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INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
QUALIDADE DE CREDOR DO REQUERIDO
Sumário
1. Apreciada globalmente a prova, e não se encontrando motivos para dissentir do tribunal recorrido na apreciação que dela fez, haverá que confirmar a matéria de facto considerada provada, sancionando a legítima discricionariedade valorativa do Tribunal perante o qual foi produzida. 2. A legitimidade ativa para requerer o processo de insolvência é também processualmente atribuída a quem se atribua a qualidade de credor da requerida e não necessariamente a quem seja, efetivamente, credor desta. 3. Para efeitos de decretamento da insolvência importa apurar se o devedor está ou não impossibilitado de cumprir com as suas obrigações vencidas. 4. Caso se conclua no sentido de que a requerida está em situação de insolvência, então o direito de crédito da autora deverá ser discutido em sede própria, no apenso de verificação e graduação de créditos. 5. Com efeito, pode a devedora ser declarada insolvente ainda que a situação tivesse sido espoletada por quem não era sua credora à data ou não era de todo sua credora.
Texto Integral
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório:
EMP01..., SA., mais bem identificado na petição inicial, veio ao abrigo do disposto no artº 20º, nº 1 do CIRE requerer a declaração de insolvência de EMP02..., LDA, NIPC ...61, com sede na Rua ..., ... ..., com fundamento no disposto no art.º 20.º, n.º 1, als. b), e) e g) do CIRE.
Citada a requerida, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 30.º, n.º 1, e com a advertência a que alude o n.º 2 do art.º 29.º, ambos do CIRE, veio a mesma deduzir oposição à declaração de insolvência.
Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento (artº 35º do CIRE).
Por sentença de 23 de outubro de 2024 foi prolatada sentença que declarou a insolvência da requerida EMP02..., Lda..
Inconformada com a decisão, a insolvente apelou, formulando as seguintes conclusões:
1.Salvo devido e merecido respeito, não entende a Recorrente que foi produzida prova, para suportar a matéria dada como provada nos pontos 3.3, 3.4, 3.5, 3.6 e 3.7 da douta sentença.
2. Entende a Recorrente que a matéria dada como provado nos pontos 3.3, 3.4, 3.5, 3.6 e 3.7 da douta sentença, deveria ter sido dada como não provada.
3. Dos depoimentos prestados pelos trabalhadores da Recorrida afere-se que a Recorrida para iniciar as obras de reabilitação de edifício, onde pretendia instalar o seu hotel, foi contactada pela arquiteta AA, acompanhada do BB.
4. Que a arquiteta AA e o BB atuavam, à data, através da sociedade EMP03... - SOLUÇÕES, LDA, tendo enviado à Recorrida, uma apresentação do conceito de design de interiores para o referido Hotel.
5. Que na sequência desse pedido, a AA e BB, apresentaram, em nome da EMP03... - SOLUÇÕES, LDA, a correspondente proposta de honorários para o referido projeto de design de interiores, como aliás se verifica da primeira fatura junta aos presentes autos.
6. No entretanto, a AA e BB, deixaram a EMP03..., mas continuaram a negociar com a Recorrida, apresentando-se sobre a marca ...”.
7. A marca comercial “...”, pertence à EMP04..., sociedade comercial da qual é sócia a arquiteta AA.
8. A Recorrida privou e contactou sempre quem a AA e o BB.
9. A Recorrida visitou inclusive uma fábrica de produção de cadeiras, que o BB e a AA apresentaram como sua e como sendo o local, onde iria ser produzido parte do material para o fornecimento da Recorrida.
10. A Recorrida nunca celebrou qualquer contrato com a Recorrente, com o representante legal da Recorrente.
11. A Recorrida não é credora da Recorrente.
12. A Recorrida, como se verifica das declarações prestadas pelos vários funcionários responsáveis pelo Projeto desconheciam inclusive, se a AA ou o BB, eram ou não trabalhadores da Recorrente.
13. Como se verifica do depoimento da testemunha CC, o mesmo refere que todos os contactos foram feitos com o BB e com a AA, e que o BB sempre se apresentou em nome pessoal, dizendo que havia um sócio, “dizia que tinha um sócio”, mas que nunca referiu que havia um gerente.
