PRISÃO PREVENTIVA
PERIGOS
PROPORCIONALIDADE
ADEQUAÇÃO
NECESSIDADE
Sumário

I - A prisão preventiva é aplicável quando, estando fortemente indiciada a prática de algum dos crimes enumerados no artigo 202.º do Código de Processo Penal, se verifique algum dos perigos previstos no artigo 204.º do mesmo diploma, tendo sempre presente os princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade.
II - Sendo a prisão preventiva a medida de coação mais gravosa, por implicar a total restrição da liberdade individual, tem natureza subsidiária e excecional, o que significa que só deve ser aplicada, se todas as restantes medidas se mostrarem inadequadas ou insuficientes para a salvaguarda das exigências processuais de natureza cautelar que o caso requeira.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
Nos autos de Inquérito n.º 557/24.0PGLRS-A.L1, que correm termos no DIAP de Loures, na sequência do primeiro interrogatório de arguido detido e por despacho de 05.12.2024, a M.ª Juíza de Instrução determinou que o recorrente, AA, por se encontrar fortemente indiciado pela prática de dois crimes de homicídio agravados e na forma tentada, pp. pelo artigo 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas h) e j) do Código Penal, aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva e proibição de contactar, por qualquer meio, os ofendidos.
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Inconformado com esta decisão, o arguido dela interpôs recurso, pretendendo a revogação do despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que aplique apenas o TIR ou, caso assim não se entenda, a medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.
Para o efeito apresentou as seguintes conclusões que se transcrevem:
“I
A Senhora BB reconhece que o local onde se encontrava “...a rede que a filha tem no quintal não permite uma vista limpa.", ou seja, não permitia uma vista clara das pessoas que estavam na via pública
II
Acresce, ainda que é a própria Senhora BB a afirmar que tudo aconteceu muito rápido, e que os tiros que ouviu apenas ocorreram após a mesma já se encontrar no interior da residência:
"Que nesse momento sentiu medo e empurrou o CC para dentro de casa e fechou a porta atrás de si. No exacto momento que fechou a porta sentiu uma rajada de tiros contra a habitação."
III
Assim, para além da dificuldade visual provocada por uma lona verde existente, que "não permite uma vista limpa" temos ainda a rapidez com que os factos terão ocorrido.
IV
Acresce, ainda, que, é contrário ás regras da lógica e da experiência comum, que se o Recorrente pretendesse "matar" a senhora BB e o seu filho fossem disparar contra a casa e porta da filha e irmã destes, quando tinha contacto direto com os próprios, sabiam onde moravam, onde estavam e até onde a Senhora BB tinha a sua banca de venda.
V
Não faz, com o devido respeito, qualquer sentido que alguém que procure matar outra pessoa vá disparar tiros contra a parede e porta de uma casa quando tem acesso direto ás pessoas que pretende matar.
VI
Efetuada busca á residência do Arguido não lhe foi encontrada qualquer arma, ou outro objeto de igual natureza.
VII
Assim, não poderia o Tribunal a quo concluir que se mostrava fortemente indiciado que foi o Arguido que levou a cabo os referidos disparos, pelo que, não deveria o mesmo ter sido sujeito à medida de coação de prisão preventiva, pelo que, o tribunal a quo violou os artigos 191º a 1930, 196º, 202°, n.°1 al. a) e b) e art.° 204º, alíneas b) e c), todos do C.P.P.
Contudo, mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se coloca á cautela ainda diremos o seguinte:
VIII
Acresce, ainda, que, no modesto entendimento da defesa, os factos indiciados não consubstanciam a prática de dois crimes de tentativa de homicídio qualificado, mas ao invés um crime de ameaça agravado.
IX
Atente-se que a pessoa que efetua os disparos espera que as pessoas entrem no interior da sua casa e só quando estas já têm a porta fechada efetua os disparos.
"Que nesse momento sentiu medo e empurrou o CC para dentro de casa e fechou a porta atrás de si. No exacto momento que fechou a porta sentiu uma rajada de tiros contra a habitaçao."
X
Alguém que efetua disparos contra uma parede e uma porta está, evidentemente, a pretender provocar receio pela integridade física e vida das pessoas, mas não a tentar tirar-lhes a vida.
XI
Com efeito, aquilo que resultou das declarações da Senhora BB foi claramente que apenas após a mesma entrar e fechar a porta de casa, e quando já não se encontrava ninguém ao alcance da arma, foram efetuados os disparos e não antes.
XII
Assim, no caso sub judice, com o devido respeito, o Tribunal a quo precipitou-se ao considerar, desde logo estar em causa a prática de dois crimes de homicídio qualificado na foram tentada, previsto e punido nos termos dos artigos 23°, 132º, n.º 1 e 2, alínea h), por referência ao artigo 131° do Código Penal.
XIII
Ao invés, entende o Recorrente que a prova constante dos autos permitia sim o enquadramento no crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 155.º n.°1, alínea a) do C.P.
XIV
Fortes indícios para efeitos de despacho judicial de medidas coactivas: "São aqueles indícios que se apresentam com verdadeira consistência, com grau de definição marcado que, sem chegar necessariamente a oferecer a "possibilidade razoável" de que fala o n.º 2 do Artigo 283° do C.P.P., se imponha claramente com a probabilidade de que, com tais indícios, a indicação se irá desenvolver num sentido que atinja aquela probabilidade "razoável" - Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15/03/2000 e de 29/11/1997.
XV
Acrescente-se por fim que o princípio da proporcionalidade, aqui na sua dimensão de proibição de excesso, não exige a aplicação de qualquer medida de coacção que restrinja os direitos fundamentais do arguido com uma intensidade equivalente à da gravidade do crime cometido. Esse princípio constitui um limite à intervenção do Estado, que não um seu fundamento.
