A fixação do rendimento disponível no despacho inicial não é imodificável; mesmo depois, do seu trânsito em julgado, podendo o juiz, a requerimento do insolvente, excluir desse rendimento o que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor, atento o disposto no artigo 239.º, n.º 3, iii), do CIRE.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto- Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - ...
Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Márcia Portela
Pinto dos Santos
SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO:
AA, divorciado, aposentado, veio apresentar-se à insolvência, tendo formulado pedido de exoneração do passivo restante, tendo então alegado que é divorciado mas vive há mais de cinco anos com uma companheira que tem duas filhas ainda menores e vai precisar de se sustentar a si e aos que consigo vivem minimamente e de manter um nível de vida condigno.”
Por sentença de 14.3.2023, foi declarado insolvente.
Por despacho datado de 2.11.2023, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pelo devedor, nos termos e para os efeitos previstos na alínea b) do artigo 237.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Quanto à cessão de rendimentos, o tribunal decidiu “fixar em 1 salário mínimo nacional, por mês, com referência aos doze meses do ano, o correspondente ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 2 e 3, alínea b), i), do artigo 239.ºdo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.” E em consequência determinou que “durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir seja cedido ao fiduciário adiante nomeado, nos termos do n.º 2 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Inconformado com esta decisão, o devedor insolvente interpôs recurso de Apelação, que teve por objeto a impugnação da matéria de facto em que se baseou aquela decisão e a matéria de direito, vindo o Tribunal da Relação do Porto, mediante acórdão datado de 5.3.2024, julgado improcedente o recurso, tal como consta do apenso C.
Em 20.09.2024, veio o insolvente, requerer a alteração do rendimento indisponível a ceder, para um “valor mensal para um sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar seja o correspondente a duas vezes o salário mínimo nacional, o que se requer a V. Exª venha a ser decretado e doravante fixado ao insolvente como rendimento disponível”, alegando que . desde a data em que tomou conhecimento da venda da sua casa de morada de família no âmbito dos presentes Autos até à atualidade, o insolvente sempre diligenciou e procurou todos os dias com afinco uma nova casa para arrendar, relatando as dificuldades quer pela exorbitância dos preços das rendas, quer pela dificuldade em arranjar um fiador, anunciando a possibilidade de celebrar um contrato de arrendamento duma habitação sita em ....
Em 24.09.2024, juntou contrato de arrendamento celebrado em 21.09.2024, cuja renda mensal é de 800,00€, referente a um apartamento sito em ..., santa Maria da Feira.
Não foi apresentada oposição à pretensão do requerente.
Foi pedida a junção do documento da junta de freguesia do qual se transcreve que o insolvente reside, em comunhão de mesa e habitação, com a sua companheira e com as suas enteadas, ambas com 16 anos de idade.
O Tribunal proferiu despacho em que apreciou a pretensão do requerente, indeferindo-a por entender que, sopesadas todas as circunstâncias factuais presentes e futuras, o valor fixado se mostra equilibrado para satisfazer as necessidades do insolvente (e do seu agregado familiar).
Inconformado, AA, veio interpor o presente recurso de Apelação, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“I.Ao apelante foi, por douto despacho ora recorrido, aquando da decisão a respeito da cessão do rendimento disponível, declarado como equilibrado para satisfazer as necessidades do insolvente e do seu agregado familiar o rendimento disponível correspondente a 1 (um) salário mínimo nacional, com referência aos 12 (doze) meses do ano.
II. Esta decisão foi fundamentada na prova documental carreada para os Autos pelo próprio insolvente em requerimentos que cumpriam com o ordenado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto em douto acórdão proferido neste Processo e referente à mesma matéria em 06/03/2024, e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
III. Mas o Tribunal a quo no douto despacho ora recorrido, contraria expressamente a decisão proferida por um Tribunal de segunda instância violando e ofendendo, assim, expressamente, o caso julgado.
