RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA DO LESADO E RISCO DO VEÍCULO
Sumário

I - O artigo 505.º do Código Civil deve ser objeto de uma interpretação atualista, de modo a admitir, em determinadas circunstâncias devidamente fundamentadas, o concurso da responsabilidade derivada da culpa do lesado com a responsabilidade decorrente do risco do veículo.
II - Esse concurso, porém, não ocorre quando o acidente tenha ocorrido devido a culpa grave do lesado; isto é, quando este tenha agido de forma temerária, violando de forma grosseira e injustificável a mais elementares regras de prudência.

Texto Integral

Processo n.º 364/23.8T8PVZ.P1


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Sumário:

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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos:
Desembargadora, Maria Eiró;
Desembargador, Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

1- AA, por si e em representação do seu filho menor, BB, intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra A..., S.A. e B..., Unipessoal, Ldª, pedindo que estas sociedades sejam condenadas a pagar-lhes, com juros moratórios contabilizados desde a data da citação, a quantia global de 290.00,00€, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro que, no dia 18/07/2022, vitimou CC, que, à data, era, respetivamente, companheira do 1.º A. e mãe do 2.º A.

2- Contestou a 1ª Ré refutando esta pretensão, porquanto, para além de ser parte ilegítima nesta ação, o indicado sinistro apenas se ficou a dever à negligência da indicada vítima, que atravessou a linha do metro de auscultadores nos ouvidos e sem observar as precauções e dever de cuidado a que estava obrigada. Além disso, não existiu qualquer omissão ou atuação culposa do maquinista da composição interveniente neste acidente.

Em qualquer caso, impugna os danos invocados.

Termina pedindo a sua absolvição da instância, em decorrência da sua invocada ilegitimidade ou, subsidiariamente, a sua absolvição do pedido.

3- Também a 2ª Ré contestou, arguindo igualmente a sua ilegitimidade para esta demanda e, subsidiariamente, invocando a sua irresponsabilidade por este sinistro que foi causado exclusivamente pelo comportamento negligente da vítima.

Impugna, em qualquer caso, os danos invocados.

Termina pedindo a sua absolvição da instância, devido à sua ilegitimidade, ou, caso assim não se entenda, a sua absolvição do pedido.

4- Admitida a requerida intervenção da C... – Companhia de Seguros, SA., a mesma contestou a pretensão dos AA., por se considerar também parte ilegítima e, de todo o modo, não ser da responsabilidade da sua segurada a ocorrência do aludido sinistro que, antes, pelo contrário, foi única e exclusivamente causado pela própria vítima.

Daí que, impugnando também os alegados danos, conclua pedindo a sua absolvição do pedido.

5- Os AA. responderam pedindo a improcedência das exceções invocadas.

6- Terminada a fase dos articulados, foi proferido despacho saneador no qual, para além do mais, se fixou o valor da causa, se afirmou a validade e regularidade da instância (julgando improcedente a exceção de ilegitimidade arguida pelas RR.), se fixou o objeto do litigio e enunciaram os temas da prova.

7- Posteriormente, teve lugar a audiência final, após a qual foi proferida sentença na qual se julgou a presente ação improcedente e se absolveram as RR e Interveniente do pedido.

8- Inconformados com esta sentença, dela interpuseram recurso os AA., terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

(…)

11- Por fim, a 2ª Ré também contra alegou, defendendo a inadmissibilidade deste recurso, por nas conclusões do mesmo se repetirem todos os argumentos das alegações ou, subsidiariamente, a sua improcedência, por a sentença recorrida não evidenciar nenhum erro de interpretação e/ou aplicação de qualquer dos normativos invocados pelos AA., nem errada decisão quanto à matéria de facto.

12- Recebido o recurso no Tribunal recorrido foram os autos remetidos a esta Instância. E, aqui, preparada que está a deliberação, importa tomá-la:


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II- Questão prévia:

Como vimos, a Ré, B..., Unipessoal, Ldª, defende que este recurso não deve ser admitido, porquanto, a seu ver, “retirando as transcrições dos excertos dos depoimentos das testemunhas, bem como dos excertos da sentença e do Acórdão invocado (…), as conclusões são uma reprodução integral e quase ipsis verbis do corpo das alegações”.

Mas, não é assim. Nem há essa reprodução integral, nem – como é orientação jurisprudencial dominante – “a circunstância de, em sede de conclusões, o recorrente reproduzir a motivação constante da alegação propriamente dita não configura um caso de falta absoluta de conclusões, não podendo, por isso, o recurso ser rejeitado de imediato, antes devendo ser proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas”[1]. Mais: “a reprodução, ainda que parcial, nas conclusões do recurso das respetivas alegações não equivale a uma situação de falta de conclusões, consubstanciando, antes, um caso de conclusões complexas, por o recorrente não ter cumprido as exigências de sintetização impostas pelo n.º 1 do artigo 639.º do CPC e, assim, não deve dar lugar à imediata rejeição do recurso, nos termos do artigo 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC, mas à prolação de despacho de convite ao seu aperfeiçoamento com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, conforme resulta do n.º 3 do artigo 639.º do mesmo diploma legal”[2].

Daí que, seguindo esta orientação, se rejeite o referido obstáculo à admissibilidade deste recurso.

E, nada mais obstando, cumpre conhecer do seu mérito.


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III- Mérito do recurso

A- Definição do seu objeto

Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto deste recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações dos Recorrentes [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se a saber se:

1.º- Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;

2.º- As Apeladas devem ser condenadas a reparar os danos decorrentes deste acidente e, na afirmativa, a que título e em que medida.


