CONTRAORDENAÇÃO AMBIENTAL
RUÍDO
NON BIS IN IDEM
INFRAÇÃO CONTINUADA
Sumário

I. Comete a contraordenação ambiental leve prevista nos arts. 24.º, n.º 1, 28.º, n.º 1, al. h), do Regulamento geral do ruído quem não cumprir a ordem de cessação da incomodidade emitida pela autoridade policial ao produtor de ruído de vizinhança entre as 23 e as 7 horas;
II. Resultando da matéria de facto que a recorrente decidiu abrir as portas da sua residência, localizada no … de um prédio habitacional, para os seus amigos, aí levando a cabo, no período noturno, um convívio animado por conversas e ao som de música, suscetível de afetar, como de facto afetou, a tranquilidade da vizinhança, tendo-lhe sido ordenado pela autoridade policial, em dois momentos temporais distintos dessa mesma noite, para cessar imediatamente a incomodidade causada pelo ruído que era produzido, o não acatamento da segunda ordem necessariamente obedeceu a uma resolução autónoma em relação ao não acatamento da primeira ordem;
III. Tendo sido instaurados processos administrativos distintos e tendo o processo referente ao não acatamento da primeira ordem sido arquivado pelo pagamento voluntário da coima nos termos do art.º 49.º-A, n.ºs 1 e 4, da Lei quadro das contraordenações ambientais, nada impede o prosseguimento do processo relativo ao não acatamento da segunda ordem, não existindo qualquer violação do princípio ne bis in idem, que tem consagração constitucional em matéria criminal (cfr. art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), mas que é aplicável no domínio das contraordenações (cfr. arts. 79.º, n.º 1, do Regime geral das contraordenações e coimas e 2.º, n.º 1, da Lei quadro das contraordenações ambientais), dado que não há coincidência de factos nos dois processos;
IV. Mesmo que se defenda a existência da figura dogmática da contraordenação continuada no domínio contraordenacional, então a realização plúrima teria que ser executada dentro do quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminuísse sensivelmente a culpa do agente, por aplicação subsidiária do art.º 30.º, n.º 2, do Código Penal (cfr. arts. 32.º do Regime geral das contraordenações e coimas e 2.º, n.º 1, da Lei quadro das contraordenações ambientais);
V. Ora, mesmo nessa hipótese, sendo a recorrente a anfitriã de tal convívio e cabendo-lhe a disponibilidade do espaço onde o mesmo era levado a cabo, persistir em levar a cabo a referida festa na sua residência integrada num prédio habitacional pela noite dentro, sem por termo à mesma, ignorando as duas distintas ordens legítimas que lhe foram comunicadas pela autoridade policial, dependeu exclusivamente de um ato de vontade seu, ato esse que, sem desconhecimento da ilegalidade que praticava, persistiu em renovar na nova resolução que tomou após lhe ser dada a segunda ordem por parte da autoridade policial, pelo que sempre inexistiria qualquer situação exterior à recorrente que, de fora e de maneira considerável, tivesse tornado cada vez menos exigível que ela se comportasse de maneira diferente.

Texto Integral

I. Relatório:
I.1. Da decisão recorrida:
No âmbito do recurso de contraordenação n.º 1524/23.7Y5LSB, que corre termos no Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 16-02-2025 foi proferida e depositada sentença pela qual foi aquele julgado totalmente improcedente e, em consequência, mantida a decisão proferida pela Divisão de contraordenações da Câmara Municipal de Lisboa contra a arguida AA e pela qual esta foi condenada na coima de EUR 700 pela prática, em ...-...-2021, de uma contraordenação ambiental leve, p. e p. pelos arts. 24.º, n.º 1, 28.º, n.º 1, al. h), do Regulamento Geral do Ruído (R.G.R.), e 22.º, n.º 2, al. a), da Lei quadro das contraordenações ambientais (L.Q.C.A.).