14. Para a Recorrida, os responsáveis pelo projeto, os verdadeiros credores, eram o BB e a AA, tanto mais, que mesmo após o referido incumprimento nas datas das entregas, é sempre com estes que tentam “resolver a situação”.
15. Todos os e-mails, chamadas, e reuniões realizadas, nomeadamente em março de 2024, foi com a AA e com o BB, e não com a Recorrente, na pessoa do seu legal representante.
16. A Recorrida sempre agiu como reconhecendo a AA e o BB, como os responsáveis pela fabricação e fornecimento dos móveis e artigos de decoração, para o “Hotel ...”.
17. Foi sempre junto da AA e o BB, que procurou que se cumprisse o fornecimento para o projeto.
18. A Recorrida celebrou um contrato com a AA e o BB, de quem é efetivamente credora.
19. A Recorrente não celebrou nenhum contrato com a Recorrente.
20. Foi o BB, conjuntamente com a AA, quem se vinculou à realização do projeto com a Recorrida, e abusivamente solicitou as faturas em nome da Recorrente.
21. Aproveitou-se dos contactos e do nome da Recorrente, para realizar encomendas a fornecedores solicitando fossem emitidas faturas em nome da Recorrente.
22. Pelo que, salvo o devido respeito, por tudo o quanto exposto, não podia o Tribunal a quo, incluir na matéria dada como provado, os pontos 3.3, 3.4, 3.5, 3.6 e 3.7 da douta sentença, como erradamente o fez.
23. Razão pela qual, devem ser considerados como não provados os pontos 3.3, 3.4, 3.5, 3.6 e 3.7 da douta sentença. Sem prescindir,
24. Como já exposto, considerando o depoimento prestado pelas testemunhas DD, CC e EE, o contacto com a Recorrida foi sempre com o BB, e com a AA.
25. A Recorrida celebrou um negócio com o BB, que se dizia ser sócio da Recorrente.
26. O BB nunca foi sócio da Recorrente, e desde dezembro de 2023, que deixou de ser funcionário desta.
27. Ainda assim, após dezembro de 2023, continuou em conversações com a Recorrida sobre o referido projeto de fornecimento de bens móveis e artigos decorativos.
28. A Recorrida alega que celebrou um contrato com a Recorrente e que esta não cumpriu, o que não é verdade.
29. A Recorrida celebrou um contrato com o BB e com a AA, pessoas que não detinham legitimidade para o fazer, na pessoa da Recorrente.
30. O BB e a AA, celebraram em nome na Recorrente um contrato de fornecimento de bens, para o qual não tinham os necessários poderes de representação e, como tal este negócio e ineficaz contra a aqui Recorrente.
31. Há representação sem poderes sempre que alguém celebre em nome e por conta de outrem um ato jurídico sem para tanto ter os necessários poderes de representação.
32. A consequência da representação sem poderes, como resulta do disposto no artigo 268.º, n.º 1, do Código Civil, é a ineficácia em relação à pessoa em nome de quem o negócio é celebrado, a menos que por ela seja ratificado.
33. Pelo que, deve considera-se ineficaz o negócio celebrado entre a Recorrida e a Recorrente, porquanto o mesmo foi celebrado por quem não detinha quaisquer poderes para o ato.
34. Consequentemente, deve revogar-se a decisão que proferiu a decisão de insolvência, porquanto a Recorrida não possui qualquer direito de crédito sobre a Recorrente, e como tal, não possui legitimidade para intentar a presente ação (artigo 20º, n.º1 do Cód. das Insolvências e da Recuperação de Empresas a contrario).
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e proferindo-se douto acórdão em conformidade com as alegações formuladas. Com o que se fará, JUSTIÇA!
Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:
Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se forem de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar sobre a correção da matéria de facto provada quanto aos pontos 3.3 a 3.7, e sobre a legitimidade da recorrida para efeitos de requerer a insolvência, aferindo-se da relevância da alegação de ineficácia do negócio com a ora recorrente para efeitos de decretamento da insolvência.