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B- Fundamentação

B.1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

1. No dia ../../2022 faleceu CC, no estado de solteira.

2. O 1.º autor vivia com a mencionada CC em condições análogas às dos cônjuges há mais de 2 anos.

3. O 2.º autor é filho de CC e do 1.º autor, tendo nascido em ../../2019.

4. A primeira Ré “A...” é concessionária do Metro Ligeiro da área metropolitana do ....

5. As rés celebraram, a 11 de janeiro de 2018, o contrato de “subconcessão do sistema de metro ligeiro da área metropolitana do ...” cuja cópia se encontra junta com a contestação apresentada em 17/4/2023 sob doc. n.º 2 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

6. No dia ../../2022, cerca das 8h53m, a sinistrada CC, dirigia-se de casa para o trabalho.

7. À referida hora chegou apeada à Estação de Metro 1..., em ....

8. A mesma foi embatida por um comboio na Estação 1....

9. Nessa Estação 1... o canal de circulação dos comboios tem duas vias ferroviárias paralelas, uma para os comboios que circulam na V1 (sentido de marcha .../...) e outra na V2 (sentido de marcha .../...).

10. Os acessos da via pública às plataformas dessa estação fazem-se através de duas escadarias, para cada uma das linhas ferroviárias e em exclusivo para cada linha, havendo, assim, um acesso para a Via 1 (doravante V1), e outro para a Via 2 (doravante V2).

11. No final de cada uma das escadarias encontra-se situada a plataforma de acesso aos comboios da A....

12. As plataformas estão revestidas a microcubos de granito e com as extremidades (junto às linhas ferroviárias) em lajes contínuas de granito, mas com uma diferença cromática em relação aos referidos microcubos.

13. No limite de cada uma das plataformas existe, pintada, uma linha contínua e amarela, em ligeiro relevo.

14. No fundo das mencionadas escadarias existe uma passagem pedonal, que cruza as linhas férreas e que une as duas plataformas.

15. Essa passagem pedonal é revestida por betão e por molduras de metal, sendo o revestimento da mesma diferente, quer das plataformas, quer da restante via férrea.

16. O comboio MP..1 que embateu na sinistrada CC havia saído da Estação 2..., pelas 8h52m33s e percorreu cerca de 850 metros até à Estação 1....

17. Cerca de 600 metros antes da Estação 1... o motorista do referido comboio acionou o sinal sonoro do comboio e uns 10 metros depois aplicou o corte de tração do comboio.

18. Do lado oposto, na Via 2, encontra-se estacionado outro comboio, que seguiria no sentido .../....

19. CC chegou à referida Estação 1... e pretendia apanhar o comboio mencionado em 18.

20. Para esse efeito, a sinistrada desceu a escadaria mencionada em 9 que dava acesso à plataforma do cais 1 em passo apressado.

21. Ao chegar ao fundo dessa escadaria a mesma iniciou a travessia da passagem pedonal mencionada em 13, do cais 1 para o cais 2,

22. sem atender ao facto de o comboio MP..1 estar a chegar à Estação 1...,

23. e sem olhar para o lado esquerdo de onde esse veículo que circulava em V1.

24. Nessa altura foi colhida pela composição do Metro, que fazia o trajeto .../... e que chegava à Estação de Metro 1..., onde iria parar para saída e entrada de passageiros.

25. A composição do metro que embateu na sinistrada era conduzida por um maquinista que é funcionário da 2.ª ré

26. Atento o sentido de marcha de que provinha a composição do Metro, imediatamente antes do local do embate, o trajeto da linha do metro era precedido de uma curva à direita, que precede uma reta de cerca de, pelo menos, 20 metros até ao local do embate.

27. No dia e hora do acidente a via encontrava-se seca e as condições atmosféricas eram boas.

28. O maquinista acionou o sinal sonoro durante cerca de 0,60 segundos, ao mesmo tempo que fez uma frenagem de emergência durante cerca de 20 metros.

29. Seguidamente ainda acionou o sinal sonoro mais duas vezes, durante cerca de 0,60 segundos e de 4,90 segundos, tendo finalmente acionado o comando de frenagem invertida.

30. Quando o condutor do comboio efetuou a frenagem de emergência circulava a 36,22Km/h

31. A velocidade permitida no local é de 40Km/h.

32. Apesar das manobras mencionadas em 28 e 29 a sinistrada avançou para travessia da passagem pedonal da linha V1

33. Pelo que não foi possível evitar o embate entre o comboio e o corpo da mencionada CC.

34. O embate ocorreu entre a frente lateral direita da cabine do comboio e o corpo de CC, tendo a mesma sido projetada para a frente

35. A mesma acabou por ficar entalada entre o comboio e o lancil da plataforma do cais da Via 1.

36. O veículo do metro que embateu na sinistrada era um veículo duplo, tendo um peso total de cerca de 80 toneladas, sendo de cor amarela.

37. Se a sinistrada tivesse olhado para o lado de onde provinha o veículo que circulava em V1 teria visto o veículo a aproximar-se.

38. A sinistrada ocupou a faixa onde circulava o veículo de metro de forma repentina sem verificar se nessa faixa circulava algum veículo e quando o veículo já se encontrava a uma curta distância da mesma.

39. A falecida CC conhecia bem aquela estação, já que a utilizava habitualmente.

40. O sistema integrado de segurança do Sistema de Metro Ligeiro da Área Metropolitana do ... encontra-se, na data do sinistro, devidamente homologado pela entidade competente para tal nos termos da lei (à data, INTF – Instituto Nacional do Transporte Ferroviário), cumprindo com todas as normas de segurança legalmente aplicáveis.

41. A passagem pedonal mencionada em 13 apresentava uma diferenciação do pavimento

42. A linha de metro em causa entrou em funcionamento em 2005 e até à data deste sinistro nunca ocorreu na mesma qualquer outro sinistro.

43. À data do sinistro, não existia qualquer sinalização vertical, luminosa ou outra que avisasse os peões da aproximação do metro.

44. Também não existia qualquer barreira física, fixa ou móvel que impedisse a passagem dos peões aquando da aproximação das composições do metro.