XVI
Em face de tudo o que ficou exposto e presentes que são, por um lado, os princípios da excepcionalidade, da adequação e da proporcionalidade, Artigos 280 n.° 2 da C.R.P. e 193° do C.P.P., da medida de coacção de prisão preventiva, e por outro que "cumpre ... rodear de todas as cautelas necessárias e razoáveis a aplicação de uma medida que incide sobre cidadãos que se presumem inocentes e que reveste uma gravidade extrema", afigura-se-nos por adequada e proporcional a medida de coacção de T.I.R. nos termos do artigo 196° do C.P.P.
XVII
Sendo certo que, caso se considerasse que ao Arguido deveria ser aplicada uma medida de coação restritiva da liberdade, então deveria e podia o Tribunal a quo aplicar a medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação, prevista no artigo 201° do C.P.P.
Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão deve o presente Recurso obter provimento.
Assim decidindo farão V. Exas, a tão costumada JUSTIÇA”.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e sem efeito suspensivo.
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O Ministério Publico respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, nos seguintes termos (transcrição):
“1. A 5 de Dezembro de 2024, foi aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, por estar indiciado pela alegada prática de dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido nos termos dos artigos 23.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea h), por referência ao artigo 131.º, do Código Penal.
2. À data, verificavam-se o perigo de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito, na vertente da conservação e veracidade da prova, para além do perigo de perturbação da ordem e tranquilidades públicas.
3. O arguido alega que: (1) tem dúvidas de que a denunciante tenha visto o arguido, (2) que o desentendimento anterior foi com o filho da denunciante pelo que não faria sentido atentar contra a vida desta, (3) se o arguido tivesse intenção de matar teria disparado às pessoas e não à parede e porta da casa da filha da denunciante.
4. A denunciante explicou, o arguido foi a única pessoa que ela conseguiu sem dúvidas identificar, exactamente, por ele estar colocado na parte dianteira direita do veículo automóvel.
5. No dia dos factos o filho da denunciante estava consigo no local onde os tiros foram disparados, pelo que seriam ambos o alvo, um principal, outro necessário.
6. Bem se percebe da dinâmica de vestígios das munições que os disparos começaram no logradouro da casa, avançaram pela parede da mesma e terminaram na porta, que a denunciante explicou, fecharam no exacto momento em que as munições já os iriam alc-çançar.
7. Tal, mais não é do que a execução de actos sequenciais destinados a atingir a denunciante e o filho com tiros de arma de fogo mortalmente, o que é susceptível de integrar o crime de homicídio qualificado na forma tentada.
8. O princípio da proporcionalidade, da adequação e da necessidade não foi violado, porquanto apenas a medida de coacção de prisão preventiva permite debelar os perigos que determinaram a sua aplicação, pelo que se pronuncia o Ministério Público no sentido de que o arguido deverá aguardar o decurso do inquérito sujeito a tal medida.
Termos em que negando provimento ao recurso e mantendo o douto despacho recorrido, V.ªs Ex.ªs farão Justiça”.
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A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer (transcrição):
“Analisados os elementos de prova certificados, o despacho recorrido e os fundamentos do recurso, aderimos à resposta ao recurso apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, por se apresentar fundamentada, crítica, clara e adequada.
Sublinhamos, no entanto, que o perigo de continuação da atividade delituosa é muito concreto e decorre da existência de um conflito existente entre o recorrente e os ofendidos, acentuado pela pendência de um processo contra o recorrente com origem numa queixa do ofendido e pela prática dos factos no decurso do período de suspensão de execução de uma pena de prisão em que foi condenado, denotando um total desrespeito pela ordem jurídica e pela comunidade e, sobretudo, da própria personalidade do recorrente: rancorosa, vingativa, agressiva, violenta, destemida e alheia às consequências das suas ações sobre si mesmo.
Termos em que entendemos que o arguido se deve manter sujeito às medidas de coação que lhe foram aplicadas, por se configurarem como as únicas aptas a prevenir os perigos de continuação da atividade delituosa, de perturbação do decurso do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, adequadas às exigências cautelares que o caso requer, proporcionais à gravidade dos crimes e à/s pena/s que previsivelmente virá/ã a ser aplicada/s, sendo de negar provimento ao recurso”.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o arguido respondeu, reafirmando a sua posição já descrita no recurso.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido.
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II. Questões a decidir:
Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise temos de decidir se a prova existente indícia fortemente a prática de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada e se a prisão preventiva é a medida coação adequada ou deve ser substituída por outra menos gravosa.
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III. Com vista à apreciação das questões suscitada, importa ter presente o seguinte teor da decisão proferida:
“A detenção é válida porque efetuada ao abrigo do disposto nos artigos 254.º, n.º 1, alínea a), 257º, nº 1, al. a) e b), 258º e 259º do Código do Processo Penal.
Resulta fortemente indiciada a prática pelo arguido, dos factos descritos no despacho de apresentação do ministério publico de Fls. 299 e seguintes que se da integralmente reproduzida e que integram a pratica do arguido de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada prevista e punida pelos artigos N.º 23, 131, 132 n.º 1 e 2 al. h) j) do C.P.
