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CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
PRÉMIO VARIÁVEL
Sumário
I – Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando há incompatibilidade entre o meio de prova invocado na fundamentação e os factos dados como provados com base nesse meio de prova. II - Pratica a contraordenação prevista e punida pelos artigos 79º, n.º1 e 171º, n.º1 da LAT, o empregador que não transfira a responsabilidade infortunística pela ocorrência de acidente de trabalho para uma entidade legalmente autorizada a realizar seguro de acidente de trabalho. III- Tratando-se de contrato de seguro, na modalidade de prémio variável, constitui obrigação da entidade empregadora o envio, até ao dia 15 de cada mês, de cópia das declarações de remunerações do seu pessoal remetidas à segurança social, relativas às retribuições pagas no mês anterior. IV- Para se verificar a prática da contraordenação, torna-se necessário aguardar até ao dia 15 do mês subsequente ao da admissão dos trabalhadores, e a entidade empregadora não proceder ao envio à seguradora das folhas de remuneração relativas a esses trabalhadores.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
1- Relatório
1. AA veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) que lhe aplicou a coima de 26 UC’s (€ 2652,00) pela prática de uma contraordenação, p.p. nos artºs. 79, nº. 1, e 171, nº. 1, da Lei 98/2009, de 4/9 e al. a) do n.º 4 do art.º 554.º e art.º 562.º, do Código do Trabalho – falta de seguro de acidente de trabalho.
A arguida alegou, como se refere no relatório da sentença recorrida que «tem um seguro aberto com período trimestral, sendo enviadas as declarações e folhas da Segurança Social e demais informações que possam ser solicitadas pela Entidade Seguradora, para cálculo do prémio trimestral com as alterações, entretanto havidas durante cada período», verificando-se «pelo Extracto de Declaração de Remunerações para a Segurança Social, de que os referidos trabalhadores, objecto de inspecção, estavam contidos nesse Extracto desde o mês sete (7), e com trinta (30) dias de trabalho, o que quer dizer que o foi desde o inicio do contrato de trabalho existente (Doc. 2 e 2A/B) – cfr. vii) e viii) a fls. 63 e 64». Pelo que «os trabalhadores em causa estavam inscritos tanto na Segurança Social, como em termos de seguro de acidentes de trabalho sendo que a documentação utilizada para o efeito da Segurança Social e para informação à Seguradora, para quem se transfere responsabilidades, é a mesma e segue o procedimento para acerto de prémio trimestral e não mensal» -– cfr. ix) a fls. 64 .”
2. Recebido o recurso, foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos do art. 39º, n.º 1 da Lei 107/2009, de 14 de setembro, não tendo sido deduzida oposição.
3. Foi, então, proferida sentença, decidindo-se:
“Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida, pelo que esta vai condenada na coima de €2.652,00 (dois mil, seiscentos e cinquenta e dois euros) pela prática contra-ordenação p.p. nos artºs. 79.º, nº. 1, e 171.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4/9, acrescida da sanção acessória da publicidade da decisão condenatória (sendo solidariamente responsáveis pelo pagamento da coima BB, CC e DD).”