45. Nem qualquer barreira fixa que obrigasse os peões a contornar a mesma antes de atingirem a plataforma de atravessamento das linhas.

46. Em resultado do embate a vítima ficou encarcerada entre a composição do metro e o lancil do passeio pedonal.

47. Em consequência das lesões sofridas em consequência do embate CC veio a falecer, tendo o óbito sido declarado pelas 10h21m

48. Em momento posterior ao acidente, foi colocado no local sinal vertical triangular com a legenda “prioridade ao metro”,

49. Bem como sinalética vertical com alerta de velocidade dirigido à composição de metro que desfaz a curva que antecede o local de paragem da Estação 1...

50. CC era uma mãe dedicada, dedicando afeto, amor e carinho ao seu filho.

51. Assim como dedicava ao seu companheiro ternura e amor.

52. Em consequência da sua morte o 1.º autor sofreu tristeza, consternação e pesar, ficando abalado.

53. O 2.º autor não compreende, por ora, o sucedido, mas pergunta ocasionalmente pela mãe.

54. O 1.º Autor sentiu tristeza, frustração e angústia por não conseguir minorar o sofrimento do filho com a perda da sua mãe.

55. CC exercia à data dos factos a profissão de operadora de call center, auferindo uma a retribuição base mensal de € 705,00, subsídio de refeição de € 6,41, num valor líquido mensal de € 759,00, subsídio de natal e de férias em igual valor à retribuição base.

56. Os seus rendimentos eram utilizados na satisfação das necessidades do seu agregado familiar, composto por ela e pelos autores.

57. O 1.º autor auferia em dezembro de 2022 o valor líquido de €693,80

58. A 1.ª ré celebrou, em 01.04.2018, um contrato de seguro de responsabilidade civil com a C... - Companhia de Seguros, S.A., com a apólice n.º ...64, renovável até ao termo da subconcessão, estando em vigor em 18/7/2022.

59. No processo de acidentes de trabalho que correu termos sob o n.º ... no ... do tribunal de trabalho de Matosinhos foi fixada ao aqui, 2.º autor, a pensão anual atualizável de 2.286,04 € em 17/2/2023, devida desde 19/07/2022, sendo o valor da pensão atualizada em 2024 de 2.626,75€.


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B.2 Na mesma sentença não se julgou provado que:

1. Em resultado do embate a vítima foi ainda arrastada cerca de 4 metros,

2. O óbito de CC ocorreu às 10h21m

3. Após o embate a sinistrada ficou a sofrer a pressão do peso da carruagem do metro.

4. A Sinistrada teve consciência do que lhe estava a acontecer, teve perceção da iminência da morte e, após o embate, ficou mergulhou numa áurea de sofrimento físico e de angústia.

5. A Sinistrada sentiu dores quando a frente do metro colidiu no seu corpo e, bem assim, quando o seu corpo veio a ser arrastado e esmagado contra o pavimento, aí ficando a aguardar em sofrimento indescritível a chegada da sua morte.

6. A Sinistrada deslocava-se com auriculares nos ouvidos.


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B.3- Análise dos fundamentos do recurso

Pretendem os AA./Apelantes, em primeiro lugar, a alteração da matéria de facto. Mais concretamente, pretendem que se modifique a redação das afirmações constantes dos pontos 10, 17 e 34, dos Factos Provados, e que se aditem duas novas afirmações a esse capítulo contendo factos que, a seu ver, são instrumentais e relevantes para a correta decisão da causa.

Já as Apeladas, por seu turno, defendem que esta pretensão não pode ser acolhida. Seja porque – como alega a Interveniente – os Apelantes não alegaram onde se iniciam, na gravação, os depoimentos em que os mesmos baseiam a respetiva discórdia, seja porque - como alegam as Rés – a prova produzida confirma a correção do decidido.

Vejamos, então, como solucionar este diferendo.

Como é sabido e resulta da lei, o impugnante da matéria de facto tem os seguintes ónus:

a) O de indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) O de indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo da gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) O de indicar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnada.

Para além disso, quando as provas tenham sido gravadas, tem ainda o ónus, sob pena de imediata rejeição do recurso, de indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância, sem prejuízo de pode proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (artigo 640º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC).

Quanto a este último ónus, portanto, o impugnante, para o cumprir, não está obrigado a realizar as duas tarefas; ou seja, de indicar, por um lado, as passagens da gravação em que funda a sua discordância e, por outro lado, de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Pode cumprir só a primeira, visto que esta última é, nitidamente, uma faculdade.

Por outro lado, como tem sido jurisprudência maioritária, tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade que devem nortear a interpretação destas exigências, se “os recorrentes indicaram, por referência a cada um dos depoimentos das testemunhas (em que baseiam o seu entendimento), o início e o termo deles por referência ao ficou exarado nas actas de audiência de julgamento e referiram a data em que os depoimentos foram realizados. Referenciaram ainda os trechos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, justificavam a alteração almejada. Ou seja, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se referem, os recorrentes forneceram à Relação os elementos relevantes e concretos que permitiriam ao tribunal a reapreciação da matéria de facto”[3].

Ora, foi justamente isso que os Apelantes fizeram no caso em apreço. Mais concretamente, indicaram as datas e passagens das gravações em que fundam a sua discordância e procederam à transcrição dos excertos que consideram mais relevantes para suportar os seus pontos de vista. Por conseguinte, estando cumpridos este e os demais ónus já aflorados, não há motivos para rejeitar a reapreciação da matéria de facto por eles impugnada.

Vejamos, agora, se lhes assiste razão no mérito da impugnação.

Começa por estar em causa o ponto 10 dos Factos Provados. Em relação a ele, a discórdia dos Apelantes cinge-se à expressão que aí consta no sentido de que o acesso, a partir da via pública, às plataformas da Estação de Metro 1... (...) é feito através de duas escadarias para cada uma das linhas ferroviárias e em exclusivo para cada linha, havendo, assim, um acesso para a Via 1, e outro para a Via 2.