A forte indiciação resulta da análise critica dos elementos de prova carreados para os autos, nomeadamente do teor do auto de noticia de fls. 123-124; dos depoimentos prestados pelos ofendidos BB e CC, constantes de fls. 115 a 118 e 50 a 52, respectivamente, que de forma consentânea relataram a existência de rivalidades com o arguido e familiares, que perduram desde ... de 2023, referindo o ofendido que em ... de 2023, foi agredido pelo o arguido, que utilizando uma soqueira lhe desferiu socos na cara, fracturando-lhe a mandíbula, teve de ser sujeito a intervenção cirúrgica e ficou internado no Hospital durante dez dias. No dia ...-...-2024, soube através de um primo, que o arguido e os seus irmãos andavam à sua procura para lhe partirem as pernas. A ofendida BB confirmou as agressões que o ofendido disse ter sido vítima em ..., perpretadas pelo arguido, referindo que o que terá motivado essa agressão foi o facto de o filho, que é consumidor de estupefacientes, dever dinheiro da droga ao arguido. Disse ainda que uns meses depois de o filho ter sido agredido pelo arguido, que se encontrava na sua banca de venda de vestuário, em ... junto à pastelaria “...”, cerca das 11 horas, o arguido que se fazia acompanhar pelo irmão DD, dirigiu-se a si disse-lhe que o que tinha feito ao filho, também lhe ia fazer a ela, que tinha uma casa cheia de pistolas e que a ia matar, do que apresentou queixa. No dia ..., soube que o arguido e seus familiares andavam à procura do filho para o matarem, mas como não o encontraram mandaram recado por um indivíduo de etnia …, dando conta que iam partir as pernas ao CC porque o AA não estava para ir preso por causa de um drogado.
Ambos os ofendidos descreveram de forma consentânea, e consistente com o teor do relatório pericial de fls. 168 e seguintes, que no dia ... passado, os factos tal como referido no despacho de apresentação antecedente, explicando que quando ambos se preparavam para sair da residência aí fotografada, surgiu o arguido de dentro de um veículo, do lado do pendura, munido com uma arma de fogo, que apontou na direção dos ofendidos e fez pelo menos cinco disparos, que só por sorte não os atingiram. O resultado dos disparos, está plasmado nas fotos constantes do relatório pericial de fls. 168 a 191, sendo visíveis várias marcas de disparos na habitação, sobretudo na porta e junto à porta, local onde os ofendidos disseram que se encontravam naquele momento, assim como as cápsulas deflagradas que foram recolhidas no local do crime, de calibre 6,35 mm.
A ofendida BB, disse ainda que no dia ... de ... de 2024, quando se encontrava a vender roupa na sua banca, no local já mencionado, passaram por si, EE e a esposa, os quais lhe telefonaram e disseram que a iam matar em casa, explicando que o arguido e os seus familiares não queriam que a ofendida e o filho tivessem apresentado queixa contra o arguido.
Mais disse que conhece bem o arguido e os seus familiares, que residem perto de si, e que conhece o arguido desde criança. Dos depoimentos prestados pelos ofendidos, resulta claro a existência de conflitos e rivalidades entre as famílias de ambos, que terão a na sua base questões ligadas ao tráfico de estupefacientes, que perduram pelo menos desde ....
Pese embora o arguido tenha negado a pratica os factos de que se acha fortemente indiciado, face em exposto entende-se que a prova que já consta dos autos faz cair por terra a negação da pratica dos factos feita pelo arguido, acresce que e em relação a agressão ao ofendido que terá ocorrido em ..., o arguido disse que agrediu o ofendido porque o encontrou dentro de sua casa, juntamente com outro indivíduo a assaltar a casa e que se envolveu com o fendido em confronto físico, sendo que instado a explicar de que forma agrediu o ofendido disse genericamente “que andaram à batatada”.
O arguido negou ter qualquer tipo de relacionamento com os ofendidos e que são falsas as declarações pelo mesmos prestadas, o certo é que não é crível nem resulta das regras da experiência comum que tivessem sido os ofendidos a fazer os disparos que constam do relatório policial efetuados nos autos. Entende o tribunal dar credibilidade aos depoimentos dos ofendidos pelos motivos já referidos, ou seja não só pela prova já revelada nos autos mas também pela falta de credibilidade por parte do arguido na negação dos factos, tendo admitido que nunca teve nenhuma divergência coma ofendida BB, mas que a mesma e a filha fazem muitos disparates e que é o pai do arguido como familiar mais velho que intervém na resolução de problemas causados pelas mesmas.
Face tudo ao exposto e não merecendo a arguida credibilidade e considerando que o arguido agiu com frieza de animo persistindo na intenção.
Mais considero que o arguido agiu com frieza de ânimo, persistindo na intenção de matar há vários meses, atendendo às ameaças anteriormente feitas aos ofendidos. Ademais, pese embora o arguido seja jovem, o certo é que já não é o primeiro contacto com a justiça, na medida em que foi condenado pela prática de um crime de violação de domicilio, e de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por decisão transitada em julgado no dia 17-3-2023, como se extrai do CRC do arguido junto a fls. 112 a 114., o que não foi suficiente para o impedir de continuar a delinquir, não teve pejo em deter de forma ilegal, uma arma de fogo com a qual efectuou vários disparos na direcção dos ofendidos, visando tirar-lhes a vida o que só não aconteceu por motivos alheios à sua vontade.
Entende-se ainda que estamos perante factos que evidenciam a culpa qualificada a que se reportam as circunstâncias do número 2, do artigo 132.º do Cód. Penal, já que o arguido agiu com frieza de ânimo e persistiu na intenção de matar, durante vários meses, e por motivos alegadamente respeitantes ao tráfico de estupefacientes, o que será apurado pela investigação, mas o certo é que o moveu a fazer uso de uma arma de fogo, disparando várias vezes contra o local onde os ofendidos se encontravam, como descrito no despacho de apresentação, visando tirar-lhes a vida como referido pelos ofendidos.
Da descrita actuação conclui-se que o arguido agiu com frieza de ânimo, consciente dos meios empregados na prática do crime, evidenciando ainda que o arguido terá persistido na intenção de matar o ofendido, pelo menos há cerca um ano, data que sucedeu a agressão ao ofendido, em que o arguido lhe partiu a mandibula levando a que tivesse de ser submetido a intervenção cirúrgica e a internamento hospitalar, e conduziu à existência de rivalidade entre a família do arguido e os ofendidos, o que reclama um especial juízo de censura.
