RECURSO DE APELAÇÃO
APELAÇÃO AUTÓNOMA
VALOR DA CAUSA
Sumário


O despacho que fixou o valor da causa é suscetível de recurso imediato e autónomo, por força do disposto nos artigos 644º, nº 1, alínea e 629.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. – Relatório

Reclamantes: AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG

Na ação declarativa de condenação que os Reclamantes intentaram contra HH e marido II, veio a ser proferido despacho saneador, notificado a 13-11-2023, que fixou o valor da causa em 2.600,65 €, alterando o indicado pelos Autores na petição inicial, oficiosamente e com a observância do dever de fundamentação.
 Nesse despacho ainda se identificou o objeto do litígio e indicou os temas da prova e designou data para a realização audiência final, sem conhecer do mérito.
Após julgamento, veio a ser proferida sentença, notificada a 24-06-2024, que julgou a ação parcialmente procedente.
Em 17-9-2024, os Autores apresentam requerimento a interpor recurso do despacho que fixou o valor da causa, datado de 12.11.2023 e da sentença, datada de 23.06.2024.
A - O despacho da 1ª instância, objeto da reclamação
A rejeição do recurso que havia sido interposto pelos ora reclamantes, relativamente ao valor da causa fixado no despacho saneador e relativamente à sentença, baseou-se, em súmula, na intempestividade do recurso do despacho que fixou o valor da causa e, quanto à decisão da causa, no facto do valor da causa não ultrapassar o valor da alçada de que se recorria.
Apresenta o seguinte teor: “Vieram os AA. interpor recurso do despacho saneador, proferido a 12/11/2023, mormente quanto ao segmento em que é fixado o valor à causa, bem como da sentença proferida a 23/06/2024.
Ora, o despacho saneador que não põe termo à causa, não conhece de mérito ou absolve da instância o réu ou alguns dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos, e na parte respeitante em que configura decisão respeitante ao valor da causa, é sempre recorrível e de apelação autónoma, nos termos conjugados dos arts. 629.º, n.º 2, al. b), e 644.º, n.º 2, al. h), ambos do CPC.
Assim, sendo que há muito que se esgotou o prazo de 15 dias fixado no art. 638.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, é o recurso apresentado, nessa parte, manifestamente extemporâneo.
Assim, por extemporaneidade, não se admite o recurso interposto respeitante ao despacho saneador.
*
De resto, é também irrecorrível a sentença proferida, por não se reportar a nenhuma das situações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art. 629.º, e porquanto a causa tem valor inferior à alçada dos tribunais de primeira instância (cfr. 629.º, n.º 1, do CPC).
Em face do exposto, não se admite, igualmente, o recurso interposto da sentença proferida.
Notifique.”

.B- A reclamação deste despacho terminou com as seguintes
conclusões:
[…]
X.
O despacho que decidiu reduzir o valor atribuído pelos Autores à acção constitui, inequivocamente, uma decisão interlocutória (“são aquelas que são tomadas, ao longo do processo, e que não põem termo à instância e em relação às quais constitui regra geral, em matéria de recursos, a da impugnação diferida e concentrada com o recurso interposto da decisão final”).
XI.Tratando-se de decisão interlocutória, não proferida em incidente processado autonomamente, não lhe é aplicável o regime estatuído na al a) do nº1 do art. 644º do CPC.
XII. Em rigor, nem sequer se pode falar em incidente, muito menos em incidente processado autonomamente, nos termos e para os efeitos previstos na al. a) do nº1 do art. 644º do CPC.
XIII. Em face do exposto, a decisão que reduziu o valor atribuído pelos AA. à acção sujeita-se à regra geral do nº3 do art. 644º: apenas pode ser impugnada no recurso que venha a ser interposto da sentença final. É o que se designa por apelação diferida.
XIV. E, sendo aplicável o nº3 do art. 644º do CPC, o prazo para interposição do recurso daquela decisão interlocutória é o prazo para interposição de recurso da decisão final.
XV. Termos em que, deve a presente reclamação ser julgada provada e procedente e, consequentemente, revogar-se o douto despacho reclamado, concluindo-se pela admissibilidade e tempestividade do recurso interposto do despacho de 12.11.2023.
XVI. Concluindo-se pela admissibilidade do recurso interposto do despacho de 12.11.2023, haverá também de concluir-se pela admissibilidade do recurso da sentença de 23.06.2024.
XVII
Com efeito, como se concluiu naquele recurso, à acção haverá de fixar-se o valor de €22.253,00.
XVIII
E, fixado esse valor, estão preenchidos os pressupostos da alçada (valor da acção superior à alçada do Tribunal de que se recorre) e sucumbência (os apelantes foram vencidos em mais de metade do valor da alçada do Tribunal de que se recorre.
XIX. Pelo exposto, deve a presente reclamação ser julgada provada e procedente e, consequentemente, revogar-se o douto despacho em crise, que deverá ser substituído por outro que admita do recurso de apelação interposto pelos Autores, aqui reclamantes, da douta sentença de 23.06.2024.
XX. O douto despacho sob censura violou, entre outras, as normas dos artigos 644º, nº1, als. a) e b) (a contrario) e o nº3 do art. 644º, todos do Código de Processo Civil.
Termos em que, e  sempre  com  o douto suprimento de vª exª, deve ser julgada provada e  procedente a presente reclamação e, consequentemente, ser revogado o douto despacho em crise, que deverá ser substituído por outro que conclua pela admissibilidade e tempestividade do recurso interposto do despacho de 12.11.2023 e, ainda, pela admissibilidade e tempestividade do recurso interposto da douta sentença de 23.06.2024. “