4. A arguida/recorrente, inconformada com a decisão da 1ª instância, dela interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: “1. Não pode a Recorrente e tomadora de seguro, aceitar a condenação de que foi alvo por parte do Tribunal a quo com uma coima no montante de € 2652,00 e custas, para além de sanção acessória da publicidade da decisão condenatória, sanção com efeitos reputacionais na activadade da restauração. 2. O Tribunal a quo contradiz-se na matéria objecto da sua fundamentação de Direito, face ao conteúdo da douta decisão de que se recorre. 3. O Tribunal a quo conclui na sua douta sentença, em sede de fundamentação de Direito, abster-se de responder à matéria de facto alegada pela Recorrente por considerar irrelevante, o que espanta desde logo, face ao envolvido, e à documentação que foi junta. 4. O Tribunal a quo nada acrescenta na douta sentença de que se recorre, para além de decalcar a auto de notícia da ACT e a decisão desta. 5. O Tribunal a quo na sua fundamentação de Direito, falha o alvo quando (eventualmente por não conhecer) entende que o tipo de seguro em consideração nos autos é do tipo de a prémio fixo, não se compreendendo de onde retirou tal conclusão, desde logo à revelia das partes (seguradora e tomadora de seguro), e sabendo que a Lei do Contrato de Seguro e a vasta Jurisprudência, prevê que a ser a prémio fixo teria de surgir a expressão da convenção estabelecida entre as partes no caso concreto, na Apólice e nas Actas que surgissem entretanto, o que não acontece. 6. Foi a ACT que obrigou a tomadora de seguro a enviar mail com o nome dos trabalhadores para constarem de Acta, o que foi feito a dia 10, com insistência a dia 12, e Acta extraordinária com data de dia 11 de Julho de 2023, assim se satisfazendo a ACT, e agora o Tribunal a quo na douta sentença de que se recorre, mesmo que à revelia do procedimento acordado entre as partes (mas parece que ficou o “mundo” contente). 7. Não interessou ao Tribunal a quo o conteúdo da Apólice existente, a falta de menção de convenção para seguro a prémio fixo, e muito menos a alteração que a Recorrente foi obrigada a fazer naquele mês quanto ao procedimento legal que tinha presente como acordado com a seguradora “Caravela”, do envio de folhas mensais de remunerações, e identificação dos trabalhadores, em conformidade com o teor da Apólice nas suas Cláusulas Gerais e Especial (01), face ao tipo de seguro a prémio variável, tendo em conta a actividade da restauração. 8. A Acta 7, que o Tribunal a quo [descurou] completamente, e que se encontra nos autos, refere que se está perante actividade de “Restaurante tipo tradicional”, sendo que todo o seu texto, aliás produzido por pressão e imposição da ACT, sem que o Tribunal a quo fosse sensível à questão, nada menciona a título de convenção (sendo imperativo na lei) da existência de um seguro a prémio fixo, como pretendeu o Tribunal a quo defender e demonstrar, infelizmente sem êxito, e para além de em desconformidade com a norma legal a esse respeito, como demostrado nas presentes Alegações. 9. O Tribunal a quo fez uma tremenda confusão, quer na sua fundamentação de Direito, afinal sem menção de normas legais (para além da entendida pela ACT), e também uma confusão de conceitos, que não se crê por desconhecimento, mas por mero lapso, salvo o devido respeito que é muito. 10. Conclui o Tribunal a quo de que «a arguida não tinha transferido validamente a sua responsabilidade por acidente de trabalho . . .», quando afinal a Recorrente e tomadora de seguro cumpriu escrupulosamente o que consta da Apólice, e que não é derrogado por qualquer Acta, enviando mensalmente as folhas de remunerações periódicas da Segurança Social, conforme acordado entre as partes no tipo de seguro em vigor, e respaldado no teor da Cláusula Especifica da Apólice (01). 11. Os trabalhadores estavam assim ao abrigo do seguro de acidentes de trabalho, desde o início do seu contrato, na data 01/07/2023 (ver documentos 2, 2-A e 2-B junto com recurso da decisão da ACT). 12. O seguro contratado com a seguradora é demonstrado no teor da Apólice disponibilizada por aquela, estando aqui presente o seguro a prémio variável, conforme definição da lei e da jurisprudência, e outra coisa não comunica a seguradora “Caravela”. 13. Assim a Recorrente e tomadora de seguro transferiu a sua responsabilidade para a seguradora “Caravela”, no que diz respeito aos trabalhadores em causa, e identificados nos autos, desde o início do seu contrato a 01/07/2023. 