Com a descrita conduta o arguido evidenciou um grande à vontade e uma confiança típica de quem demonstra um profundo desrespeito pelas normas vigentes em sociedade e por todos aqueles que dela são parte integrante, denotando uma personalidade fria, calculista e, por conseguinte, muitíssimo perigosa, cometendo tais actos numa zona residencial, sabendo o arguido que se encontra em pleno período de suspensão de execução de uma pena de prisão em que fora condenado, circunstâncias que igualmente nos permitem concluir pela existência, na sua vertente mais elevada, de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, sendo inquestionável a gravidade objectiva das condutas imputadas ao arguido, bem como os sentimentos de insegurança, intranquilidade, medo, revolta e repúdio que as mesmas geram na comunidade em geral.
A conduta imputada ao arguido aliada ao facto de o mesmo denotar grande rancor para com o ofendido, como acima descrito, o que lhe fez despertar sentimentos de ódio ao ponto de querer matar o ofendido, e a ofendida, só por ser mãe do ofendido, actuando com grande desfaçatez, de forma reiterada e sentimento de impunidade, e nada faz prever, pelo contrário, que cessaram os motivos que o levaram a actuar da forma extremamente grave como fez e a repetibilidade da sua conduta, pelo que terá de se concluir que é gritante o perigo de continuação da actividade criminosa.
Acresce que, como se extrai do teor do CRC do arguido junto aos autos, para além do mais, o arguido já anteriormente sofreu uma condenação com pena de prisão suspensa na sua execução, o que não foi suficiente para o demover da prática de novos crimes, como o destes autos, de elevada gravidade e de forma reiterada.
Por fim, e no que se refere ao perigo de perturbação do inquérito, suscita-se o forte receio de que o arguido, face à personalidade violenta que demonstrou ter, por si ou por intermédio de outras pessoas, nomeadamente os seus familiares, aborde os ofendidos, impedindo que venham a prestar depoimento em julgamento ou condicionando os seus depoimentos.
Encontram-se assim reunidos os pressupostos que legitimam a aplicação ao arguido de uma medida de coacção, para além do TIR, conforme resulta no disposto no artigo 204º al. B) e C) do Código de Processo Penal.
Face ao exposto, entendo ser suficiente, proporcional e adequado às exigências cautelares que o caso demanda, à gravidade dos crimes imputados ao arguido, sujeitá-lo, para além do TIR já prestado, nos termos do disposto nos artigos 191.º a 193.º, 196º, 202º, nº 1, al. A) e b), e art.º 204.º, alíneas b) e c), todos do Cód. Proc. Penal, a prisão preventiva, assim como nos termos do art.º 200º al b na proibição de contactar de qualquer forma os ofendidos.
Sendo estas medida de coação as únicas que são capazes de acautelar as necessidades cautelares que o presente caso demonstra”.
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São estes os factos que o tribunal considerou que estavam fortemente indiciados (transcrição):
“1. No dia ... de ... de 2024, cerca das 13h:00, o arguido AA deslocou-se num veículo automóvel de matrícula não concretamente apurado à ....
2. Ali chegado, o arguido saiu do veículo automóvel, onde ocupava o lugar do dianteiro direito do passageiro e munido de uma arma de fogo de marca não concretamente apurado, de calibre 6.35m, e efectuou, de imediato, 7 (sete) a 8 (oito) disparos na direcção da porta da residência sita na ..., onde BB e CC estavam.
3. Nesse exacto momento, temendo o comportamento do arguido BB e CC entraram para dentro do corredor da residência e lograram fechar a porta da mesma.
4. O arguido não é titular de licença de uso e porte de arma que lhe permitisse ter na sua posse a supramencionada arma de fogo.
5. O arguido é suspeito no processo 1068/23.7PFLRS, por factos de ... de ... de 2023, que em abstracto podem integrar o crime de ofensa à integridade física, alegadamente perpetrado sobre CC.
6. Com o supramencionado comportamento, o arguido previu e teve intenção de atingir BB e CC com os vários disparos deflagrados com a arma de fogo que manuseou, direccionando e disparou na direcção daqueles, consciente que, caso lhes acertasse, muito provavelmente, causar-lhes-ia a morte.
7. Ao dirigir os projécteis deflagrados na direcção de BB e de CC, o arguido AA agiu com o propósito de causar a morte do mesmo, bem sabendo que a sua acção era adequada e apta a produzir tal resultado, o qual apenas não ocorreu, em virtude de ter falhado, por razões totalmente alheias e contrárias à sua vontade, atingir aqueles.
8. O arguido com os comportamentos supra descritos, mais concretamente ao disparar pelo menos 7 (sete) projécteis na direcção de BB e CC, actuou com o propósito e com o intuito de causar-lhes a morte, consciente que agia com especial censurabilidade, na medida em que, por um lado, utilizava meio particularmente perigoso que não permitia qualquer tipo de defesa ou retorsão àqueles.
9. Com o supramencionado comportamento, o arguido previu e teve intenção de atingir BB e CC com os disparos deflagrados, direccionando os mesmos para o corpo destes, consciente que a agressão supramencionada, muito provavelmente, poderia causar-lhes a morte.
10. O arguido tinha conhecimento das características e da natureza da arma de fogo que utilizou, manuseou e deflagrou nas circunstâncias de tempo e de lugar acima descritas, bem sabendo que não lhe era permitido detê-la e usá-la, como fez, não se coibindo de o fazer porque era esse o seu propósito, a fim de melhor executar o plano criminoso por si previamente elaborado.
11. O arguido agiu sempre de forma, livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que as condutas supramencionadas eram proibidas e puníveis por lei penal.”.