No modo de ver dos Apelantes, esta exclusividade, além de não ser um facto, mas uma conclusão, é contrariada pelo que já consta do ponto 14 dos Factos Provados, no qual se refere que no fundo das mencionadas escadarias existe uma passagem pedonal, que cruza as linhas férreas e que une as duas plataformas. Não existe, assim, do seu ponto de vista, a referida exclusividade. O que, de resto, é atestado pelos depoimentos das testemunhas, DD, EE e FF, bem como pelas filmagens do local e dia do acidente, visionado na sessão de julgamento realizada no dia 29/10/2024.

Ora, sendo pacífico, porque está provado (ponto 14), que no fundo das ditas escadarias existe uma passagem pedonal que cruza as linhas férreas e que une as duas plataformas, é lógico concluir que, na ausência de qualquer proibição (que não foi sequer alegada), essa passagem inviabiliza a afirmação daquela exclusividade. Ou seja, em resumo, os peões, descendo por qualquer das escadarias têm acesso à plataforma situada do lado oposto. É isso, aliás, que resulta dos depoimentos das citadas testemunhas e que também pode ser visionado no filme indicado pelos Apelantes.

Por conseguinte, impõe-se a alteração da redação do referido ponto 10, que, doravante, passará a ser a seguinte:

“Os acessos da via pública às plataformas dessa estação fazem-se através de duas escadarias, havendo um acesso direto para a Via 1 (doravante V1), e outro acesso direto para a Via 2 (doravante V2)”.

Pretendem, depois, os Apelantes que se altere a redação do ponto 17 dos Factos Provados. Em vez de, como aí consta, se afirmar que “[c]erca de 600 metros antes da Estação 1... o motorista do referido comboio acionou o sinal sonoro do comboio e uns 10 metros depois aplicou o corte de tração do comboio”, defendem que se deve registar apenas que “[c]erca de 600 metros antes da Estação 1... o motorista do referido comboio aplicou o corte de tração do comboio”. Isto porque, no fundo, não há qualquer prova de que, àquela distância da Estação 1... (cerca de 600 metros), o motorista em causa tenha acionado o sinal sonoro da composição por si conduzida.

E, a nosso ver, os Apelantes têm razão.

Com efeito, lendo atentamente o relatório de análise aos registos do veículo interveniente neste acidente [que foi junto aos autos pela Ré, Viaporto (doc. 12 da contestação) e pela Interveniente (doc. 1 anexo ao relatório de peritagem técnica)], verificamos que nele não é assinalado aquele acionamento. O que se refere, diversamente, no que toca a este aspeto, é o seguinte:

“- Durante 0,60 segundos, numa extensão de 6 metros (início 19 metros antes da aplicação da frenagem de emergência);

- Durante o,60 segundos, numa extensão de 5 metros (início 2 metros antes da aplicação da frenagem de emergência);

- Durante 4,90 segundos, numa extensão de 13 metros (início 7 metros após a aplicação da frenagem de emergência)”.

Não há, assim, nenhuma referência ao acionamento do sinal sonoro a cerca de 600 metros antes da Estação 1.... Nem, designadamente, do testemunho do motorista do veículo, GG, isso resulta com alguma segurança.

Consequentemente, tendo em conta o que consta do aludido relatório, inclusive quanto à distância a que foi feito o corte de tração, altera-se também a redação do dito ponto de facto (17), a qual passará, doravante, a ser a seguinte:

“O motorista do referido comboio cortou a tração deste veículo 592 metros antes de aplicar a frenagem de emergência”.

Por fim, em relação aos factos julgados provados, pretendem os Apelantes que se altere a redação do ponto 34. Em vez de, como aí consta, se afirmar que “[o] embate ocorreu entre a frente lateral direita da cabine do comboio e o corpo de CC, tendo a mesma sido projetada para a frente”, pretendem que se julgue demonstrado que “[o] embate ocorreu entre a frente direita da cabine do comboio e o corpo de CC, tendo a mesma sido projetada para a frente”. Isto porque o uso da expressão “frente lateral” “faz crer que o embate se deu na lateral ou na esquina lateral da composição de metro, quando, a seu ver, não é isso que resulta nem das declarações do motorista do comboio, nem do vídeo junto aos autos.

Ora, não é esse o nosso ponto de vista. Pelo contrário, a nosso ver, a afirmação julgada provada reflete exatamente aquilo que resulta da prova produzida.

Efetivamente, começando por analisar as declarações do maquinista do comboio, verificamos que ele (em julgamento) não disse apenas que o embate se deu entre a parte da frente desse mesmo comboio e o corpo da vítima. Subsequentemente, quando instado novamente a esclarecer este aspeto, precisou que esse embate se deu no canto direito do comboio [embora, inicialmente, tivesse referido (por lapso que imediatamente corrigiu) esquerdo]. O que, nalguma medida, é corroborado pelas fotografias tiradas, na altura, no local e que se encontram anexas à contestação da Ré Viaporto (doc. 6) e ao relatório de peritagem técnica junto com a contestação da Interveniente, C.... Quanto a estas, referimo-nos, particularmente, às anexas sob os n.ºs 14, 15 e 16, pelas quais se vê que a parte do veículo coberta para não deixar visualizar os sinais do impacto no corpo da vítima, se situam na frente lateral direita da cabine do veículo. O que é harmonizável com a circunstância do corpo da vítima ter ficado debaixo do veículo entre o lancil lateral direito (atento o sentido de marcha do veículo) e o primeiro carril, como resulta da foto n.º 15 já referida e já está assente no ponto 35 dos Factos Provados.

Daí que, não havendo outra prova segura em sentido diverso [a filmagem junta aos autos, registada pelas câmaras de videovigilância, não permite esclarecer este aspeto], se considere que, quanto à afirmação em análise, não se verifica o erro de julgamento que os Apelantes lhe imputam.

