RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
JUSTA CAUSA
ALTERAÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
TRANSFERÊNCIA DO LOCAL DE TRABALHO
PREJUÍZO SÉRIO
Sumário

I - O empregador pode alterar unilateralmente o horário de trabalho, excepto se as partes acordarem especificamente sobre um determinado horário, se o horário de trabalho constituiu um elemento essencial do contrato celebrado, em modos tais que o trabalhador o não teria celebrado não fosse aquele horário específico, ou quando o instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável proíba que o horário seja alterado sem o acordo do trabalhador.
II - O facto de as partes terem acordado, no contrato de trabalho, que a empregadora podia alterar o horário de trabalho da Autora desde que essa alteração fosse necessária à prossecução da actividade daquela, esse acordo não tem a virtualidade de afastar o disposto no artigo 217º nº 2 do CT, que é uma norma imperativa que estabelece requisitos para essa alteração, mormente a consulta do próprio trabalhador.
III - A omissão de consulta do trabalhador traduz-se na violação de uma formalidade ad substantiam, que visa salvaguardar de forma efectiva o interesse do trabalhador tutelado pela norma, e cuja preterição afecta a validade do acto de alteração do horário de trabalho.
IV – Em obediência ao princípio constitucional da segurança no emprego, o legislador ordinário consagrou a garantia da inamovibilidade do trabalhador, vedando, como regra, à entidade patronal a transferência do seu local e trabalho.
V - É nula a cláusula aposta no contrato de trabalho, nos termos da qual a trabalhadora “assume, desde já e expressamente, o compromisso de se deslocar ou aceitar ser transferida, quando tal mudança se considere necessária ao exercício da actividade comercial e empresarial” da Ré, “ou ao desempenho das funções que lhe são adstritas, nos termos do artigo 193º do Código do Trabalho”, pois, apesar de, quer o artigo 129º nº1 f), quer o artigo 194º nº3, ambos do CT, se reportarem ao acordo das partes que legitima a transferência do local de trabalho, esse acordo não é uma cláusula em branco, e não pode significar uma renúncia antecipada, ex ante e genérica da protecção jurídica dada pelo princípio da inamovibilidade do local de trabalho.
VI - E assim, tal cláusula não desonera o empregador do cumprimento ao disposto nos artigos 193º, 194º e 196º do CT.
VII - O “prejuízo sério” a que alude a alínea b) do nº1 do artigo 194º do CT (que prevê uma das excepções ao principio da inamovibilidade do local de trabalho) afere-se da analise dos concretos factos da concreta situação pessoal e familiar do trabalhador, verificando-se se a transferência de local de trabalho afecta, e em que medida, a estabilidade da vida pessoal e familiar do mesmo, em grau superior ao dos simples transtornos ou incómodos.
VIII - Ocorre justa causa para a resolução do contrato de trabalho pela trabalhadora quando a empregadora procede à alteração do seu horário de trabalho (duas vezes), sem observar a obrigação de consulta da trabalhadora (artigo 217º nº2 do CT), e transfere o seu local de trabalho, sem observar a obrigação de concretizar o interesse da empresa que justifica tal medida. Em ambos os casos as medidas causam prejuízo sério à trabalhadora, por a impedirem de exercer a sua outra actividade profissional. Estes factos tornam inexigível a manutenção da relação laboral (artigo 394º do CT).

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
AA instaurou a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma de processo comum, contra Cintramédica II, Serviços de Saúde, Lda.., pedindo que seja:
- declarada a licitude da resolução, com justa causa, e com efeitos imediatos, do contrato de trabalho da Autora, efectuada por esta através da sua comunicação datada e entregue à Ré no dia 15.03.2023 (data da cessação do contrato de trabalho);
- seja a Ré condenada a pagar-lhe entre 3.722,70€ e 11.168,12€, a título de indemnização pela resolução do seu contrato de trabalho, quantia acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação da Ré, e vincendos, calculados à taxa legal, e até integral pagamento;
- seja a Ré condenada a pagar-lhe 577,20€, a título de formação profissional não prestada;
- seja a Ré condenada a pagar-lhe 835€, a título de férias não gozadas vencidas em 1.1.2023, quantia acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal, desde o dia 15.03.2023 e até efectivo e integral pagamento;
- seja a Ré condenada a pagar-lhe 835€, a título de subsídio de férias vencido em 1.1.2023, quantia acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal, desde 15.03.2023 e até efectivo e integral pagamento;
- seja a Ré condenada pagar-lhe 173,95€, a título de proporcional do subsídio de férias referente ao tempo de serviço prestado no ano da cessação, quantia acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal, desde 15.03.2023 e até efectivo e integral pagamento;
- seja a Ré condenada a pagar-lhe 173,95€, a título de proporcional de férias referente ao tempo de serviço prestado no ano da cessação, quantia acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal, desde 15.03.2023 e até efectivo e integral pagamento.
Alega, para tanto, em síntese, que: foi admitida pela Ré em 01.05.2014, exercendo por fim as funções de assistente de facturação; auferia a retribuição mensal de 835€, acrescida de 7,50€ diários a título de subsídio de refeição; durante os primeiros oito anos, o horário de trabalho imposto pela Ré foi das 12h00 às 20h00 horas, de segunda a sexta-feira, em regime de jornada contínua; em meados de 2022, também por decisão da Ré, passou a desempenhar funções das 12h00 às 21h00, com uma hora de intervalo para refeições; sempre trabalhou nas instalações da Ré da Portela de Sintra e Ouressa; no dia 27.12.2022, solicitou verbalmente à Ré (na pessoa da senhora Dr.ª BB, sua gerente), e, posteriormente por escrito, autorização para passar a iniciar as suas funções pelas 13h00, pois a empresa Atlanticare, onde também presta serviços, determinara que passaria a desempenhar funções até às 12h00, tendo obtido a sua anuência; porém, alguns dias depois, além de propor um horário a tempo parcial, a Ré rejeitou o pedido; perante a sua recusa de um tempo de trabalho parcial, a Ré decidiu unilateralmente alterar o seu horário de trabalho, das 09h00 às 18h00, em Ouressa; não contente, em 8.2.2023 a Ré determinou a alteração do seu local de trabalho, para a Ericeira, e novo horário laboral, que agora seria de segunda a sexta-feira, das 07h30 às 12h30 e das 14h30 às 17h30, e sábado, das 07h30 às 12h30; tais determinações causam-lhe prejuízo sério, pois impedem-na de continuar na sua outra ocupação laboral, sendo que dela carece impreterivelmente, pois é a única forma de custear as suas despesas mensais, dela e do seu filho, estudante universitário; acresce que a Ré sempre soube da sua necessidade de uma segunda ocupação laboral, no período da manhã; desde 2021, a Ré não providencia pela sua consulta de medicina do trabalho, apesar de saber a sua idade; tudo somado, foi forçada a resolver o contrato de trabalho com justa causa, sendo que ficaram por pagar os créditos peticionados.
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Foi realizada audiência de partes não sendo possível a sua conciliação.
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Citada, a Ré contestou, concluindo pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia, a identificação do objecto do litigio e a enunciação dos temas da prova.
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Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
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A sentença decidiu julgar “a acção parcialmente procedente, e em consequência, decide-se:
a. Declarar a licitude da resolução, com justa causa, do contrato de trabalho pela senhora AA, com efeito a 15.03.2023;
b. Condenar a R., a Cintramédica II, Serviços de Saúde, Lda., no pagamento à A., de indemnização pela quantia de 7.185,57€, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano (ou outra que vier a vigorar como taxa supletiva legal) desde esta data até efectivo e integral pagamento;
c. condenar a R. a pagar à A. a quantia global de 2.585,78€, mais os juros de mora vencidos sobre o montante das prestações em dívida, desde 15.03.2023 até integral pagamento;
d. Indo no mais a R. absolvida.”
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Inconformada, a Ré interpôs recurso, concluindo nas suas alegações que
1. Pela prova testemunhal produzida na audiência de discussão e julgamento, pelos documentos juntos aos autos bem como pela lei aplicável à matéria em apreço no presente processo, é entendimento da R. / Recorrente que agiu dentro dos ditames da lei e que a mesma deverá ser absolvida do pedido.
2. A. / Recorrente considera incorretamente julgados os pontos 36 e 39 dos factos provados e os pontos ii, v, xi e xii dos factos não provados.
3. Na fundamentação de facto da douta Sentença e para a análise da matéria em apreço referida imediatamente acima, diga-se que o Tribunal a quo entendeu por um lado dar como provados os factos referidos em 2. Pela simples existência de 2 (duas) comunicações partindo do pressuposto, aparentemente, que o seu conteúdo era verdadeiro, o que não se concede, e por outro, dar como não provados os factos referidos igualmente em 2. por ter havido, no essencial, ausência de prova.
4. Efetivamente, a A. / Recorrente considera incorretamente julgados os pontos 36 e 39 dos fatos provados e os pontos ii, v, xi e xii dos factos não provados, nomeadamente pelo teor do depoimento da testemunha arrolada pela R. / Recorrente, Dra. CC que disse:
(…)
5. E pelo depoimento da testemunha DD, cuja parte do depoimento espontâneo se transcreve: (…)
6. Assim, dúvidas não restam que, a. / Recorrida no início da sua prestação de trabalho exerceu as funções de rececionista nas instalações da R. /Recorrente no horário diurno entre as 08.00 h e as 18.00 h, ainda que em horários rotativos na janela compreendida entre as 07.30 h e as 21.00 h.
7. Resulta ainda das declarações das testemunhas acima mencionadas que, a A. / Recorrida participou em reuniões com a Administração, onde se encontrava a Sra. Dra. BB, onde foi conversado e lhe foi transmitido a necessidade de alteração do seu horário de trabalho e posteriormente do seu local de trabalho.
8. Toda a estrutura de recursos humanos informou a A. / Recorrida, pessoalmente em privado bem como em reuniões de trabalho, que não havia forma de manter o seu horário para além das 18.00 h.
9. Os documentos juntos aos autos, nomeadamente, o contrato de trabalho, que permitia a alteração unilateral do horário de trabalho e do local de trabalho sem necessidade de aviso prévio, celebrado entre as Partes e várias comunicações trocadas entre ambas, fazem prova de que a A. /Recorrida tinha conhecimento da alteração do seu horário de trabalho há longo tempo.
10. A própria A. / Recorrida, bem sabia que pouco trabalho tinha devido à desmaterialização da faturação da ARS e que a situação era insustentável.
11. A testemunha EE declarou: (…)
12. A A. / Recorrida que não compareceu às formações laborais disponibilizadas pela R. / Recorrente tal como a consultas de medicina, higiene e segurança no trabalho devido a falta de tempo para o efeito, consubstanciando-se esse facto, na violação de cláusula de exclusividade subscrita pela A. / Recorrida.