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IV. Da análise do recurso

IV-A) Dos indícios da prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada
Defende o recorrente que não existem indícios fortes de que foi o autor dos disparos efetuados com arma de fogo contra os ofendidos. A testemunha e ofendida, BB, que o identificou, não só referiu que não tinha grande visibilidade como também afirmou que tudo aconteceu muito rápido. Esta testemunha não se “encontra de bem” com o arguido, por este ter, em data anterior, agredido o seu filho e, efetuada busca à residência do arguido não foi encontrada qualquer arma. Defende, então, o recorrente que o Tribunal a quo não podia ter considerado a factualidade constantes do requerimento do Ministério Público como fortemente indiciada.
Vejamos o que disse a testemunha BB nas declarações que prestou perante o Magistrado do Ministério Público, a ... de ... de 2024.
“A testemunha explica que os denunciados não vivem muito longe da sua residência e que os conhece há já muitos anos.
Que tem um filho com 33 anos que se chama CC que tem acompanhamento em psiquiatria há alguns anos tendo há cerca de dois anos começado a comprar produto estupefaciente no prédio onde mora o AA aqui denunciado.
Instada explica que não sabe se a droga é do AA, o que sabe é que era outro rapaz que vendia a droga à porta daquele prédio
Que o AA já tinha avisado o filho da testemunha que não os queria a consumir a droga à porta do prédio por causa da polícia.
Que no final do mês de ..., pensa que a 31, o filho lhe disse que ia à ..., mas que foi a ... comprar droga.
Que na madrugada de ... o filho lhe entrou casa adentro acompanhado pelos agentes da PSP da ... que chamaram a ambulância para socorrer o filho que tinha os maxilares partidos.
Instada explica que o filho lhe contou que estava nas traseiras do prédio onde comprou a droga sentado no chão entre dois veículos automóveis a fumar quando o AA com uma soqueira numa das mãos lhe desferiu vários murros na cara que o deixaram inanimado.
Que alguém, cuja identidade desconhece, disse ao AA que já o tinha matado e este acabou por sair do local.
Que o filho foi andando e que a PSP o apanhou no caminho pois alguém dos prédios havia accionado a patrulha.
A testemunha explica que desconfia que o filho deve dinheiro da droga e que isto terá sido um acerto de contas e que apresentaram queixa por estes factos.
Que uns meses depois do CC ter sido esmurrado a testemunha tinha a banca de venda de vestuário, com a qual faz negócio junto à pastelaria ..., em ..., quando viu o AA acompanhado do irmão DD a dirigir-se a si, seriam umas 11 da manhã.
Que o AA lhe disse que o que tinha feito ao seu filho também "lhe ia fazer a ela pois tinha uma casa cheia de pistolas e que a ia matar". A pergunta feita respondeu que não lhe foi pedido qualquer dinheiro.
Que lhe respondeu que entregasse a pistola à polícia. Explica que estavam várias pessoas na explanada que ouviram a conversa mas não consegue indicar o nome dos clientes que ali estavam na pastelaria.
Destas ameaças também apresentou queixa.
Que o AA em ... foi chamado aos inquéritos por causa do processo das moléstias físicas ao CC.
Que ficaram muito enervados e andaram à procura do filho para o matarem mas como não o encontraram, mandaram recado por outro indivíduo de etnia …, dizendo-lhe que iam partir as pernas ao CC e matá-lo porque o AA não estava para ir preso por causa de um drogado. Que estes factos ocorreram no dia ... de ... de 2024.
No dia ... de ... de 2024, cerca das 13 horas que chamou o filho e disse-lhe que ia levar o pão a casa da filha para comerem.
Quando chega à porta da casa da sua filha com o CC atrás de si e o filho do CC com 15 anos, entraram para o logradouro da casa, que também fica na ..., mas no n.º ....
Que abriu a porta da casa da filha que o seu neto entrou e o CC ficou junto a si.
A determinada altura entrega o pão e vira-se para ir embora novamente para a sua casa.
Que nesse momento viu um carro escuro grande com várias pessoas no seu interior, conseguindo perceber que o AA saiu de dentro do mesmo com uma arma prateada nas mãos. Instada explicou que não conseguiu identificar os outros ocupantes do carro que ficaram dentro do mesmo e a rede que a filha tem no quintal não permite uma vista limpa.
Que nesse momento sentiu medo e empurrou o CC para dentro de casa e fechou a porta atrás de si. No exacto momento que fechou a porta sentiu uma rajada de tiros contra a habitação.
Que de imediato, ligou para a PSP e esperaram que a patrulha chegasse.
Explicou que a tragédia poderia ter sido muito maior porque a filha tem uma piscina insuflável no quintal e que os netos, entre 4 a 7, também ali costumam estar no logradouro da casa.
Confrontada com fotografias de fls. 29 a 32 explicou a dinâmica do percurso que fez até a casa da filha e o local onde ficaram os vestígios das munições.
Explica que pensa que seria dia ... de ... de 2024 quando estava na sua banca a vender junto à pastelaria e viu passar o EE mais a esposa e que os dois já lhe tinham ligado para o telemóvel a dizer que a iam matar na casa dela.
Explica que eles não queriam que ela e o filho apresentassem queixa contra o AA.
Confrontada com fls. 15 e 57 identifica um indivíduo de sexo masculino como sendo o AA pessoa que saiu do veículo automóvel e que efectuou os disparos entra si e o seu filho.
Que tem medo de andar na rua e de estar em casa pois sabe que eles têm intenção de os matar.
Instada sobre o paradeiro do filho que também estada notificado para hoje explica que o mesmo anda a drogar-se na rua e que não sabe onde ele está explicando que lhe chega a desaparecer por vários dias seguidos de casa”.