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III – Fundamentação:
A. Fundamentos de facto:
3.1. A Requerente é uma sociedade comercial cujo objeto social consiste em atividades de alojamento mobilado para turistas; exploração de apartamentos turísticos, com e sem restaurante; exploração de estabelecimentos de restauração do tipo tradicional e típicos; arrendamento de imóveis, promoção imobiliária, construção de edifícios e desenvolvimento de projetos de edifícios; compra e venda de imóveis, e revenda dos adquiridos para esse fim, gestão e administração de imóveis e condomínios, próprios ou alheios; organização de atividades de animação turística.
3.2. A Requerida é uma sociedade cujo objeto social consiste em atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares, prestadas a empresas de todas as áreas de atividade; promoção imobiliária; construção de edifícios, compra e venda de bens imobiliários; arrendamento de imóveis (próprios e arrendados); administração de imóveis por conta de outrem e administração de condomínios; execução de instalações elétricas de baixa tensão; telecomunicações; instalações de infraestruturas de telecomunicações; prestações de serviços no âmbito das telecomunicações e eletricidade e comércio de equipamentos informáticos e de telecomunicações; elaboração de estudos de segurança, fabrico e comercialização de material de segurança e respetivos equipamentos técnicos; instalação de sistemas de vigilância; consultoria e programação informática e atividades relacionadas; edição de jogos de computador; conceção, desenvolvimento, fornecimento e documentação de programas informáticos (software) normalizados (não realizados por encomenda). Inclui a tradução e adaptação de programas informáticos normalizados (não realizados por encomenda) para um determinado mercado, por conta própria; instalação de máquinas e equipamentos industriais; comércio de mercadorias em geral e importação e exportação. Comércio de todo o tipo de veículos não industriais, nomeadamente comércio de veículos automóveis ligeiros, pesados, mistos, motos de água e motociclos; comércio por grosso e a retalho de peças e acessórios para todo o tipo de veículos automóveis, ligeiros, pesados ou mistos, motos de água e motociclos.
3.3. No âmbito da sua atividade, tendo em vista a abertura do denominado “Hotel ...”, um estabelecimento hoteleiro com 44 quartos, suscetível de ser classificado como “Hotel 5 estrelas”, a instalar na Rua ..., e Rua ..., ..., no ..., a Requerente celebrou com a Requerida um contrato de prestação de serviços, pelo qual a Requerida se comprometeu a elaborar todo o projeto de mobiliário e decoração do referido Hotel, bem assim como a concretizar materialmente esse projeto, pela fabricação dos móveis e artigos de decoração (camas, mesas de cabeceira, secretárias, cadeiras, sofás, banquetas, prateleiras, cortinas, candeeiros, tapetes, blackouts, e demais mobiliário, equipamento e decoração do Hotel – os denominados EMP05...), em prazos previamente acordados.
3.4. Em cumprimento do contratado, a Requerente efetuou à Requerida o pagamento de diversas faturas, entre abril de 2022 e dezembro de 2023, no valor de € 318.306,39, acrescido de IVA à taxa legal, num total de € 391.516,86.
3.5. A Requerida não cumpriu a totalidade das obrigações que tinha assumido de acordo com o contrato celebrado, tendo deixado de realizar o trabalho e de adquirir os materiais respetivos, num valor que ascende a € 345.391,86, IVA incluído.
3.6. A Requerente interpelou, em 8 de fevereiro de 2024, a Requerida para cumprimento, concedendo-lhe um prazo – 31 de março de 2024 – a partir do qual consideraria o contrato definitivamente incumprido.
3.7. Não tendo havido resposta nem cumprimento, houve lugar à resolução do contrato, com o consequente direito da Requerente à restituição dos valores relativos aos trabalhos não realizados pela Requerida.
3.8. Por decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível – Juiz ..., sob o n.º 8575/24...., datada de 29.05.2024, por forma a viabilizar a garantia da dívida de capital no montante de € 345.391,86, IVA incluído, foi ordenado o arresto: das contas bancárias e produtos financeiros às mesmas associados de que a Requerida sejam titular; dos bens constantes da rúbrica de inventário no balanço da Requerida, tais como veículos automóveis e outros equipamentos; da quota nominal de € 9.000,00 de que a Requerida é titular no capita social da sociedade comercial por quotas denominada EMP04..., Ld.ª, NIPC ...40, com o capital social de € 18.000,00, com sede na Rua ..., ... ...; de eventuais suprimentos e prestações suplementares de que a Requerida seja titular na referida sociedade.