13. Diga-se ainda que, a mera existência de missivas enviadas entre as Partes, salvo o devido respeito, não são em si próprias fatos tal como, no caso concreto, não provam qualquer fato, ainda para mais quando foram respondidas, contestadas e impugnadas na fase dos articulados.
14. A prova produzida não autorizava a que se desse os pontos 36 e 39 da matéria de facto provada como provados e os pontos ii, v, xi e xii da matéria de facto não provada como não provados, o que ficou comprovado pela prova testemunhal produzida, nomeadamente, pelo depoimento do Sra. Dra. CC, da Sra. Dra. DD e do Sr. EE.
15. Consequentemente deverá dar-se como não provados os pontos 36 e 39 da matéria de fato dada como provada e provados os factos ii, v, xi e xii da Alegação de Facto Não Provada.
16. Ocorreu, pois, manifesto erro na apreciação da matéria de facto e valoração da prova, que este douto Tribunal ad quem pode reapreciar e modificar, alterando a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo em consequência, absolvendo-se a R. / Recorrente conforme peticionado na Contestação.
17. O douto Tribunal a quo, pela prova produzida e pela lei aplicável ao presente caso não poderia ter julgado procedente a resolução do contrato de trabalho da A. com justa causa.
18. Dever-se-ia ter aplicado o Artigo 405.º, n.º 1 do Código Civil que dispõe: (…)
19. No n.º 2 do mesmo Artigo pode ler-se: (…)
20. Tal como deveria ter sido aplicado o Artigo 406.º, n.º 1 do Código Civil que refere: (…)
21. A R. / Recorrente e a A. / Recorrida pretenderam efetuar um contrato de trabalho, junto na P.I. como doc. n.º 1 onde estipularam na Cláusula Quarta: “O período normal de trabalho a prestar pelo Segundo Outorgante será de 40 horas semanais mediante horário previamente fixado. § Único: O Segundo Outorgante acorda, desde já e expressamente, em qualquer alteração do horário de trabalho (sublinhado nosso), desde que necessário à atividade da Primeira Outorgante, atentos os limites legais, conforme dispõe o Artigo 217.º do Código do Trabalho”.
22. Dúvidas não restam que as Partes acordaram na possibilidade de alteração unilateral do horário de trabalho promovido pela Ré / Recorrente.
23. A A. / Recorrida tinha a possibilidade de não ter aceite a alteração do horário de trabalho unilateralmente pela R. Recorrente.
24. Estamos perante matéria na disponibilidade das Partes, sendo que, a entidade patronal pode alterar unilateralmente o horário de trabalho em caso de anuência pelo trabalhador no próprio contrato de trabalho.
25. Não existe no contrato de trabalho qualquer cláusula de inamovibilidade no concernente à alteração do horário de trabalho.
26. Veja-se o Ac. do STJ de 2000-06-20, Processo nº 99S346, de 20 de junho e o Ac. do Tribunal da Relação de Évora, proferido no Processo 2637/21.5T8PTM.E1 e datado de 13 Outubro 2022.
27. No entendimento da R. / Recorrente não podia ter sido reconhecida justa causa à resolução do contrato de trabalho por violação do Artigo 217.º do C.T. e dever-se-iam ter aplicado os Artigos 405.º e 406.º do C.C..
28. Mesmo que assim não se entendesse a R. / Recorrente informou a A. /Recorrida da necessidade de alterar o seu horário de trabalho dando cumprimento ao disposto no Artigo 217.º, n.º 2 do C.T., o qual a ser aplicado deveria ter confirmado a boa atuação da R. / Recorrente.
29. Por outro lado, não podia o douto Tribunal a quo, ter acolhido a pretensão da A. / Recorrida no sentido de julgar procedente a resolução do contrato de trabalho por alteração unilateral do local de trabalho promovida pela Empregadora.
30. O Artigo 405.º, n.º 1 do Código Civil permite que: (…)
31. No n.º 2 do mesmo Artigo pode ler-se: (…)
32. Ora, foi estipulado contratualmente entre as Partes no Contrato de Trabalho, o seguinte: “Cláusula Terceira” - O local de trabalho do Segundo Outorgante é na sede da Primeira Outorgante, sita na Travessa da Portela, Edifício Cintramédica, em Sintra e, quando necessário, em instalações exteriores à sede (sublinhado nosso). § Único: O Segundo Outorgante assume, desde já e expressamente o compromisso de se deslocar ou aceitar ser transferida, quando tal mudança se considere necessária ao exercício da atividade comercial e empresarial da Primeira Outorgante (sublinhado nosso) ou ao desempenho das funções que lhe são adstritas, nos termos do disposto no Artigo 193.º do Código do Trabalho.”.
33. Foi exatamente o que ocorreu no presente caso, ou seja, a R. / Recorrente considerou que a transferência da A. / Recorrida era necessária ao exercício da sua atividade empresarial,
34. Tendo para o efeito, a R. / Recorrente enviado uma comunicação à A. /Recorrida nesse sentido, no modo e tempo legalmente previsto, nos termos do Artigo 196.º do C.T., o qual deverá ser aplicado ao presente caso no sentido do cumprimento do aí disposto pela R. / Recorrente.
35. A A. / Recorrida bem sabia, porque lhe foi comunicado e por ter estado presente em várias reuniões que, devido à desmaterialização da faturação da ARS não haveria trabalho para a mesma sendo imperioso transferi-la para outro local de trabalho.
36. A A. / Recorrida não pretendeu sequer ouvir o que a R. / Recorrente lhe tinha para dizer e entrou de imediato de baixa médica.
37. A A. / Recorrida deveria apresentar-se na localidade de Ericeira, concelho de Mafra, para exercer as suas funções iniciais de rececionista o que não fez pois a sua decisão já estava tomada há bastante tempo.
38. Diga-se que, a referida localidade dista de Sintra aproximadamente 20 km tal como Lisboa, Cascais ou Mafra, onde a R. / Recorrente tem outros postos de trabalho.
39. A A. / Recorrida nem quis saber as condições da sua transferência, nomeadamente, a disponibilização de viatura entre outras, para além de eventualmente, se encontrar uma solução a breve prazo num posto de colheitas mais próximo da sua residência.
40. Tudo porque a A. / Recorrida, em clara violação da exclusividade que contratualizou com a R. / Recorrente, trabalhava numa empresa concorrente e o horário com a deslocação não era compatível, conforme declaração de exclusividade junta aos autos na Contestação (doc. n.º 2).
41. Para além de contratualmente a A. / Recorrida se ter vinculado a aceitar ser transferida, o que ocorreu mais que uma vez e no futuro poderia ocorrer conforme por ela aceite, pelo que se encontra afastada a aplicação do Artigo 194.º, n.º 2 do C.T., ainda violou a exclusividade que tinha assegurado à R. / Recorrente.
42. A R. / Recorrente não aceita a declaração de ilicitude da sua decisão de alterar o local de trabalho da A. / Recorrida tal como não aceita em consequência o provimento concedido ao pedido de resolução com justa causa pela Trabalhadora, o qual nem sequer assenta no n.º 5 do Artigo 194.º do C.T..
43. A transferência de local de trabalho nenhum prejuízo, e muito menos sério, causava à A. / Recorrida, bem se sabendo que era a esta que competia fazer prova, o que manifestamente, não fez, pois, por exemplo: a A. /Recorrida não necessitava de alterar a sua residência; o transporte para o seu local encontrava-se assegurado; as deslocações em viatura da empresa demorariam aproximadamente 30 minutos para se deslocar para o posto de trabalho e 30 minutas para regressar a casa; o filho da A. /Recorrida não necessitava de mudar de universidade e aí por diante.
44. Veja-se, a título de exemplo, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 30.04.20019, proferido no âmbito do processo n.º 1326/18.2T8CTB.C1.
45. Desta forma, dúvidas não restam que não poderiam ter sido aplicados os Artigos 394.º, 366.º e 396.º, n.º 1, todos do C.T., pois a A./ Recorrida não tinha qualquer fundamento para resolver o contrato de trabalho com justa causa.
46. O efeito surpresa da douta sentença que ora se recorre, para a R. /Recorrente, foi enormíssimo, pois cumpriu o contratualmente acordado e tudo fez para resolver todas as questões laborais com a A. / Recorrida por acordo.
47. Quer o legal representante da R. / Recorrente quer a A. / Recorrida são pessoas com muita vasta profissional e negocial, sendo que, se quisessem ter efetuado um diferente contrato de trabalho objeto dos presentes autos, tê-lo-iam realizado.
48. As Partes não quiseram fazer qualquer outro contrato de trabalho, pretenderam outorgar o junto aos autos e por ele regular as suas relações profissionais bem sabendo o teor das suas cláusulas, o que foi totalmente desconsiderado pelo douto Tribunal a quo, o que não se concede.
49. O contrato de trabalho foi cumprido pela R. / Recorrente como se demonstrou, devendo a sentença recorrida ser revogada e a R. /Recorrente ser absolvida do pedido conforme peticionado na Contestação.
50. Em conclusão, ocorreu, manifesto erro na apreciação da matéria de facto e valoração da prova bem como e quanto à aplicação da matéria de direito, devendo a sentença recorrida ser revogada e a R. / Recorrente ser absolvida do pedido conforme peticionado na Contestação.
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o mui Douto suprimento de V. Exas. Venerandos Desembargadores, deve o presente Recurso apresentado pela Apelante ser considerado totalmente procedente por provado, alterando-se a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, revogando-se assim a douta Sentença Recorrida, e consequentemente ser julgada totalmente improcedente a presente ação;
Mais deverá a douta Sentença proferida ser revogada, em virtude de ter ocorrido manifesto erro na aplicação do direito no que concerne à decisão de incumprimento da lei quanto à alteração do horário e local de trabalho da Apelada, o que não se concede, devendo a Ré / Recorrente ser absolvida conforme peticionado na Contestação.
ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!”
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A Autora contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
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O Exmo Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Os autos foram aos vistos às Exmas Desembargadoras Adjuntas.
Cumpre apreciar e decidir
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II – Objecto
Considerando as conclusões do recurso apresentadas, que delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, cumpre apreciar e decidir:
- se o tribunal a quo errou na decisão da matéria de facto quanto aos factos impugnados;
- se ocorreu ou não justa causa para a resolução do contrato pela trabalhadora, conhecendo-se das sub-questões da licitude ou ilicitude da alteração de horário e de local de trabalho.
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III – Fundamentação de Facto
A – Matéria de Facto Provada
São os seguintes os factos considerados provados pela 1ª instância
1. A Ré tem por objecto: actividade de radiologia; actividades de prática médica de clínica especializada em ambulatório, actividades de prática médica de clínica geral, actividades de medicina dentária e odontologia, laboratório de análises clínicas e anatomia patológica; actividades de enfermagem e outras actividades de saúde humana; actividades clínicas para internamento em hospital, exploração de farmácias e acessórios de farmácia; comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica (MNSRM); comercialização de produtos químicos e farmacêuticos, perfumaria e artigos de puericultura, ortopedia, óptica, optometria e afins; exploração de café e pastelaria e outros estabelecimentos de bebidas sem espectáculo; arrendamento de bens imobiliários.