O ofendido CC também foi ouvido (depoimento gravado, não transcrito), confirmando existência de conflitos com o arguido, que perduram no tempo, e que, em ..., foi agredido violentamente pelo arguido, com o uso de uma soqueira, fraturando-lhe a mandíbula, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica. Também declarou que, no dia anterior aos factos, soube, através de um familiar, que o arguido e os irmãos andavam à sua procura para o agredir. No dia ... de ... de 2024, quando se encontrava junto à casa da sua irmã, surgiu o arguido munido de uma arma de fogo, que direcionou para si e para a sua mãe, efetuando disparos, que só por sorte não os atingiram.
Não obstante o arguido ter negado a prática dos factos, o certo é que, apesar de não ter identificado as demais pessoas que estavam no interior do carro de onde saiu o arguido, e tudo se ter passado muito rápido, os ofendidos não tiveram qualquer dúvida em identificar o arguido como o autor dos factos. Identificaram-no e também explicaram que já antes o arguido os tinha ameaçado de morte e que iria agredir fisicamente CC.
As desavenças entre eles ocorreram pelo facto de CC ser consumidor de estupefacientes, aventando a sua mãe, a testemunha BB, a possibilidade de ele dever dinheiro ao arguido.
Sabemos que a polícia foi chamada ao local e foram encontrados vestígios que indiscutivelmente confirmam a existência dos disparos relatados pelos ofendidos, nomeadamente projéteis de uma arma de fogo de calibre 6,35 mm.
Em suma, não há qualquer motivo para duvidar dos relatos efetuados pelos ofendidos, que são consentâneos com a prova existente nos autos.
Mostra-se, deste modo, irrelevante que não tenha sido encontrada qualquer arma na residência do arguido, que a pode guardar em qualquer outro local, ou a invocação de que a testemunha BB afirmou que não tinha “uma vista limpa”, pois esta relatou que, apesar deste facto, viu o arguido a efetuar os disparos, não conseguindo apenas ver quem se encontrava no carro de onde saiu o arguido.
Não encontramos qualquer motivo para esta testemunha indicar o arguido como autor dos disparos que não seja contar a verdade dos factos.
Defende o recorrente que os factos não indiciam a intenção de matar, pois os disparos foram efetuados contra a porta e a casa da filha da ofendida, irmã do ofendido, quando tinha contacto direto com os próprios, sabia onde moravam, onde estavam e até onde a testemunha BB tinha a sua banca de venda. Por isto, entende o recorrente que os factos integram um crime de ameaças e não um crime de homicídio qualificado na forma tentada.
Todavia, não tem razão o recorrente.
Sabemos que a intenção que motiva um agente, o dolo, está consagrado no artigo 14.º do Código Penal, é constituído pelo elemento intelectual e pelo elemento volitivo. O elemento intelectual respeita ao conhecimento do tipo de ilícito e exige a previsão ou representação dos elementos objetivos do ilícito, já o elemento volitivo relaciona-se com a vontade de realização um ilícito típico.
Exige-se, ainda, “do agente um momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo, uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo”2.
Daqui resulta que para se considerar que existe uma atuação dolosa por parte do agente, quando este opta (legitimamente) por não prestar declarações ou negar os factos, é necessário recorrer a presunções e às regras da experiência comum partindo sempre da matéria de facto indiciada.
Comos e escreve no Ac. da RC de 08.11.20173, o “dolo é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro. Por assim ser, a sua demonstração probatória, sobretudo, quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. Nestes casos, a prova do dolo tem que ser feita por inferência, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – particularmente, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum [onde a premissa maior é composta pela ou pelas regras da experiência comum convocadas e a premissa menor é composta pelo facto ou pelos factos objectivos provados]”.
Neste segmento de recurso parece esquecer o recorrente que os ofendidos, ao se aperceberem da presença do arguido munido de uma arma, logo fugiram para o interior da casa e é no preciso momento em que fecham a porta que sentem os projéteis a embater na casa. Ou seja, se não tivessem fugido seguramente seriam atingidos pelos projéteis disparados da arma de que se muniu o arguido. Se atentarmos as fotografias juntas com o auto de notícia, verificamos que foram encontrados dois projéteis na porta da casa onde os ofendidos entraram para se protegerem e também há vestígios do embate de projéteis do lado direito da porta, numa zona baixa, o que evidencia que os disparos foram feitos na direção dos ofendidos, para os atingir, e não para o ar, como certamente seriam realizados se a intenção fosse apenas a de assustar.
A conduta perpetrada pelo arguido era idónea a tirar a vida aos ofendidos. Parece-nos, deste modo, evidente, face à concreta conduta do arguido, que o mesmo pretendia tirar a vida aos ofendidos, como já tinha ameaçado que o faria.
Assim, não temos dúvidas que os factos em apreciação, fortemente indiciados, integram o crime de homicídio qualificado na forma tentada, pp. no artigo 131.º e 132.º, alíneas h) e j) do Código Penal. Com bem se explica na decisão recorrida, “o arguido agiu com frieza de ânimo, persistindo na intenção de matar há vários meses, atendendo às ameaças anteriormente feitas aos ofendidos. Ademais, pese embora o arguido seja jovem, o certo é que já não é o primeiro contacto com a justiça, na medida em que foi condenado pela prática de um crime de violação de domicilio, e de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por decisão transitada em julgado no dia 17-3-2023, como se extrai do CRC do arguido junto a fls. 112 a 114., o que não foi suficiente para o impedir de continuar a delinquir, não teve pejo em deter de forma ilegal, uma arma de fogo com a qual efectuou vários disparos na direcção dos ofendidos, visando tirar-lhes a vida o que só não aconteceu por motivos alheios à sua vontade.
