NULIDADES DA DECISÃO
SUBSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO
MATÉRIA DE FACTO INÚTIL
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE IMÓVEL
Sumário

I - Nas situações em que às arguidas nulidades da decisão quadra a regra da substituição do tribunal recorrido (e em que o tribunal de recurso deva conhecer do objecto da apelação), queda sem qualquer interesse e relevo a sua apreciação, pois que tal redundará num mero exercício de verificação académica do cumprimento das regras próprias da elaboração e estruturação da decisão, sem efectivo relevo e impacto na sorte da apelação.
II - Nas situações referidas em I deve ultrapassar-se a apreciação dos arguidos vícios (abstendo-se a Relação de os conhecer), em razão da sua irrelevância para a sorte da apelação.
III - A Relação deve abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito (considerando as soluções plausíveis da questão de direito) que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados e não provados.
IV - Beneficiando o autor de acção de reivindicação das presunções de titularidade do direito derivadas do registo e da posse, é irrelevante apreciar da impugnação da decisão de facto que incida sobre factualidade apta a demonstrar a aquisição originária do domínio por usucapião.
V - Para a atribuição de indemnização pela privação do uso de determinado bem, não bastando a simples prova da privação da res, não é também de exigir a demonstração efectiva do dano concreto, sendo suficiente que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante.
VI - Apurada a existência do dano, a insuficiência dos elementos para a sua quantificação, mesmo com recurso à equidade, justifica a prolação de condenação genérica ou ilíquida, ainda que tenha sido formulado pedido de condenação em quantia certa.

Texto Integral

Apelação nº 3160/22.6T8OAZ.P1


Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Lina Castro Baptista
Pinto dos Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto


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RELATÓRIO

Apelantes: AA e marido, BB (réus).

Apelados: CC, DD, EE e cônjuge, FF, GG, HH, II e cônjuge, JJ, KK e cônjuge, LL, MM, NN e cônjuge, OO, PP e cônjuge, QQ, RR e cônjuge, SS, TT e cônjuge, UU e VV e cônjuge, WW (autores).

Juízo local cível ... – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.


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Propuseram os autores a presente acção comum pedindo:

a- se declare serem proprietários, em comum e sem determinação de parte ou direito, de imóvel que identificam (cuja aquisição se mostra inscrita a seu favor nas tábuas do registo) e,

ainda, a condenação dos réus,

b- a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o referido imóvel,

c- a restituírem-lhes de imediato o dito prédio, no estado em que o receberam, livre de pessoas e desocupado de tudo de sua pertença que lá se encontra,

d- a pagarem-lhes a quantia de 2.000,00€ pelo dano da privação do uso do mencionado imóvel sofrido até à data da propositura da acção, acrescida da quantia de 100,00€ por cada mês desde essa data até à data da efectiva restituição do imóvel,

e- a pagarem-lhes, ainda, a quantia de 50,00€ por cada dia de atraso na restituição do imóvel, a partir da data da citação.

Contestada a acção, foram observados os legais trâmites e realizado o julgamento foi proferida sentença (que viria a ser rectificada, deferindo requerimento dos autores) que, julgando totalmente provada a acção:

a) reconheceu e declarou o direito de propriedade dos autores, em comum e sem determinação de parte ou direito, sobre o prédio identificado (prédio inscrito na matriz predial rústica sob artigo ...95º da freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...58, mediante a Ap. ...34),

b) condenou os réus a reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre o identificado imóvel,

c) condenou os réus a restituírem de imediato aos autores o dito prédio, no estado em que o receberam, livre de pessoas e desocupado de tudo o que ali se encontre de sua (réus) pertença,

d) condenou os réus a pagar aos autores da quantia de 2.000,00€, a título de indemnização pelo dano da privação do uso do mencionado imóvel sofrido desde 15.01.2021 até à data de propositura da acção, acrescida da quantia de €100,00 por cada mês, a contabilizar desde a citação e até ao trânsito em julgado da sentença,

e) condenou os réus no pagamento da quantia de 50,00€ por cada dia de atraso na restituição do referido prédio, a contabilizar a partir do trânsito em julgado da senteça e até efectiva entrega.

Irresignados com tal sentença, apelam os réus, pretendendo a sua revogação e substituição por decisão que julgue improcedente a acção e os absolva do pedido, terminando as alegações pela formulação das seguintes conclusões:

(…)

Contra-alegam os autores apelados em defesa da integral manutenção da sentença apelada e pela improcedência da apelação.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a sentença recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), as questões suscitadas reconduzem-se a apreciar:

- da nulidade da sentença apelada – condenação além do pedido (condenação ultra petitum - art. 615º, nº 1, e) do CPC), falta de fundamentação (art. 615º, nº 1, b) do CPC), contraditoriedade (art. 615º do CPC, nº 1, c) do CPC) e omissão de pronúncia (art. 615º do CPC, nº 1, c) do CPC),

- da impugnação da decisão sobre a matéria de facto,

- da demonstração da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel (e do dever de o restituir) e da verificação dos necessários pressupostos para se poder afirmar o surgimento da obrigação de indemnizar (dano da privação do uso) e, em caso afirmativo, do respectivo montante.