14. Os exemplos de actividades invocados nas presentes Alegações ajudam a entender claramente de que a Recorrente e tomadora de seguro contratou um seguro a prémio variável, e não um a prémio fixo, como pretendeu fazer vingar a douta sentença de que se recorre, na sua douta fundamentação de Direito, sem qualquer prova, nem menção legal, mas apenas uma narrativa, onde o Tribunal a quo se esqueceu da imperatividade legal de que se assim fosse como defendeu, então quer na Apólice, quer nas Actas, extraordinárias ou ordinárias, tinham de conter expressa a convenção celebrada entre seguradora e tomadora de seguro (vejam-se Actas 6.0/6 e 7), o que não se verifica, restando por isso a conclusão simples e fácil de que se está perante um seguro a prémio variável para um “restaurante tipo tradicional” (Acta 6.0/6), actividade com enorme rotatividade de pessoal, como outras actividades mencionadas a titulo de exemplo nestas Alegações, visando a entendimento da questão em apreço 15. O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, e não por algum conceito meramente administrativo, sem interferência das partes interessadas. 16. A verdade é que nem em sede de Direito e sua fundamentação, o Tribunal a quo apresenta qualquer norma legal que possa colocar em crise o acordado entre seguradora e tomadora de seguro, na referida liberdade contratual, nem mesmo o procedimento estabelecido no conteúdo da Apólice disponibilizada à Recorrente, e mais, nada apresenta o Tribunal a quo que ateste, como pretende que o seguro contratado em a prémio fixo, até porque não faria sentido, nem quanto à actividade em concreto, nem quanto à falta de expressão de qualquer convenção a esse respeito, em sede de Apólice ou Acta disponibilizada (ver Actas 6.06 e 7.) 17. Facto é que a documentação incluindo o conteúdo das Cláusulas Gerais e Particulares/Especiais (01), demonstram que a Recorrente e tomadora de seguro cumpriu com o que estabelece a norma legal, transferindo em tempo útil, desde o início do contrato de trabalho de cada um dos trabalhadores, a sua responsabilidade para a seguradora “Caravela”, e afinal outra coisa não consegue demonstrar o Tribunal a quo, quer factualmente, quer na sua douta fundamentação de Direito, aqui visada. 18. Nessas Cláusulas Gerais e Particulares/Especiais tornou-se evidente, em sede das presentes Alegações, de que o procedimento correcto no caso concreto é a entrega das folhas de remunerações periódicas da Segurança Social, por o seguro ser de adesão e continuado (conceito UE), e assim comprovadamente do tipo a prémio variável, para além de pagamento trimestral quanto ao prémio (podendo ter qualquer outro fraccionamento para pagamento), que se fundamenta nessas informações que chegam à seguradora até quinze de cada mês. 19. A obrigação do artigo 79.º, n.º 1 da Lei 98/2009 de 4 de Setembro foi sempre demonstrada pela Recorrente e tomadora de seguro, de que cumpria nos precisos termos com o consagrado na respectiva Apólice (Doc. 5). 20. Os procedimentos adoptados pela seguradora e tomadora de seguro, como partes no contrato estabelecido, sempre cumpriu a Lei do Contrato de Seguro, como demonstrado, não diminuindo qualquer garantia dos trabalhadores identificados, que estavam englobados no seguro continuado de acidentes de trabalho desde a inscrição na Segurança Social e início do respectivo contrato de trabalho. 21. O mencionado artigo 79.º da Lei 98/2009 de 4 de Setembro menciona a obrigação de transferir a responsabilidade, o que a arguida fez, enviando toda a informação contida no referido Extracto da Segurança Social, e reconhecido pela seguradora “Caravela Companhia de Seguros” que nada adicional pediu, como se demonstra pelas Actas 6.0/6 e 7, esta última que a seguradora se viu obrigada a produzir fase ao proceder administrativo abusivo da ACT, e que o Tribunal a quo acolheu na sua douta sentença de que se recorre. 22. Com todo o respeito, a Recorrente não vislumbra ter agido com negligência no caso concreto, como invoca o Tribunal a quo a decalque da anterior decisão ACT, e muito menos que pode ser condenada como o foi, já que tal condenação não manifesta qualquer ancoragem quer factual, quer legal. 23. Não podendo a Recorrente aceitar a prática de qualquer ilícito censurável, mesmo que a título de negligência, por aquilo que nunca praticou, antes sempre adoptou o procedimento acordado entre seguradora e tomadora do seguro, pelo que não pode existir qualquer condenação nos termos notificados à Recorrente, pois não existindo ilícito, não existe condenação, por muito que possa ser difícil ao Tribunal a quo assim constatar no caso concreto.”