I.2. Do recurso:
Inconformada com a decisão, a arguida AA dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida em 16 de janeiro de 2025, nos termos da qual se julgou o recurso de impugnação judicial interposto pela ora Recorrente totalmente improcedente e, em consequência, se decidiu manter a decisão proferida pela Divisão de Contraordenações da Câmara Municipal de Lisboa, que condenou a Arguida no pagamento de uma coima no valor de 700,00 €, pela prática da contraordenação prevista e punida pelos artigos 24.º, n.º 1, 28.º, n.º 1, alínea b), ambos do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro (Regulamento Geral do Ruído), e artigo 22.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 50/2006, de 19 de agosto (Lei Quadro das Contraordenações Ambientais).
2. No que ao presente recurso importa, entendeu o Tribunal a quo, por um lado, que não existe qualquer obrigação legal que determine à entidade administrativa a apensação de processos e, por outro lado, que a decisão proferida não ofende o princípio do ne bis idem, concluindo ainda que não se encontram reunidos os pressupostos constantes do artigo 51.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, não sendo por isso, de aplicar à Recorrente uma admoestação.
3. Não pode, porém, a ora Recorrente conformar-se com este entendimento do Tribunal a quo.
4. Conforme resulta dos factos provados a situação de ruído de vizinhança objeto dos presentes autos teve lugar no dia ... de ... de 2021, pelas 02:10h; 3:00h, 3:10h e pelas 06:00h, na ..., ... Lisboa, estando em causa o alegado incumprimento da ordem emanada pela autoridade policial pelas 00:50h, para cessação da incomodidade provocada pela produção de ruído de vizinhança.
5. Como resultado das deslocações dos agentes da PSP à residência da Arguida, foram lavrados três autos distintos, com os seguintes NPP: (i) NPP ... (cfr. fls. 21 dos autos): respeita à intervenção da PSP pelas 00h50 e pelas 02h10, (ii) NPP ... (cfr. fls. 1 dos autos): respeita à intervenção da PSP pelas 03h00 e 3h10 (iii) NPP ... (cfr. fls. 4 dos autos): respeita à intervenção da PSP pelas 06h00.
6. Todos relativos à mesma infração – não cumprimento da ordem de cessação da incomodidade emitida pela autoridade policial, nos termos dos artigos 24.º, n.º 1, e 28.º, n.º 1, alínea h), do Regulamento Geral do Ruído (RGR), conjugado com o artigo 22.º, n.º 2, alínea a), da LQCA.
7. O NPP ... deu origem ao Processo n.º ..., instaurado pela Câmara Municipal de Lisboa. Notificada para o efeito, a Recorrente procedeu ao respetivo pagamento voluntário da coima no dia ........2021, o que determinou o arquivamento do processo (cfr. documento n.º 2 junto à impugnação judicial e reconhecido no ponto 11 dos Factos Provados da Sentença recorrida, bem como na decisão da Câmara Municipal de Lisboa).
8. Por sua vez, o NPP ... e o NPP ...deram origem, respetivamente, ao Processo n.º ... e ao Processo n.º ..., relativos à presença da PSP no local pelas 3:00h, 3:10h e 06:00h.
9. A Câmara Municipal de Lisboa, por proposta da BB, determinou a apensação dos processos n.º ... e n.º ... (correspondentes aos autos de notícia NPP ... e ..., respetivamente), por considerar que os factos descritos nos referidos autos de notícia respeitavam à mesma infração.
10. Se os factos que constam dos NPP ... e ..., respeitantes às 03h00, 03:10h e 06h00, foram considerados como pertencentes à mesma unidade histórica, forçoso será concluir que também os factos reportados no NPP ..., respeitantes às 00h50 e 02h10 o serão.
11. Estando em causa a mesma factualidade, ainda que em momentos temporais distintos e reportando-se em todas as situações ao desrespeito da advertência de cessação do ruído efetuada pela PSP, pelas 00:50h, e desrespeitada pelas 02:10h, 03:00h, 03:10h e 6:00h, não se afigura coerente que dois dos processos resultantes dos autos elaborados sejam consideradas como uma mesma infração e objeto de apensação para aplicação de uma sanção única, quando o outro - resultante da mesma unidade histórica - já havia sido arquivado mediante o pagamento.