2. Por escrito datado de 30.04.2014, intitulado «contrato de trabalho a termo certo», cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido pela sua extensão, as Partes declararam entre si: a Ré contrata a Autora para, «ao seu serviço e sob a sua autoridade, direcção, orientação e fiscalização, exercer as funções inerentes à categoria profissional de recepcionista»; o local de trabalho da Autora «é na sede» da Ré, «sita na Travessa da Portela, Edifício Cintramédica, em Sintra e, quando necessário, em instalações exteriores à sede»; a Autora «assume, desde já e expressamente, o compromisso de se deslocar ou aceitar ser transferida, quando tal mudança se considere necessária ao exercício da actividade comercial e empresarial» da Ré, «ou ao desempenho das funções que lhe são adstritas, nos termos do artigo 193º do Código do Trabalho»;«o período normal de trabalho a prestar» «será de 40 horas semanais, mediante horário fixado previamente»; a Autora «acorda, desde já e expressamente, em qualquer alteração do horário de trabalho, desde que necessária à actividade» da Ré, atentos «os limites legais, conforme dispõe o artigo 217º do Código do Trabalho»; a Autora como contrapartida da actividade desempenhada, receberá a remuneração mensal base de 600€, acrescida de subsídio de alimentação; o acordo teria «a duração de 12 meses, iniciando-se no dia 1 de Maio de 2014 e terminando no dia 30 de Abril de 2015»; a Autora compromete-se ao «sigilo de todas as informações, documentos, factos ou situações que lhe tenham sido confiados ou que tenha ou venha a ter conhecimento e desde que se relacionem» com a Ré, «a sua actividade ou qualquer dos seus colaboradores ou parceiros e, consequentemente, a não divulgar, fornecer ou comentar, seja qual for o meio utilizado, nomeadamente o escrito, verbal ou virtual, durante a vigência do presente contrato de trabalho, mantendo-se a mesma obrigatoriedade de sigilo profissional após a cessação do contrato de trabalho».
3. E, por escrito datado de 01.05.2014, mais declarou a Autora à Ré que assumia ainda o compromisso de «não exercer quaisquer actividades profissionais noutra empresa do mesmo ramo de actividade, sem acordo prévio».
4. Inicialmente, exerceu as funções de recepcionista, estando integrada em escalas rotativas das 7h30 às 21h.
5. Passados alguns meses, a Autora foi integrada no Departamento de Facturação da Ré, passando a exercer, e até final, as funções inerentes à categoria profissional de Assistente de Facturação.
6. Com a alteração de funções, o seu horário de trabalho era das 12h00 às 20h00, de segunda a sexta-feira, em regime de jornada contínua.
7. Exercia essas suas funções na sede da Ré, sita na Travessa da Portela, Edifício Cintramédica, em Sintra.
8. Pelo ano de 2019, a Autora foi transferida para a Avenida Almirante Gago Coutinho – Centro Empresarial Sintra, N, Edifício 5/6, em Sintra.
9. A partir de Outubro de 2021, a Autora passou a desempenhar as suas funções das 12h00 às 21h00, com uma hora de intervalo para refeições.
10. A Autora procedia à facturação referente à ARS.
11. Em 2022, a ARS encontrava-se em processo de desmaterialização das prescrições de exames.
12. Desde 25.01.2021, a Autora presta serviços como Técnica de Análises, com a Empresa Atlanticare, Serviços de Saúde, S.A.
13. Esta empresa dedica-se, entre outras, à prestação de serviços de segurança e saúde no trabalho.
14. A Autora pode exercer a actividade de técnica de análises clínicas, tendo-lhe sido atribuído o cartão de autorização de exercício nº A-20820194.
15. Inicialmente, e até Dezembro de 2022, a Autora desempenhou as suas funções para a Atlanticare, nas instalações desta, sitas em Carnaxide, de acordo com um horário de trabalho das 08h00 às 11h00, de segunda a sexta-feira.
16. No dia 27.12.2022, a Autora solicitou verbalmente à Ré (na pessoa da senhora Dr.ª BB), autorização para passar a iniciar as suas funções às 13h00.
17. Isto porque a Atlanticare alterara as suas instalações para a Expo e determinara que a Autora passaria a desempenhar funções até às 12h00.
18. Em 05.01.2023, a Autora dirigiu um requerimento à Administração da Ré, solicitando: «após conversa pessoal com a Dr.ª BB no passado dia 27 de Dezembro, sobre uma alteração do meu horário de entrada, para 1 hora mais tarde, devido à Atlanticare me ter alterado o local da prestação de serviços e alongado o horário até às 11h30 – 12h00. Posto isto, ficou assim acordado com a Dr.ª Cristina que passaria a entrar em Ouressa às 13h em vez de às 12h, fazer a pausa de 1h para almoço como é obrigatório e saída às 21h como sempre, sendo que as 5h que ficam em falta serão compensadas ao sábado depois as 14h, visto trabalhar também ao sábado até às 13h na Expo, para completar as 40h semanais. Pois infelizmente no meu agregado familiar sou só eu e o meu filho que está a estudar numa faculdade privada e não consigo de outra forma fazer cumprir com as despesas mensais».
19. Nesse dia, o Coordenador da área funcional informou que «tomou conhecimento verbal a 29.12.2022, aquando regresso da AA»; a 9, a Directora de Recursos Humanos informou: «a AA deve ter um horário dentro do horário da empresa. Temos de tentar encontrar uma solução equilibrada que salvaguarde a Cintramédica. A AA tem dificuldade em aceitar soluções que não sejam a que deseja. Deixo à consideração superior»; a 13, a Administração da Ré decidiu que: «o exposto não corresponde ao que foi conversado. Face às alterações do processo de facturação da ARS quer as funções quer o horário da AA terão de ser revistos».
20. Em 13.01.2023, a Ré, na pessoa do Dr. FF, propôs verbalmente à Autora que esta passasse a prestar o seu trabalho em regime de part-time (entre as 13h00 e as 18h00), com a proporcional redução de vencimento, que a Autora recusou.
21. Ainda nesse dia, pelas 17h01, uma sexta-feira, a Autora recebeu da Ré, pelo punho da sua Directora de Recursos Humanos, um e-mail sob assunto «DRH – Alteração de horário de trabalho», com a seguinte declaração: «Olá boa tarde AA, conforme lhe foi explicado na reunião, Ouressa vai sofrer uma reorganização no espaço.
Neste sentido, o seu horário passará a ser entre as 9 horas e as 18 horas. No âmbito do cumprimento legal, o horário só entrará em vigor no próximo dia 23 de Janeiro, contudo informo que ficou decidido que a AA passará já na segunda-feira a sair às 18 horas, sem prejuízo salarial, isto é, mantém a sua entrada às 13 horas, gozando a sua hora de almoço das 18 às 19 horas, e as restantes horas a empresa assume como trabalho efectivo. Gostaríamos de sublinhar que estamos disponíveis para renegociar a sua carga horária semanal para regime part-time de 25 horas semanais, tendo por consequência a respectiva proporcionalidade no vencimento base».
22. Nesse e-mail, a Direcção de Recursos Humanos da Ré pediu à Autora a entrega da chave do edifício e do alarme.
23. Em resposta, a Autora remeteu pelas 18h14 desse dia um e-mail, onde declarou: «Boa tarde, irei de imediato entregar a chave do edifício e respectiva chave do alarme.
Com relação à alteração do horário ou renegociação da carga horária, irei pensar durante o fim de semana, e lhe darei uma resposta na próxima segunda-feira, dia 16.01.2023. Sem outro assunto, atenciosamente».
24. No dia 19.01.2023, a Ré informou por e-mail a Autora que: «o DRH informa que o requerimento que submeteu foi indeferido pela Administração. Lamentamos, mas não foi possível validar o seu pedido. Recordamos que, conforme foi comunicado no passado dia 13.01.2023, o seu horário, por uma questão de reestruturação, passará a ser das 9h às 18h. Estamos disponíveis para qualquer esclarecimento adicional».
25. A Autora respondeu por escrito à Ré, reiterando a sua recusa da proposta de trabalho em tempo parcial.
26. Por e-mail de 08.02.2023 e por carta datada do dia seguinte, que a Autora recebeu, a Ré declarou-lhe: «vem, por este meio, informar V.ª Ex.ª que, por razões de reorganização interna tendo como objectivo o melhoramento dos seus serviços por um lado e, por outro, o incremento positivo dos cuidados de saúde aos pacientes, o seu local de trabalho passará a ser no posto de colheitas de “Análises clínicas da Cintramédica II”, situado na Rua César Raul da Costa Andrade, nº 1-A, Ericeira.
Desta forma, é igualmente necessário ajustar o seu horário de trabalho para as funções constantes do seu contrato de trabalho, pelo que o mesmo passará a ser das 7h30 às 12h30 e das 14h30 às 17h30, de segunda a sexta-feira e das 7h30 às 12h30 aos sábados. Assim, deverá para os devidos efeitos coordenar as funções a exercer com a Coordenadora DD. A alteração do local de trabalho e o novo horário entram em vigor no dia 13.03.2023».
27. A Autora ficou abalada, consternada e angustiada com esta informação.
28. A UCSP Amadora certificou a situação de incapacidade temporária da Autora por «doença natural» pelo período compreendido entre o dia 09.02.2023 e 22.03.2023.
29. Porém, nesse período continuou a trabalhar para a Atlanticare.
30. A Autora reside ...em Queluz, o que é sabido pela Ré.
31. Para as deslocações diárias entre a Ericeira e Queluz, a Autora dispõe da carreira 1633 pela Carris Metropolitana, por cerca de 45 minutos, até à Portela de Sintra, onde terá de utilizar o serviço de comboio até à estação de Monte Abraão, por cerca de 16 minutos.