E, termina, concluindo que que deve ser revogada “ a condenação na coima de € 2.652,00 (dois mil seiscentos e cinquenta e dois euros), quando se demonstra provado (ver documentação) a inexistência de qualquer ilícito, antes o correcto procedimento da Recorrente perante um seguro a prémio variável com o envio das folhas de remunerações periódicas da Segurança Social, e cumprimento do conteúdo das Clausulas Gerais e Especial (01) da Apólice contratada para um “restaurante tipo tradicional” (Acta 6.0/6), quanto à coima aplicada no processo de contra- ordenação” e, ainda, “ a condenação na sanção acessória da publicidade da decisão condenatória, com os efeitos nefastos na reputação da actividade da Recorrente, e constatando-se sem fundamento face à inexistência de qualquer ilícito.”
5. A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela arguida, pugnando, a final, pela manutenção da sentença recorrida.
6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de o recurso interposto ser julgado improcedente, por entender, em resumo, que a recorrente não vai nesta segunda instância conseguir alterar a matéria de facto fixada nas instâncias anteriores e, “tendo por base a factualidade assente na douta sentença recorrida, a única conclusão possível é que, até a data da ação inspetiva, a Recorrente não tinha transferido validamente a sua responsabilidade relativa aos acidentes de trabalho dos seus empregados EE e FF (ou GG).”
7. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a recorrente veio responder, manifestando a sua discordância do Parecer do Ministério Público e reiterando que apenas vem recorrer da matéria de direito e não da matéria de facto.
II – Objeto de recurso.
Importa assinalar-se que estatui o art. 60º da Lei 107/2009, de 14.09, sob a epigrafe “Direito subsidiário” que às contraordenações laborais e de segurança social, sempre que o contrário não resulte da lei, se aplica o regime geral das contraordenações. Este regime está previsto no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, com as subsequentes alterações – a última das quais decorrente da Lei n.º 109/2001 de 24.10.
E que, por via do artigo 41.º, n.º 1, Decreto-Lei 433/82, de 27-10, são também aplicáveis às contraordenações laborais e de segurança social, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo criminal, máxime as pertinentes disposições do Código de Processo Penal.
E, ainda que este Tribunal de recurso apenas conhece de matéria de direito, artigo 51.º. n.º 1, da citada Lei n.º 107/2009, sem prejuízo da apreciação dos vícios da matéria de facto nos termos previstos no n.º 2 do artigo 410º do CPP (Código de Processo Penal), bem como da verificação das nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do artigo 379.º, n.º 2, e do n.º 3 do artigo 410.º do CPP.
Assim considerando o exposto, sendo o objeto de um recurso delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, artigos 403.º, n.º 1, e 412.º, n.º 1, do CPP, ex vi artigo 50.º, n.º 4, Lei n.º 107/2009, de 14 e as conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes as questões suscitadas:
- vícios na fundamentação da sentença;
-saber se a recorrente não praticou a contraordenação que lhe foi imputada
III – Fundamentação de Facto
3.1. A decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “FACTOS PROVADOS: (com relevância para a decisão da causa) 1. A arguida, pessoa coletiva n.º ..., tem sede na ... e local de trabalho no estabelecimento comercial “Restaurante Casa Ideal”, sito no mesmo local. 2. A arguida dedica-se à atividade principal de “Restaurantes Tipo Tradicional” e tem o CAE 56101. 3. No dia 10 de Julho de 2024, pelas 15:30 horas, a arguida tinha ao seu serviço os trabalhadores EE, com a categoria profissional de empregada de mesa, e FF (ou GG), com a categoria profissional de ajudante de cozinha, admitidos, pelo menos, a 01/07/2023. 4. O contrato de seguro de acidentes de trabalho que a arguida contratou com a seguradora “CARAVELA”, tem um prémio anual fixo com uma modalidade de pagamento fracionado trimestral. 5. A arguida apresentou à ACT, notificada para tanto, as condições particulares da apólice referentes ao contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a “CARAVELA, Companhia de Seguros, S.A.” com a apólice n.º 10. 126563, através do qual transferiu a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, onde constam os trabalhadores supra referidos, para além de outros, como pessoas seguras, «com data efeito: 11/07/2023 (Ata n.º: 6.0/6)». 6. A arguida comunicou um volume de negócios relativo ao ano de 2022, de € 359.037,00. ** Factos Não Provados: - Que o contrato de seguro de acidentes de trabalho que a arguida contratou, para abranger os trabalhadores ao seu serviço, tenha a modalidade seguro de prémio variável/folhas de férias. ** Não se responde à restante matéria de facto alegada, por se entender que é irrelevante para a decisão da causa. ** FUNDAMENTAÇÃO A convicção do tribunal, quanto aos factos que se deram como provados, resultou do teor do auto de notícia, que não foi impugnado e do que resulta dos documentos juntos aos autos pela arguida, quer na fase administrativa, quer na fase judicial, criticamente analisados e concatenados entre si.”