Nesta Relação veio a ser proferida decisão singular que manteve a decisão proferida pela primeira instância.
Vieram agora os Recorrentes reclamar dessa decisão para a conferência.
 
Nada obsta ao conhecimento do mérito da reclamação.

II- Objeto da Reclamação

Consiste em saber se cabe apelação autónoma, nos termos do artigo 644º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, do despacho que fixa o valor da causa no saneador.

III- Fundamentação de Facto

Os factos relevantes para a apreciação desta reclamação para a conferência são todos de natureza processual e encontram-se supra enunciados no relatório.

III- Fundamentação de Direito

1- Se o recurso do despacho que fixou o valor da causa é tempestivo
A resolução desta questão passa por averiguar se o despacho que fixou o valor da causa era suscetível de recurso autónomo e imediato (no momento em que foi recebido).
Nos termos do artigo 644º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil, cabe recurso de apelação da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente.
Os Reclamantes afirmam, em súmula, que se não pode considerar o incidente de verificação da causa como um incidente processado autonomamente e concluem, por isso, que a decisão que fixa o valor da causa não era autonomamente recorrível, nos termos desta alínea. Apoiam-se, para tanto, em síntese, na doutrina de Rui Pinto: “incidente processado autonomamente é o incidente cujos atos processuais não sejam partilhados com os atos do processo principal”, expressa em Oportunidade processual de interposição de apelação à luz do artigo 644º CPC, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXI, 2020, Nº2, Pág. 634 e citam acórdãos sobre questões que dizem respeito a questões relacionadas com outros incidentes que, no seu entender, seguem tal doutrina.
Temos para nós que o incidente de fixação do valor da causa tem uma estrutura suficientemente fechada em si própria que deve ser considerado autonomamente processado e tem uma importância tal na definição do processo que se justifica que seja imediatamente recorrível.
Neste sentido vai também a nossa doutrina mais ligada à jurisprudência: “A apelação autónoma apenas abarca aos incidentes processados autonomamente. Não se circunscrevendo esta previsão apenas aos incidentes processados por apenso, como ocorre com a habilitação, tem potencialidades a arcar outros incidentes tramitados no âmbito da própria ação, desde que sejam dotados de autonomia, designadamente a intervenção de terceiros ou a verificação do valor da causa, implicando trâmites específicos que não se confundem com os da ação em que estão integrados.” (sublinhado nosso)- cf António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 4ª ed, p. 193.
Com efeito, no que toca ao incidente de verificação do valor da causa, a sua importância leva a que não se tenha dúvidas que a lei não só lhe concedeu (nos casos em que a sua decisão tem mais relevo no processo) especial recorribilidade, como determina que este ocorra em momentos diferenciados no processo.
Assim, nos termos do artigo 306º, nº 2 e 3 do Código de Processo Civil “O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença. 3 - Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 641.º”.
Desta forma, o incidente em causa não partilha obrigatoriamente dos atos do processo principal, admitindo produção de prova que não tem lugar juntamente com os da causa e decisão que é proferida em função das necessidades do processo: em regra no saneador, mas também no despacho que aprecia os requerimentos a interpor recurso, caso seja anterior.
Por outro lado, a importância da definição deste elemento na tramitação do processo conduz à recorribilidade imediata do despacho, do que é corolário a sua especial recorribilidade nos casos em que o valor impede o recurso. Vejamos.
O valor da causa tem particular destaque por determinar a competência do tribunal e a suscetibilidade do recurso, nos casos em que outra norma especial o não permita. Mas acaba também por ter outras funções, como a determinação da forma do processo de execução comum para pagamento de quantia certa, o número de peritos, o número de testemunhas, os termos posteriores aos articulados e o tempo dedicado ás alegações orais da audiência final (artigos 296.º, n.º 2, 305.º, n.º 2, 468.º, n.º 5, 511.º, n.º 1, 597.º, todos do Código de Processo Civil).
