improcede, pois, o recurso da matéria de facto.
Conexa com a anterior, na medida em que atinente a uma pretensa omissão de factos relevantes para o preenchimento de um dos fundamentos de indeferimento liminar[5], advoga a recorrente que o despacho recorrido se encontra ferido de nulidade, por contradição entre os fundamentos e a decisão.
Muito embora tenha sido arguido a título subsidiário, a apreciação desse putativo vício formal precede, logicamente, a apreciação dos vícios substanciais que são igualmente imputados ao despacho recorrido, já que aquele decorre de um erro de actividade e estes de um erro de julgamento.
Inverteremos, por conseguinte, a ordem pela qual foram suscitados.
Dispõe o artigo 615º do CPC, aplicável aos despachos por força 613º, n.º 3 do mesmo diploma legal, que:
“1 - É nula a sentença quando:
(…)
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…)”
Como ensinava o Professor Alberto dos Reis[6], a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão pressupõe que a construção da sentença seja “viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam, logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
Noutra formulação, fornecida pelo acórdão da Relação de Lisboa de 05/11/2024 (processo n.º 5834/22.2T8LRS.L1-7), relatado por Edgar Taborda Lopes, “A nulidade a que se reporta a 1.ª parte da alínea c) ocorre quando se detecta um vício lógico traduzido na incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, quando a fundamentação (as premissas) aponta num sentido que está em contradição com a decisão (a conclusão), violando o silogismo judiciário”.
Ora, no caso vertente, é evidente que a deficiência que a recorrente imputa ao despacho recorrido, consubstanciada numa alegada insuficiência da matéria de facto provada para que se pudesse concluir, como concluiu, pelo preenchimento do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), nada tem a ver com o vício invocado, de carácter formal, relativo à construção do próprio despacho – que, diga-se, se apresenta como uma peça perfeitamente lógica e isenta de contradição –, mas antes com um vício de carácter substancial, relativo ao mérito da decisão, ou seja, com um eventual erro de julgamento.
Improcede, pois, também este fundamento de recurso.
Aqui chegados, importa apreciar as derradeiras questões suscitadas e que se prendem com o mérito do despacho recorrido.
A recorrente insurge-se contra o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Como se lê no preâmbulo do CIRE, a propósito desse instituto, regulado no artigo 235º e seguintes, “o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido ente nós (…)”.
Segundo a definição proposta por Catarina Serra[7], “Trata-se de uma medida de proteção do devedor, libertando-o das suas obrigações, permitindo realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de «aprendida» a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. O objectivo é, por outras palavras, dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero, de um «fresh start»”.
Por outro lado, como observam Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[8], na esteira de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “a referência a uma exoneração dos créditos sobre a insolvência não é correcta, uma vez que a exoneração diz respeito não aos créditos, situações jurídicas activas do credor, mas às dívidas a que esses créditos correspondem, enquanto situações jurídicas passivas da esfera do devedor”.
O pedido deve, por norma, ser deduzido no requerimento de apresentação à insolvência ou, se esta for requerida por terceiro, no prazo de 10 dias posteriores à citação e deve conter, nos termos do artigo 236º, n.º 3 do CIRE, a declaração do devedor de que preenche os requisitos e se dispõe a observar as condições exigidas nos artigos seguintes.
Salvo se tiver sido deduzido após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência, caso em que será sempre rejeitado, o juiz deve admitir o pedido para discussão e decide após dar aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de sobre ele se pronunciarem.
Nesta fase, não existindo motivo para indeferimento liminar e se, entretanto, não tiver sido aprovado e homologado um plano de insolvência, o juiz profere despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239º do CIRE durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência.
Como refere Meneses Leitão[9], “(…) não se trata de verdadeiro despacho liminar, uma vez que, em muitas situações, pode ser necessário fazer prova dos factos que impedem o prosseguimento deste processo e que se encontram previstos nas alíneas do n.º 1” do artigo 238º.
É ainda pacífico que os fundamentos de indeferimento liminar são apenas os elencados, taxativamente, nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 238º do CIRE e que cabe aos credores o ónus da prova dos factos correspondentes, por serem impeditivos do direito à exoneração do passivo restante.
Retornemos ao caso vertente.
O pedido de exoneração do passivo restante formulado pela recorrente foi indeferido com os fundamentos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, onde se estabelece, respectivamente, que o juiz tome essa atitude quando “O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica” e “Constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º”.
Segundo estabelece o n.º 1 do artigo 3º do mesmo diploma legal “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Por sua vez, sob a epígrafe “Insolvência culposa”, dispõe o citado artigo 186º que:
“1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
(…)
4 - O disposto nos números 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações”
(…)”.
Comentando este preceito, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[10] consideram que, além da “cláusula geral e aberta” contida no n.º 1, o mesmo prevê, nos dois números seguintes, situações de presunção de insolvência culposa, inilidíveis no primeiro e ilidíveis no segundo.