12. O tempo decorrido entre todos os factos é de meras horas, pelo que se impunha que tivessem sido valorados globalmente, num único processo e sancionados com uma coima única, em conformidade com o disposto no artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, aplicável ex vi o artigo 32.º do RGCO, citando-se, a título meramente exemplificativo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 10.05.2023 no âmbito do processo n.º 132/22.4YUSTR.L1-PICRS.
13. Verifica-se conexão objetiva, porquanto estamos perante uma violação plúrima de um único tipo contraordenacional, destinada a proteger o mesmo interesse jurídico: o direito ao descanso dos restantes moradores do prédio em questão.
14. Em adição, as condutas formam indubitavelmente uma unidade de contexto situacional, sendo evidente a proximidade temporal e espacial, porquanto todas verificadas numa só noite, dia ... de ... de 2021, e no mesmo apartamento.
15. No que respeita à conexão subjetiva, estamos perante um circunstancialismo exógeno” no contexto do convívio ocorrido no apartamento da Recorrente, onde a conduta resulta de uma relação situacional que, de forma significativa, facilitou a repetição do comportamento.
16. A realidade é que as condutas registadas nos diferentes autos derivam da mesma ação contínua ou sequência de comportamentos, que, no contexto jurídico, devem ser unificados num único processo, porquanto respeitam a uma infração continuada.
17. A decisão de não apensar os três processos não pode ser considerada um ato discricionário da autoridade administrativa, uma vez que se encontra subordinada a critérios objetivos de legalidade. A Câmara Municipal de Lisboa não possui margem de apreciação pessoal ou subjetiva quando se trata de aplicar normas jurídicas que, neste caso, regem a apreciação da continuidade da infração.
18. As autoridades devem pautar a sua atuação de acordo com os preceitos legais, assegurando que processos que envolvem a mesma infração, ainda que ocorram em momentos temporais distintos, sejam tratados de forma unificada, por se tratarem de uma mesma unidade histórica e, neste caso, de uma contraordenação continuada.
19. Mesmo que assim não se entenda, ou seja, ainda que não se considere a verificação de uma contraordenação continuada, sempre deveria a referida entidade administrativa ter procedido à apensação dos processos, com fundamento na respetiva conexão entre estes, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicável ex vi artigo 41.º, do RGCO, e do artigo 27.º, n.º 1, da LQCA e do artigo 19.º, n.º 1, do RGCO.
20. Ao considerar duas infrações como pertencentes a uma mesma unidade jurídica, mas não a terceira, a autoridade administrativa coloca em causa a previsibilidade e a consistência que devem orientar a aplicação do direito.
21. Adicionalmente, a fragmentação de factos conexos em infrações separadas potencia o risco de decisões inconsistentes ou contraditórias, além de constituir uma violação do princípio da economia processual.
22. Desta forma, a não apensação dos processos, para além de acarretar um prejuízo direto para a Recorrente, compromete a integridade do sistema jurídico ao desviar-se dos pilares fundamentais de estabilidade, previsibilidade e coerência que o princípio da segurança jurídica tem por objetivo salvaguardar.
23. Em face do exposto, conclui-se que a omissão da apensação e da apreciação conjunta dos processos por parte da entidade administrativa viola o disposto no artigo 30.º, n.º 2, do CP, aplicável ex vi pelo artigo 32.º do RGCO, bem como os artigos 24.º n.º 1, alínea a) e 25.º, ambos do CPP, aplicáveis ex vi artigo 41.º do RGCO conjugado com o princípio da legalidade e da unidade da infração e os artigos 27.º, n.º 1, da LQCA e 19.º, n.º 1, do RGCO.
24. Deverá, neste ponto, ser revogada a Sentença recorrida e substituída por outra que reconheça estarmos perante uma infração continuada, a qual impunha que a conduta fosse conjuntamente apreciada e sujeita a uma coima única, em conformidade com o disposto no artigo 30.º, n.º 2, do CP, aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO e artigo 2.º da LQCA.