IV. A douta decisão aqui sindicada concluiu que, apesar da Junta de Freguesia ..., ..., local onde o insolvente viveu durante os últimos trinta anos, ter atestado que o insolvente reside com uma companheira (doméstica) e duas enteadas menores de idade (estudantes), porém, estas não são suas filhas, mas sim enteadas, não recaindo sobre o insolvente qualquer obrigação de assumir despesas relacionadas com elas.
V. Arrepiante, no mínimo…
VI. A douta decisão aqui sindicada concluiu, ainda, que caberia ao insolvente empenhar esforços no sentido de encontrar uma habitação cuja renda fosse proporcional ao seu rendimento, ainda que isso consubstancie um sacrifício (designadamente, obrigar o insolvente a procurar nas periferias habitações mais modestas com preços mais baixos), como se desconhecesse literalmente que o insolvente foi obrigado a deixar para trás a sua moradia unifamiliar T4 em ..., ..., onde pagava ao banco uma prestação mensal de € 300,00 (trezentos euros) para passar a habitar num apartamento T2 em ..., Santa Maria da Feira, onde tem que pagar uma renda mensal ao senhorio de € 800,00 (oitocentos euros) e tal facto não consubstanciasse por si só um sacrifício acrescido para um insolvente com quase 72 (setenta e dois) anos de idade e para o seu agregado familiar.
VII. O Tribunal a quo parece desconhecer que ... é uma freguesia sita nas periferias de Santa Maria da Feira e, saliente-se, bastante afastada de ..., ..., onde o insolvente sempre residiu e, em segundo lugar, nos dias que correm, nem mesmo nas periferias das cidades ou vilas deste país se consegue arrendar uma habitação T2 por menos de € 800,00, e o insolvente que o diga, uma vez que andou quase um ano inteiro à procura e não conseguiu arranjar nada melhor nem mais barato, e disso deu boa nota a estes Autos em requerimento apresentado em 20/09/2024 – Ref.ª CITIUS: 464026599.
VIII. Na verdade, atenta toda a prova documental produzida em três requerimentos apresentados pelo insolvente em obediência ao decidido no douto acórdão deste Tribunal da Relação atrás citado, no que às despesas com habitação do insolvente diz respeito, jamais poderia o Tribunal a quo decidir da forma que decidiu e com os fundamentos que apresentou.
IX. Muito mal andou pois este Tribunal de primeira instância.
X. E da motivação da decisão da matéria de facto plasmada no douto despacho, ora recorrido, infere-se, portanto, que a prova documental produzida foi considerada suficiente.
XI. Contudo, o Tribunal a quo não atendeu a toda a prova documental produzida, mas apenas a parte dela - independentemente da prova que pôde ou não ser atendida por razões processuais - assim como não atendeu, também, pelo menos com a minúcia devida e desejável.
XII. E foi, com certeza, por causa deste erro na apreciação da prova que o Tribunal a quo considera como equilibrado para satisfazer as necessidades do insolvente e do seu agregado familiar o rendimento disponível correspondente a 1 (um) salário mínimo nacional, com referência aos 12 (doze) meses do ano, quando este tem assumida desde o mês de outubro de 2024 a obrigação de pagar € 800,00 (oitocentos euros) de renda pela sua habitação.
XIII. Mas o Tribunal a quo não julgou nem ponderou com um juízo crítico todas as provas carreadas para os Autos pelo insolvente atinentes com essa matéria, muito menos conseguiu convencer alguém a respeito do modo como ficou convencido.
XIV. É que não basta ao Tribunal a quo dizer que se convenceu de determinada realidade e deu como provada e como não provada determinada matéria de facto quando os fundamentos aduzidos nessa decisão não são capazes de convencer ninguém do rigor, da isenção e da equidade da mesma, mesmo atendendo a critérios da experiência comum.
XV. Na realidade este insolvente morrerá de inanição, bem como todo o seu agregado familiar que financeiramente de si depende em exclusivo, se tiver disponível um rendimento mensal de €820,00 (oitocentos e vinte euros) e tiver que pagar € 800,00 (oitocentos euros) de renda pela sua habitação.
XVI. Não basta, portanto, ao Tribunal a quo dizer que o insolvente tivesse procurado outra casa com renda mais baixa quando muito bem sabe que o mesmo provou nos Autos que procurou durante meses a fio e que não encontrou nenhuma casa com uma renda mais barata.