Prosseguindo na nossa análise, verificamos que, de seguida, os Apelantes pretendem que se aditem duas novas afirmações à factualidade provada. Isto porque as têm como representativas de factos instrumentais, relevantes para a correta decisão da causa.

A primeira dessas afirmações é a seguinte: “a passagem pedonal referida em 14 dos factos provados era usada para o atravessamento da via pela maior parte dos utentes (ou grande número de utentes)”.

Alegam os Apelantes que “[o] aditamento de tal facto à matéria de facto provada, releva, porquanto demonstra que:

a) o atravessamento ao nível da linha era usado pela maioria dos utentes, ou pelo menos com grande frequência;

b) o que é tendente a gerar nos utentes um sentimento de habituação ao perigo, podendo facilitar comportamentos de precipitação ou descuido momentâneos com consequências potencialmente fatais – como foi o caso dos autos;

c) as Rés, tendo conhecimento da existência e utilização desse atravessamento por si criado, nada fizeram para impedir ou diminuir a utilização desse atravessamento que agora qualificam de perigoso para censurar a opção da vítima por o ter usado”.

Como acabamos de ver, os AA., com a afirmação em questão, não se propõem demonstrar outros factos essenciais oportunamente alegados, como é próprio dos factos instrumentais [“factos instrumentais são “aqueles que permitem a afirmação, por indução, de factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da exceção”[4]]. O que se propõem demonstrar é a alegada culpabilidade das Rés, por, no seu dizer, “tendo conhecimento da existência e utilização desse atravessamento por si criado, nada fizeram para impedir ou diminuir a utilização desse atravessamento que agora qualificam de perigoso para censurar a opção da vítima por o ter usado”.

Ora, essa culpabilidade não é um facto. É, antes, um juízo que carece de ser formado a partir de factos. Factos que, sendo integradores da causa de pedir ou exceções, são essenciais e devem ser oportunamente alegados pelas partes. Às partes, e só a elas – em respeito ao princípio do dispositivo –, “cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que baseiam as exceções invocadas” – artigo 5.º, n.º 1, do CPC. O juiz, nesse domínio, não tem qualquer iniciativa. E mesmo nos casos em que há presunções legais, os pressupostos de facto em que as mesmas assentam são essenciais, “impondo-se que sejam objeto de um juízo probatório específico, valendo então como factos essenciais e não apenas como instrumentais”[5]. Por conseguinte, por esta razão já haveria fundamento para não acolher a aludida pretensão de alteração da matéria de facto.

De qualquer modo, mesmo que assim não fosse, sempre essa pretensão deveria ser rejeitada, na medida em que se socorre de uma afirmação genérica, quando alude ao atravessamento da via “pela maior parte dos utentes (ou grande número de utentes)”, o que necessariamente envolve também um juízo de condensação de uma realidade que está em causa nestes autos e a partir da qual os Apelantes formulam o dito juízo de culpabilidade.

Consequentemente, julga-se improcedente esta pretensão.

E igual destino não pode deixar de ter o pedido dos Apelantes para que se julgue demonstrado que “não era comunicado de forma alguma aos utentes do metro qualquer limitação ao uso da passagem pedonal referida em 14 dos factos provados”.

Com efeito, uma vez mais, não estamos perante factos instrumentais. Ou seja, perante factos que “servem para a prova indiciária dos factos essenciais, porquanto através deles se poderá chegar, por via de presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes”[6]. De resto, os Apelantes também não indicam esses factos essenciais. Do que se trata, uma vez mais, é de fundar um juízo de culpabilidade numa perigosidade do atravessamento que se diz, agora, ser reconhecida pelas Rés, mas que, na verdade, a quem a referência da mesma é atribuída, é à testemunha ora indicada pelos AA., HH (Diretora do Gabinete do Ambiente, Qualidade e Segurança no A...). De modo que nunca se poderia proceder ao referido aditamento.


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Solucionadas estas questões atinentes à matéria de facto, vejamos, agora, se as Apeladas (Rés e Interveniente) devem ser condenadas na reparação dos danos decorrentes deste acidente e, na afirmativa, a que título e em que medida.

Na sentença recorrida respondeu-se negativamente a estas questões. No essencial, aí se considerou que, tendo sido a sinistrada a única culpada pelo evento que a vitimou, a responsabilidade das Apeladas está excluída; seja a título de culpa efetiva ou presumida, seja mesmo a título de risco. Isto porque “havendo, como há, culpa exclusiva da vítima, é impossível falar-se de concorrência de culpas. E também não há lugar à concorrência de culpa e de responsabilidade objetiva ou pelo risco, pela simples razão de que esta fica excluída nos termos do (…) art.º 505.º [do Código Civil], como tem sido o entendimento largamente maioritário da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”.

Aliás – continua a mesma sentença – “[a]inda que se admitisse a concorrência entre a responsabilidade pelo risco inerente à circulação do comboio e a imputação do acidente à vítima, sujeitando a quantificação da indemnização à ponderação prevista no (…) art.º 570.º [do Código Civil], aquela responsabilidade ficaria, neste caso, afastada por o acidente ser, como acima dissemos, exclusivamente devido à sinistrada.

Os riscos próprios da composição do metro não tiveram, neste caso, qualquer contribuição para a ocorrência do sinistro.

Assim sendo, não tem aqui aplicação o art.º 503.º, n.º 1, do Código Civil”.