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

Na sentença recorrida consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os seguintes factos:

1. Correu termos no juízo local cível ..., da Comarca de Aveiro, sob o nº 2489/18.2T8OAZ, acção declarativa de simples apreciação negativa, sob a forma de processo comum, intentada pelos aqui 1ª, 2ª (e na altura seu marido XX, entretanto falecido em ../../2020, de quem são herdeiros a viúva aqui 2ª autora e os seus dois filhos, aqui 3º autor marido e 4º autora), 5ª, 6ºs e 7ºs autores, contra os aqui réus, ali tendo sido intervenientes principais os 8º, 9ºs, 10ºs, 11ºs, 12ºs e 13ºs autores, associados daqueles primeiros.

2. Naquela acção foi proferida sentença que decidiu: ‘A) Declara-se impugnado o facto justificado na escritura de justificação notarial lavrada em 05 de Dezembro de 2016 no Cartório Notarial da Exa. Sr.ª Dr.ª YY, em ..., a fls. 148 a 149 v.º, do livro de notas para escrituras diversas n.º ...06 e, em consequência, ineficaz essa mesma escritura; para efeitos de registo predial. B) Decreta-se o cancelamento de registos eventualmente feitos ou que venham a fazer-se com base nessa escritura. C) Condena-se os réus, em partes iguais, no pagamento das custas processuais.

3. Na referida sentença foram julgados como provados os seguintes factos:

1) Em 05 de Dezembro de 2016, no Cartório Notarial da Exa. Sr.ª Dr.ª YY, em ..., os réus outorgaram uma escritura pública de justificação notarial, lavrada a fls. 148 e 149 v.º, do livro de notas para escrituras diversas n.º ...06, onde ambos declararam o seguinte: “Que, com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores do seguinte: Prédio rústico, composto de cultura, com a área de quinhentos e dez metros quadrados, situado em ..., freguesia ..., concelho ..., a confronta do norte e sul com ZZ, do nascente com AAA e do poente com BBB, não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na respectiva matriz, em nome do antepossuidor CCC, sob o artigo ...95, com o valor patrimonial para efeitos de IMT de €273,66, que também lhe atribuem. Que, o prédio acima descrito, veio à posse deles primeiros outorgantes, por doação verbal, no ano de mil novecentos e noventa e cinco, feita pelo referido antepossuidor, CCC, viúvo, já falecido, que foi no lugar de ..., da dita freguesia .... Que, porém, desde esse referido ano de mil novecentos e noventa e cinco, eles primeiros outorgantes, têm possuído sempre o dito prédio, em nome próprio, praticando sobre eles todos os actos materiais e de aproveitamento agrícola, ou seja, amanhando-o e cultivando-o através da realização das suas lavras, sementeiras e colheita dos produtos semeados, aproveitando assim deles todas as suas correspondentes utilidades e pagando do mesmo sempre todas as contribuições e impostos, tudo isso sempre realizado à vista de toda a gente, de forma continuada e ininterrupta desde o seu início, sem qualquer oposição ou obstáculo de quem quer que seja e sempre no convencimento de o fazerem em coisa própria, tendo, assim, exercido sobre o referido prédio, sem qualquer interrupta desde o seu início, durante mais de vinte anos e com o conhecimento da generalidade das pessoas vizinhas, uma posse pacífica, contínua e pública, pelo que adquiriram o citado prédio, por usucapião, não dispondo, todavia, dado o modo de aquisição, de título que, pelos meios normais, lhes permita fazer a prova do seu direito de propriedade perfeita.’

2) A escritura teve ainda como intervenientes três pessoas, o DDD, a EEE e a FFF, os quais declararam: “… que por serem inteiramente verdadeiras, confirmam as declarações antecedentes dos primeiros outorgantes”.

3) CCC faleceu no dia ../../1989.

4) Os factos relatados na dita escritura não correspondem à verdade, como os réus e as testemunhas, que com eles outorgaram essa escritura pública, bem sabiam e sabem.

5) O extracto do conteúdo dessa escritura pública foi publicado no jornal “A ...”, de 06 de Dezembro de 2016.

6) Mediante a Ap. ...14, de 2017/02/20, o prédio rústico referido em 1) encontra-se descrito a favor dos réus na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...58.

7) Em ../../2005 faleceu GGG, no estado de casada com HHH, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens.

8) Em ../../2006, faleceu HHH, no estado de viúvo da dita GGG.

9) GGG e HHH faleceram sem deixarem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, sucedendo-lhes, como únicos e universais herdeiros, os autores e os intervenientes principais.

10) Dos acervos hereditários, não partilhados, dos de cujus, faz parte um prédio rústico, composto por terreno de cultura, com a área aproximada de 510m2, situado em ..., ..., ..., a confrontar do norte e sul com ZZ, do nascente com AAA e do poente com BBB, o qual se encontrava até 05/12/2016 inscrito na matriz predial rústica com o artigo ...95.º da dita freguesia ... e não descrito na Conservatória do Registo Predial.

11) Tal prédio veio à posse do casal constituído por GGG e HHH por transmissão verbal, realizada a estes por CCC, em data anterior a 1950.

12) Há pelo menos 68 anos, os pais dos autores passaram a tratar o prédio como coisa sua, cultivando o seu terreno, nomeadamente a batatas, milho e erva, cuidando do mesmo, directamente ou permitindo que outros o fizessem por mero favor e tolerância.

13) O que tudo sempre sucedeu sem oposição ou violência de quem quer que fosse, de forma contínua, com exclusão de outrem, à vista de toda a gente, incluindo os réus e de todas as pessoas residentes nas proximidades do prédio.

14) Ignorando, quer no acto da respectiva aquisição quer posteriormente, os vícios de que porventura pudesse sofrer o título de aquisição e que lesavam direitos de outrem.