XVII. E era com base nesta realidade, nesta renda de € 800,00 que o insolvente provou ter que pagar mensalmente, que o Tribunal de primeira instância deveria atender para dar cumprimento ao douto acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação do Porto datado de 06/03/2024.
XVIII. Neste sentido, o douto despacho ora recorrido, contraria expressamente a decisão proferida por um Tribunal de segunda instância violando e ofendendo, assim, expressamente, o caso julgado.
XIX. Assim sendo, no caso em apreço, concluímos que os fundamentos invocados na decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto que não atenderam por completo à prova documental produzida e apresentada pelo insolvente, quer em sede de contrato de arrendamento, quer em sede de composição do seu agregado familiar atual, não se verificam, sempre sem pretender quebrar o devido respeito por opinião contrária, que é muito ou superlativo, e igualmente, sem prejuízo de eventual erro de intelecção deficit de avaliação ou de mera observação, a ser colmatado por mais avisado, atento e ponderado entendimento, não podendo o recorrente concordar com a douta sentença nestes Autos proferida, pelo que a impugna.
XX. O Tribunal a quo desvalorizou e desrespeitou, portanto, a douta decisão proferida por este Tribunal da Relação do Porto em 06/03/2024, acima identificada, violando, por isso o caso julgado.
Nestes termos, deverão Vossas Excelências dar provimento ao presente recurso, revogando o despacho de 1ª instância na parte recorrida e, nos termos do disposto no Artigo 662º do CPC, deverão fixar o montante do rendimento disponível do insolvente AA num montante correspondente a duas vezes o salário mínimo nacional = € 1.640,00 (mil seiscentos e quarenta euros), assim se fazendo JUSTIÇA.”
Não houve contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo (cfr. artigos 627.º, 629.º, n.º 1, 631.º, 638.º, n.º 1, 644.º, n.º 1, 645.º, n.º 2 e 647.º, todos do C.P.Civil e artigo 14.º, n.º 5, do CIRE).
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - OBJETO DO RECURSO:
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso é a de saber se deverá ser modificado o valor do rendimento disponível fixado no despacho inicial.
III - FUNDAMENTAÇÃO:
No despacho liminar que admitiu o pedido de exoneração do passivo, confirmado pelo acórdão desta Relação proferido em 5.3.2024, no apenso C, (também quanto à matéria de facto) foram julgados provados os seguintes factos:
a) O devedor apresentou-se à insolvência a dia 13 de julho de 2023 e, por sentença proferida no dia 14 de agosto desse mesmo ano, foi declarada a sua insolvência;
b) O insolvente encontra-se no estado de divorciado, sendo o respetivo agregado familiar constituído pelo próprio;
c) O insolvente encontra-se reformado, recebendo a título pensão € 1.425,75;
d) Vive em casa própria que será objeto de liquidação;
e) O insolvente tem despesa regulares com alimentação, vestuário, saúde, transportes e outras habituais e decorrentes da vida normal em sociedade;
f) Ao insolvente não são conhecidos antecedentes criminais;
g) Foram reclamados créditos no valor global de € 289 029,36.
No despacho recorrido foi considerada inalterada aquela factualidade, mas atendeu-se ao facto do insolvente ter, já depois daquela decisão ter celebrado, um contrato de arrendamento.
Assim e conforme cópia contrato junto aos autos, a 24.09.2024, o insolvente demonstrou ter celebrado um contrato de arrendamento, com data de 21.09.2024, que teve por objeto uma fração autónoma destinada a habitação com garagem, sita em ..., ..., comprometendo-se ao pagamento de uma renda mensal de 800,00.
IV - APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:
A exoneração do passivo restante constitui uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de Março, é uma solução que se inspirou no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.
O devedor mantém-se por um período de cessão, equivalente a três anos, adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos e obriga-se, durante esse período, no essencial, a ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afetará os montantes recebidos ao pagamento aos credores.
A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, nos termos do disposto no art. 245º do CIRE.