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3.2. Ressalvados os casos previsto no art.º 410º1, n.º 2, als. a), b) e c) do CPP, este Tribunal ad quem apenas conhece de direito, estando-lhe vedada a apreciação, em recurso, da matéria de facto apurada pelo tribunal a quo.
Conforme esclarecem Simas Santos, Leal Henriques e David Borges de Pinho2 em anotação ao art. 410º do CPC “[d]eve notar-se que a al. a) do nº 2 se refere à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º), que é insindicável em reexame da matéria de direito. Por sua vez a contradição a que se reporta a al. b) é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência. Finalmente o erro notório na apreciação da prova a que alude a al. c) é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente. Esse erro existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, v.g., (…) Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ao das legis artis. Não pode esquecer-se que, como se prescreve na 2ª parte do corpo do nº 2, os vícios apontados nas suas alíneas têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou com recurso às regras da experiência comum, não sendo permitida a consulta de outros elementos constantes do processo.”
Paulo Ramos de Faria e Nuno Lemos Jorge3 referem-se ao error in judicando (erro de julgamento) como uma falha no julgamento do thema decidendum, seja este de direito, processual ou material, seja de facto, sendo que “[o]corre um error in judicando na decisão da matéria de facto quando o tribunal falha na afirmação ou na negação dos factos ocorridos (positivos ou negativos), tal como a realidade histórica resultou demonstrada da prova produzida, havendo uma divergência entre esta demonstração e o conteúdo da decisão de facto (questão de facto) – sobre o tema, cfr. o Ac. do STJ de 30-09-2010 (341/08.9TCGMR.G1.S2).
Paulo Pinto de Albuquerque - Comentário ao Código Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição, Lisboa, 2009, p. 1095), ao proceder à delimitação positiva do erro notório na apreciação da prova dá como exemplo, além do mais, a incompatibilidade entre o meio de prova invocado na fundamentação e os factos dados como provados com base nesse meio de prova (por exemplo, a incompatibilidade entre o conteúdo do documento invocado na fundamentação e o facto dado como provado com base nesse meio de prova).
Resulta da fundamentação da sentença que, o Tribunal ponderou quanto aos factos dados como provados, os documentos junto aos autos pela arguida, quer na fase administrativa, quer na fase judicial.
Ora, se atentarmos nesses documentos, designadamente nas condições gerais da apólice e especiais – documento n.º 5 junto na fase judicial4, a fls. 95 e ss do processo – bem como nas atas, a recorrente tem a sua responsabilidade infortunística transferida para a Seguradora Caravela, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... na modalidade de prémio variável, e não de prémio fixo como consta do facto provado 4.
Estamos, pois, em presença de um erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal a quo, e cuja reparação passa pela alteração oficiosa da matéria de facto, de forma a que fique sanada a incompatibilidade entre o conteúdo do documento invocado na fundamentação e os factos dados como provado e não provado.
Assim sendo, procede-se à alteração da decisão do Tribunal a quo quanto ao facto provado 4 que passará a constar da matéria de facto não provada e ao facto não provado que passará a constar da matéria de facto provada.