15) Após a morte de HHH e de GGG, o terreno esteve a monte, por inércia dos autores, algures até 2012.

16) Já no decurso do ano de 2012, uma tia dos autores, de nome III, mãe da ora ré, pediu à autora CC para que esta, por si e em nome dos irmãos, lhe permitisse “fazer” o terreno, porque estava a monte e a sua casa ficava perto.

17) Em alternativa, solicitava aos autores que limpassem o terreno em causa.

18) A CC, por si e em representação dos irmãos, acedeu a tal pedido e permitiu que a dita III, gratuitamente, passasse a cultivar o terreno em causa.

19) Ficando verbalmente combinado com a CC que, logo que os autores precisassem do terreno, a III o deveria deixar, o que esta de imediato aceitou.

4. Também na aludida sentença foram julgados como não provados os seguintes factos:

20) Após a morte de HHH e de GGG, o terreno foi tratado por uma vizinha, de nome JJJ, sendo que a autorização para o efeito vinha já dos de cujus.

21) O referido em 15) ocorreu em 2011.

22) Desde há 20 anos os réus tratam o prédio descrito em 1) como coisa sua, semeando-o, arando-o, regando-o, colhendo os frutos ali produzidos e fruindo de todas as suas utilidades.

23) O que sempre aconteceu na melhor das harmonias, à vista de toda a gente, nomeadamente do lugar de ..., sem oposição de quem quer que fosse, incluindo os autores.

24) Sem violência, na convicção de serem seus donos, com exclusão de outrem, sem interrupção no tempo e ignorando, quer ao adquiri-lo quer posteriormente, os vícios que porventura enfermavam os títulos da sua aquisição e que lesavam direitos de outrem.

5. Da referida sentença foi interposto recurso para o Venerando Tribunal da Relação do Porto que decidiu, a 13.01.2020, transitado em julgado a 17.02.2020, julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

6. Em 18.11.2021 a aqui 1ª autora CC, na qualidade de cabeça-de-casal, por si e em representação dos restantes herdeiros, apresentou junto da Autoridade Tributária, relação adicional de bens no âmbito de tributação de Imposto de Selo por óbito de HHH e de GGG, para acréscimo da verba nº 4, correspondente ao prédio acima referido - prédio rústico, composto por terreno de cultura, com a área aproximada de 510m2, situado em ..., ..., ..., a confrontar do norte e sul com ZZ, do nascente com AAA e do poente com BBB, o qual se encontrava até 05/12/2016 inscrito na matriz predial rústica com o artigo ...95.º da dita freguesia ... e não descrito na Conservatória do Registo Predial.

7. Nessa sequência, solicitou a alteração do titular inscrito na matriz predial desse prédio, assim tendo sido inscrito como titular do mesmo GGG, cabeça-de-casal da herança de (…), com o NIF ...00 e, bem assim, procedeu à descrição predial desse mesmo prédio junto da Conservatória do Registo Predial, sob o nº ...58/20170220 e mediante a Ap. ...34 de 2021/11/25 foi averbada a menção de aquisição a favor dos aqui autores, em comum e sem determinação de parte ou direito, tendo por causa de aquisição a sucessão hereditária.

Mais se provou que:

8. Em ../../2005 faleceu GGG, no estado de casada com HHH, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens.

9. Em ../../2006, faleceu HHH, no estado de viúvo da dita GGG.

10. GGG e HHH faleceram sem deixarem testamento ou qualquer disposição de última vontade, sucedendo-lhes, como únicos e universais herdeiros os aqui autores.

11. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 1950, CCC transmitiu verbalmente o prédio referido em 6 e 7 supra a GGG e HHH.

12. Esse prédio era considerado pelos autores como bem integrante do acervo patrimonial da herança aberta por óbito de GGG e HHH.

13. Há mais de 60 anos que os pais dos autores passaram a tratar o prédio como coisa sua, cultivando o seu terreno, nomeadamente a batatas, milho e erva, cuidando do mesmo, directamente ou permitindo que outros o fizessem por mero favor ou tolerância.

14. O que tudo sempre sucedeu sem oposição ou violência de quem quer que fosse, de forma contínua, com exclusão de outrem, à vista de toda a gente, incluindo os réus e de todas as pessoas residentes nas proximidades do prédio.

15. Após a morte de HHH e de GGG, o terreno esteve a monte, por inércia dos autores, algures até 2012.

16. Já no decurso do ano de 2012, uma tia dos autores, de nome III, mãe da ora ré, pediu à autora CC para que esta, por si e em representação dos irmãos, lhe permitisse “fazer” o terreno, porque estava a monte e a sua casa ficava perto, ao que, CC, por si e em representação dos irmãos, acedeu a tal pedido e permitiu que a dita III, gratuitamente, passasse a cultivar o terreno em causa, ficando verbalmente combinado com a CC que, logo que os autores precisassem do terreno, a III o deveria deixar, o que esta de imediato aceitou.

17. Após a prolação da sentença referida anteriormente, pretendendo os autores utilizar e aproveitar esse seu prédio, que continuava ocupado pelos réus, a 1ª autora, na qualidade de cabeça de casal e em representação dos demais autores, remeteu a estes carta registada com aviso de recepção, datada de 7/12/2021 e recebida a 13.12.2021, interpelando-os e conferindo-lhes o prazo de até 15/01/2022 para que o deixassem livre de pessoas e bens (incluindo eventuais plantações) a fim de que dele pudessem os autores tomar posse efectiva, sob pena de não fazendo, requererem a entrega efectiva da posse do mesmo, incluindo o pedido de compensação por cada dia de privação do uso e ocupação ilegítima.