32. A Autora tem um filho, já maior, a quem custeia os estudos em estabelecimento de ensino superior privado.
33. A última consulta de medicina do trabalho da Autora pela Ré foi em 14.12.2021.
34. A Autora nasceu em 06.08.1968.
35. A consulta anual de Dezembro de 2022 esteve agendada, mas a Autora não compareceu.
36. A Autora pelo punho da sua Ilustre advogada, respondeu por e-mail de dia 10.02.2023, nos seguintes termos: «e por referência a uma série de irregularidades laborais que, nos últimos meses, vêm sendo praticadas por parte da V. empresa, as quais consubstanciam uma flagrante violação das condições contratuais da minha Cliente, já com evidentes reflexos na sua saúde. Começo por adiantar que tais irregularidades, as quais infra passo a descrever, foram já reportadas, verbalmente e por escrito, pela M. Constituinte à Cintramédica, na pessoa do Sr. Dr. FF, da Dra. BB, bem como ao Departamento de Recursos Humanos. Contudo, até à data, incompreensivelmente, a mesma não obteve qualquer resposta por parte da empresa à grave situação a que está a ser sujeita, pelo que serve a presente para, num derradeiro contacto, tentarmos obter uma resposta por parte da Cintramédica, antes de avançarmos judicialmente. Como é do V. conhecimento, a Exma. Sra. AA desempenha funções de Assistente de facturação na V. Empresa desde 01 de Maio de 2014, estando actualmente afecta ao Departamento de Facturação nos escritórios da Cintramédica, em Ouressa. Desde o início que V. foi transmitida pela M. Constituinte e sempre foi do V. perfeito conhecimento, que a mesma desempenha funções noutra Empresa (facto que é absolutamente essencial para a sua subsistência e da sua família), no período da manhã, como Técnica de Análises Clínicas, pelo que, só poderá trabalhar para a Cintramédica no período da tarde. Nesta sequência, desde que foi admitida na Cintramédica, a M. Constituinte sempre iniciou diariamente as suas funções às 12h00, pois é-lhe impossível, dado o outro emprego que mantém, iniciar as suas funções no período da manhã. Assim, de acordo com o horário de trabalho que até há pouco tempo vigorou na Cintramédica, a M. Constituinte iniciava as suas funções às 12h00 e terminava-as às 21h00, com direito a uma hora de pausa para descanso. No passado dia 27 de Dezembro, a M. Cliente solicitou-vos verbalmente autorização, tendo obtido a mesma, para iniciar as suas funções às 13h00, pois a empresa onde desempenha funções como Técnica de Análises Clínicas alterou as suas instalações para a Expo e apenas termina as suas funções pelas 12h00. Sem razão aparente, alguns dias depois, esta pretensão foi negada, tendo V. Exas. imposto à M. Constituinte a prestação do seu trabalho em regime de part time (entre as 13h00 e as 18h00) para, posteriormente, e perante a recusa desta, alterarem unilateralmente o seu horário de trabalho das 09h00 às 18h00, horário que sabem perfeitamente ser impossível, a M. Constituinte cumprir. Todo o trabalhador apenas está obrigado a cumprir ordens e instruções do empregador no respeita à execução e disciplina do trabalho, quando tais ordens não se mostrem contrárias aos seus direitos e garantias. A ordem de V. Exas. viola, de forma manifesta, os direitos e garantias atrás referidos, razão pela qual entende a M. Constituinte não lhe dever obediência. Estranha e ironicamente, e após a recusa justificada por parte da M. Constituinte em aceitar a alteração do horário de trabalho unilateralmente imposta, foi a mesma confrontada e surpreendida com a V. comunicação datada de 08 de Fevereiro, nos termos do qual, V. Exas. de forma absolutamente genérica, e sem qualquer fundamentação plausível e justificada, ordenam a transferência do local de trabalho da M. Constituinte para a Rua César Raul da Costa Andrade, n.º 1-A, 2645-272 Ericeira, com efeitos a partir do próximo dia 13 de Março. Em primeiro lugar, gostaríamos de deixar claro que esta transferência é de duvidosa legalidade, não cumprindo, sequer, os requisitos impostos pela lei para se determinar uma transferência de local de trabalho. Por outro lado, como é do perfeito conhecimento de V. Exas., a M. Cliente vive em Queluz e trabalha de manhã na Expo, sendo absolutamente impossível comparecer na Ericeira às 07h30 da manhã... A minha Cliente está, assim, completamente impossibilitada de comparecer no local que agora lhe indicaram, bem como praticar o novo horário imposto. Esta atitude – que apenas visa prejudicar e causar pressão na M. Constituinte – configura inequivocamente uma situação de assédio moral, a qual será seguramente analisada em sede própria.
Assim, serve o presente para comunicar a V. Exas. que deverão, no prazo de 5 dias a contar da recepção desta carta, apurar internamente esta situação e atribuir à M. Constituinte um horário de trabalho e um local de trabalho que não contenha qualquer violação dos direitos laborais da Exma. Sra. AA. Todas as situações acima expostas, nomeadamente a pressão psicológica, a necessidade que a mesma tem de manter os dois empregos (necessidade esta que, reitero, sempre foi do perfeito conhecimento de V. Exas.) e a desconsideração profissional que a minha Cliente tem vindo a sofrer, culminaram num esgotamento e numa depressão, que leva a que esta, nos últimos tempos, comece a sentir grande desgaste físico e emocional. Como referido, esta situação já foi transmitida pela minha Constituinte aos seus superiores hierárquicos, sendo do perfeito conhecimento destes e facilmente atestada por colegas e ex-colegas da Exma. Sra. AA. Em face do exposto, serve o presente para, desde já, começar por solicitar a V. Exa. que diligencie junto da Cintramédica, no sentido de se proceder à regularização das situações acima expostas, já a partir deste mês de Fevereiro. Caso a Empresa se recuse, total ou parcialmente, à regularização legal da situação nos termos acima expostos, a M. Cliente reserva-se no direito de, sem ulterior comunicação, recorrer à via judicial, onde não deixarão de ser reclamadas todas as indemnizações a que a mesma tem direito. Todavia, atendendo a que o direito da M. Constituinte é incontestável, estamos certos que V. Exas. não deixarão de aproveitar esta última oportunidade para regularização da situação, no prazo estabelecido, por forma a que sejam evitados todos os incómodos e despesas inerentes a uma acção judicial a propor contra a CINTRAMEDICA».
37. A isto, respondeu a Ré por e-mail de 22.02.2023: «Agradecemos a sua comunicação. Após avaliação da mesma, cumpre referir que a sua Cliente transmitiu-lhe algumas informações, que, na nossa opinião, não são correctas, nomeadamente o facto de ter sido contratada para prestar trabalho apenas no período da tarde. A este propósito sempre pautamos a nossa conduta pelos mais elevados padrões de qualidade e legalidade. A nossa sociedade tomou as decisões relativamente à sua Cliente respeitando a mesma bem como o contratualizado por um lado, e por outro, na defesa dos interesses da organização onde se insere.
Repudiamos em absoluto a alegação de assédio moral por não ter ocorrido. Por último, informamos que iremos enviar o presente assunto para o nosso departamento jurídico, o qual de certo contactará V. Exa. com a brevidade possível».
38. Esse contacto nunca se deu.
39. Por carta datada de 13.03.2023 e recebida em 15.03.2023, a Autora declarou à Ré que: «1. No dia 01 de Maio de 2014, celebrei com a Sociedade Cintramédica II - Serviços de Saúde, LDA., pessoa colectiva n.º 500330859, com sede na Travessa da Portela, Edifício Cintramédica 2710-437 Sintra (adiante, apenas, Cintramédica), um contrato de trabalho, nos termos do qual foi acordado que exerceria funções na sede da Cintramédica, ou, quando necessário, em instalações exteriores à sede. Desde 2014 que exerço funções de Assistente de Facturação, inicialmente na sede da empresa e, desde Setembro de 2020, no Departamento de Facturação da Cintramédica, sito na Avenida Almirante Gago Coutinho – Centro Empresarial Sintra N -Edifício 5/6, 2710-418 Sintra. Além do contrato do trabalho com a Cintramédica, mantenho, paralelamente, um outro contrato de trabalho como Técnica de Análises Clínicas, que, até Dezembro de 2022, era desempenhado em Carnaxide, diariamente, das 08h00 às 11h00. Facto que é do conhecimento da Cintramédica, assim como que, sendo mãe solteira, necessito destes dois empregos para fazer face às várias e mais básicas despesas para a minha subsistência, do meu filho e da minha família. Desde o início que transmiti à Cintramédica (e tal sempre foi do V. perfeito conhecimento e concordância), que desempenho funções noutra Empresa (facto que é absolutamente essencial para a minha subsistência e da minha família), no período da manhã, como Técnica de Análises Clínicas, pelo que, só poderia trabalhar para a Cintramédica no período da tarde. Por este motivo, sempre iniciei as minhas funções na Cintramédica, diariamente às 12h00, pois entre as 08h00 e as 11h00, trabalho na outra Empresa, a qual, até há pouco tempo, tinha as instalações em Carnaxide. Em resumo, de acordo com o horário de trabalho que até há pouco tempo vigorou na Cintramédica, exercia as minhas funções das 12h00 às 20h00, em regime de jornada continua, horário esse que foi alterado há cerca de 1 ano, passando a terminar às 21h00, por ser obrigatório fazer uma hora de pausa para descanso (almoço). Sempre exerci as minhas funções com toda a dedicação, zelo e brio, tudo fazendo para que todos os prazos fossem atempadamente cumpridos. No passado dia 27 de Dezembro, solicitei verbalmente à Cintramédica (na pessoa da Dra. BB), autorização para passar a iniciar as minhas funções às 13h00, pois a empresa onde desempenho funções como Técnica de Análises Clínicas alterou as suas instalações para a Expo e determinou que passaria a desempenhar funções até às 12h00 pelo que iria precisar de tempo para chegar à Cintramédica, tendo obtido anuência por parte da mesma. Sem razão aparente, alguns dias depois, esta pretensão foi negada, tendo V. Exas. imposto a prestação do meu trabalho em regime de part time (entre as e as 18h00), com a proporcional redução de vencimento, para posteriormente, e perante a minha recusa, alterarem unilateralmente o meu horário de trabalho para o período das 09h00 às 18h00, horário esse que sabem perfeitamente ser impossível cumprir. O que de imediato V. comuniquei pois, como já referido anteriormente, mantenho um contrato com outra empresa das 08h00 às 12h00. De imediato foi-me solicitado que devolvesse a chave, com que habitualmente encerrava o edifício ao final da minha jornada de trabalho. Estranha e ironicamente, após a minha recusa justificada em aceitar a alteração do horário de trabalho unilateralmente imposta, fui confrontada e surpreendida com a V. comunicação datada de 08 de Fevereiro, nos termos do qual V. Exas. de forma absolutamente genérica, e sem qualquer fundamentação plausível e justificada, ordenaram a transferência do meu local de trabalho para a Rua César Raul da Costa Andrade, n.º 1-A, 2645-272 Ericeira, com efeitos a partir do próximo dia 13 de Março. Na mesma carta, foi-me comunicada a alteração do meu horário, o qual deveria passar a ser de 2.