25. Certo é que, a decisão de não apensação dos processos resultou na circunstância de a Recorrente ter sido sujeita a uma nova sanção por uma conduta já sancionada no âmbito do Processo n.º 2-39873-2021 da Câmara Municipal de Lisboa.
26. A exceção do caso julgado materializa o disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, ao estabelecer como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória finda, sendo um efeito processual da sentença transitada em julgado, que, por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material) - Cfr. Ac. Trib. Rel. Lisboa, de 13.04.2011 e disponível em www.dgsi.pt/trl.
27. A Recorrente está a ser sancionada pela continuação dos mesmos factos ainda que ocorridos em momentos distintos, ou seja, a Recorrente está a ser duplamente sancionada pela prática da mesma infração – incumprimento da advertência efetuada pela PSP para cessação do ruído.
28. Existindo uma identidade fáctica, submetida ao mesmo desígnio contraordenacional, não pode a conduta da Arguida ser submetida a uma dupla punição ao abrigo do princípio do ne bis in idem. Tendo a Arguida já procedido ao pagamento voluntário da coima no âmbito do processo n.º 2-39873-2021, a sua condenação nos presentes autos representa uma violação a este princípio enformador do direito sancionatório.
29. Deste modo, sempre deverá ser revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que reconheça a violação do princípio do ne bis in idem pela decisão proferida pela Câmara Municipal de Lisboa e, consequentemente, determine a absolvição da Recorrente.
30. Sem prejuízo e caso assim não se entenda, a Sentença não atendeu devidamente aos critérios legalmente definidos para determinação da sanção aplicável, quando decidiu não aplicar a sanção de admoestação, cujos pressupostos se reconduzem à reduzida gravidade da infração e ao grau de culpa do agente.
31. Desde logo, está em causa uma contraordenação classificada como leve (cfr. artigo 28.º, n.º 1, alínea h), do Regulamento Geral do Ruído), o que reflete a sua menor relevância jurídica e social, traduzindo uma menor lesão do bem jurídico protegido.
32. Adicionalmente, verifica-se uma situação de culpa reduzida, na parte em que esta pode ser diretamente imputável à Recorrente.
33. Naquela noite, estavam na fração em causa entre 10 a 15 jovens que geraram o ruído, como bem reconhece a Sentença a quo, e o sendo comum bastaria para se concluir que não seria com facilidade que a Recorrente poderia lograr evacuar a fração.
34. Adicionalmente, os factos ocorreram num contexto social muito específico, tratando-se de uma jovem adulta que, à data, tinha acabado de fazer 18 anos, e, como todos os jovens que se encontravam na fração, tinham um desejo exacerbado de conviver com os amigos que não viam há bastante tempo devido às restrições impostas pela pandemia COVID-19, encontrando-se ainda encerrados todos os espaços públicos.
35. Circunstâncias que, embora não possam ser consideradas desculpantes, diminuem sensivelmente a culpa da ora Recorrente, que, como bem também se reconhece na Sentença a quo, não registou quaisquer outros incidentes desta ou de outra espécie – cfr. Facto Provado 11.
36. Também não poderá ser ignorado que, conforme acima referido, a ora Recorrente procedeu ao pagamento da coima que lhe foi determinada no âmbito do Processo n.º 2-39873-2021, onde se sancionou precisamente a mesma conduta aqui em causa.
37. Por tudo o supra exposto, deverá ser revogada a Sentença proferida e, caso se considere dever a mesma conduta ser novamente sancionada, substituída por outra decisão que aplique à ora Recorrente a sanção de admoestação prevista no artigo 51.º, n.º 1, do RGCO, que se mostra suficiente e adequada às circunstâncias concretas do caso vertente.
38. Sem prejuízo e caso assim não se entenda e remetendo para tudo o supra exposto quanto à menor gravidade da infração – classificada como leve – e à reduzida culpa da Recorrente, atendendo ao pagamento já efetuado, associados à inexistência de qualquer benefício económico e à situação económica da Recorrente, sempre se deverá considerar como excessiva a coima aplicada.