3.9. O arresto naqueles termos determinado não logrou, até ao momento, a sua finalidade, porquanto as diligências encetadas pela Agente de Execução nomeada têm-se revelado, quer pelo facto de a Requerida não receber as notificações, quer por se não apurar a existência de bens suscetíveis de garantir o valor em sujeito.
3.10. A requerida é devedora à AT, por força dos processos de execução fiscal ali pendentes, da quantia exequenda de € 1.000.551,06, acrescida de € 53.085,10 de juros de mora e € 11.188,66 de custas, num total de € 1.064.824,82.
3.11. A requerida é devedora ao ISS, IP, por força dos processos de execução ali pendentes, da quantia exequenda de € 22.223,25, acrescida de € 1.217,47 de juros de mora e € 508,78 de custas, num total de € 23.949,50.
3.12. Encontram-se pendentes nesta Comarca as seguintes ações, nas quais o requerido figura como réu/executado/requerido:
- Ex. Sumária 1807/24.... – JCCível – ...;
- Embargos de Executado 1807/24.... – JCCível – ...
- Ex. Sumária 2683/23.... – JLCível – J...;
- AECOP 58172/24.... – JLCível – J...;
- AECOP 71236/24.... – JLCível – J...;
- AECOP 12134/24.... – JLCível – J...;
- AECOP 70306/24.... – JLCível – J....
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Os factos não provados, com interesse para a decisão da causa, são os seguintes:
a) A Requerida dispõe de liquidez financeira.
b) A Requerida movimenta cerca de trinta milhões de euros nos anos de 2022, 2023 e é detentora de vários créditos.
c) A Requerida cumpre com todas as suas obrigações, nomeadamente, juntos dos seus trabalhadores.
d) A sociedade Requerida tem viabilidade económica, tem a sua situação financeira controlada e solve os seus compromissos recorrendo às suas reservas financeiras.
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B. Fundamentos de direito.
A recorrente insurgiu-se contra a matéria de facto dada como provada sob os pontos 3.3 a 3.7, defendendo que a mesma deveria ter sido considerada não provada.
Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Resulta desta norma que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
No que toca à especificação dos meios probatórios, estabelece o artigo 640º, nº2, alínea a), que: “Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente,sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Compulsados os autos, há que considerar cumprido o formalismo legal.
Recordemos, por facilidade expositiva, a matéria de facto ora impugnada: 3.3. No âmbito da sua atividade, tendo em vista a abertura do denominado “Hotel ...”, um estabelecimento hoteleiro com 44 quartos, suscetível de ser classificado como “Hotel 5 estrelas”, a instalar na Rua ..., e Rua ..., ..., no ..., a Requerente celebrou com a Requerida um contrato de prestação de serviços, pelo qual a Requerida se comprometeu a elaborar todo o projeto de mobiliário e decoração do referido Hotel, bem assim como a concretizar materialmente esse projeto, pela fabricação dos móveis e artigos de decoração (camas, mesas de cabeceira, secretárias, cadeiras, sofás, banquetas, prateleiras, cortinas, candeeiros, tapetes, blackouts, e demais mobiliário, equipamento e decoração do Hotel – os denominados EMP05...), em prazos previamente acordados. 3.4. Em cumprimento do contratado, a Requerente efetuou à Requerida o pagamento de diversas faturas, entre abril de 2022 e dezembro de 2023, no valor de € 318.306,39, acrescido de IVA à taxa legal, num total de € 391.516,86. 3.5. A Requerida não cumpriu a totalidade das obrigações que tinha assumido de acordo com o contrato celebrado, tendo deixado de realizar o trabalho e de adquirir os materiais respetivos, num valor que ascende a € 345.391,86, IVA incluído. 3.6. A Requerente interpelou, em 8 de fevereiro de 2024, a Requerida para cumprimento, concedendo-lhe um prazo – 31 de março de 2024 – a partir do qual consideraria o contrato definitivamente incumprido. 3.7. Não tendo havido resposta nem cumprimento, houve lugar à resolução do contrato, com o consequente direito da Requerente à restituição dos valores relativos aos trabalhos não realizados pela Requerida.