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Fundamentação de direito

A. Da nulidade da sentença.

A.1. Da falta de fundamentação, contraditoriedade e omissão de pronúncia.

Imputam os apelantes à sentença apelada (conclusões 14 e 15) o vício da nulidade, arguindo a sua falta de fundamentação (de direito e de facto – na vertente da motivação da decisão) – art. 615º, nº 1, b) do CPC –, padecer de ‘contradições, ambiguidades e obscuridades’ – art. 615º, nº 1, c) do CPC – e também a omissão de pronúncia – art. 615º, nº 1, d) do CPC.

Manifesta a irrelevância de apreciação dos imputados vícios.

Importando apreciar se se verifica ou não erro de julgamento da sentença apelada que importe a sua revogação e substituição por decisão que acolha a pretensão dos apelantes (revogação da decisão apelada e consequente improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido), tal apreciação sempre se imporá a este tribunal, verifiquem-se ou não as apontadas faltas de fundamentação, contradições (ambiguidades e/ou obscuridades) e omissão de pronúncia, pois a verificarem-se teriam tais patologias de ser supridas por este tribunal de recurso, ao abrigo da regra da substituição ao tribunal recorrido, prescrita no art. 665º do CPC – nas situações em que se imponha a regra da substituição ao tribunal recorrido, prescrita no art. 665º, nº 1 do CPC (em que não se verifique a necessidade de recolher elementos não disponíveis nos autos, que imponham a remessa dos autos à 1ª instância), deverá o tribunal de recurso conhecer do objecto da apelação[1], o que retira qualquer interesse e relevo à apreciação destes arguidos vícios, pois que tal redundará num mero exercício de verificação académica do cumprimento das regras próprias da elaboração e estruturação da decisão, sem efectivo relevo e impacto na sorte da apelação (a revogação ou alteração da decisão não depende da constatação de tais vícios nem eles determinam o sentido da decisão a proferir).

Porque quanto a estes imputados vícios (falta de fundamentação, omissão de pronúncia e contradição, obscuridade e ambiguidade) vale inteiramente a solução legal prescrita art. 665º, nº 1 do CPC, ultrapassa-se, em razão da sua irrelevância para a sorte da apelação (para apreciar da revogação ou alteração da decisão apelada), a sua apreciação (abstém-se a Relação de os conhecer, por irrelevantes à decisão) – a existência de tais patologias não tem qualquer reflexo ou influência na decisão da causa (e da apelação), não resultando do reconhecimento da sua verificação qualquer consequência para o mérito da causa.

A.2. Da condenação além do pedido (condenação ultra petitum - art. 615º, nº 1, e) do CPC).

Invocam os apelantes a nulidade da sentença por condenação além do pedido – argumentam não poderem ser condenados a pagar o valor mensal de 100,00€ desde 15/01/2021 até à data da propositura da acção (a acrescer da quantia de 100€ desde a citação até ao trânsito da decisão), por tal ir além do pedido formulado (pedido de condenação em quantia certa – quantia mensal a pagar desde a data em que foram notificados para a entrega do imóvel –, tendo o tribunal condenado os réus em quantia superior ao pedido formulado a título de capital).

Patologia cuja apreciação se impõe, pois não vale quanto à mesma a irrelevância que se deixou assinalada quanto às demais nulidades arguidas – neste caso, a verificar-se, a condenação ilegal terá por efeito (e independentemente do que possa vir a considerar-se quanto ao erro de julgamento da causa) limitar a condenação ao pedido.

A arguição mostra-se, todavia, manifestamente improcedente.

A emissão de injunção que vai além da pretensão formulada, traduz violação dos limites da sentença – é nula a sentença que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância (e não observado os limites impostos pelo art. 609º, nº 1 do CPC), condene ou absolva em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 615º, nº 1, e) do CPC)[2].

Aos limites da actividade de conhecimento traçados pelo arts. 608º, nº 2 e 615º, nº 1, d) do CP (o ‘conhecimento de questões que a sentença não podia julgar, por não terem sido postas em causa’[3], por nenhuma das partes as ter submetido à apreciação do juiz[4], traduz violação dos limites traçados pelo objecto do processo), acrescem os limites do poder de condenação, prescritos no art. 609º, nº 1 do CPC – o juiz não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites do pedido formulado pelas partes.[5]

A condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, infringindo a da regra segundo a qual ‘ne eat iudex ulra vel extra petita partium’, constitui condenação ilegal[6] - o juiz não pode, na sentença, extravasar a limitação decorrente dos pedidos das partes: a decisão não pode pronunciar-se sobre mais do que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida, pois o objecto da sentença tem de coincidir com o objecto do processo, não podendo o juiz ficar aquém nem ir além do que foi pedido[7].

Limites do poder de condenação (art. 609º, nº 1 do CPC) que não foram extravasados (antes se mostram respeitados) pela sentença apelada, considerando a integral coincidência entre o pedido formulado e a condenação proferida – a condenação na quantia de dois mil euros (2.000,00€) corresponde ao valor (quantia certa) pedida para reparar o dano sofrido até à propositura da acção e a condenação no valor mensal de 100,00€ desde a data da propositura da acção até efectiva restituição do imóvel corresponde também ao valor pedido para ressarcimento dos danos que se verificassem no período temporal assim balizado.