39. A situação económica da Recorrente não pode deixar de ser considerada como particularmente frágil. Com apenas 21 anos à data presente (18 à data dos factos), a Recorrente encontra-se a frequentar o ensino superior, não auferindo qualquer tipo de rendimentos, circunstâncias que, por si só, tornam evidente que a aplicação de uma coima no montante de 700,00€ é manifestamente desadequada e desproporcional, em violação do princípio da proporcionalidade, constitucionalmente imposto e que está subjacente à ratio do artigo 18.º, n.º 1 do RGCO.
40. No mesmo sentido, revela-se evidente a ausência de qualquer benefício económico auferido pela Recorrente através da prática da infração, o que impunha a aplicação de uma sanção equivalente ao limite mínimo da coima aplicável, especialmente atenuada nos termos do disposto nos artigos 23.º-A, n.º 2, al. b) e 23.º-B da LQCA, desde logo porque a infração que deu origem ao presente processo contraordenacional consistiu numa situação isolada, sem precedentes, em que a Recorrente, com apenas 18 anos, perdeu o controlo sobre o volume do ruído que advinha da sua residência.
41. O comportamento da Recorrente não reflete uma conduta habitual ou especialmente culposa. Bem pelo contrário, tratou-se de um desvio pontual e circunstancial de uma jovem que, após um longo período de confinamento e restrições devido à pandemia de COVID-19, decidiu realizar um convívio com os amigos que se descontrolou e que nunca mais se repetiu, encontrando-se reunidos os pressupostos para uma atenuação especial da coima, a qual impõe a redução dos limites mínimos e máximos da coima para metade, nos termos e para os efeitos do artigo 23.º-B da LQCA.
42. Por tudo o exposto, requer-se, muito respeitosamente, a V. Exa. se digne revogar a Sentença proferida, que deverá ser substituída por outra que, entendendo que a contraordenação aqui em causa deva ser sancionada com uma coima, reduza o valor da coima aplicada, nos termos do disposto nos artigos 23.º-A e 23.º-B da LQCA.
Terminou pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que:
a) Reconheça a infração continuada e a violação do princípio do ne bis idem, e que, consequentemente, determine a absolvição da Recorrente, em conformidade com o disposto no artigo 30.º, n.º 2, do CP, aplicável ex vi artigos 32.º do RGCO e 2.º da LQCA, e artigo 29.º, n.º 5, da CRP.
b) Sem prejuízo e apenas no caso de assim não se entender, sempre deverá ser substituída por outra decisão que aplique à ora Recorrente a sanção de admoestação prevista no artigo 51.º, n.º 1, do RGCO, a qual se mostra suficiente e adequada às circunstâncias concretas do caso vertente.
c) Sem prejuízo e caso ainda assim não se entenda, sempre deverá ser substituída por outra que reduza o valor da coima aplicada, nos termos do disposto nos artigos 23.º-A e 23.º-B da LQCA.
O referido recurso foi admitido por despacho de 05-02-2025.
I.3. Da resposta:
A este recurso respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluindo da seguinte forma:
1º Foi negado provimento à impugnação judicial apresentada pela recorrente, decidindo manter-se a decisão da entidade administrativa, que aplicou uma coima no valor de Euros: 700,00 (setecentos euros), pela prática de contraordenação prevista e punida pelos artigos 24.º n.º 1 e 28.º n.º 1 alínea b) ambos do Decreto-lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, que aprovou o Regulamento Geral do Ruído, e artigo 22.º n.º 2 alínea a) da Lei n.º 50/2006, de 19 de Agosto, que aprovou a Lei Quadro das Contraordenações Ambientais.
2º Inconformada com a douta sentença prolatada a 16/01/2025 pelo Tribunal a quo, alega a recorrente estarmos perante uma só infracção, continuada no tempo, e, por esse motivo, a autoridade administrativa deveria ter procedido à apensação e apreciação conjunta das (alegadas) infracções praticadas pela visada.
3º Todavia, em matéria contra-ordenacional, inexiste norma que preveja ou sequer tenha como pressuposto a existência de contra-ordenação, na forma continuada.