ª a 6.ª feira, das 07h30 às 12h30 e das 14h30 às 17h30 e aos sábados, das 07h30 às 12h30. É do V. total conhecimento que vivo em Queluz e trabalho de manhã na Expo, sendo absolutamente impossível comparecer na Ericeira às 07h30 da manhã. O estabelecimento da Cintramédica sito na Travessa da Portela, edifício Cintramédica, 2710-437 Sintra, dista cerca de 35 kms do estabelecimento da entidade Cintramédica sito na Rua César Raul da Costa Andrade, nº 1-A, 2645-272 Ericeira, distância que leva cerca de 01h30 a ser percorrida. Encontro-me separada e vivo sozinha com o meu filho, estudante, a quem preciso pagar, não só as despesas do dia a dia, como os estudos universitários. Nos termos do disposto no artigo 194.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, o empregador pode transferir o trabalhador para outro local de trabalho, temporária ou definitivamente, quando outro motivo do interesse o exija e a transferência não implique prejuízo sério para o trabalhador. É-me completamente impossível comparecer no local que agora me indicaram, bem como praticar o novo horário imposto. Assim, considerando que o estabelecimento da Cintramédica sito na Avenida Almirante Gago Coutinho - Centro Empresarial Sintra N Edifício 5/6. 2710-418 Sintra, dista a 35 kms do estabelecimento da Cintramédica sito na Rua César Raul da Costa Andrade, nº 1-A, 2645272 Ericeira, distância que, leva cerca de 01h30 a ser percorrida, que me encontro separada e tenho um filho estudante, com quem vivo e que necessito de manter o emprego como Técnica de Análises Clínicas, que sempre mantive no período da manhã, considero que a minha transferência do estabelecimento da Cintramédica sito na Avenida Almirante Gago Coutinho - Centro Empresarial Sintra N -Edifício 5/6. 2710-418 Sintra, onde exerço actualmente funções, para o estabelecimento da Cintramédica sito na Rua César Raul da Costa Andrade, n.º 1-A, 2645-272 Ericeira, implica prejuízo sério para a minha pessoa Acresce que o e-mail (e posteriormente, carta datada de 08 de Fevereiro enviado pela Cintramédica no dia 08 de Fevereiro de 2023, às 17h50, não cumpre minimamente com os requisitos que se encontram estabelecidos no artigo 196º, do Código do Trabalho, pois, tal comunicação não se encontra fundamentada e não indica a duração previsível da transferência, o que me leva a concluir que a mesma seria definitiva, apesar de o referido e-mail nada mencionar, não passando, assim, de uma represália pela minha recusa em aceitar trabalhar em regime de Part-time, no período das 13h00 às 18h00. Nos termos do disposto no artigo 194º, nº 5, do Código do Trabalho, no caso de transferência definitiva, o trabalhador pode resolver o contrato se tiver prejuízo sério. E nos termos do disposto no artigo 394º, n.º 2, alínea b), do Código do Trabalho, constitui justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador a violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador. Por outro lado, considero legitimamente que a decisão da Cintramédica de alterar o meu horário de trabalho, visou apenas prejudicar-me, pois surgiu na sequência de ter recusado o part time que me foi imposto. Em resultado disso, e apenas, em resultado disso, V. Exas. Colocaram-me na Ericeira, com um horário das 7h30 às 12h30 e das 14h30 às 17h30h, de 2ª a 6.ª feira e aos sábados, das 7h30 às 12h30 e é do V. perfeito conhecimento que tal alteração resultaria num prejuízo sério, uma vez que trabalho noutro local, sito na Expo e teria de fazer cessar tal contrato para cumprir a vossa ordem. Esta transferência é intencionalmente dolosa e da mesma resulta prejuízo sério para a minha vida pessoal, profissional, financeira, familiar e mesmo para a minha, pois passaria a despender mais de 3h00 / dia, para não falar do estado emocional e da depressão nervosa que toda esta situação me causou. V. Exas. optaram por me onerar excessivamente para cumprir uma ordem, bem sabendo que passaria a ter o dobro da despesa, o dobro do tempo em deslocações e deixaria de poder cumprir com o meu outro contrato de trabalho, essencial para fazer face às minhas despesas familiares. Tendo explicado todos os meus fundamentos por vários emails, requeri à Cintramédica que reponderasse a decisão, ficando a aguardar esta disponibilidade. Contudo, V. Exas. Nunca reponderam às minhas diversas solicitações para regularização de toda esta situação. Como se o acima exposto não fosse suficiente, no passado mês de Fevereiro não efectuaram o pagamento atempado da minha retribuição (tive de enviar 3 emails a insistir pelo pagamento) e há mais de 1 ano que está em atraso a V. obrigação de efectuarem os exames de saúde periódicos a que se encontram obrigados, no âmbito da medicina do trabalho. Esta atitude — que apenas visa prejudicar e causar pressão na minha pessoa, enquanto Trabalhadora configura inequivocamente uma situação de assédio moral e pressão psicológica, atenta a minha recusa em aceitar o part time que me foi imposto, não obstante a necessidade que tenho de manter os dois empregos (necessidade esta que, reitero, sempre foi do perfeito conhecimento da Cintramédica), culminaram num esgotamento e numa depressão, que leva a que tenha começado a sentir grande desgaste físico e emocional. Nestes termos, os factos supra indicados de forma sucinta, justificam a presente resolução do contrato de trabalho, com justa causa, e com efeitos imediatos, por os mesmos preencherem a previsão do artigo 194º, nº 5, e das alíneas a), b) e e), do nº 2, do artigo 394º, ambos do Código do Trabalho, uma vez que a minha transferência do estabelecimento da Cintramédica sito na Avenida Almirante Gago Coutinho - Centro Empresarial Sintra N - Edifício 5/6. 2710-418 Sintra, onde exerço actualmente funções, para o estabelecimento da Cintramédica sito na Rua César Raul da Costa Andrade, n.º 1-A, 2645272 Ericeira, implica prejuízo sério, para além de a comunicação de tal transferência não cumprir minimamente com os requisitos que se encontram estabelecidos no artigo 196º, do Código do Trabalho. Em face do exposto, requeiro desde já que me enviem, no prazo de 05 dias úteis, a declaração Modelo 5044 da Segurança Social, sem prejuízo dos créditos emergentes do contrato de trabalho, acrescido de indemnização de antiguidade, nos termos do disposto no artigo 396º, nº 1, do Código do Trabalho».
40. A Ré não ministrou à Autora formação profissional.
41. A Autora auferia, por fim, da Ré a retribuição base mensal de 835€, acrescidas do subsídio de refeição no valor de 7,50€ diário, em cartão de refeição.
42. A Ré emitiu o recibo final da Autora com data de 31.03.2023, com as rúbricas:
- Vencimento: - 27,83€;
- Subsídio de férias: 695,83€;
- Mês de férias do ano fim de contrato: 75,90€;
- Subsídio de férias – fim de contrato: 69,58€;
- Indemnização – férias não gozadas – fim de contrato: 835€;- Segurança Social: - 181,34€;
- IRS: - 111€;
- Indemnização incumprimento cláusula 7.ª-4: -1.475,16€.
***
B – Matéria de Facto Não Provada
A primeira instância considerou não provados os seguintes factos:
i. Durante os primeiros oito anos, o horário de trabalho imposto à Autora era das 12h00 às 20h00 horas, de segunda a sexta-feira, em regime de jornada contínua.
ii. A Autora exerceu funções de recepcionista no horário das 8h00 às 18h00.
iii. Desde o início que a Autora transmitiu à Ré, e sempre foi do conhecimento desta, o seu desempenho de funções, no período da manhã, como Técnica de Análises Clínicas, para outras empresas, designadamente a Atlanticare (após 2021).
iv. A senhora Dra. BB anuiu, pela Ré, à proposta da Autora de alteração do seu horário de trabalho.
v. A senhora Dra. BB explicou que devido às mudanças no sistema de facturação da ARS a Ré teria de encontrar novas funções dentro da empresa para a Autora e não se justificava continuar a fazer um horário até tão tarde (21 h), o que foi objecto de avaliação pela Autora.
vi. Pelo comportamento da Ré, a Autora sentiu-se profundamente humilhada, culminando num esgotamento e depressão profunda.
vii. A referida baixa deveu-se à grave depressão causada pela Ré.
viii. A Autora passou a ter tensão arterial elevada e muitas dores de cabeça, crises de choro constantes e ataques de ansiedade, o que a levou a ter de recorrer a ajuda médica.
ix. A 08.02.2023, a Autora sentia dificuldade em respirar, choro compulsivo, palpitações e tonturas.
x. Em face disto, a Autora sentiu-se cada vez mais pressionada, sem conseguir comer, nem dormir, andando cada vez mais nervosa, sentindo-se desvalorizada.
xi. O horário de trabalho sempre esteve afixado nas instalações da Ré.
xii. A Autora faltou à formação programada pela Ré para os últimos três anos.
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IV – Apreciação do Recurso
1.Da Impugnação da Matéria de Facto
A Apelante expressa impugnar a matéria de facto provada e não provada.
Cumpriu os ónus a que se refere o artigo 640º do CPC.
Impugna os factos descritos sob os nºs 36 e 39 dos provados, que pretende sejam considerados não provados.
Estes factos constituem o teor de duas comunicações. A primeira é um e-mail datado de 10-02-2023, enviado pela ilustre advogada da Autora à Ré, e a segunda consiste numa carta datada de 13-03-2023, enviada pela Autora à Ré. Os factos reproduzem o conteúdo dessas comunicações, e, ao contrário do referido pela Apelante, o tribunal, nesses pontos da matéria de facto, não está a considerar provados os factos relatados nas comunicações, antes que essas comunicações aconteceram e tiveram o descrito teor.
E assim sendo, improcede liminarmente o recurso nesta parte, sem necessidade de apreciação da prova indicada pela Ré com o propósito de infirmar esse conteúdo das comunicações.
São os seguintes os factos não provados, impugnados pela Apelante e que pretende se considerem provados:
ii. A Autora exerceu funções de recepcionista no horário das 8h00 às 18h00.
v. A senhora Dra. BB explicou que devido às mudanças no sistema de facturação da ARS a Ré teria de encontrar novas funções dentro da empresa para a Autora e não se justificava continuar a fazer um horário até tão tarde (21 h), o que foi objecto de avaliação pela Autora.
xi. O horário de trabalho sempre esteve afixado nas instalações da Ré.
xii. A Autora faltou à formação programada pela Ré para os últimos três anos.
É a seguinte a fundamentação da 1ª instância, quanto a tal factualidade: “a demais factualidade alegada, mas não provada, resultou da ausência de prova que a corroborasse, com a necessária segurança.
(…)
A alegação em v) resultou da ausência de prova que a corroborasse.
(…)
A alegação não provada em xi) resultou da ausência de prova que a corroborasse, com a necessária firmeza. As fotografias do horário de funcionamento, sem outra notícia, que a não houve, nada permitiram concluir a seu respeito.
O mesmo se diga quanto à alegação não provada em xii). As impressões dos registos de formação e treino, e de cursos retirados do catálogo nacional, sem outra notícia, foram a nosso ver manifestamente insuficientes para se concluir pelo sentido proposto.