3.3. São, pois, os seguintes factos materiais relevantes para a decisão da causa: 1. A arguida, pessoa coletiva n.º ..., tem sede na ... e local de trabalho no estabelecimento comercial “Restaurante Casa Ideal”, sito no mesmo local. 2. A arguida dedica-se à atividade principal de “Restaurantes Tipo Tradicional” e tem o CAE 56101. 3. No dia 10 de Julho de 2024, pelas 15:30 horas, a arguida tinha ao seu serviço os trabalhadores EE, com a categoria profissional de empregada de mesa, e FF (ou GG), com a categoria profissional de ajudante de cozinha, admitidos, pelo menos, a 01/07/2023. 4. O contrato de seguro de acidentes de trabalho que a arguida contratou, para abranger os trabalhadores ao seu serviço, tem a modalidade seguro de prémio variável/folhas de férias. (alterado) 5. A arguida apresentou à ACT, notificada para tanto, as condições particulares da apólice referentes ao contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a “CARAVELA, Companhia de Seguros, S.A.” com a apólice n.º 10. 126563, através do qual transferiu a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, onde constam os trabalhadores supra referidos, para além de outros, como pessoas seguras, «com data efeito: 11/07/2023 (Ata n.º: 6.0/6)». 6. A arguida comunicou um volume de negócios relativo ao ano de 2022, de € 359.037,00. ** Factos Não Provados: Que o contrato de seguro de acidentes de trabalho que a arguida contratou com a seguradora “CARAVELA”, tenha um prémio anual fixo, com uma modalidade de pagamento fracionado trimestral. (alterado)
IV- Fundamentação de Direito
Estabelece o artigo 79.º, n.º 1, da Lei 78/2009, de 04.09 (LAT), que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, que o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista naquela lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro. De acordo, com o art. 171º, n.º 1 da LAT constitui contraordenação muito grave a violação do disposto no n.º 1 do art. 79º.
O contrato de seguro de acidentes de trabalho está sujeito uma apólice uniforme nos termos do artigo 81.º da LAT, segundo o qual “a apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho adequada às diferentes profissões e atividades, de harmonia com os princípios estabelecidos na presente lei e respetiva legislação regulamentar, é aprovada por portaria conjunta dos ministros responsáveis pelas áreas das finanças e laboral, sob proposta do Instituto de Seguros de Portugal, ouvidas as associações representativas das empresas de seguros e mediante parecer prévio do Conselho Económico e Social”.
A Portaria a que se refere este normativo é a Portaria 256/2011, de 05 de julho.
Especificamente quanto às modalidades da cobertura, a cláusula 5ª do Anexo da citada Portaria (Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por conta de outrem) dispõe que “o seguro pode ser celebrado nas seguintes modalidades: a) Seguro a prémio fixo, quando o contrato cobre um número previamente determinado de pessoas seguras, com um montante de retribuições antecipadamente conhecido; b) Seguro a prémio variável, quando a apólice cobre um número variável de pessoas seguras, com retribuições seguras também variáveis, sendo consideradas pelo segurador pelo segurador as pessoas e as retribuições identificadas nas folhas de vencimento que lhe são enviadas periodicamente pelo tomador do seguro.”
É, ainda, relevante para o caso sub judice ter presente a cláusula 24º, n.º 1 al c) da Apólice Uniforme relativa às obrigações do tomador do seguro, segundo a qual este se obriga a enviar mensalmente à seguradora, quando se trate de seguro de prémio variável e “até ao dia 15 de cada mês, cópia das declarações de remunerações do seu pessoal remetidas à segurança social, relativas às retribuições pagas no mês anterior, devendo no envio mencionar a totalidade das remunerações previstas na lei como integrando a retribuição para efeito de cálculo da reparação por acidente de trabalho, e indicar ainda os praticantes, os aprendizes e os estagiários.”
Quanto às condições especiais da apólice é importante atentar na condição especial 01, na qual se refere que:
1. Nos termos desta condição especial, e de acordo com o disposto na alínea b) da cláusula 5º das condições gerais, estão cobertos pelo contrato os trabalhadores ao serviço do tomador do seguro na unidade produtiva identificada nas condições particulares, de acordo com as folhas de retribuições periodicamente enviadas ao segurador nos termos da alínea a)don.° 1 da cláusula 24.° das condições gerais.