Importa ainda salientar que perfilhamos o entendimento de que nas situações elencadas no n.º 2 se presume, não só a culpa, mas também o nexo causal entre o comportamento do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento do estado de insolvência – nesse sentido, acórdão desta Relação de 27/06/2024 (proc. n.º 2396/21.1T8VNF-B.G1), relatado por Pedro Maurício, em cujo sumário se escreveu que “I - Constitui entendimento pacífico e unânime que, nas diversas alíneas do nº2 do art. 186º do C.I.R.E., o legislador consagrou presunções inilidíveis (ou factos-índices) de insolvência culposa, donde resulta que, verificado algum dos comportamentos elencados numa daquelas alíneas, o Juiz, ope legis, sem admissão de prova em contrário, tem sempre que ser classificar a insolvência como culposa. II - Constitui igualmente entendimento pacífico e unânime que as presunções inilidíveis (ou factos-índices) estatuídos nas diversas alíneas do nº2 do art. 186º do C.I.R.E. abrangem a culpa e também a existência do nexo de causalidade entre a actuação e a criação ou agravamento do estado de insolvência deste”.
Pois bem.
Não estando obrigada a apresentar-se à insolvência, por ser uma pessoa singular não titular de empresa, (artigo 18º, n.º 2, alínea b), do CIRE), a recorrente encontrava-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, como a própria reconhece, em data muito anterior àquela em que se apresentou à insolvência (17/8/2022), concretamente desde meados de 2019, na sequência da declaração de insolvência da última das duas sociedades de que foi administradora e da execução que lhe foi instaurada pela sociedade “EMP02..., S. A.”, para cobrança coerciva da quantia de €362.710,63.
Mostra-se, por conseguinte, preenchido o primeiro dos três requisitos, cumulativos, que integram o fundamento de indeferimento previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, a saber: abstenção de apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.
Por outro lado, muito embora o segundo requisito, consubstanciado no prejuízo causado aos credores por esse retardamento, não se baste com o mero atraso na cobrança dos créditos e consequente vencimento de juros sobre os correspondentes montantes, sendo necessário que esteja em causa um prejuízo grave e irreversível, tem-se entendido que deve ter-se por verificado, como se afirmou no acórdão da Relação de Coimbra de 07/03/2017 (proc. n.º 2891/16.4T8VIS.C1), relatado por Jorge Manuel Loureiro, sempre que o devedor “persiste na contracção de dívidas, estando já em estado de insolvência” e/ou “leva a cabo actos de ocultação do seu património ou de dissipação dolosa do mesmo”.
Ora, foi precisamente isso que fez a recorrente.
Como assertivamente se escreveu no despacho recorrido, estando ciente das “responsabilidades a que estava obrigada” por força das funções que exercera nas sociedades acima referidas e do “montante das garantias” que prestara a favor das mesmas e pelas quais teria de responder, a recorrente “decidiu desfazer-se de todo o património que ainda detinha”, vendendo o seu veículo automóvel e renunciando ao usufruto que detinha em cinco imóveis, e contraiu novas dívidas[11].
Tem-se, portanto, por preenchido também este requisito.
E o mesmo se diga do terceiro, extraído dos factos integradores dos anteriores e da ponderação da situação económica concreta da recorrente, mormente dos seus rendimentos, como, claramente, permite a fórmula legal, visto que, não se provando que o devedor sabia, o tribunal pode, ainda assim, inferir que aquele não podia ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Nem, salvo o devido respeito, colhe o argumento de que a recorrente, cujo passivo, admitido pela própria, superava um milhão de euros e vivia unicamente do seu vencimento como educadora de infância, no montante bruto aproximado de €1.500,00, teria a expectativa de inverter a situação de insolvência, mediante as reclamações de créditos que apresentou em dois processos de insolvência.
Nenhuma censura merece, portanto, o decidido quanto à verificação deste fundamento de indeferimento.
Mas, o julgador da 1ª instância considerou igualmente preenchido um outro, concretamente o previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, acima transcrito, com referência à alínea d) do n.º 2 do artigo 186º do mesmo diploma legal, porquanto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, a recorrente dispôs dos únicos bens que possuía a “favor ou proveito de terceiros”.
E, efectivamente, prevê-se na indicada alínea do n.º 2 do artigo 186º que se considera sempre culposa a insolvência quando o devedor tenha disposto dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiro, devendo entender-se que o faz em proveito pessoal quando afecta o produto da venda à satisfação das suas próprias necessidades ou lhe dá um destino desconhecido, em detrimento dos credores, e que o faz em proveito de terceiro quando a transferência dos bens não envolve qualquer contrapartida ou envolve uma contrapartida inferior à devida, beneficiando o adquirente.