A Apelante fundamenta o seu desiderato de ver provados os referidos factos nas declarações das testemunhas CC, DD e EE.
Ora, ao contrário do referido pela Apelante, não resulta das declarações das testemunhas CC e DD, que, no início da sua prestação de trabalho na Ré, o horário de trabalho da Autora fosse o que resulta do ponto ii dos factos não provados.
A testemunha CC, como resulta da transcrição das suas declarações, o que referiu foi acerca do horário de funcionamento da Ré, e não acerca do horário da Autora, e a testemunha DD, que já trabalhava na Ré quando a Autora iniciou ali a sua prestação laboral, declarou que o horário de trabalho era rotativo, entre as 7.30 horas e as 21.00 horas, respectivamente os horários de abertura e de encerramento da empregadora, mas não conseguiu precisar qual o horário da Autora e se a mesma teve sempre o mesmo horário.
Também os mencionados documentos – contrato de trabalho e declaração de confidencialidade não demonstram o facto, e não corroboram as declarações das referidas testemunhas, ao contrário do referido pela Apelante.
As declarações das mencionadas testemunhas também não demonstram o facto v. dos não provados, dado que o que a testemunha CC referiu, de acordo com as transcrições plasmadas nas alegações, é que houve reuniões em que se falou do assunto do horário de trabalho da Autora, mas não resulta dessas declarações que a Autora esteve presente nessas reuniões, e não resulta dessas declarações que a Dra BB lhe tivesse dado a explicação a que se refere o facto.
A testemunha DD nada referiu a este propósito e os documentos supra referidos nada demonstram a este propósito.
Relativamente aos factos xi e xii as testemunhas indicadas pela Apelante nada referem quanto aos mesmos.
De referir que as transcritas declarações da testemunha EE não têm qualquer relevo para os factos que a Apelante pretende demonstrar, pois ali apenas se refere que a Autora, no seu tempo e local de trabalho estava ao telefone, a praticar actos de índole pessoal.
Improcede, pois, a pretensão da Ré de ver alterada a matéria de facto.
***
2.Da Justa Causa para a Resolução do Contrato por parte da Autora
Insurge-se a Ré contra a decisão proferida pela primeira instância, que considerou ocorrer justa causa para a resolução pela Autora do contrato de trabalho.
No essencial, a Apelante esgrime os seguintes argumentos:
1.Aquando da celebração do contrato, a Autora acordou “em qualquer alteração do horário de trabalho, desde que necessária à actividade” da Ré, atentos “os limites legais, conforme dispõe o artigo 217º do Código do Trabalho.”
2.A Autora conhecia as razões da alteração do horário.
3.Aquando da celebração do contrato, a Autora “assume, desde já e expressamente, o compromisso de se deslocar ou aceitar ser transferida, quando tal mudança se considere necessária ao exercício da actividade comercial e empresarial” da Ré, “ou ao desempenho das funções que lhe são adstritas, nos termos do artigo 193º do Código do Trabalho”.
4.A Autora já tinha sido transferida do seu local de trabalho, pelo que está afastada a aplicação do disposto no artigo 194º nº2 do CT.
5. A Autora violou a obrigação de exclusividade.
6. A Autora não fez prova do prejuízo sério que lhe causaram as decisões da Ré.
Vejamos
Como se sabe, o contrato de trabalho pode cessar, entre outras causas, por resolução pelo trabalhador, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 340º, alínea g), e 394º do CT, que, a título exemplificativo, elenca vários comportamentos susceptíveis de constituírem “justa causa” de resolução.
Assim, nos termos do disposto no art. 394º nº1 do Código do Trabalho, “Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.”
O art. 395º do CT prevê o procedimento a adoptar pelo trabalhador para a resolução do contrato.
A resolução do contrato pelo trabalhador está prevista pelo legislador para situações particularmente graves no âmbito da relação laboral, em que não é exigível a manutenção dessa relação, pelo que opera imediatamente o seu efeito extintivo, como resulta do nº1 do art. 394º supra referido.
Ao remeter para o disposto no art. 351º está o legislador a sublinhar a mesma ideia de inexigibilidade que subjaz ao despedimento com justa causa.
Ater-nos-emos ao conteúdo da carta remetida pela Autora à Ré para pôr termo ao contrato , pois “[N]a acção em que for apreciada a ilicitude da resolução, apenas são atendíveis para a justificar os factos constantes da comunicação referida no nº1 do artigo 395º” (cfr. art. 398º nº3 do CT), sendo a partir dessa indicação que se afere da procedência dos motivos invocados.
A Autora fundamenta a resolução do seu contrato de trabalho na alteração do horário e do local de trabalho, que entende ser ilícita1. Conclui pela existência de assédio moral e pressão psicológica atenta a sua recusa em aceitar o part-time que lhe foi imposto.
Constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, entre o demais e para o que ao presente caso interessa, a violação culposa das garantias legais ou convencionais do trabalhador (cfr. art. 394º nº2 b) do CT), sendo a justa causa avaliada nos termos do nº3 do art. 351º, com as necessárias adaptações.
De acordo com as regras de repartição do ónus da prova, plasmadas no art. 342º nº1 do Código Civil, incumbia à Autora alegar e provar os factos por si invocados para justificar a resolução do contrato de trabalho, porque constitutivos do direito alegado, ou seja, a alteração ilícita do horário e local de trabalho.
À Ré cabia provar que a falta de cumprimento da obrigação, a existir, não procedeu de culpa sua (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil).
Relativamente ao que resulta da comunicação de resolução do contrato (facto 39), resultou provado, com interesse, que a Ré, ora recorrente, na sequência do pedido da Autora para alterar o seu horário de trabalho, iniciando-o uma hora mais tarde para poder acorrer à sua outra actividade profissional, alterou unilateralmente e substancialmente o horário de trabalho, com o que esta manifestou expresso desacordo (factos 9, 12, 16, 17, 19, 20, 21, 24 e 25).
O horário de trabalho traduz-se, nos termos do artigo 200º do CT, na “determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal” (nº 1), sendo este que “[de]limita o período normal de trabalho diário e semanal” (nº 2).
Ou seja, o horário de trabalho traduz-se na fixação concreta, no tempo, do número de horas que o trabalhador se comprometeu a prestar e é ele que delimita o espaço temporal em que o trabalhador está vinculado a prestar o trabalho ou permanece adstrito à sua realização, enunciando as horas do início, interrupção e termo do período normal de trabalho.
Em matéria de horário de trabalho, define o art. 212º do CT, na senda dos poderes de direcção do empregador de que falam os art. 11º e 97º do mesmo diploma legal, que a este compete “determinar o horário de trabalho do trabalhador, dentro dos limites da lei, designadamente do regime de período de funcionamento aplicável.” (nº1)
Relativamente à alteração do horário de trabalho, pauta o artigo 217º do CT, nos seguintes moldes: “1 – À alteração de horário de trabalho é aplicável o disposto sobre a sua elaboração, com as especificidades constantes dos números seguintes.
2 – A alteração do horário de trabalho deve ser precedida de consulta aos trabalhadores envolvidos e à comissão de trabalhadores ou, na sua falta, a comissão sindical ou intersindical ou aos delegados sindicais, bem como, ainda que vigore o regime da adaptabilidade, ser afixada na empresa com antecedência de sete dias relativamente ao início da sua aplicação, ou três dias em caso de microempresa.
3 –Exceptua-se do disposto no número anterior a alteração de horário de trabalho cuja duração não seja superior a uma semana, desde que seja registada em livro próprio, com a menção de que foi consultada a estrutura de representação colectiva dos trabalhadores referida no número anterior, e o empregador não recorra a este regime mais de três vezes por ano.
4 – Não pode ser unilateralmente alterado o horário individualmente acordado.
5 - A alteração que implique acréscimo de despesas para o trabalhador confere direito a compensação económica.
6 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto neste artigo.”
Resulta da citada norma legal que o empregador pode alterar unilateralmente o horário de trabalho, só assim não sendo se as partes acordarem especificamente sobre um determinado o horário. Neste caso, o empregador fica impedido de tal alteração unilateral, face ao disposto no artigo 217º nº 4 do CT, assim como está ainda impedido de o fazer (unilateralmente) nos casos em que o horário de trabalho constituiu um elemento essencial do contrato celebrado, em modos tais que o trabalhador o não teria celebrado não fosse aquele horário específico, ou quando o instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável proíba que o horário seja alterado sem o acordo do trabalhador.
Nos demais casos, como é o dos autos em que do contrato não resulta o horário de trabalho da Autora, o empregador pode proceder à sua alteração, desde que respeite os seguintes requisitos: consulta prévia dos trabalhadores afectados pela alteração, consulta prévia da Comissão de trabalhadores ou, na sua falta, da comissão sindical ou intersindical ou dos delegados sindicais, elaboração de um novo mapa do horário de trabalho, contendo a alteração produzida, e afixação desse novo mapa em todos os locais de trabalho, contendo a alteração produzida.
O facto de as partes terem acordado, no contrato, que a empregadora podia alterar o horário de trabalho da Autora desde que essa alteração fosse necessária à prossecução da actividade daquela, esse acordo não tem a virtualidade de afastar o disposto no artigo 217º nº2 do CT, que é uma norma imperativa que estabelece requisitos para essa alteração, mormente a consulta do próprio trabalhador, sabido que é que a alteração do horário de trabalho pode revestir-se de grande delicadeza, pois, como salienta Monteiro Fernandes, “(P)or um lado, a faculdade de definir o horário de trabalho releva do poder de organização do trabalho que, em geral, pertence à entidade empregadora, e que é um instrumento fundamental de gestão da empresa. Mas, por outro lado, o horário de trabalho é uma referência fundamental da organização da vida do trabalhador; alterá-lo sem acordo pode afectar seriamente interesses e conveniências pessoais respeitáveis.”2 E disso estava a Ré ciente porquanto do contrato de trabalho ressalva-se que a alteração do horário de trabalho terá sempre em consideração os “limites legais, conforme dispõe o artigo 217º do Código do Trabalho”.
No caso, a Ré alterou o horário de trabalho da Autora em 13-01-2023 e em 08-02-2023. Fê-lo sem consultar a trabalhadora.
Ora, o que resulta do disposto no artigo 217º nº2 do CT é que “atendendo à relevância que, na economia do contrato, assume o horário de trabalho, considerou o legislador que, nas situações em que surja a necessidade de alteração unilateral desse horário, promovida pelo empregador, tenha que ser observado o formalismo constante do n.º 2, do art. 173.º3 4, do Código do Trabalho, reconhecendo, assim, a relevância que, em determinadas situações, podem assumir os subsídios resultantes da consulta recolhida junto das estruturas representativas dos trabalhadores (1)5.