Não consubstancia nulidade da sentença a desconformidade da decisão (no caso, do montante encontrado na decisão condenatória) ao direito, ponderando a matéria apurada – tal desconformidade, a verificar-se constituirá erro de julgamento[8], a demandar correcção, com a consequente alteração/modificação da decisão [a nulidade da sentença não se confunde com o erro de julgamento (error in judicando), de facto ou de direito, inerentes ao mérito da decisão, seja mercê de deficiente percepção da realidade fáctica (error facti), seja em razão de erro na aplicação do direito (error juris), que conduzem a decisão desajustada à realidade ontológica ou normativa[9]].

Não padece, pois, a decisão apelada da arguida nulidade por condenação ilegal (condenação ultra petitum) – a sentença respeita os limites do poder de condenação traçados pelo pedido formulado.

B. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Impugnam os apelantes a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto sustentando deverem julgar-se como não provados os factos julgados provados na decisão recorrida sob os pontos 11, 12, 13 e 14.

Patente a irrelevância de tal impugnada matéria para a decisão da causa, impondo-se à Relação abster-se de apreciar e decidir da impugnação.

A apreciação da modificabilidade da decisão de facto é actividade reservada a matéria relevante à solução do caso, devendo a Relação abster-se de conhecer da impugnação cujo objecto incida sobre factualidade que não interfira de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados[10].

O propósito precípuo da impugnação da decisão de facto é o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido quanto ao mérito da causa, o que faz circunscrever a sua justificação às situações em que a matéria impugnada possa ter interferência na solução do caso, ou seja, aos casos em que a solução do pleito em favor do recorrente esteja dependente da modificação que o mesmo pretende ver introduzida nos factos a considerar na decisão a proferir.

Sendo a matéria impugnada pelo recorrente indiferente e alheia à sorte da acção, não interferindo de modo algum na solução do caso, de acordo com o direito (considerando as soluções plausíveis da questão de direito[11]), não deverá a Relação conhecer da impugnação (da pretendida alteração), sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril – se os factos impugnados não forem relevantes, considerando as soluções plausíveis de direito da causa, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância, como sucederá nas situações em que a substituição pretendida pelo impugnante deixe intocada matéria que, só por si, imponha a solução contra a qual se insurge[12].

Tal é, precisamente, o que ocorre no caso dos autos.

Considerando o objecto da acção – uma acção de reivindicação, pois que se pretende o reconhecimento do direito de propriedade (a pronuntiatio) e a restituição de imóvel (a condemnatio), qualificação não prejudicada ou impedida pelo pedido indemnizatório também formulado [nada impede que ao abrigo das regras do direito processual atinentes à cumulação de pedidos (art. 555º do CPC) ‘o autor da reivindicação junte aos dois pedidos referidos no art. 1311º um pedido de indemnização (v. g., dos danos causados na coisa pelo demandado ou do valor de uso que este dela fez)’[13]] –, é manifesto que a retirada dos pontos 11, 12, 13 e 14 dos factos provados, que respeitam, exclusiva e directamente, à demonstração do direito de propriedade (trata-se de factualidade apta a demonstrar a aquisição originária do domínio por parte dos autores apelados, ou seja, factualidade demonstrativa da aquisição do direito por usucapião) não tem qualquer impacto ou interferência na decisão da causa, ponderando que os autores gozam (atendendo à demais matéria, não impugnada) de duas presunções de titularidade do direito de propriedade (que aos réus apelantes caberia ilidir – art. 350º do CC), quais sejam a presunção de propriedade derivada do registo (art. 7º do CRP) e a presunção de propriedade resultante da posse (art. 1268º do CC).

Inquestionável caber ao autor da acção de reivindicação a demonstração dos factos que permitam concluir ser ele o titular do domínio sobre a coisa reivindicada (trata-se de factos constitutivos do invocado direito - 342º, nº 1 do CC).

Todavia, deve reconhecer-se que a demonstração em juízo da aquisição do direito de propriedade não tem que ser feita através da prova de factos que demonstrem a aquisição originária do domínio[14] (ou seja, do estabelecimento duma cadeia ininterrupta de aquisições até ao adquirente originário da coisa), podendo tal demonstração conseguir-se demonstrando os factos integradores das presunções do registo e/ou da posse.

Presunções de titularidade do direito de que gozam os apelados:

- a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel a seu favor foi levada às tábuas do registo (veja-se o facto provado número 7), beneficiando por isso da presunção de que o direito existe e lhes pertence (são os titulares inscritos), nos termos do art. 7º do CRP,

- dos factos 15 a 17, conclui-se terem os autores apelados demonstrado a sua qualidade de possuidores, outorgando, relativamente ao imóvel, contrato de comodato, comodato cuja cessação promoveram, actuando, pois, como verdadeiros donos do imóvel (exercendo poderes de facto sobre ele, deles se inferindo tal intenção de domínio), beneficiando por isso da presunção da titularidade do direito legalmente conferida ao possuidor (art. 1268º, nº 1 do CC).

De acordo com a noção legal expressa no art. 1251º do CC, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

A posse é, no direito português, o ‘exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius: do direito real correspondente a esse exercício)’, envolvendo, ‘portanto, um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico-jurídico. Ao primeiro é o que se chama corpus e ao segundo animus’, sendo tais elementos interdependentes, existindo entre eles uma relação biunívoca[15]. ‘Corpus é o exercício dos poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) em (de) certa actuação de facto’, inferência ou correspondência acentuada no art. 1251º do CC[16].