Como se pode ler no sumário do acórdão da Relação do Porto de 11/02/2025 (proc. n.º 380/24.2T8STS.P1), relatado por Rui Moreira, “I – O devedor que vende duas fracções de um prédio que constituíam o único património apto a satisfazer, ainda que parcialmente, as suas dívidas, menos de três anos antes da respectiva declaração de insolvência, que é encerrada por insuficiência da massa insolvente, destinando o capital que com isso obteve a fim desconhecido, incorre na previsão da alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE. II - Consequentemente, não pode beneficiar da exoneração do passivo restante, por efeito do disposto no art. 238º, nº 1, al. e) do CIRE”.
Ainda a propósito do proveito pessoal e da adaptação desse conceito, prescrita no n.º 4 do artigo 186º do CIRE, ao devedor que seja pessoa singular, afirmou-se no acórdão da mesma Relação de 22/02/2022 (proc. n.º 3219/14.3TBMTS.P1), relatado por João Ramos Lopes, que tal adaptação “(…) impõe se considere o conceito (‘proveito pessoal’) como significando detrimento ou prejuízo do património que, nos termos do art. 601º do CC, responde pelas suas obrigações e responsabilidades. Ínsita ao conceito de proveito pessoal está a ideia de prejuízo para o património do devedor (no conceito funcional de garantia de cumprimento de obrigações) – prejuízo que não pode resumir-se à simples modificação da composição do património, por alteração/substituição dos bens que o compõem”.
Por sua vez, sintetizando os dois indicados conceitos, pode ler-se no sumário do acórdão desta Relação de 10/07/2023 (proc. n.º 4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado por Maria João Matos, que “A presunção inilidível de insolvência culposa da al. d), do n.º 2, do art. 186.º do CIRE, exige-se que os actos de disposições de bens da insolvente, praticados pelos seus administradores nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tenham redundado em proveito pessoal dos seus autores ou de terceiros; e isso pressupõe que não tenham contrapartida (sejam gratuitos), ou a mesma seja inferior ao valor real dos bens, ou não venha a reverter em proveito dos credores da insolvente antes proprietária”.
Assim, resultando dos factos provados que a recorrente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, vendeu o seu veículo automóvel, sem afectar o produto da venda ao pagamento dos seus credores, e renunciou ao direito de usufruto de que era titular sobre cinco imóveis, temos por líquido que se mostra preenchida a previsão do normativo em análise e, consequentemente, verificado o segundo fundamento de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante invocado na decisão sob censura.
Importa ainda salientar que, como acima se referiu, nas hipóteses elencadas nas alíneas do n.º 2 do artigo 186º se presume “iuris et de iure” não só o carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, como o nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Acresce que, por se tratar de um negócio gratuito, a lei presume, sem admissão de prova em contrário, que a renúncia ao usufruto é prejudicial para a massa [artigos 120º, n.º 3 e 121º, n.º 1, alínea b)], pelo que, contrariamente ao defendido pela recorrente nas conclusões 29ª a 35ª, nenhuma outra indagação a esse respeito se impunha ao tribunal.
Improcede, pois, a apelação.
De acordo com a regra geral inscrita no artigo 527º do CPC, a recorrente, como parte vencida, suportará as custas do processo.
*
IV. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente
Guimarães, 02 de Abril de 2025
João Peres Coelho Relator
Fernando Cabanelas 1º Adjunto
Maria Gorete Morais 2ª Adjunta
[1] Em “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª edição, página 18. [2] Em “Comentário ao Código de Processo Civil”, volume 2, página 509 e seguintes. [3] Sendo de salientar que perfilhamos o entendimento expresso no acórdão do STJ de 9 de Junho de 2021, relatado por Ricardo Costa (proc. n.º 10300/18.8T8SNT.L1.S1), segundo o qual “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se quando (i) falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635º, 2 e 4, 639º, 1, 641º, 2, b), do CPC); (ii) quando falte nas conclusões, pelo menos, a menção aos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados (art.º 640, 1, a)), sendo de admitir que as restantes exigências das alíneas b) e c) do art.º 640º, 1, em articulação com o respectivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações”. [4] Defendida, entre outros, no acórdão do STJ de 28/09/2017 (proc. n.º 809/10.7TBMLG.C1.S1), no qual se decidiu que “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”. [5] Salientando-se que a recorrente não pretende o aditamento de tais factos, que, aliás, lhe seriam desfavoráveis, por via da impugnação da decisão da matéria de facto, agora por omissão, mas, como resulta cristalinamente da conclusão vigésima primeira, sublinhar que, sem eles, o tribunal não podia ter decidido como decidiu. [6] Em “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, página 141. [7]O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, página 155. [8]Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, página 649 [9]Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, página 241. [10] Obra citada na nota 2, página 508. [11] Sendo de realçar que a própria recorrente admite, implicitamente, essa factualidade, ao sustentar que as dívidas junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social provinham, “no essencial”, de reversões.