No caso do citado acórdão estava em causa a consulta de uma estrutura alheia ao conflito, no entanto, por maioria de razão, considerando “ o particular melindre de que tal decisão se poderá revestir na relação laboral em si e na própria vida do trabalhador seu destinatário.”, e que “as sobreditas situações se reportam a um período de plena vigência da relação vinculística, durante a qual é pacificamente reconhecida a desigualdade negocial das duas partes em confronto.6, as consequências da não observância do requisito de consulta do trabalhador não podem deixar de ser as mesmas. E, tal como assinalado na sentença recorrida,“a consequência da omissão do direito de audição do trabalhador não se pode resumir à prática da contra-ordenação grave prevista no nº 6 do artigo 217º, pois seria a nosso ver manifestamente curto para uma relação que se pretende pautada pela boa fé.”, apesar, aduzimos nós, de o resultado de tais consultas não ser vinculativo para a entidade patronal, mas, ainda assim e atenta a importância da questão para o trabalhador, a lei exige que na ponderação dos interesses da organização caiba também a ponderação, pelo empregador, dos interesses do trabalhador, por forma a, tanto quanto possível, obter uma solução de compromisso. A omissão de consulta do trabalhador traduz-se na violação de uma formalidade ad substantiam, que visa salvaguardar de forma efectiva o interesse do trabalhador tutelado pela norma, e cuja preterição afecta a validade do acto de alteração do horário de trabalho.7
O que resulta concretamente apurado nos presentes autos é que a Autora, em 27-12-2022, solicitou verbalmente autorização à Ré para passar a iniciar as suas funções às 13.00 horas, ao invés de às 12.00 horas, como acontecia até então (facto 16), e formalizou esse pedido em 05-01-2023, explicando as razões do pedido (facto 18). Em 13-01-2023, Ré propôs à Autora que esta passasse a prestar trabalho em regime de part-time – horário das 13.00 às 18.00 horas – com a proporcional redução do vencimento, o que a Autora recusou (factos 20 e 24). Ainda em 13-01-2023, a Autora recebeu uma comunicação da alteração do horário de trabalho, que passaria a ser das 09.00 às 18.00 horas, ao invés das 12.00 às 21.00 horas (factos 21 e 9). Em 19-01-2023, a Ré informou a Autora de que o seu requerimento de 13-01-2023 fora indeferido (facto 24). Em 08.02-2023 foi comunicada à Autora nova alteração do seu horário de trabalho (para além da alteração do local de trabalho), passando a ser das 07.30 às 12.30 horas e das 14.30 às 17.30 horas, de segunda a sexta-feira, e das 07.30 às 12.30 horas aos sábados (facto 26).
Resulta assim dos factos provados que a Ré não auscultou a Autora acerca da sua pretensão de lhe alterar o horário de trabalho, e não resultou provado que a Autora conhecesse previamente as razões dessa alteração, pelo que não restam dúvidas sobre a ilicitude, por invalidade, da alteração ou alterações preconizadas.
E tal seria suficiente para fundamentar a resolução do contrato de trabalho pela Autora, se considerarmos que a Ré agiu culposamente, e lhe causou prejuízo, por inviabilizar que pudesse cumprir a outra actividade profissional a que estava vinculada, como veremos infra.
Mas a Autora fundamenta a resolução do contrato de trabalho também na alteração do local de trabalho.
Entre os comportamentos do empregador susceptíveis de configurar justa causa de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, conta-se a transferência de local de trabalho.
Nos termos do disposto no art. 193º do CT “O trabalhador deve, em princípio, exercer a actividade no local contratualmente definido, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte” (nº1). E o art. 129º proíbe ao empregador, como regra, “Transferir o trabalhador para outro local de trabalho …” (nº1 f)
O art. 53º da CRP consagra o princípio da segurança no emprego, que constitui, não apenas uma garantia dos trabalhadores à permanência da relação de trabalho, mesmo contra a vontade do empregador, como também uma garantia à protecção na organização interna do trabalho, dentro da empresa, protegendo-o nomeadamente de mudanças arbitrárias do local de trabalho.
O legislador ordinário, em obediência a este princípio, consagrou a garantia da inamovibilidade do trabalhador, vedando, como regra, à entidade patronal a transferência do prestador de trabalho para outro local de trabalho. É que, de facto, “na economia do contrato de trabalho, o lugar de execução da prestação laboral constitui um aspecto de suma importância, para o empregador como para o trabalhador.
(…)
Ao contratar determinado trabalhador a entidade empregadora visa obter a disponibilidade da respectiva mão-de-obra num certo local … em ordem a combinar essa mão-de-obra com a dos demais trabalhadores e com os restantes factores produtivos, só assim se podendo atingir os objectivos prosseguidos pelo empregador.
(…)
É em função desse mesmo lugar que o trabalhador vai organizar e planificar toda a sua vida extraprofissional …” .8
No entanto, a lei prevê importantes excepções a esta garantia da inamovibilidade, revelando “especial sensibilidade ao interesse do empregador (ou da empresa)9. Desde logo, manifestam-se essas excepções na alínea f) do nº1 do art. 129º do CT, “salvo nos casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho”, mas também no artigo 194º, entre elas se contando aquela que nos ocupa no presente caso, a saber, admite-se a transferência do trabalhador para outro local de trabalho, definitivamente, “[Q]uando outro motivo do interesse da empresa o exija e a transferência não implique prejuízo sério para o trabalhador.” (sic art. 194º nº1 b) do CT
O conceito de “prejuízo sério” assume assim particular importância na matéria que nos ocupa. Trata-se de um conceito indeterminado , incumbindo ao trabalhador alegar e provar factos do qual o mesmo transpareça, e que levem o tribunal a concluir pela prevalência dos interesses do trabalhador face aos da empresa, no confronto entre o prejuízo invocado por aquele e o benefício alegado por esta.
Transcrevendo ainda os esclarecedores ensinamentos de Monteiro Fernandes, “O “prejuízo sério” a que a lei se refere é, como evidenciou Bernando Xavier, uma consequência hipotética ou virtual da transferência; quando, no art. 194º/1 CT, se emprega a expressão “não implique prejuízo sério para o trabalhador”, está-se a significar que a transferência não deve ser de molde a, face às circunstâncias concretas, provocar tal prejuízo.
Trata-se de um juízo antecipado de probabilidade ou de adequação causal, que, no entanto, implica a consideração de elementos de facto actuais – como as condições de habitação do trabalhador, os recursos existentes em matéria de transportes, o número, idade e situação escolar dos filhos, a situação profissional do cônjuge e de outros elementos do agregado familiar, a medida das compensações financeiras que o empregador oferece.
A natureza e a extensão de tal “prejuízo” não são susceptíveis de uma definição abstracta: a determinação do “prejuízo sério” depende sempre do confronto entre as características da alteração unilateral do local de trabalho (distância, condições concretas do novo local) e as condições de vida do trabalhador. Os fundamentos do direito à conservação do local de trabalho relacionam-se muito estreitamente, com a tutela de interesses pessoais (e não tanto profissionais) do trabalhador. A consideração de uma transferência como “causa adequada” de prejuízos importantes – e, portanto, a determinação da possibilidade de recusa da alteração unilateral do lugar de trabalho – só pode resultar de uma análise das condições concretas da organização de vida do trabalhador, que são justamente o objecto de tutela da garantia de inamovibilidades.
Por outro lado, é necessário que o prejuízo expectável seja sério, assuma um peso significativo em face do interesse do trabalhador, e não se possa reduzir à pequena dimensão de um “incómodo” ou de um “transtorno” suportáveis.
A “seriedade” do prejuízo pode (e deve) ser apreciada em absoluto, na dimensão que assume perante o quadro normal da vida de uma família – a necessidade de o trabalhador gastar mais uma hora em transporte por dia, ou de mudar os filhos para outra escola a meio do ano lectivo, ou de o cônjuge abandonar um emprego a tempo parcial, ou de adquirir uma nova casa em local mais dispendioso – e também em termos relativos, confrontando-se com os motivos que o empregador tem para determinar a transferência e com as consequências que, para a empresa, envolverá a sua não realização.10
Também a jurisprudência vem densificando o conceito de “prejuízo sério”.
Assim, refere-se no Acórdão do STJ de 25-11-201011 que “Esse prejuízo sério deve consubstanciar um dano relevante, que não se reconduza a simples transtornos ou incómodos: torna-se mister que a alteração ordenada afecte, substancialmente e de forma gravosa, a vida pessoal e familiar do trabalhador visado.”
Ou no Acórdão do STJ de 03-03-201012, “O prejuízo sério a que se refere a lei deve ser apreciado segundo as circunstâncias concretas de cada caso, devendo a transferência assumir um peso significativo na vida do trabalhador, abalando, de forma grave, a estabilidade da sua vida, violando, assim, a garantia da inamovibilidade que o legislador tutela.(..)A medida dos prejuízos causados ao trabalhador com a transferência tem que ser encontrada a partir dos factos que por ele sejam alegados e que possibilitem determinar aquilo que é essencial na sua vida e, consequentemente, apurar em que medida esta foi afectada.(..) A noção de prejuízo sério assume particular relevo e terá, necessariamente, de entender-se, por definição contextual aberta, como sendo um juízo antecipado de probabilidade ou de adequação causal, que implica, contudo, a consideração de elementos de facto actuais.“.
No acórdão da Relação de Coimbra de 30-04-201913V - A existência de prejuízo sério afere-se na consideração de elementos factuais concretos da organização da vida pessoal e familiar do trabalhador - o objecto de tutela da garantia de inamovibilidade - entre outros, os recursos existentes em matéria de transportes, o número, idade e situação escolar dos filhos, a situação profissional do cônjuge e de outros elementos do agregado familiar, sendo necessário, para que se verifique, que a transferência afecte substancialmente a estabilidade daquela organização, indo para além dos simples transtorno ou incómodos.
VI - Tal como configurado na alínea b) do n° 1 do artº 194° do CT, a inexistência de prejuízo sério é um requisito constitutivo do direito do empregador a transferir o trabalhador. Daí que lhe caiba o ónus de alegar e provar, na parte que controla, a concreta inexistência de prejuízo sério para o trabalhador afectado pela medida, nos termos do artº 342°, n° 1, do Cod. Civil.”
E ainda o acórdão desta Secção de 10-10-201314, “II.A existência de prejuízo sério afere-se na consideração de elementos factuais concretos da organização da vida pessoal e familiar do trabalhador - o objecto de tutela da garantia de inamovibilidade - entre outros, os recursos existentes em matéria de transportes, o número, idade e situação escolar dos filhos, a situação profissional do cônjuge e de outros elementos do agregado familiar, sendo necessário, para que se verifique, que a transferência afecte substancialmente a estabilidade daquela organização, indo para além dos simples transtorno ou incómodos.