Na fixação do montante da cessão do rendimento disponível, deve-se ter presente, como critério orientador, que a cessão do rendimento disponível visa harmonizar dois interesses em conflito, os quais se devem comprimir mutuamente de forma a encontrar um equilíbrio justo, entre a proteção dos credores do insolvente e o próprio insolvente, resultando que, por princípio, este último não poderá manter o mesmo nível de rendimentos que tinha, sendo necessário uma diminuição da disponibilidade dos mesmos para que os credores possam ver satisfeito, na medida do possível, parte dos créditos de que são titulares, os quais, decorridos os três anos da cessão serão pura e simplesmente extintos ainda que não tenham sido satisfeitos.
Decorre do disposto no art. 239.º, n.º 3, al. b), i., do CIRE que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão, além do mais, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, em três vezes o salário mínimo nacional.
Esta exclusão, segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[1] radica na proteção constitucional da dignidade humana.
No Acórdão do Tribunal Constitucional de 09/07/2002, afirma-se o seguinte: "O salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o "mínimo dos mínimos" não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respetivo beneficiário."
Daí que, porque o legislador não estabelece um “limite mínimo” do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e família, este conceito deva ser avaliado e ponderado, em cada caso particular, atendendo-se ás reais necessidades do insolvente e do respetivo agregado familiar. E, para tanto, a jurisprudência maioritária tem optado por atender, nesta matéria, a critérios objetivos adjuvantes do juízo a formular, designadamente ao salário mínimo nacional.
Por despacho proferido em 02.11.2023 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante feito pelo ora insolvente, tendo sido fixado «em 1 salário mínimo nacional, por mês, com referência aos doze meses do ano, o correspondente ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 2 e 3, alínea b), i), do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas» (CIRE).
Considerou-se já então que, o montante mensal retido para o Insolvente no período da cessão não visa assegurar o mesmo padrão de vida que este tinha antes da situação de insolvência, uma vez que ele terá de ajustar a sua situação socioeconómica à condição especial em que se encontra, designadamente à máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.
Tendo discordado do valor fixado, o devedor/insolvente recorreu daquela decisão, onde questionou não ter sido considerado na mesma que vive há mais de cinco anos com uma companheira que tem duas filhas ainda menores e vai precisar de se sustentar a si e aos que consigo vivem minimamente e de manter um nível de vida condigno.
Foi proferido acórdão por este Tribunal da Relação, datado de 6.3.2024, (no apenso C), que desatendendo aos fundamentos do recurso interposto pelo insolvente, manteve inalterada a matéria de facto e confirmou a decisão recorrida.
Nos termos do artº 619º, nº 1 do C.P.C. “Transitada em julgado a sentença, ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a matéria de facto controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 480 e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º.”
Por sua vez, dispõe o artº 621º do mesmo diploma que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”
As decisões judiciais, em especial as sentenças, conduzem à pacificação das relações jurídicas controvertidas, contribuindo para a indispensável segurança jurídica e social (cf. art.º 619.º, n.º 1 e 621.º, ambos do CP Civil).
Por inerência, razões de verdade, harmonia, certeza e segurança jurídica e sociais impõem que não se possa verificar uma contradição de decisões sobre a mesma questão fáctico-jurídica concreta, quer por via da exceção do caso julgado, quer por via da exceção da autoridade de caso julgado ou efeito positivo externo do caso julgado.
Para o Professor Manuel de Andrade,[2] o instituto do caso julgado assenta em dois fundamentos:
– o prestígio dos tribunais, que ficaria altamente comprometido “se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente”;
– e, mais importante, uma razão de certeza ou segurança jurídica, já que sem a força do caso julgado se cairia “numa situação de instabilidade jurídica (…) fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas”.
E esclarecedoramente aduz: “O caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade (…), por força da qual (…) a sentença (…) transforme o falso em verdadeiro. Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculativa infrangível ao ato de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica, e portanto os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei (Chiovenda). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável.”