2. O prémio provisório é calculado de acordo com as retribuiçõe anuais previstas pelo tomador do seguro.
3. No final de cada ano civil ou aquando da cessação do contrato e sem prejuízo do disposto no n,° 5, é efetuado o acerto, para mais ou para menos, em relação à diferença verificada entre o prémio provisório e o prémio definitivo, calculado em função do total de retribuições efetlvamente pagas durante o período de vigência do contrato.
(…)”.
Por seu turno na claúsula 24º, n.º1, al. a) das Condições Gerais estipula-se que o tomador do seguro se obriga “ a enviaraté ao dia 15 de cada mês, cópia das declarações de remunerações do seu pessoalremetidas à Segurança Social, relativas às retribuições pagas no mês anterior, devendo no envio mencionar a totalidade das remunerações previstas na lei como integrando a retribuição para efeito de cálculo da reparação por acidente de trabalho, e indicar ainda os praticantes, os aprendizes e os estagiários.”
Voltando ao caso concreto, importa ter presente o facto de a recorrente à data da visita inspetiva, ter transferida a sua responsabilidade infortunística pela ocorrência de acidentes de trabalho para a seguradora” Caravela”, mediante contrato de seguiro titulado pela apolice n.º 10.126563, na modalidade de prémio variável.
Ou seja, um contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de prémio variável, que se caracteriza pelo facto da apólice cobrir um número variável de pessoas seguras, com retribuições seguras também variáveis e, que de acordo com o previsto nas condições gerais e especiais, abrange as pessoas e retribuições constantes das folhas de retribuições enviadas periodicamente pelo tomador do seguro à seguradora. O envio dessas folhas de retribuições deve ser efetuado pelo tomador do seguro à seguradora até ao dia 15 de cada mês.
O objeto do seguro de prémio variável depende da declaração periódica do tomador de seguro, constituindo obrigação do tomador do seguro o envio, até ao dia 15 de cada mês, de cópia das declarações de remunerações do seu pessoal remetidas à segurança social, relativas às retribuições pagas no mês anterior.
Neste modelo de contrato de seguro, no entanto, não é estabelecida nenhuma específica obrigação sobre o tomador do seguro de comunicar à seguradora o início de atividade de qualquer trabalhador.
Os trabalhadores, EE e FF foram admitidos a 01/07/2023, como resulta dos documentos de fls. 5 e 6 do processo físico.
Ora, tendo a visita inspetiva ocorrido, no dia 10.07.2023, não se tinha, ainda, verificado a obrigação da recorrente de enviar à seguradora as folhas de retribuição relativas a estes trabalhadores, obrigação essa que a recorrente podia cumprir até ao dia 15 de agosto de 2023, enviando as folhas da retribuição liquidada no mês de julho de 2023.
Assim, apesar de, a 10.07.2023, data em que ocorreu a fiscalização e dos documentos entregues pela recorrente à autoridade administrativa, não estarem mencionados os trabalhadores, EE e FF, admitidos ao serviço da recorrente, em 01.07.2023, tal não significa que estes trabalhadores não estivessem a coberto do seguro contratado pela recorrente, desde a data da sua admissão ao serviço da recorrente, ou seja, desde 01.07.2023.
Na verdade, para se concluir que os trabalhadores em questão, não estavam à data da realização da ação inspetiva, abrangidos pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de prémio variável celebrado pela recorrente com a seguradora Caravela, era preciso esperar até ao dia 15 de agosto de 2023 e verificar que a recorrente não tinha enviado à seguradora as folhas de remuneração relativas aqueles trabalhadores, o que não se demonstrou.
Terá, pois, de proceder recurso interposto.
V – Decisão
Em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, a sanção acessória e a condenação solidária dos sócios gerentes da recorrente.
Sem custas pela recorrente.
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Lisboa, 26 de março de 2025
Alexandra Lage
Celina Nóbrega
Susana Silveira
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1. O artº 410º do Código de Processo Penal dispõe que: “1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”
2. In Código de Processo Penal, II Volume, 1996, páginas 514 e 515.
3. Na Revista Julgar Digital, setembro de 2024, pág. 13, “ As outras nulidades da sentença cível”
4. E já junto, como documento n.º 4, na fase administrativa, cfr. fls. 31 e do processo.