A intenção de domínio (melhor e mais correcto: o exercício de poderes de facto sobre a res, com intenção de exercer o direito real) não tem de ser explícita nem de ser declarada (a intenção de domínio ‘não tem de explicitar-se e muito menos por palavras’), importando que ‘se infira do próprio modo de actuação ou de utilização’, devendo na ‘dúvida quanto aos termos em que se processa, ao direito real em termos do qual se possui – sabendo que é em termos de um direito real, em termos de domínio pleno ou de uma derivação desse domínio –’ entender-se ‘que é em termos de propriedade, já que esta envolve no seu licere toda a «lógica da coisa» e, por isso, qualquer tipo de manifestação empírica.’[17]

Inferência do animus retirada da ‘análise dos actos praticados pelo possuidor e que sejam reveladores de uma vontade, que não é a psicológica ou emanada da perscrutação da intenção do agente, mas, sim, a que resulta da exteriorização daquele comportamento e do que dele se pode retirar quanto ao direito que se quer afirmar’[18] – é no controlo material das utilidades gozadas (no caso, o ceder a outrem o gozo e fruição da coisa através de contrato de comodato e promovendo a sua cessação) que ‘se deve descobrir a posse, não podendo ser rejeitadas a presença e a relevância do respectivo «animus» quando o «corpus» que o traduz seja revelador, por parte de quem o exerce, da vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente ao direito real’[19].

Dos factos 15 a 17 resulta que os autores apelados exercem sobre a coisa poderes de facto (permitiram o seu uso, fruição e gozo a terceiros, com eles outorgando para tanto contrato de comodato), exercício do qual se infere a intenção de domínio, pois que tal utilização dada à coisa revela vontade de retirar dela (ou permitir que outrem, ainda que a título gratuito, os retire) os benefícios correspondentes ao domínio (que sempre se terá de considerar, como acima dito, correspondente ao direito real pleno) – aquisição paulatina da posse (aquisição da posse pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais de que se infere a intenção do domínio - aquisição paulatina da posse, prevista na alínea a) do art. 1263º do CC, onde se compreendem actos referentes a poderes de direito e que traduzem igualmente poderes de facto, que demonstrem a inserção da coisa na esfera de disponibilidade fáctica do sujeito).

Beneficiando os autores apelados das presunções de titularidade do direito resultantes da posse e do registo, torna-se irrelevante apurar se também demonstraram (ou não) a aquisição originária do domínio - donde resulta evidente não relevar à decisão do mérito da causa a modificação que os apelantes pretendem introduzir no acerco factual a considerar (modificação circunscrita a matéria respeitante à demonstração da aquisição originária do domínio).

Atento o exposto (porque a matéria impugnada é irrelevante à decisão da causa), abstém-se a Relação de apreciar da impugnação da decisão de facto.

C. Do mérito da causa

C.1. Do mérito da causa – da demonstração da titularidade do direito de propriedade e da restituição do imóvel.

Do que vem de dizer-se resulta dever reconhecer-se aos autores apelados o direito de propriedade sobre o imóvel objecto do litígio – como se disse, beneficiam (considerando a matéria provada – e não impugnada pelos apelantes) das presunções da titularidade do direito resultantes do registo (facto provado número 7 e art. 7º do CRP) e da posse (factos provados 15 a 17 e art. 1268º do CC), que os réus não ilidiram.

De corroborar, pois, a procedência da pronuntiatio (o reconhecimento do direito de propriedade) e da condemnatio (a restituição de imóvel) – restituição que é consequência do reconhecimento do direito, atendendo a que os réus não demonstraram ocupar o imóvel com base em qualquer direito (mormente direito pessoal de gozo) que pudessem validamente opor aos autores (art. 1311º, nº 2 do CC), pois que quando foi acordado o comodato foi convencionada a restituição logo que pelos autores tal fosse solicitado[20] [provado o direito de propriedade, um direito erga omnes, que se impõe a todos os outros, exclusivo (jus excludendi omnes allios), que dá ao proprietário o poder de exigir que terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, a restituição só pode ser recusada provando o demandado direito que legitime a recusa da restituição (qualquer relação, obrigacional ou real, que lhe confira a posse ou detenção da coisa – v. g., o usufruto, a locação ou situação que lhe faculte direito de retenção[21])].

C.2 Do mérito da causa – da verificação dos necessários pressupostos para se poder afirmar o surgimento da obrigação de indemnizar (dano da privação do uso) e, em caso afirmativo, do respectivo montante.

A existência da obrigação de indemnizar pressupõe a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (art. 483º e ss. do CC).

Os réus ocupam imóvel propriedade dos autores – e nisto se consubstancia o facto (o facto humano voluntário) –, não tendo demonstrado para tal qualquer título válido (e aqui reside a ilicitude – os réus violam direito absoluto dos autores), o que fazem, se não dolosamente, pelo menos com negligência (os réus estão obrigados a saber que não podem ocupar o imóvel que é dos autores – foram por eles extrajudicialmente interpelados para lho restituírem), interessando apreciar mais detalhadamente, atentos os termos da apelação (ponderando os argumentos esgrimidos pelos apelantes), da existência do dano (e sua ligação ao facto por nexo de causalidade adequada), ou seja, apurar e apreciar da verificação do dano que resultou e resulta do facto do imóvel lhes não ter sido restituído findo o comodato (e na data em que solicitaram a sua entrega).