O efeito negativo do caso julgado implica que, transitada em julgado uma decisão judicial, o mesmo tribunal (caso julgado formal, do artigo 620.º do CPC) ou todos os tribunais (caso julgado material, do artigo 619.º do CPC) ficarão sujeitos tanto a uma “proibição de contradição da decisão transitada”, como a “uma proibição de repetição daquela decisão”.[3]
Tal proibição constrói um sistema de estabilização das decisões judiciais que se resume ao enunciado seguinte: um tribunal não pode afastar ou confirmar uma anterior decisão já proferida (cf. artigo 580.º, n.º 2, do CPC) independentemente de ser alheia ou ser sua (cf. artigo 613.º, n.º 1, do CPC), o que apenas poderá ter lugar em sede de recurso.
Do exposto resulta que, o caso julgado obsta à reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por decisão transitada (cfr. artigos 576º, nº 2, e 577º, alínea i), do CPC).
A referida exceção “visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior” [4]
No entanto tal como se reconhece no acórdão do TRC, de 03.06.2014 (proc. n.º 747/11.6TBTNV-J.C1, rel. Henrique Antunes), citado no Acórdão da Relação do Porto, proferido no apenso C, «[a]fixação, no despacho inicial, do rendimento disponível não é imodificável, já que, mesmo depois do seu proferimento – e mesmo depois do seu trânsito em julgado – o juiz pode excluir desse rendimento, a requerimento do insolvente, do que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor (artº 239 nº 3, iii), do CIRE)».
E precisamente por se acolher tal entendimento, aquele tribunal, da Relação, relativamente à questão da eventual necessidade de arrendamento pelo insolvente, visto o imóvel em que habitava o insolvente se encontrara em liquidação, expressamente ressalvou a possibilidade de ser revisto aquele montante, a requerimento do insolvente, relativamente ao seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor, afirmando-se aí o seguinte: “Como vimos, dos factos carreados para os autos resulta que, neste momento, o insolvente continua a residir em casa própria, pelo que não tem de pagar qualquer quantia a título de renda.
Também resulta que essa casa será objeto de liquidação, de onde se infere que o insolvente será obrigado a encontrar uma alternativa habitacional. Mas daqueles factos não decorre que essa alternativa corresponda, necessariamente, ao arrendamento de uma casa, sendo equacionáveis diversas outras soluções (acolhimento por familiares ou outras pessoas, comodato, etc.). Mas ainda que a solução venha a ser o arrendamento, não é possível, neste momento, determinar com um mínimo de rigor o valor a pagar a título de renda, a qual dependerá de um conjunto muito diversificado de variáveis, entre as quais se destacará, naturalmente, a tipologia e a localização da nova residência.
Admite-se que, face ao aumento que se vem registando nos preços dos bens essenciais, em especial no valor das rendas das casas de habitação situadas nos grandes centros urbanos – valor que, frequentemente, representa uma das parcelas com maior peso nos orçamentos familiares –, o montante correspondente a um salário mínimo nacional possa revelar-se insuficiente para assegurar o sustento minimamente digno do devedor se este tiver de arrendar uma casa. Mas essa é uma questão que deverá ser suscitada e apreciada no momento próprio, perante os factos concretos e a respetiva prova.
Verificando-se tal situação, caberá ao insolvente fazer a prova do valor da despesa com a renda de casa, bem como da sua indispensabilidade, e solicitar a sua exclusão do rendimento disponível, ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, al. b) - iii, do CIRE. (…)
Neste momento, tendo em conta as despesas que o insolvente tem efetivamente de suportar para assegurar o seu sustento digno, nos termos já antes explicitados, é manifesto que o valor correspondente ao SMN, atualmente situado nos 820.00 € por mês, se revela perfeitamente ajustado para fazer face a tais despesas, correspondendo ao que a jurisprudência vem fixando em situações semelhantes.”
Resulta desta decisão que, apesar de ocorrer trânsito em julgado da mesma, fixando o valor de cessão do rendimento do insolvente, foi nela expressamente ressalvada, face às circunstâncias apuradas – o imóvel onde insolvente habitava iria ser alvo de liquidação na insolvência - a possibilidade de ocorrerem despesas relacionadas com a perda da habitação do insolvente, que tenham de ser consideradas na fixação do valor excluído do rendimento disponível, possibilidade essa expressamente contemplada no art. 239º nº 3 iii) do CIRE.