É pela sua relevância na determinação da recorribilidade das demais decisões que se estabeleceu norma especial no que toca à sua recorribilidade deste despacho, no artigo 629.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil: “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre”.
A vasta jurisprudência apresentada pelos Reclamantes versa sobre outro tipo de despachos, nenhum se debruçando em particular sobre o despacho que fixou o valor da ação, como, aliás, também não faz o brilhante autor citado pelos Reclamantes na indicada Revista da FdL.
A par da expressa defesa da autónoma da recorribilidade deste despacho efetuada por António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, encontram-se publicados múltiplos acórdãos das Relações e até do Supremo Tribunal de Justiça  que apenas versam sobre o valor da causa, desacompanhados do recurso de qualquer outra decisão (a mero título de exemplo, e entre muitos, cfr acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça nos processos  8526/19.6T8SNT.L1.S1, em 14-07-2021 e  3372/18.7T8VNF.G2.S1, em 17/10/2023 e, neste Tribunal, o proferido no processo 484/21.3T8CMN-A.G1, em 09-11-2023, que relatámos).
Não é o facto de não ter oposição que leva a que se considere que determinado processado não seja considerado incidente; é, sim, necessário que se esteja perante uma questão que surge no decurso do processo, que precise de ser julgada antes da decisão do mérito.
Por fim, há que ter em conta o artigo 629º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil que determina que independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre. Esta norma tem sido entendida como permitindo o recurso imediato destas decisões, pelo que razões históricas e o tratamento especifico desta questão neste artigo levam a este entendimento.
Assim, ao receberem, por notificação de 13 de novembro de 2023, despacho, aliás muito fundamentado, que não aceitou o valor que haviam proposto à ação, mas fixou outro muito inferior ao da alçada do tribunal a quo, os ora Reclamantes conformaram-se com a decisão proferida, tendo esta transitado. Em consequência, não era possível virem recorrer da mesma, ao abrigo do disposto no artigo nº 3 do artigo 644º do Código de Processo Civil, em 26 de junho de 2024.
Há, pois, que concordar com a decisão que não admitiu o recurso do despacho que fixou o valor da ação com fundamento na sua extemporeineadade.
2-Da inadmissibilidade do recurso da sentença de 23.06.2024
Os Reclamantes fundam a recorribilidade desta sentença no facto de concluírem por diferente valor da causa, visto que só com a alteração do valor da causa o valor da ação é superior ao valor da alçada do tribunal de que recorrem. Ora, não se admitindo a alteração do valor da causa no recurso por o mesmo ser intempestivo, mostra-se patente que o valor fixado à causa não permite o recurso.
Determina o artigo 629º nº 1 do Código de Processo Civil que: “O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.”
Sendo certo que esta norma tem exceções, nenhuma destas foi invocada pelos  Reclamantes (nem aqui se podem eventualmente aplicar).
A alçada do tribunal de 1ª instância está fixada em 5.000,00 € (artigo 44º da Lei 61/13 de 26/8). Foi atribuído à ação o valor de em 2.600,65 €.
Assim, a decisão que julgou “irrecorrível a sentença proferida, por não se reportar a nenhuma das situações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art. 629.º, e porquanto a causa tem valor inferior à alçada dos tribunais de primeira instância” é de sufragar.

IV. Decisão

Face ao exposto, julgam-se improcedentes as reclamações apresentadas e confirma-se a decisão singular que indeferiu a reclamação do despacho que não admitiu os recursos interpostos.             
Custas pelos reclamantes, sendo a taxa 3 (três) UC´s.
Notifique.

Guimarães, 02-04-2025

Sandra Melo
José Manuel Flores
Maria Amália Santos