O tribunal recorrido fundamentou assim a sua convicção quanto a estes pontos:
“Os factos referidos sob os pontos 3.3. a 3.7. assim decorrem do teor conjugado da extensa prova documental junta aos autos pela Requerente (faturas, correspondência postal, emails, etc) e das declarações prestadas pelas testemunhas DD (controler financeiro, a exercer funções para empresa do mesmo grupo da Requerente), CC (engenheiro civil, gestor de projetos para empresa que presta serviços nessa qualidade à Requerente) e EE (diretor financeiro do grupo de empresas de que faz parte a Requerente), as quais, de forma isenta, objetiva e demonstrando dos factos ter pleno conhecimento, relataram as relações comerciais travadas entre Requerente e Requerida, designadamente o contrato celebrado, a sua formalização, valor global, pagamento faseado, prazos e respetiva calendarização, o incumprimento da Requerida, a interpelação para cumprimento e a resolução do contrato.”
E, a propósito dos factos não provados, o tribunal recorrido referiu ainda ter desconsiderado o depoimento de FF, assistente de direção, porquanto a mesma ter-se-á “limitado a fazer afirmações genéricas quanto à alegada solvabilidade da requerida, não demonstrando conhecimento dos factos que lhe permitisse sustentar as mesmas”; e quanto à testemunha GG, gestor de marketing por “ter apenas afirmado inexistirem, quanto a si, créditos laborais.”
A recorrente funda a sua discordância nos depoimentos prestados por DD, CC e EE.
Desde logo, lendo os trechos dos depoimentos que a recorrente transcreveu não retiramos a conclusão por si pretendida, com a necessária consistência para infirmar a convicção formada pelo tribunal recorrido, designadamente cotejando também os trechos da prova testemunhal constante das contra-alegações com os documentos juntos com a petição inicial.
Os princípios da imediação, da oralidade e concentração formam um todo que não pode operar separadamente na medida em que cada um deles, tomado de forma isolada, perde a sua razão de ser e torna-se inoperante. “O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência de 11/12/2008, Santos Cabral, 07P4822, interpreta o princípio da imediação em termos que podem ser tidos como os prevalecentes na nossa jurisprudência, pelo que passamos a extratar do mesmo o seguinte passo: “Sem dúvida que a imediação torna possível, na apreciação das provas, a formação de um juízo insubstituível sobre a credibilidade da prova; das razões que se podem observar, no exame direto da prova, para acreditar, ou não acreditar, na mesma. Significa o exposto que a imediação é o meio pelo qual o tribunal realiza um ato de credibilização sustentada sobre determinados meios de prova em relação a outros. Exemplifica-se o exposto recorrendo ao caso do testemunho que parece mais digno de crédito do que um outro pela perceção direta imediata do seu relato e das circunstâncias em que o mesmo se desenrolou: terá sido mais categórico, eventualmente mais seguro; terá recorrido menos vezes à aquiescência tácita de terceiro; ter-se-á expressado em termos mais correntes e mais próprios da sua condição social o que induziu o tribunal a pensar que o seu testemunho era mais fidedigno e menos passível de preparação prévia; suportou com maior à vontade o exercício do contraditório. Todas estas, que são razões que servem para acreditar em determinadas provas, e não acreditar noutras, sem dúvida que só são suscetíveis de ser apreciadas diretamente pela pessoa que as avalia, o juiz de julgamento em primeira instância, e a possibilidade de admitir que tais circunstâncias possam ser aferidas somente com recurso a um escrito, a denominada transcrição, produz uma evidente dificuldade pela ausência, ou diminuta qualidade de informação carreada para o tribunal, suscetível de o informar sobre as razões da atribuição de credibilidade. A opção por dar fé a um meio de prova sobre outro é seleção que se deve realizar com apelo à imediação já que não pode ser feita de outra forma sem cair em decisões arbitrárias, pois só a presença direta perante aquele que decide permite aplicar claramente os critérios que permitem optar no caso concreto por uma prova A ou B”.