Entende-se ainda que estamos perante factos que evidenciam a culpa qualificada a que se reportam as circunstâncias do número 2, do artigo 132.º do Cód. Penal, já que o arguido agiu com frieza de ânimo e persistiu na intenção de matar, durante vários meses, e por motivos alegadamente respeitantes ao tráfico de estupefacientes, o que será apurado pela investigação, mas o certo é que o moveu a fazer uso de uma arma de fogo, disparando várias vezes contra o local onde os ofendidos se encontravam, como descrito no despacho de apresentação, visando tirar-lhes a vida como referido pelos ofendidos.
Da descrita actuação conclui-se que o arguido agiu com frieza de ânimo, consciente dos meios empregados na prática do crime, evidenciando ainda que o arguido terá persistido na intenção de matar o ofendido, pelo menos há cerca um ano, data que sucedeu a agressão ao ofendido, em que o arguido lhe partiu a mandibula levando a que tivesse de ser submetido a intervenção cirúrgica e a internamento hospitalar, e conduziu à existência de rivalidade entre a família do arguido e os ofendidos, o que reclama um especial juízo de censura”.
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IV-B) A questão da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de coação imposta.
O recorrente defende que a medida de coação imposta não é a adequada às exigências cautelares que o caso reclama, pugnando pela aplicação de uma medida menos severa, ou, a considerar a existência dos crimes de homicídio na forma tentada, a medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.
A aplicação de medidas de coação implica sempre restrições ao direito à liberdade, direito fundamental com tutela constitucional, estando por isso submetidas ao princípio da tipicidade e devendo conter-se, de acordo com o estabelecido no n.º 2 do artigo 18.º da CRP4, dentro dos limites necessários à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Por isso, as medidas de coação, com especial enfoque nas privativas da liberdade, não contendem com o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da C.R.P., sendo certo também que não podem constituir uma antecipação da pena e têm sempre natureza excecional e de ultima ratio, obedecendo estritamente aos requisitos fixados na lei.
Nos termos do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, todos têm direito à liberdade e à ..., de harmonia com a consagração do direito à liberdade individual como um direito fundamental.
O direito fundamental a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é, porém, um direito absoluto e as medidas de coação são meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias5.
Em consonância com o referido preceito constitucional, o n.º 1 do artigo 191.º do Código de Processo Penal estabelece os princípios da legalidade e tipicidade das medidas de coação e de garantia patrimonial, consignando que: “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 193.º do Código de Processo Penal estabelece que: “As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”.
O princípio da adequação exige a aplicação da medida de coação que melhor acautele as exigências cautelares que o caso reclama, que ocorra uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar e a concreta medida de coação imposta ou a impor.
O princípio da necessidade assegura que só aquela medida acautela a prossecução das exigências do caso, o que obriga à escolha da medida de coação menos onerosa para o agente de entre aquelas que sejam adequadas.
O princípio da proporcionalidade assenta num conceito de justa medida ou proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coação escolhida. Esta deverá manter uma relação direta com a gravidade do crime e com a sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos.
Foi aplicada ao arguido a medida de coação mais gravosa: a prisão preventiva.
A prisão preventiva está sujeita a critérios de estrita legalidade, prevista como uma das exceções ao princípio enunciado no n.º 2 do artigo 27.º da CRP6.
A sua natureza excecional e subsidiária encontra-se expressamente afirmada no n.º 2 do artigo 28.º da CRP, nos termos do qual “a prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.”
A prisão preventiva é aplicável quando, estando fortemente indiciada a prática de algum dos crimes enumerados no artigo 202.º do Código de Processo Penal, se verifique algum dos perigos previstos no artigo 204.º do mesmo diploma, tendo sempre presente os princípios enunciados: proporcionalidade, adequação e necessidade. Sendo a medida de coação mais gravosa, por implicar a total restrição da liberdade individual, tem natureza subsidiária e excecional, o que significa que só deve ser aplicada, se todas as restantes medidas se mostrarem inadequadas ou insuficientes para a salvaguarda das exigências processuais de natureza cautelar que o caso requeira.
A prisão preventiva, nos termos do artigo 202.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, só pode ser imposta se existirem de fortes indícios da prática de crime doloso, a que corresponda a criminalidade violenta ou seja punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.
No artigo 204.º do Código de Processo Penal são elencadas as exigências cautelares que justificam a aplicação de medidas de coação:
“Nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”.
Estes são pressupostos legais de carácter geral aplicáveis a qualquer outra medida de coação diferente do TIR. Basta a ocorrência de uma destas circunstâncias para que se possa aplicar uma medida de coação.
Analisemos a concreta situação do recorrente.
Os factos fortemente indiciados, como vimos, integram, a prática de dois crimes de homicídio agravados, na forma tentada. Está, consequentemente, demonstrada a existência de “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos”, nos termos exigidos pelo artigo 202.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Preenchido o pressuposto do artigo 202.º do Código de Processo Penal, importa analisar a ocorrência dos pressupostos constantes do artigo 204.º do mesmo diploma legal, em que se baseou o Tribunal a quo para justificar a prisão preventiva do recorrente.
Entendeu a decisão recorrida:
“Com a descrita conduta o arguido evidenciou um grande à vontade e uma confiança típica de quem demonstra um profundo desrespeito pelas normas vigentes em sociedade e por todos aqueles que dela são parte integrante, denotando uma personalidade fria, calculista e, por conseguinte, muitíssimo perigosa, cometendo tais actos numa zona residencial, sabendo o arguido que se encontra em pleno período de suspensão de execução de uma pena de prisão em que fora condenado, circunstâncias que igualmente nos permitem concluir pela existência, na sua vertente mais elevada, de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, sendo inquestionável a gravidade objectiva das condutas imputadas ao arguido, bem como os sentimentos de insegurança, intranquilidade, medo, revolta e repúdio que as mesmas geram na comunidade em geral.
