Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
UNIÃO DE FACTO
AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário
Sem prejuízo de se reconhecer que o julgamento de verificação de uma situação de união de facto, em ordem à aquisição da nacionalidade por um dos conviventes, tem uma natureza similar às matérias que o legislador, na Lei da Organização do Sistema Judiciário, designadamente na alínea g), do nº 1, do art.º 122º, decidiu atribuir à jurisdição de família e menores, o que é claro é que a regra do nº 3 do art. 3º da Lei da Nacionalidade constitui uma regra especial, cuja aplicação deve preceder qualquer das regras gerais da Lei da Organização do Sistema Judiciário. E, em face desta, tal competência cabe a um juízo cível.
Texto Integral
Proc. nº 4046/24.5T8AVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de ...
Juízo de Família e Menores de ... - ...
REL. N.º 947
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Raquel Lima
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria Eiró
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
1 – RELATÓRIO
Junto do Juízo de Família e Menores do Tribunal da Comarca de ..., AA e BB vieram pedir o reconhecimento da sua situação de vida em união de facto, em acção sob a forma de processo ordinário, em ordem à aquisição da nacionalidade portuguesa para a autora BB, nos termos e para efeitos previstos no art. 3.º/3 da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro e no art. 14.º/2 e 4 do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro.
Em despacho liminar, o tribunal a quo julgou verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta, em razão da matéria, e absolveu o réu Estado Português da instância, por considerar que tal competência está atribuída aos juízos cíveis.
Fê-lo nos termos que de imediato se transcrevem: “Prevê o art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade que o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível. O argumento invocado pelos autores para o Tribunal de Família ser o competente, é porque a ação em causa se refere ao estado civil das pessoas, o abrigo do artigo 122º n.º 1, al. g), da LOSJ. Só que o artigo 3º, nº3 da Lei da Nacionalidade que é uma norma especial, que de forma expressa define que são os tribunais cíveis os competentes para estas ações, introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04, cuja redação se manteve inalterada, não obstante as sucessivas alterações da Lei da Nacionalidade. Sobre esta questão explana o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 196/23.9T8MTS.P1, de 25/01/2024 que: “ É o juízo local cível – e não o juízo de família e menores - o tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir das acções de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa, a que se referem o artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro.” Como refere o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 226/23.8T8LSB.L1-2, de 04/04/2024, “É ao Juízo local cível (e não ao Juízo de Família e Menores), por ser um tribunal de competência especializada em matéria cível, que compete conhecer da ação declarativa cível, intentada contra o Estado Português, para reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa (pelo autor litisconsorte de nacionalidade estrangeira), nos termos do art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (conjugado com o art.º 130.º da LOSJ).” No mesmo sentido explana o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo nº 2042/22.6T8CLD.C1, de 24/10/2023, que:“I – O legislador, ao atribuir aos tribunais cíveis, no art 3º/3 da Lei da Nacionalidade, competência para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, quis, em função da dignidade jus-fundamental da matéria em causa, consagrar um regime especial de competência nessa matéria, utilizando para o efeito uma norma especial. Assim, porque a norma especial prevalece sobre a geral, não é possível atribuir a competência material em causa aos tribunais de família e menores em função do actual art 122º/1 al g) da LOSJ”. Concordando-se com esta posição, e sendo a norma do artigo 3º, nº3, da Lei da Nacionalidade especial, tem de se concluir que não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral. Existe assim uma situação de incompetência absoluta em razão da matéria nos termos do artigo 96º da C.P.C., uma vez que o Tribunal competente para conhecer desta ação, é o tribunal cível. A incompetência absoluta está a ser conhecida oficiosamente (cfr. artigos 97º,nº 1 e 578º do C.P.C.) e é uma excepção dilatória, que implica a absolvição da instância –artigos 576º, nº2 e 577º alínea a) do C.P.C.”
Desta decisão, vêm os autores interpor o presente recurso, que terminam formulando as seguintes conclusões:
“A. A douta sentença recorrida fez inadequada interpretação e aplicação do disposto no artº. 3º. nº. 3 da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei Nº. 37/8 e o que é fundamento do presente recurso.
B. Entende o Tribunal a quo que o argumento invocado pelos autores para o Tribunal de Família ser o competente, resulta de a ação em causa se referir ao estado civil das pessoas, o abrigo do artigo 122º n.º 1, al. g), da LOSJ.
C. Só que, no entender do Tribunal a quo, o artigo 3º, nº 3 da Lei da Nacionalidade é uma norma especial, que de forma expressa define que são os tribunais cíveis os competentes para estas ações, introduzida pela Lei Orgânica nº 2/2006, de 17-04, cuja redação se manteve inalterada, não obstante as sucessivas alterações da Lei da Nacionalidade.