Acresce que, conforme jurisprudência que julgamos pacífica nesta Relação, a factualidade fixada pela 1ª instância apenas deve ser alterada quando seja possível concluir com segurança pela existência de erro na apreciação da prova. Na síntese feliz do Ac. RG de 5/03/2020, processo nº 48/18.0T8CHV.G1, que acompanhamos, “Quando o tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios de prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo. Importa, porém, não esquecer que se mantêm em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.”
Assim, inexiste qualquer fundamento para alterar a matéria de facto provada e ora impugnada, que se mantém nos seus exatos termos.
É a seguinte a redação do artº 20º, do CIRE:
Artigo 20.º Outros legitimados
1 - A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
a)Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal atividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:
i) Tributárias;
ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;
iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;
iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência;
h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o ativo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de representação das entidades públicas nos termos do artigo 13.º
A questão que se coloca é a de saber se deveria ter sido decretada a insolvência ou se deverá ser mantida a sentença recorrida.
Vejamos se estão preenchidos os pressupostos para declaração de insolvência, designadamente em termos de legitimidade ativa para a requerer.
Como ensina Catarina Serra[1] “Para efeitos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência pode surgir sob duas formas: a impossibilidade de cumprir (cfr. artº 3º, nº1) e a situação patrimonial líquida negativa (cfr. artº 3º, nº2). A lei faz referência ainda a uma terceira situação – a insolvência iminente – que sendo distinta da insolvência (atual) (a insolvência sob qualquer daquelas duas formas), é equiparada, no entanto, à insolvência no caso de apresentação do devedor (cfr. artº 3º, nº4).(…). O que deve compreender-se, desde logo, é que o incumprimento é um facto enquanto a insolvência é um estado ou uma situação. Deve compreender-se, depois, que a insolvência não se identifica nem depende do incumprimento. Embora ela possa manifestar-se, e geralmente se manifeste, através de uma multiplicidade de incumprimentos, pode haver insolvência quando há apenas um incumprimento e até quando não há incumprimento algum.(…) Com efeito, a única exigência legal para que se verifique a insolvência é que haja uma ou mais obrigações vencidas. Pode, portanto, tal impossibilidade revelar-se quando o devedor está meramente constituído em mora e não havendo incumprimento em sentido próprio (incumprimento definitivo).(…) Diga-se, por fim, que para a insolvência não releva nem o número nem o valor pecuniário das obrigações vencidas. (…) Como bem se compreende, tanto está insolvente quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de montante elevado (o montante em causa é demasiado elevado para que o devedor consiga cumprir) como quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de pequeno montante ou de montante insignificante (o montante em causa é insignificante e ainda assim ele não consegue cumprir). A insolvência no sentido acima referido (impossibilidade de cumprir) não coincide necessariamente com – e por isso não significa – uma situação patrimonial líquida negativa (superioridade do passivo face ao ativo). Com efeito, pode muito bem verificar-se a primeira sem se verificar a segunda: não obstante ser titular de um património sólido e abundante, o devedor vê-se impossibilitado de cumprir por lhe faltar liquidez. E pode verificar-se a segunda sem se verificar a primeira: não obstante não ter património suficiente para cumprir as obrigações, o devedor mantém a capacidade de cumprir por via do crédito que lhe é disponibilizado.
O artº 3º, do CIRE, qualifica a situação de insolvência nos seguintes termos:
Artigo 3.º Situação de insolvência
1 - É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
2 - As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
3 - Cessa o disposto no número anterior quando o activo seja superior ao passivo, avaliados em conformidade com as seguintes regras:
a) Consideram-se no activo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor;
b) Quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa perspectiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse;
c) Não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos distribuíveis ou do activo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do devedor.
4 - Equipara-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.
Como se referiu no AcRL de 14 de janeiro p.p., processo nº 15410/19.1T8LSB.L1, “Quando, como no caso sub judice, o pedido de declaração de insolvência não é formulado pelo devedor, a legitimidade ativa é condicionada pela verificação de certas situações, elencadas nas alíneas a) a h), do nº1, do artº 20º, do CIRE.