Com efeito, naquele acórdão, ficou ressalvada expressamente a possibilidade de, em face da liquidação no âmbito deste processo do imóvel onde habitava, de ser obrigado a encontrar uma alternativa habitacional e que, no caso dessa alternativa ser o arrendamento, “ face ao aumento que se vem registando nos preços dos bens essenciais, em especial no valor das rendas das casas de habitação situadas nos grandes centros urbanos – valor que, frequentemente, representa uma das parcelas com maior peso nos orçamentos familiares –, o montante correspondente a um salário mínimo nacional possa revelar-se insuficiente para assegurar o sustento minimamente digno do devedor se este tiver de arrendar uma casa.”
E acrescentou-se, “Verificando-se tal situação, caberá ao insolvente fazer a prova do valor da despesa com a renda de casa, bem como da sua indispensabilidade, e solicitar a sua exclusão do rendimento disponível.”
Ora relativamente à questão da composição do agregado familiar do insolvente, com influência no valor da cessão de rendimento a fixar ficou a mesma definitivamente decidida no acórdão desta Relação proferido no apenso C, verificando-se quanto àquele valor fixado caso julgado, uma vez que o tribunal da Relação desatendeu o pedido de alteração da matéria de facto feita pelo recorrente, nessa matéria, pelo que não podia o tribunal de primeira instancia reapreciar tal questão, nessa perspetiva da composição do agregado familiar do insolvente, imposição que se impõe a este tribunal de recurso.
Resta assim apreciar a questão relativa ao arrendamento.
Em termos do pedido de alteração do valor do rendimento disponível, rege o artº 339º nº 3 iii) do CIRE:
“Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
(…)
Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
Com vimos, o tribunal, na decisão final proferida (acórdão deste Relação proferido no apenso C) considerou que “o insolvente continua a residir em casa própria, pelo que não tem de pagar qualquer quantia a título de renda.” Porém, “Também resulta que essa casa será objeto de liquidação, de onde se infere que o insolvente será obrigado a encontrar uma alternativa habitacional”.
O insolvente demonstrou nos autos, ter celebrado um contrato de arrendamento, que tem por objeto uma fração autónoma destinada a habitação e garagem, designada pela letra C, que corresponde ao rés do chão poente do prédio constituído em propriedade horizontal sito em ..., Santa Maria da Feira, do mesmo resulta que foi acordado pagamento de uma renda mensal pelo insolvente no valor de 800,00€.
Alegou dificuldades, as quais, passaram pelo valor inflacionado do arrendamento urbano, que constitui aliás facto notório, bem como a dificuldade de, em face da sua situação insolvência conseguir um fiador.
No acórdão proferido no apenso C, o Tribunal expressamente ressalvar a essa situação, ao afirmar, “ face ao aumento que se vem registando nos preços dos bens essenciais, em especial no valor das rendas das casas de habitação situadas nos grandes centros urbanos – valor que, frequentemente, representa uma das parcelas com maior peso nos orçamentos familiares –, o montante correspondente a um salário mínimo nacional possa revelar-se insuficiente para assegurar o sustento minimamente digno do devedor se este tiver de arrendar uma casa.”
Consideramos que, em face da perda da habitação do insolvente, a despesa com o arrendamento no caso em apreço, em que o insolvente não é proprietário de outros imóveis (e se o fosse, seriam apreendidos em favor da massa insolvente), considera-se demonstrada a indispensabilidade da despesa com o arrendamento duma habitação, a qual ficou ressalvada pelo tribunal no despacho que fixou o valor do rendimento disponível em uma salário mínimo nacional.
Desta forma entendemos que, esta situação, deverá ser atendida, não podendo manter-se a decisão recorrida, que implicaria que a totalidade do rendimento disponível seja aplicado na habitação, ficando assim o insolvente desprovido de fazer face às demais despesas básicas.