Os Apelantes, no entanto, não se conformam com este entendimento. E, para além da impugnação da matéria de facto já analisada, sustentam, em síntese, que, sendo “dada a possibilidade (aos utentes) de poderem aceder diretamente à plataforma do metro que pretendem entrar, consoante o sentido de marcha do mesmo, não tendo que atravessar a via no local, mas dando também a possibilidade, pela existência da passagem de atravessamento pedonal cruzando a linha, não pode excluir a responsabilidade pelo risco, pois se alguém põe ao dispor dos utentes do metro duas possibilidades de atravessamento, uma mais segura e uma mais perigosa, não pode deixar de assumir a responsabilidade pela mais perigosa, só porque tem também a mais segura”. Isso apenas ocorreria se a via de atravessamento ao nível da linha estivesse vedada ou com sinalética de proibição de passagem. Contudo, tal não ocorria, à data do acidente. A zona onde ocorreu o embate “é precedida de uma curva separada por um reta de 20 metros”, “à data do sinistro não existia qualquer sinalização vertical, luminosa ou outra que avisasse os peões da aproximação do metro, não existia qualquer barreira física que obrigasse os peões a contornar a mesma antes de atingirem a plataforma de atravessamento das linhas, obrigando a abrandar o passo ou fazer atravessar em zona mais afastada da curva” e só após o sinistro “foi efetuado um “reforço da sinalética” como forma de mitigar o risco de ocorrerem situações futuras”. Logo, a sinalética pré-existente não era, por si só, suficiente para a “mitigação dos riscos próprios da atividade de circulação do metro”.

“Por outro lado, não se pode concordar com o juízo de que a configuração da curva e distância de 20 metros da mesma ao atravessamento pedonal reúne características de boa visibilidade e segurança adequadas ou suficientes, pois fazendo uma análise correta do relatório de análise dos registos do veículo ... (“caixa negra”) junta como doc. 12 pela Ré Via ..., ao apresentar-se na curva, este veículo duplo de 80 toneladas em vazio, mesmo que digam que respeitava a velocidade regulamentar, que seria de 40 km/h, essa velocidade, ou mesmo a de 36,5km/h a que circulava a composição, não é adequada à configuração do local, pois que, matematicamente, a 36km/h o metro demora 2 segundos a percorrer 20 metros, que é a distância da reta após a curva, até chegar à zona de atravessamento, enquanto um peão em passo acelerado caminha a 5 ou 6 km/h, o que se traduz em 1,39 a 1,67 metros por segundo”.

“Assim, desde o fim da escada à zona de embate, mesmo olhando desde logo, pouco tempo sobra para o peão se aperceber do metro, o que, numa situação de precipitação ou incúria momentânea, facilmente torna, como tornou, esse atravessamento fatal”.

Acresce que a extensão dos danos provocados é indissociável do risco inerente à circulação do metro. E “mesmo que se entenda que a conduta da vítima contribuiu para a ocorrência do atropelamento mortal, o que não se põe em causa, jamais esta é suficiente para afastar o elevado peso do risco inerente à circulação do metro, pois, (…), mesmo havendo comportamentos de precipitação ou distração momentânea da vítima que tenham contribuído para o sinistro, esta não afasta a responsabilidade pelo risco, não permitindo uma conclusão de que o contributo da vítima para o acidente possa afastar o risco inerente ao veículo pelas suas dimensões, peso, largura, velocidade, etc”.

“Competia pois ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias do caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo – metro composto de duas composições com mais de 80 toneladas a circular à superfície a 36,5 km/h, junto de uma estação com uma reta de apenas 20 metros a preceder uma curva - e a sua concreta relevância causal para o acidente e os danos; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, ativo ou omissivo, da própria vítima e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta da vítima, inserida na dinâmica do acidente”.

Este, a seu ver, o método a seguir, em consonância com uma interpretação atualista do artigo 505.º do Código Civil, conjugada com o direito comunitário, particularmente a Diretiva n.º 2005/14/CE de 11/05, daí decorrendo a procedência da sua pretensão indemnizatória.

Como veremos, no entanto, não é assim. Isto é, sem prejuízo de se concordar com a dita interpretação atualista do artigo 505.º, do Código Civil, a solução propugnada pelos Apelantes quanto à responsabilização das Apeladas pela reparação dos danos decorrentes deste acidente, não é de acolher. E não é de acolher porque, em síntese, o risco agravado inerente à circulação do metropolitano no local onde se cruza com a passagem de nível para peões em que se deu o sinistro não foi o fator decisivo para a ocorrência do mesmo. Foi antes e apenas, como decorre da factualidade provada e já veremos melhor de seguida, a culpa grave da vítima.

Mas, vamos por partes.

Em matéria de acidentes causados por veículos, dispõe o artigo 505.º, do Código Civil, o seguinte: “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.

De acordo com a interpretação tradicional e maioritária deste preceito, “[a] verificação de qualquer das circunstâncias apontadas quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano. Qualquer dessas causas exclui assim a responsabilidade objetiva do detentor do veículo, porque o dano deixa de ser um efeito adequado do risco do veículo” [7]. Nessa medida, ainda que haja concurso entre a culpa do lesado e os riscos de circulação do veículo, essa culpa, não a havendo também por parte do detentor do veículo, exclui sistematicamente a obrigação de reparação do dano por este último provocado.

Esta interpretação, todavia, se à data da elaboração do Código Civil já era contestada, veio a ser posteriormente mais questionada. A tal ponto que, por exemplo[8], Calvão da Silva[9], defendeu que aquele normativo tem este significado: “Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Equivale isto a admitir – continua o mesmo Autor – o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra de interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Afora o caso de o facto do lesado (como o facto de terceiro) ter sido a causa única do dano, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503.º não é afastada, admitindo-se que a indemnização seja totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.

Esta interpretação veio a ser acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido no dia 04/10/2007([10]), no qual, por maioria, se sustentou, em síntese, que o artigo “505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”[11].