Regra geral da obrigação de indemnização é a de que o obrigado deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º do CC), devendo tal reconstituição, em princípio, ser feita mediante restauração natural.

A restauração natural mostra-se, todavia, frequentemente, insuficiente para reparar integralmente os danos sofridos pelo lesado, sejam danos emergentes, sejam lucros cessantes (art. 564º, nº 1 do CC) – no período em que estiver na esfera de detenção do obrigado à restituição, o proprietário ficará privado de usar, fruir e gozar a coisa de sua propriedade, havendo por isso que indemnizar este dano (fixando a indemnização em dinheiro), de acordo com a teoria da diferença (art. 566º, nº e 2 do CC).

A privação do uso (dano da privação do uso) traduz o prejuízo resultante da impossibilidade temporária de usar um bem que integra o património do lesado; traduz, só por si, um dano autónomo e patrimonial suspcetível de avaliação, para lá, por isso, das situações em que a privação do uso gera verdadeira diferença patrimonial[22] (apurada com recuso à teoria da diferença estabelecida no art. 562º, nº 2 do CC).

Configuração do dano da privação do uso que sofre divergências doutrinais e jurisprudenciais quanto aos contornos que deve revestir em vista da sua ressarcibilidade, sendo três as correntes a propósito surgidas[23].

Constitui tendência actual o entendimento jurisprudencial do STJ de que para a atribuição de indemnização pela privação do uso de determinado bem, não bastando a simples prova da privação da res, não é também de exigir a demonstração efectiva do dano concreto, sendo suficiente que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante[24] - doutra maneira: a indemnização do dano da privação do uso pressupõe a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afectação da possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário[25].

Entendimento que merece o nosso acolhimento, por dar apropriada e justa tutela aos direitos de uso, gozo e fruição do proprietário sem representar qualquer indevido empobrecimento do lesante, traduzindo o reconhecimento do dever de reposição das utilidades fruídas e gozadas que, com toda a probabilidade e verosimilhança, o proprietário vê frustradas.

No caso dos autos resulta demonstrado (veja-se o facto 17) que os autores solicitaram aos réus a restituição do rústico porque pretendiam passar a utilizá-lo e aproveitá-lo – o que significa que pretendiam passar a retirar, em seu proveito, as utilidades proporcionadas pelo uso da terra, donde se conclui que a indisponibilidade temporária (causada pela falta de restituição – pela ocupação sem título, levada a cabo pelos réus) afectou (e afecta, até à efectiva entrega) a possibilidade de tal concreta utilização.

Demonstrado, pois, o dano e sua ligação ao facto por nexo de causalidade adequada.

Logrando os autores demonstrar o dano, na modalidade de lucro cessante (deixaram de auferir, com toda a probabilidade e em razão do facto gerador da obrigação de indemnizar, benefícios e proveitos que seriam proporcionados pelo uso e fruição do imóvel – art. 564º, nº 1 do CC), não lograram, todavia, provar factos que permitam apurar o seu exacto montante (para calcular o montante do dano, de acordo com a teoria da diferença) – não se provou o rendimento líquido (rendimento retirado do cultivo, deduzidas as despesas – fosse para venda dos produtos a terceiros, fosse para consumo próprio, com a inerente poupança advinda da desnecessidade de adquirir produtos como os colhidos) que a utilização do imóvel poderia proporcionar (em termos de razoabilidade, verosimilhança e normalidade) – nem tão pouco qualquer matéria que permite fundar um ponderado e equilibrado juízo equitativo (art. 563º, nº 3 do CC).

Deve reconhecer-se, pois, neste segmento, razão aos réus apelantes – os autores apelados não lograram provar o exacto montante do dano, sequer matéria que permita fundar qualquer juízo equitativo para o seu cálculo, donde não pode corroborar-se a decisão recorrida na parte em que condenou os réus apelantes a pagar a indemnização de dois mil euros pelo dano sofrido até à propositura da acção, acrescida da quantia de cem euros por cada mês, desde a citação e até ao trânsito da decisão.

Tal constatação não significa, porém, a integral procedência da apelação quanto a esta parte do recurso, pois que se impõe e justifica proferir, a propósito do dano cuja existência se tem por demonstrada, condenação genérica (no que se vier liquidar – art. 609º, nº 2 do CPC), pois que podem vir a ser apurados elementos que permitam calcular o seu montante – ainda que os autores tenham formulado pedido de condenação em quantia certa, e tendo de reconhecer-se aos réus apelantes razão quando sustentam não terem os autores apelados logrado provar os factos necessários para calcular o montante do dano, porque está apurada a existência do dano, a insuficiência dos elementos para a sua quantificação, mesmo com recurso à equidade, justifica a prolação de condenação genérica ou ilíquida[26] (a condenação ilíquida justifica-se nos casos em que é formulado pedido genérico mas não estão provados os factos constitutivos da liquidação da obrigação[27]).

Assim, deverá proceder, ainda que parcialmente, a apelação, proferindo-se condenação ilíquida (no que se vier a liquidar – ainda que sem poder ultrapassar os limites da condenação proferida na sentença apelada), quer quanto ao montante do dano sofrido desde a data em que deveriam os réus apelantes ter restituído o imóvel (15/01/2022 – veja-se o facto provado 17) até à propositura da acção e ainda quanto ao valor mensal de tal dano, desde a citação e até ao trânsito da decisão (faz-se notar que apenas no segmento que se deixa referido a sentença foi impugnada, não já no segmento em que recusou a indemnização no período que mediou entre a data da propositura e da citação e/ou também quando limitou temporalmente a indemnização à data do trânsito da decisão e não já à data da restituição da coisa).