D. Dali resultando que, sendo a norma do artigo 3º, n º 3, da Lei da Nacionalidade especial, tem de se concluir que não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral.
E. Pelo que, se verifica uma situação de incompetência absoluta em razão da matéria, que deve conduzir à absolvição do Réu (no caso vertente o Estado Português) da instância, pois que o Tribunal competente para conhecer desta ação, é o tribunal cível.
F. Sucede que é o Tribunal de Família e Menores de ... o materialmente competente para preparar e julgar a ação de reconhecimento de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa. Com efeito,
G. o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, conjugado com o artigo 14.º, n.ºs. 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, não pode ser interpretado como constituindo uma norma especial que derroga a lei geral (o artigo 122.º, n.º1, alínea g LSOJ), tendo assim sido violado.
H. A alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, atualmente em vigor, refere que: “compete aos juízos de família e menores preparar e julgar outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.”
I. É cristalino que o legislador, ao dizer que o reconhecimento da união de facto cabe ao tribunal cível, quis apenas afastar estas ações do Tribunal Constitucional, do Tribunal Administrativo e Fiscal e do Tribunal de Contas, face ao disposto no artigo 29º da mesma lei, e não dos tribunais de família.
J. A Lei da Organização do Sistema Judiciário, Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, foi criada posteriormente à Lei da Nacionalidade.
K. O legislador não pretendeu criar uma atribuição diferente, uma vez que naquela época vigorava ainda a aplicação das regras gerais da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ – Lei n.º 3/99 de 13 de janeiro.
L. A Lei da Nacionalidade não delimitou a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada ação, sendo esse o motivo pelo qual no n.º 3 do artigo 3.º, a Lei aceitou, se conformou e se adequou ao que a LOFTJ regulava, não constituindo a escolha dos Tribunais Cíveis uma opção autónoma, mas apenas um sancionar da realidade normativa existente.
M. Os Juízos de Família e Menores são pois os materialmente competentes para preparar e julgar as ações de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição de nacionalidade portuguesa, assim preenchendo a previsão da alínea g) do n.º1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ.
N. Termos em que decidindo como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artºs 112º, nº 3 e 168º, nº 5 da CRP, o artº 3º, nº 3 da Lei nº 3/81, de 3 de outubro, na redação da Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de abril, e o artº 122º, nº 1 da alínea g) da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto.
Nestes termos e no mais de Direito, que V. Exas doutamente suprirão, deve a referida sentença ser revogada e substituída por outra que reconheça a competência material do Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de ..., para os termos da presente ação, com todas as devidas e legais consequências.
Assim se fará, como sempre, inteira JUSTIÇA”
*
O MºPº veio oferecer resposta ao recurso, onde concordou com as razões dos apelantes, concluindo igualmente pela competência do juízo de família e menores para a tramitação e decisão da situação jurídica sub judice.
*
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
*
*
2- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é circunscrito pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da decisão de questões que sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
Cumpre, neste caso, decidir se uma acção destinada ao reconhecimento de uma união de facto em ordem à aquisição da nacionalidade por um dos conviventes deve ser interposta e decidida num juízo de família e menores ou num um juízo cível.
Tal decisão há-de construir-se na consideração de dois factores com efeitos divergentes:
- Por um lado, a natureza da relação pessoal e sociológica que constitui o objecto da decisão, de cariz inequivocamente similar ao de uma relação familiar e que assim é tida pelo próprio legislador para diferentes efeitos, a qual poderia convocar a aplicação do art. 122º/1/g) da Lei de Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto – que prevê a competência dos juízos de família e menores, nestas matérias.
- Por outro lado, a qualidade de norma especial inerente à regra do art. 3.º nº3 da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, que prescreve: “ O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
A questão assim identificada vem sendo debatida na jurisprudência, mas, sem prejuízo de algumas soluções divergentes, vem obtendo uma resposta largamente maioritária no sentido da afirmação da competência dos juízos cíveis, designadamente neste TRP. Vejam-se alguns dos acórdãos proferidos a esse respeito:
Ac. do TRP, proc. nº 34/22.4T8PRD.P1, Relator RODRIGUES PIRES, 22 Março 2022: I - Face à atribuição de competência que consta do art. 3º, nº 3 da Lei da Nacionalidade, os juízos de família e menores não são os competentes para julgar as ações destinadas ao reconhecimento judicial da situação de união de facto com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa. II - Essa competência cabe aos juízos cíveis.