Há que considerar, quanto ao ónus da prova, que ao credor requerente da insolvência é quase impossível demonstrar o valor do ativo e do passivo da requerida, bem como a carência de meios para satisfação das obrigações vencidas. Ciente desta dificuldade, a lei basta-se, nos casos de requerimento de declaração de devedor por outros legitimados, com a prova de um dos factos enunciados no artº 20º, nº1, do CIRE, que permitem presumir a insolvência do devedor. Ou seja, por um lado os factos que integrem cada uma das previsões do artº 20º, nº1, são requisitos de legitimidade para a própria formulação do pedido pelo credor, e por outro, são também condição suficiente da declaração de insolvência.”.
Citando novamente Catarina Serra, pode até suceder que “não obstante ser titular de um património sólido e abundante, o devedor vê-se impossibilitado de cumprir por lhe faltar liquidez.”.
A apelante não logrou provar, como lhe competia, que tinha possibilidade, liquidez, para solver os seus débitos, sendo certo que tem várias ações contra si pendentes, e que, como bem refere a sentença recorrida, tem dívidas perante a Administração Tributária e perante a Segurança Social (vide pontos 3.10 e 3.11 da matéria de facto provada, não impugnada), no primeiro caso de montante bastante elevado, superior a um milhão de euros, não lhe sendo sequer conhecidos bens, o que aliás levou à frustração de arresto (vide pontos 3.8 e 3.9 da matéria de facto dada como provada e que não foi impugnada).
A apelante enfatiza ao longo de todo o seu recurso a circunstância de entender nada dever à requerente da insolvência. Será que tal impedia a credora de peticionar a insolvência? E a resposta é claramente negativa. Com efeito, “ao nível da legitimidade ativa para requerer o processo de insolvência, detém legitimidade quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não necessariamente quem seja, efetivamente, credor deste” – AcRG de 19/06/2019, processo nº 80/18.2T8TMC.G1, in www.dgsi.pt.
Com efeito, “a partir daqui a questão já se situa no domínio da discussão do mérito da causa: o devedor está ou não impossibilitado de cumprir com as suas obrigações vencidas? Caso se conclua no sentido de que o requerido está em situação de insolvência, então o direito de crédito do autor deverá ser discutido em sede própria, no apenso de verificação e graduação de créditos. (…) Com efeito, pode o devedor ser declarado insolvente ainda que a situação tivesse sido espoletada por quem não era seu credor à data ou não era de todo seu credor”– cfr. processo nº 3422/19.0T8VIS, Juízo de Comércio de Viseu.
A circunstância de a alegada dívida à requerente ser impugnada não invalida o raciocínio propugnado. A não ser assim bastaria impugnar as dívidas para as mesmas serem afastadas como fundamento de insolvência. E a lei refere expressamente que as dívidas podem ser litigiosas.
Daí que as considerações sobre a alegada ineficácia do negócio sejam absolutamente irrelevantes em sede de aferição dos pressupostos para decretamento da insolvência, aqui incluindo a legitimidade para a formulação de tal pedido.
Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso, que tem de ser considerado improcedente.
Inexiste qualquer fundamento para condenar a recorrente como litigante de má-fé, por inverificação dos requisitos do artº 542º, nº 2, do CPC, designadamente da alínea a), havendo que considerar que com a interposição do recurso se limitou a exercer um direito processual.
Por último, e no que se refere às custas e respetiva imputação, pese embora o disposto no artº 304º, do CIRE, as custas da insolvência que devam ficar a seu cargo são apenas aquelas em que a massa insolvente decaia e na medida de tal decaimento, sendo as restantes pelas partes intervenientes e na proporção da respetiva sucumbência – AcSTJ de 29/04/2014, processo nº 919/12.6TBGRD, in www.dgsi.pt.
Ficam assim as custas a cargo da apelante.
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V – Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Guimarães, 2 de abril de 2025.
Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1º Adjunto: João Peres Coelho.
2º Adjunto: Pedro Maurício.
[1] Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pág. 54-57.