Por fim, também em breve nota, cumpre referir não estar incluído no poder cognitivo deste tribunal (as alegações de recurso – mormente as conclusões – são a isso completamente alheias) apreciar da justeza da condenação na indemnização diária pelo atraso na restituição do imóvel (alínea e) do dispositivo da sentença apelada) – tal condenação (cujo fundamento se não vislumbra – o art. 829º-A do CPC respeita a prestações de facto infungíveis, sendo que a condenação proferida é em prestação de entrega de coisa certa) não vem autonomamente impugnada.

D. Síntese conclusiva

Do exposto resulta a parcial procedência da apelação (mantendo-se a sentença apelada, salvo quanto à condenação da alínea d) do dispositivo, que deve substituir-se por condenação ilíquida nos termos referidos), podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO


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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, mantendo-a em tudo o mais, em alterar a decisão apelada quanto à alínea d) do dispositivo e em condenar os réus apelantes a pagar aos autores apelados no que se vier liquidar (sem ultrapassar os limites da condenação proferida na sentença apelada) quanto ao dano pela privação do uso do imóvel desde a data de 15/01/2022 até à propositura da acção e desde a citação e até ao trânsito da decisão.

Quanto à proporção de dois mil euros para o valor da acção, as custas são da responsabilidade de autores apelados e réus apelantes, provisoriamente e em partes iguais, ficando o seu rateio definitivo para a decisão que vier a ser proferida na liquidação do dano da privação do uso; na proporção restante, as custas são da inteira responsabilidade dos réus apelantes.


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Porto, 8/04/2025

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)

João Ramos Lopes

Pinto dos Santos

Lina Baptista

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[1] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, pp. 736/737.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, pp. 735 e 737.
[3] A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, revista e actualizada, p. 691.
[4] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, reimpressão V, p. 143.
[5] Alberto dos Reis, Código (…), Vol. V, pp. 67/68 (itálicos no original).
[6] A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual (…), p. 691 (itálicos no original).
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), Volume 2º, pp. 714 e 715 (negrito no original).
[8] Erro que ocorre quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que impõe solução jurídica diferente - Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 738.
[9] V. g., o acórdão do STJ de 7/03/2023 (Ataíde das Neves), no sítio www.dgsi.
[10] Assim, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime (Decreto Lei nº 303/07, de 24/08) – 2ª edição revista e actualizada, p. 298.
[11] As soluções aventadas na doutrina e/ou na jurisprudência, ou que, em todo o caso, o juiz tenha como dignas de ser consideradas (como admissíveis a uma discussão séria) – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 188, nota 1 –, isto é, as soluções que a doutrina e a jurisprudência adoptem para a questão (designadamente nos casos em que em torno dela se tenham formado duas ou mais correntes) e também aquelas que sejam compreensivelmente defensáveis, considerando a lei e o direito aplicáveis – Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual (…), pp. 417 e 418 –, os (todos os) ‘possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção’, as ‘possíveis soluções de direito da causa’, as soluções jurídicas (entendimentos e posições) propostas pela doutrina e/ou jurisprudência para resolver a questão suscitada no litígio – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 311 –, as vias de solução possível do litígio, ponderando as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão levantadas pela pretensão deduzida em juízo e excepções invocadas – Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2001, p. 381.
[12] Acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt. No mesmo sentido, v. g., os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Baptista), no sítio www.dgsi.pt.
[13] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), p. 113.
[14] Antunes Varela, in RLJ, Ano 120, p. 220 (anotação a acórdão do STJ de 16/08/1983).
[15] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas [coordenação de Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha], Coimbra Editora, 2012, p. 268.
[16] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 267.
[17] Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (…), p. 268.

[18] Acórdão do STJ de 15/12/2022 (Tibério Nunes da Silva), no sítio www.dgsi.pt.

[19] Acórdão do STJ de 15/02/2018 (Alexandre Reis), no sítio www.dgsi.pt.
[20] Veja-se o facto provado número 17 – um comodato por tempo indeterminado, sem termo expresso ou tácito, podendo a restituição da coisa ser exigida a todo o tempo, sendo o comodatário obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida [Júlio Vieira Gomes, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial (coordenação de António Agostinho Guedes e Júlio Vieira Gomes), Universidade Católica Editora, 2023, p. 590, nota 4 ao artigo 1137º do CC].
[21] P. de Lima e A. Varela, Código (…), p. 116.
[22] Acórdão do STJ de 17/11/2021 (Barateiro Martins), no sítio www.dgsi.pt.
[23] Expondo-as, com referências doutrinais e jurisprudenciais, o acórdão do STJ de 28/01/2021 (Rosa Tching), no sítio www.dgsi.pt. Também o acórdão do STJ de 16/12/2021 (Rijo Ferreira), no sítio www.dgsi.pt, elenca tais posições (como indicações jurisprudenciais).
[24] Assim, p. ex., os citados o acórdão do STJ de 28/01/2021 (Rosa Tching) e de 16/12/2021 (Rijo Ferreira).
[25] Citado acórdão do STJ de 28/01/2021, estribando-se em Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. I, 2008, pp. 594-596.
[26] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 729.
[27] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), Volume 2º, p. 716.