Ac. do TRP, proc. nº 14992/22.5T8PRT.P1, ANA PAULA AMORIM, 22 Maio 2023: I - O art. 122º/1/g) da Lei de Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto - não constitui a norma que releva, em sede de aferição da competência material, para a propositura de ação com vista à obtenção do reconhecimento judicial de situação de união de facto, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por cidadão estrangeiro, por se aplicar a norma especial do art. 3º/3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 03 de outubro, com as alterações decorrentes da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, nº 2/2018, de 5 de julho, e 2/2020, de 10 de novembro). II - O legislador, no âmbito da Lei de Organização do Sistema Judiciário, enquanto Lei geral, não manifestou a sua intenção revogatória de uma forma inequívoca (artº 7º, nº 3 do Código Civil).
Ac. do TRL, proc. nº 10313/22.5T8LSB.L1-6, ANTÓNIO SANTOS, 27 Abril 2023: – O nº 3, do artº 3º, da LEI DA NACIONALIDADE consubstancia – em sede de atribuição de competência material para a propositura de especifica acção – para todos os efeitos, uma lei especial. Em face do referido […] a LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (maxime a alínea g),do nº 1, do art. 122º ) não é aquela que releva em sede de aferição da competência material para a propositura de acção com vista à obtenção do reconhecimento judicial de situação de união de facto – para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por cidadão estrangeiro; O referido[…] justifica-se também porque o legislador, no âmbito da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO, enquanto Lei geral, não manifestou a sua intenção revogatória de uma forma inequívoca (artº 7º, nº 3., do CC ).
Ac. do TRL, proc. nº 19806/22.3T8LSB.L1-6, JOÃO MANUEL P. CORDEIRO BRASÃO, 18 Abril 2024: “Deverá entender-se que o nº 3, do art.º 3º, da LEI DA NACIONALIDADE, em sede de atribuição de competência material para a propositura de específica acção com vista à obtenção do reconhecimento judicial de situação de união de facto, consubstancia para todos os efeitos, uma lei especial; A LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (maxime a alínea g), do nº 1, do art.º 122º) não é aquela que releva em sede de aferição da competência material para a propositura de acção, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por cidadão estrangeiro.”
Ac. do STJ, proc. nº 8894/22.2T8VNG.P1.S1, NUNO PINTO OLIVEIRA, 8/2/2024: Os Juízes Cíveis são competentes para apreciar e julgar um pedido de reconhecimento judicial da uma situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa” e, correlativamente, “[os juízos] de família e menores não são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa”.
Tal como se referiu supra, também não se desconhece alguma jurisprudência de sinal contrário. É o caso do Ac. do STJ de 16-11-2023, no proc. nº 546/22.0T8VLG.P1.S1, MARIA CLARA SOTTOMAYOR, e do ac. deste TRP, de 13/11/2023, no proc. nº 8894/22.2T8VNG.P1, JOAQUIM MOURA.
Ponderadas as vertentes do problema e as razões evidenciadas em cada uma das soluções acima descritas, entendemos dever acolher as que concluem que a questão tem de se resolver em atenção à natureza especial da regra constante do nº 3 do art. 3º da Lei da Nacionalidade, tal como decidido nos acórdãos citados inicialmente.
Com efeito, sem prejuízo de se reconhecer que a matéria a apreciar tem uma natureza similar às matérias que o legislador, na Lei da Organização do Sistema Judiciário, designadamente na alínea g), do nº 1, do art.º 122º, decidiu atribuir à jurisdição de família e menores, o que é claro é que a regra do nº 3 do art. 3º da Lei da Nacionalidade constitui uma regra especial, cuja aplicação deve preceder qualquer das regras gerais da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
E tal precedência deve afirmar-se tanto mais quanto se atente em que a solução fixada no citado nº 3 do art. 3º da Lei da Nacionalidade, ao referir que a acção de reconhecimento dessa situação [ união de facto] deve ser interposta num tribunal cível tem um sentido absolutamente inequívoco, aplicável sem qualquer dificuldade, dispensando qualquer operação de interpretação para se determinar o respectivo dispositivo.
A isto acresce, como é referido em alguma da jurisprudência citada, que o legislador, ao aprovar a Lei da Organização do Sistema Judiciário, enquanto lei geral e ulterior à Lei da Nacionalidade, não manifestou por qualquer forma, designadamente de forma inequívoca, a sua intenção de revogar aquela sua disposição anterior, como impõe o artº 7º, nº 3., do CC.
Entendemos, em conclusão, inexistir fundamento para afastar a regra do nº 3 do art. 3º da Lei da Nacionalidade, por via de uma interpretação legislativa que sempre seria abrogante, em resultado do que se afirma que a competência para a tramitação da presente acção se mostra atribuída a um juízo cível, ao que é inerente a incompetência material do tribunal recorrido.
Resta, assim, afirmar o não provimento do recurso, na confirmação da decisão recorrida.
*
Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC)
…………………………………
…………………………………
…………………………………
*
3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao presente recurso de apelação, com o que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelos apelante.
Reg. e not.
Porto, 8 de Abril de 2025
Rui Moreira
Raquel Correia Lima
Maria Eiró