De então para cá, esta tese obteve cada vez maior acolhimento na doutrina e jurisprudência, podendo constatar-se, como refere Lopes do Rego[12], “que se vem sedimentando uma evolução jurisprudencial que afirma – em circunstâncias particulares e exigentemente fundamentadas – a possibilidade de concurso entre a responsabilidade fundada objetivamente nos riscos de circulação do veículo e a eventual culpa ou imputação ao lesado, em algum grau ou medida, do facto danoso”. Isto também por influência (direta ou indireta) da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, na sequência dos reenvios prejudiciais que lhe foram dirigidos. A partir de então, como se resume no Ac. do STJ de 27/02/2024([13]), “veio a ser proferido o Ac STJ de de 05/6/2012, proc. nº 100/10.9YFLSB, acessível na base de dados da dgsi, tendo-se consolidado no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação do art. 505 do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efetivo do veículo (e respetiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa” (cf Acs. STJ de 14 /12/2017, no proc. nº 511/14.0T8GRD.D1.S1; de 11/1/2018 no proc. 5705/12.0TBMTS.P1.S1; de 17/10/2019 no proc. 15385/15.6T8LRS.L1.S1 e de 15/3/2022 no proc. 23399/19.0T8PRT.P1.S1, todos disponíveis em dgsi.pt).

Ainda de forma mais expressa o Ac. do STJ 1/6/2017 (no proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1, em dgsi.pt.) resumiu este entendimento como ainda hoje se encontra acolhido, referindo que “[o] regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos atualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, ativo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente””.

Depende, portanto, das circunstâncias do caso concreto, do comportamento do lesado e das características do veículo interveniente no acidente, não só quando considerado em termos estáticos mas também dinâmicos e dos riscos específicos que lhe estão associados. Como refere Maria da Graça Trigo[14], “o acolhimento da revisão da tese tradicional do não concurso implica, necessariamente, considerar que, sempre que o veículo se encontre em circulação, a respectiva força cinética faz com que seja causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos. Não pode afirmar-se que, se o veículo estava em circulação, o lesado causou os danos em exclusivo. Na verdade, apenas se poderá defender a inexistência de causalidade adequada por parte do veículo nas hipóteses de veículos estacionados ou simplesmente parados no trânsito (com ou sem condutor), nas quais a ausência de força cinética faça com que os veículos não constituam fonte de qualquer perigo específico”.

O mais que se pode considerar é a mitigação ou a completa exoneração da obrigação de indemnização, em função da culpa do lesado, como previsto no artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil.

E essa exoneração, de facto, pode e deve ocorrer em determinadas situações.

Se o lesado, por exemplo, age com culpa grave e exclusiva na produção do acidente, não se justifica, a nenhum título, ser compensado, ele ou os seus herdeiros, pelos danos decorrentes do sinistro. Como refere Lopes do Rego[15], “nestes casos, de ocorrência de comportamentos temerários e claramente injustificáveis, a gravidade do nexo de imputação do acidente e dos danos ao próprio lesado acaba por descaracterizar os riscos normais de circulação do veículo, enquanto elemento potencialmente concorrente para a eclosão de sinistros: nestas situações, de comportamentos temerários, nalguns casos quase suicidários do lesado, verifica-se que é a conduta censurável da vítima que vai, em última análise, despoletar um risco atípico e agravado de sinistralidade, que manifestamente se sobrepõe ao risco genérico de circulação de um qualquer veículo, com o escrupuloso cumprimento de todas as regras estradais pelo respectivo condutor”.

Ora, no caso em análise, já o avançámos, é justamente esta hipótese que se verifica (embora as regras não sejam as estradais, mas as que regem a circulação no domínio ferroviário).

Com efeito, a lesada, neste caso concreto, teve um comportamento não só perfeitamente inadequado às circunstâncias e obrigações jurídicas a que estava vinculada, como adotou uma conduta de total indiferença (inconsciente, estamos em crer, mas grosseiramente negligente) em relação ao risco que se lhe deparava. O que se deve ter por inaceitável, porque juridicamente injustificado.

Senão vejamos:

O acidente em causa ocorreu numa estação do metropolitano do .... Mais concretamente, na Estação 1....

Essa estação, como se apurou, é servida por duas escadarias que permitem aos respetivos utentes (peões) terem acesso a cada uma das plataformas adjacentes às vias férreas onde se processa o tráfego em cada um dos sentidos de trânsito; uma, no sentido .../... (V1); outra, no sentido ... (V2).

A ligar funcionalmente essas plataformas, no fundo das mencionadas escadarias, existe uma passagem pedonal que cruza as duas linhas férreas. Não se trata, porém, de uma passagem pedonal com as mesmas características das plataformas. Estas, como se provou, estão revestidas a microcubos de granito e com as extremidades (junto às linhas ferroviárias) em lajes contínuas de granito, mas com uma diferença cromática em relação aos referidos microcubos e a dita passagem pedonal, por sua vez, é revestida por betão e por molduras de metal, sendo o revestimento da mesma diferente, quer das plataformas, quer da restante via férrea.

E é no início desta passagem pedonal, do lado sul, que se vem a dar o aludido acidente.

A sinistrada, com efeito, dirigia-se de casa para o trabalho, no dia 18/07/2022, cerca das 8h53m, e, ao chegar à aludida estação, desceu, em passo apressado, a escadaria do mencionado lado e dirigiu-se à já indicada passagem pedonal, com o objetivo de apanhar o comboio que se encontrava estacionado no lado oposto e que se destinava ao ....

Não atendeu, no entanto, a que do seu lado, ou seja, do lado sul, já havia um outro comboio que circulava no sentido oposto (ao outro anteriormente referido) e que iria parar na mesma estação para a saída e entrada de passageiros. Não atendeu, nem olhou sequer para o lado esquerdo de onde provinha esse comboio, que já se encontrava a curta distância da mesma. E, de forma repentina, ocupou a faixa por onde o mesmo circulava. Isto, apesar do seu maquinista ter acionado o sinal sonoro durante cerca de 0,60 segundos, numa primeira vez, ter repetido esse sinal durante mais 0,60 segundos, e ainda, uma terceira vez, por 4,90 segundos, vendo-se, então, obrigado, perante a atitude da sinistrada, a fazer uma frenagem de emergência durante cerca de 20 metros.