Em sede de procedimento de exoneração do passivo restante, o montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. i), do CIRE, deve ser fixado casuisticamente, na justa medida em que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar, não podendo em caso algum ser inferior ao salário mínimo nacional.
Ora, se é suposto que os insolventes façam um esforço de contenção das despesas no período da cessão por forma a merecerem a exoneração do passivo restante, de modo a começarem do zero sem dívidas, não é menos certo que não devem ser condenados à mera sobrevivência ou mesmo indigência durante esse período, devendo ser-lhes asseguradas as condições mínimas de subsistência, possibilitando-lhes manterem a capacidade de pagarem uma renda de casa, a alimentação, vestuário, despesas de transporte, e de saúde.
Mas estas despesas deverão ser adequadas, no seu montante mensal, à atual situação do insolvente assim garantindo a satisfação ainda que parcial dos seus deveres para com os credores.
Concorda-se assim com a decisão recorrida quando afirma que se impunha ao insolvente procurar habitações com uma tipologia compatível com a sua condição, podendo e devendo adequar as suas despesas mensais à sua realidade económica, ou seja, à sua condição de insolvente. Como aí se pode ler, “De facto, apesar da atual conjuntura do mercado imobiliário, caberia ao insolvente empenhar esforços no sentido de encontrar uma habitação cuja renda fosse proporcional ao seu rendimento, ainda que isso consubstancie um sacrifício (designadamente, obrigar o insolvente a procurar nas periferias habitações mais modestas com preços mais baixos).”
Desta forma, tudo ponderado, atendendo às circunstâncias particulares da Apelante, cujo agregado familiar é composto unicamente por si, já que não resulta da decisão anterior que tivesse pessoas/familiares a cargo, entendemos que em face da perda da sua habitação ocorrida em data posterior à sentença que fixou o seu rendimento disponível, ocorreu uma despesa aí não considerada –pagamento de uma renda mensal – a qual terá que ser atendida, modificando-se a decisão anterior, alteração que se mostra expressamente ressalvada na mesma.
Porém, ao contrário do propugnado pelo apelante, o aumento não deverá corresponder ao valor exato da renda que demonstrou ter passado a ter que pagar, (em consequência do contrato de arrendamento que celebrou), por dois motivos: o primeiro porque o valor de 800€ mensais que acordou com o senhorio se mostra incompatível com a sua situação de insolvente, a quem foi fixado o rendimento disponível correspondente a um salario mínimo nacional de 870€ mensais, uma vez que pretende vir a beneficiar da exoneração do passivo restante e que por essa razão a lei lhe impõe sacrifícios pessoais, nomeadamente o de ter de habitar uma habitação mais modesta, compatível com a sua nova situação.
A segunda, porque na fixação daquele montante correspondente ao salário mínimo nacional, foram então já tidas em consideração as necessidades habitacionais do insolvente, (na altura traduzidas na circunstância que então ocorria, do pagamento de 300€ mensais pelo insolvente relativos a um crédito à habitação).
Assim sendo, tudo ponderado, nomeadamente os interesses dos credores da insolvência, face ao comprovado aumento da despesa com a habitação, despesa que se mostra indispensável, em face da perda da habitação própria daquele, fixa-se em 250€, o acréscimo do valor mensal que o insolvente fica dispensado de ceder ao fiduciário, para prover ao acréscimo de despesa nesta área, montante que acrescerá assim ao valor de um salário mínimo fixado na anterior decisão transitada em julgado.
V. DECISÃO:
Em razão do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Apelantes, alterando-se o montante do rendimento disponível do insolvente AA para o montante correspondente ao valor de um salário mínimo nacional, acrescido de 250€ (duzentos e cinquenta euros).
Custas a cargo da massa insolvente.
Notifique.
Porto, 8 de abril de 2025.
Alexandra Pelayo
Márcia Portela
Pinto dos Santos
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[1] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 788.
[2] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pg 305-306.
[3] Miguel Teixeira de Sousa; Estudos sobre o novo processo civil, p. 574.
[4] Miguel Teixeira de Sousa in O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325, p. 49.