A conduta imputada ao arguido aliada ao facto de o mesmo denotar grande rancor para com o ofendido, como acima descrito, o que lhe fez despertar sentimentos de ódio ao ponto de querer matar o ofendido, e a ofendida, só por ser mãe do ofendido, actuando com grande desfaçatez, de forma reiterada e sentimento de impunidade, e nada faz prever, pelo contrário, que cessaram os motivos que o levaram a actuar da forma extremamente grave como fez e a repetibilidade da sua conduta, pelo que terá de se concluir que é gritante o perigo de continuação da actividade criminosa.
Acresce que, como se extrai do teor do CRC do arguido junto aos autos, para além do mais, o arguido já anteriormente sofreu uma condenação com pena de prisão suspensa na sua execução, o que não foi suficiente para o demover da prática de novos crimes, como o destes autos, de elevada gravidade e de forma reiterada.
Por fim, e no que se refere ao perigo de perturbação do inquérito, suscita-se o forte receio de que o arguido, face à personalidade violenta que demonstrou ter, por si ou por intermédio de outras pessoas, nomeadamente os seus familiares, aborde os ofendidos, impedindo que venham a prestar depoimento em julgamento ou condicionando os seus depoimentos”.
Tem-se entendido este perigo perturbação da ordem e tranquilidade públicas “como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que o mesmo pudesse gerar na comunidade. A nova redacção da al. c) do art.º 204º veio afastar qualquer possível dúvida sobre este aspecto, apontando claramente no sentido que já antes era correcto.” Ou seja, exige-se que “haja perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido”7. No mesmo sentido, veja-se o Ac. RE de 23.11.2021 “o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas deverá sustentar-se em factos dos quais seja possível inferir que a permanência do arguido em liberdade é potencialmente geradora de tal perturbação e deverá reportar-se ao previsível comportamento do arguido no futuro imediato e não ao crime por ele indiciariamente cometido, nem à reação que possa gerar-se na comunidade”8.
Entendemos que existe este perigo, face ao comportamento anterior do arguido, já com condenações anteriores, e a gravidade dos factos agora em análise, a sua libertação causaria perturbação e intranquilidade na sociedade.
Concordamos, também, que existe claro perigo de continuação da atividade criminosa.
Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, a aplicação da medida de coação não deve servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas sim impedir a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está indiciado, ou seja, deve servir para prevenir apenas comportamentos futuros que sejam prolongamento da atividade já indiciada9.
Este perigo é manifestado, desde logo, na conduta agressiva do arguido para com o ofendido, não podemos olvidar que já ocorreram outros episódios, havendo prévias ameaças graves à vida e integridade física de CC. Mantendo-se a conflitualidade, a existência de outro processo crime e os problemas relacionados com os consumos de estupefacientes, o arguido poderia, a qualquer momento, terminar com o que se propôs: tirar a vida aos ofendidos.
A tudo isto há que acrescer o facto de o arguido ter já outras condenações criminais que não tiveram nele o desejado efeito dissuasor, pois continuou a praticar crimes graves, indiferente às penas já sofridas ou às que poderá vir a sofrer.
Se atentarmos ao facto de o ofendido CC ser toxicodependente e a evidenciada personalidade do arguido – agressivo, violento, capaz de prolongar a sua intenção criminosa por vários meses – cremos que poderá exercer pressão sobre as testemunhas, e em especial em relação ao ofendido CC, impedindo-os de serem ouvidos ou condicionando os seus depoimentos.
No circunstancialismo apontado, a mera sujeição do arguido recorrente a qualquer outra medida de natureza não detentiva não satisfaz, evidentemente, as exigências cautelares que o caso demanda, por não se mostrar capaz de conter os perigos já enunciados.
Aqui chegados, concluímos que efetivamente a única medida cautelar que se mostra adequada a afastar os indicados perigos é a prisão preventiva. Nem mesmo a de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica satisfaz as exigências cautelares, pois jamais poderia evitar a continuação da atividade criminosa e a perturbação do inquérito. Com efeito, sabemos que esta medida de coação não evita eficazmente os ditos perigos, podendo o arguido sair de casa e concretizar os seus intentos iniciais ou contactar as testemunhas por meios tecnológicos.
Por fim, diremos que a gravidade dos crimes de que vem fortemente indiciado e a previsibilidade de condenação em pena de prisão efetiva também justifica, do ponto de vista da proporcionalidade, a imposição da prisão preventiva e proibição de contactos.
Em conclusão, o despacho recorrido não merece qualquer censura, não havendo qualquer outra medida de coação que se mostra capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares que o caso requer, pelo que o despacho impugnado não violou qualquer normativo legal ou constitucional, nem os princípios da proporcionalidade, adequação e subsidiariedade.
Improcede assim o recurso em apreciação.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo recorrente AA, confirmando na integra a decisão recorrida, aguardando este os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Comunique de imediato à primeira instância.
Notifique.

Lisboa, 8 de abril de 2025
Ana Lúcia Gordinho
Alda Tomé Casimiro
Ana Cristina Cardoso
_______________________________________________________
1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. Ac RC de 22.22.2023
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c96e6dd56274263f8025897100414551
3. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f7ba7fd0654a31c9802581d40040c581?OpenDocument
4. Nos termos desta norma:
“1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.
5. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 254.
6. “(…) 2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de ....
3. Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
a) Detenção em flagrante delito;
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos (…)”
7. Ac. RL de 12.02.2019, processo 165/18.5PGSXL-A. L1- in https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4eae201ae62a90c8802583a6003b773f?OpenDocument
8. In http://www.gde.mj.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/2704ed31207b143c802587a7006f7870?OpenDocument
9. Ac. RC de 22.03.2023, in www.dgsi.pt