Não obstante isso, no entanto, e embora no momento da dita frenagem o veículo em questão circulasse a 36,22km/hora, quando a velocidade permitida para o local era de 40Km/hora, o respetivo maquinista não conseguiu evitar o embate na sinistrada. Embate que se deu entre a frente lateral direita da cabine do comboio e o corpo da sinistrada, tendo a mesma sido projetada para a frente e vindo a ficar entalada entre o comboio e o lancil da plataforma do cais da Via 1, daí resultando a sua morte.

Ora, perante este circunstancialismo e tendo em conta que nos acessos de nível entre plataformas destinadas ao serviço exclusivo das estações ferroviárias (como era o caso), os peões não podem utilizá-los sem se certificarem, previamente, da inexistência de perigo (artigo 22.º, al. b), parte final, do Decreto-Lei n.º 276/2003, de 04/11) – o que tem subjacente a prioridade absoluta de que gozam os comboios nas passagens de nível (artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 568/99, de 23/12, “ex vi” artigo 20.º, n.º 1, al. a), do citado Decreto-Lei n.º 276/2003) -, logo se vê que a lesada, não tendo procedido desse modo e tendo, pelo contrário, ignorado todos os sinais sonoros que, previamente, lhe foram dirigidos pelo maquinista do comboio que a atropelou, agiu com culpa grave e exclusiva na ocorrência deste sinistro[16].

E não se diga, como alegam os AA., que não existindo, no local, qualquer sinalização vertical, luminosa ou outra que avisasse os peões da aproximação do metro, nenhuma barreira física, fixa ou móvel que impedisse a passagem dos peões aquando da aproximação das composições do metro, nem qualquer barreira fixa que obrigasse os peões a contornar a mesma antes de atingirem a plataforma de atravessamento das linhas, isto depois de uma curva sem visibilidade, não se pode excluir também, no mínimo, a responsabilidade pelo risco.

Na verdade, independentemente das considerações que se possam tecer sobre a idoneidade das aludidas medidas de segurança para a prevenção de sinistros (medidas cuja falta não impediu a oportuna homologação de todo o sistema integrado de segurança do Sistema de Metro Ligeiro da Área Metropolitana do ..., como se provou – ponto 40 dos Factos Provados – e que também não determinaram qualquer acidente desde que a linha foi inaugurada no ano de 2005 – ponto 42 dos Factos Provados), o certo é que também não é líquido que, se elas tivesse sido implementadas, este acidente não ocorreria.

A sinistrada, com efeito, não só iniciou a travessia da via de forma repentina, como, sobretudo, o fez sem olhar sequer para o seu lado esquerdo, de onde vinha o veículo que a atropelou. Situação que, em tese, poderia igualmente verificar-se se houvesse aquelas medidas de segurança.

E o mesmo se diga da aludida falta de visibilidade.

Na verdade, para além de ter sido julgado provado que “[s]e a sinistrada tivesse olhado para o lado de onde provinha o veículo que circulava em V1 teria visto o veículo a aproximar-se”, o certo é que não olhou. E, não tendo olhado, a alegada falta de visibilidade é, para a ocorrência deste acidente, absolutamente indiferente.

Daí, pois, que, em suma, se conclua que esse sinistro se ficou a dever, exclusivamente, a falta grave da sinistrada, que iniciou a travessia da via de forma temerária e sem adotar, ela própria, nenhuma medida de prudência e segurança, por mínima que fosse (como a tal estava legalmente obrigada), e sem respeitar os sinais sonoros de aviso que lhe foram dirigidos. Isto, sendo certo que, como já vimos, o comboio interveniente neste acidente seguia abaixo do limite máximo de velocidade permitida no local e mais nenhuma infração pode ser assacada ao seu maquinista.

Por conseguinte, a argumentação expressa neste recurso deve ser julgada improcedente e confirmada a sentença recorrida.


*


IV- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em julgar improcedente o presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.


*


- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pelos AA. - artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.



Porto, 8/4/2025.
João Diogo Rodrigues;
Maria Eiró
Artur Dionísio Oliveira.

___________________________
[1] Ac. STJ de 07/11/2019, Processo n.º 3113/17.6T8VCT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt, bem como toda a jurisprudência aí indicada.
[2] Ponto 2 do sumário do Ac. STJ de 24/09/2020, Processo n.º 4899/16.0T8PRT.P1.S1, consultável no mesmo endereço eletrónico.
No mesmo sentido, mais recentemente, Ac. STJ de 25/06/2024, Processo n.º 197/09.4TYVNG-BI.P1.S1, consultável no dito endereço.
[3] Parte do sumário do Ac. do STJ de 06/12/2016, Processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, págs.29.
[5] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3ª edição, Almedina, pág. 375.
[6] Paulo Pimenta, ob. cit., pág.372.
[7]João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª edição, Almedina, págs. 670.
[8] Outros houve: por exemplo, Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, 1997, págs. 266 a 295 e 795 a 797 e Sinde Monteiro, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 142.º, nº 3977, págs. 124 a 131.
[9] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 134.º, nºs 3924 e 3925, pág. 115.
[10] Processo n.º 07B1710, consultável em www.dgsi.pt.
[11] Ponto 5 do sumário.
[12] A Problemática da Concorrência da responsabilidade objetiva decorrente dos riscos de circulação do veículo, com a culpa do lesado, Revista Julgar, Ano 46, Almedina, pág. 48.
[13] Processo n.º 313/18.5T8GMR.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[14] Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação, Direito e Justiça, 2 (Especial), 467-497, https://doi.org/10.34632/direitoejustica.2015.9950.
[15] Ob. cit., pág. 52.
[16] Cfr. no mesmo sentido, num caso com algumas semelhanças, Ac. STJ de 29/09/2020, Processo n.º 1572/14.8TBVNG.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.