III. Resultando do elenco factual que a única forma da trabalhadora conseguir manter a disponibilidade pessoal para assegurar o cumprimento das suas obrigações laborais perante a R - apresentando-se no novo local de trabalho e cumprindo o total do número de horas diárias de trabalho - pressupunha a reorganização da sua vida familiar em aspectos fundamentais e já estabilizados, importando alterações que necessariamente se refletiriam com relevância assinalável, e de forma gravosa, na sua vida pessoal e familiar, nomeadamente, na vida e educação das suas filhas ou, pelo menos, de uma delas, é de concluir que há um dano relevante a atender, bem para além dos simples transtornos ou incómodos, consubstanciando prejuízo sério para fundamentar resolução do contrato de trabalho com direito a indemnização, nos termos estabelecidos no art.º 315.º n.ºs 2 e 4, do CT/03. (sic sumário).15
De tudo se conclui que, para aferir da existência do denominado “prejuízo sério” cumpre analisar os concretos factos da concreta situação pessoal e familiar do trabalhador, verificando-se se a transferência de local de trabalho afecta, e em que medida, a estabilidade da vida pessoal e familiar do mesmo, em grau superior ao dos simples transtornos ou incómodos.
Do exposto resulta também que o facto de a Autora aquando da celebração do contrato de trabalho ter assumido “desde já e expressamente, o compromisso de se deslocar ou aceitar ser transferida, quando tal mudança se considere necessária ao exercício da actividade comercial e empresarial” da Ré, “ou ao desempenho das funções que lhe são adstritas, nos termos do artigo 193º do Código do Trabalho”. (facto 2), tal não desonera o empregador de dar cumprimento ao disposto nos artigos 193º, 194º e 196º do CT. É certo que, quer o artigo 129º nº1 f), quer o artigo 194º nº3 se reportam ao acordo das partes que legitima a transferência do local de trabalho, mas esse acordo não é uma cláusula em branco, e não pode significar uma renúncia antecipada, ex ante e genérica da protecção jurídica dada pelo princípio da inamovibilidade do local de trabalho.
A Recorrente faz apelo ao princípio da autonomia da vontade ao invocar o disposto no artigo 405º do C.Civil, no entanto, tal princípio, como resulta do próprio preceito legal, não é absoluto, mas está sujeito aos limites definidos na lei. Cumpre recordar que em matéria de local de trabalho o princípio é o da proibição da transferência, prevendo o artigo 129º nº1 f) e 194º desvios a tal princípio - nos casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, ou ainda quando haja acordo, como resulta do 1º, e em caso de mudança ou extinção, total ou parcial, do estabelecimento onde aquele presta serviço, ou quando outro motivo do interesse da empresa o exija e a transferência não implique prejuízo sério para o trabalhador, como resulta do 2º. Assim, considerando a natureza e importância dos interesses subjacentes ao local de trabalho, sendo escassos, embora importantes, os desvios ao principio da inamobilidade do local de trabalho, e rodeando-os o legislador de cautelas (artigo 196º do CT), tutelando-os com normas de imperatividade mínima, a renúncia antecipada a estas garantias deve ser acompanhada da previsibilidade e determinabilidade do universo de situações abrangidas no momento do acto de renúncia (por exemplo, entendemos como válida a cláusula contratual em que o trabalhador aceita a possibilidade de o seu local de trabalho ser alterado dentro de uma determinada área geográfica) .
E assim sendo, a cláusula do contrato de trabalho invocada pela Apelante é nula, por o seu objecto ser indeterminável (artigo 280º nº1 do C. Civil).
De notar também que a comunicação da alteração do local de trabalho refere apenas que “vem, por este meio, informar V.ª Ex.ª que, por razões de reorganização interna tendo como objectivo o melhoramento dos seus serviços por um lado e, por outro, o incremento positivo dos cuidados de saúde aos pacientes, o seu local de trabalho passará a ser no posto de colheitas de “Análises clínicas da Cintramédica II”, situado na Rua César Raul da Costa Andrade, nº 1-A, Ericeira.” (facto 26) à motivação, esta, tal como referido pela Autora na comunicação da resolução do seu contrato, que é uma fundamentação genérica, que carece de factos concretos, não esclarecendo das razões concretas que justificam, na óptica da empregadora, a transferência da Autora, em violação do disposto no artigo 196º nº 2 do CT.
Assinala-se, ademais, subscrevendo-se aquilo que a 1ª instância referiu na sentença em recurso, que “o empregador conhecia, ao menos desde 05.01.2023, o facto de a A. ter um emprego no período da manhã. A sua necessidade para a A. parece clara, pois dificilmente alguém se propõe a trabalhar tantas horas diárias sem pungente necessidade.
Sabia, ainda, que esse trabalho é em Lisboa. Por fim, apesar de as diferentes localizações se situarem na área metropolitana de Lisboa, para quem reside em Queluz não é o mesmo, em termos de tempo de transporte, trabalhar em Sintra ou na Ericeira, para mais quando se impõe como horário de apresentação as 07h30.
(…)
No caso, além do que já se disse sobre a mudança unilateral do horário de trabalho, a ida da trabalhadora para o posto de colheitas da Ericeira, além de não fundamentada, impedia-a, na prática, do exercício de uma segunda actividade profissional em Lisboa, pela distância.
A proibição de prática concorrencial, sendo certa em termos relativos (pois podia ser ultrapassada por acordo) não se revelou em concreto. Em qualquer caso, a R. soube dela ao menos em 05.01.2023 e optou por nada fazer disciplinarmente.
Assim é.
De facto, a Autora, por escrito datado de 01.05.2014, declarou que assumia o compromisso de «não exercer quaisquer actividades profissionais noutra empresa do mesmo ramo de actividade, sem acordo prévio». Não resulta provado qualquer acordo prévio entre as partes sobre a actividade da Autora na Atlanticare, mas a Autora, desde 25.01.2021, presta serviços como Técnica de Análises nesta empresa (facto 12), que se dedica, entre outras, à prestação de serviços de segurança e saúde no trabalho (facto 13). No entanto, pelo menos desde 27-12-2022 que a Ré tinha conhecimento de que a Autora prestava funções também para a Atlanticare (factos 16 e 17), e nada resulta dos autos que tenha retirado desse facto qualquer consequência, quer exortando a Autora a afastar-se desse outro trabalho, quer agindo disciplinarmente, ou tão somente argumentando que, face à ilicitude do comportamento da Autora não valeriam os argumentos desta para não ser transferida. Portanto, o argumento trazido agora a debate raia a má-fé e não procede.
Ora, a alteração, para quem mora em Queluz, do local de trabalho, de Sintra para a Ericeira, é significativa e inviabiliza, tanto mais que acompanhada por um horário de trabalho das 07.30 às 12.30 e das 14.30 às 17.30, que a Autora possa comparecer no seu outro local de trabalho, que se situa em Lisboa. E resulta dos factos provados que a Autora necessita desse outro trabalho para fazer face às suas despesas, se considerarmos que tem um filho a estudar na Universidade (ensino privado), cujos custos suporta e se atendermos ao montante do seu salário mensal, sendo de concluir que a Autora logrou provar que a sua transferência para a Ericeira causava-lhe prejuízo sério, porquanto ficaria impedida de exercer a sua outra actividade profissional.
Face a esta ilicitude da transferência, cai ainda por terra o argumento de a Autora já tinha sido transferida do seu local de trabalho, pelo que está afastada a aplicação do disposto no artigo 194º nº2 do CT.
Em face do exposto, não restam dúvidas em como a Ré violou culposamente, na modalidade de dolo, garantias da trabalhadora, e praticou actos susceptíveis de lesarem interesses patrimoniais sérios da trabalhadora, e que tais condutas, pela sua gravidade e consequências, tornam inexigível que a Autora mantenha o contrato de trabalho, ocorrendo justa causa para a sua resolução.
Improcede, assim o recurso.
***
V – Decisão
Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por Cintramédica II, Serviços de Saúde, Lda, mantendo-se a douta sentença recorrida.
Custas a cargo de Apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 26-03-2025
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Alexandra Lage
Maria José Costa Pinto
_______________________________________________________
1. Acrescenta que a retribuição de Fevereiro de 2023 foi paga com atraso, assim como existia atraso da Ré em assegurar as consultas de medicina do trabalho. Estes dois fundamentos não estão em causa no recurso.
2. In Direito do Trabalho, 16ª edição, pág. 289.
3. Acórdão do STJ de 24-02-2010 – Processo 248/08.0TTBRG.S1.
4. No acórdão citado foi aplicado o CT/2003, e a questão prendia-se com a ausência de consulta da Comissão de Trabalhadores. O artigo 173º nº2 do CT/2003 tinha a seguinte redacção, para o que ao caso interessa – “1 - Não podem ser unilateralmente alterados os horários individualmente acordados.
2 - Todas as alterações dos horários de trabalho devem ser precedidas de consulta aos trabalhadores afectados, à comissão de trabalhadores ou, na sua falta, à comissão sindical ou intersindical ou aos delegados sindicais, ser afixadas na empresa com antecedência de sete dias, ainda que vigore um regime de adaptabilidade, e comunicadas à Inspecção-Geral do Trabalho, nos termos previstos em legislação especial. (…)”. Apesar de proferido no âmbito de diferente legislação, mas considerando a similitude das normas dos artigos 173º nº2 do CT/2003 e 217º nº2 do CT/2009, é a mesma a razão de decidir em ambas as situações, dado, ademais, que, em ambos os casos, estamos em presença de horários que não são individualmente acordados. – Nota da relatora.
5. (1) Embora não abordando expressamente a consequência decorrente da omissão da fase de consulta mas abordando o processualismo inerente à alteração do horário de trabalho, veja-se Maria do Rosário Palma Ramalho e Júlio Manuel Gomes, respectivamente, em Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, 2008, pág. 473, e Direito do Trabalho, Volume I – Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, págs. 671 e 672. – Nota de rodapé do acórdão citado.
6. Ambas as citações são do acórdão em referência.
7. No mesmo sentido, o citado acórdão do STJ, proferido no processo 248/08.0TTBRG.S1, o acórdão da Relação do Porto de 05-01-2017 – Processo 14805/14.1T8PRT.P1 – o acórdão da Relação de Guimarães de 03-11-2022 – Processo 2037/20.4T8BRG.G1 – e doutrina e jurisprudência aí citadas.
8. João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 3ª edição, reimpressão, pág. 249-250.
9. Monteiro Fernandes Direito do Trabalho, 16ª edição, pág. 367.
10. Autor e ob. Citados, pág. 369-370.
11. Processo 411/07.0TTSNT.L1.S1.
12. Processo 933/07.3TTCBR.C1.S1.
13. Processo 1326/18.2T8CTB.C1.
14. Processo 93/08.2TTCSC.L1-4.
15. No mesmo sentido, vide ainda acórdão do STJ de 07-11-2007 – Processo 07S2365, e acórdão da Relação de Lisboa de 24-06-2009 – Processo 203/08.0TTVFX.L1.