4º A norma contra-ordenacional em crise visa proteger o direito à integridade física, à saúde, ao repouso e ao sono, direitos estes de personalidade, bens jurídicos eminentemente pessoais (artigos 24.º n.º 1 e 28.º n.º 1 alínea b) ambos do Decreto-lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, que aprovou o Regulamento Geral do Ruído). Como tal, mutatis mutandis, a contra-ordenação, na forma continuada, à semelhança do crime continuado fica restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais.
5º Depois, contrariamente ao defendido pela arguida/recorrente não se podia promover a apensação de processos de contra-ordenação que não se encontrassem na mesma fase processual.
6º Por outro lado, a factualidade que deu origem ao NPP 162457/2021 (processo de contra-ordenação municipal n.º 2-39873-2021), não foi alvo de escrutínio, nem pelo Tribunal a quo, tampouco pela autoridade administrativa.
7º E, por esse motivo, a coima aplicada à arguida/recorrente nos presentes autos é distinta da que deu origem ao processo n.º 2-39873-2021, e que foi voluntariamente paga por aquela.
8º Por seu turno, o valor determinado pela autoridade administrativa, de Euros: 700,00 (setecentos euros), muito próximo ao mínimo legal, atendendo aos factos provados, e a todo o circunstancialismo da conduta da arguida, revela-se adequado e proporcional.
9º Por fim, a admoestação não é capaz de cumprir plenamente o fim que se visa abarcar com o presente processo e com a coima que foi aplicada pelo que é de afastar a sua aplicação.
Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
I.4. Do parecer:
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.
I.5. Da tramitação subsequente:
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso:
Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-2995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, págs. 8211 e segs.3).
Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidas, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar.
II.2. Das questões a decidir:
A esta luz, são as seguintes as questões a conhecer, pela ordem da prevalência processual sucessiva que revestem:
A. Da não apensação de todos os processos contraordenacionais instaurados contra a arguida (cfr. II.4.A.);
B. Da exceção do caso julgado (cfr. II.4.B.);
C. Da admoestação (cfr. II.4.C.); e
D. Da atenuação especial da coima (cfr. II.4.D.).
II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar as questões objeto do recurso:
Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte:
II.3.A. Da competência por conexão (cfr. ref.ª 37506420 de 07-11-2023):
No âmbito do processo n.º ... instaurado contra a recorrente não foi proferida qualquer decisão pela autoridade administrativa que expressamente tenha declinado a competência por conexão relativamente ao processo com o n.º ..., igualmente instaurado contra a recorrente, sendo que este último foi arquivado na sequência do pagamento voluntário por parte da recorrente da quantia de EUR 75 em ...-...-2021 nos termos do art.º 49.º-A, n.ºs 1 e 4, da L.Q.C.A.
II.3.B. Da exceção do caso julgado (cfr. ref.ª 441882106 de 16-01-2025):
Na sentença recorrida, como questão prévia, foi proferida a seguinte decisão:
Veio a arguida alegar que os factos e a infracção que lhe são imputados no presente processo, são os mesmos que foram apreciados no âmbito do processo n.º ...da Câmara Municipal de Lisboa, processo que foi arquivado em virtude do pagamento voluntário da coima.
Assim, entende que está verificada a excepção de caso julgado por violação do princípio ne bis in idem, o que determina, no seu entender, a revogação da decisão impugnada com a sua consequente absolvição.
Cumpre apreciar.
Compulsados os autos, verifica-se que no dia ... de ... de 2021, foram elaborados três autos de contra-ordenação, tendo como infractora a arguida, a saber os NPP ..., ... e ....
O NPP ... reporta-se a factos ocorridos naquele dia pelas 00h50 (quando foi dada a ordem de cessação da incomodidade), e 02h10 (quando foi constatado o desrespeito pela ordem de cessação da incomodidade) - fls. 78 a 81.
Aquele NPP deu origem ao processo de contra-ordenação municipal n.º ..., processo esse que foi arquivado atento o pagamento voluntário da coima pela arguida (cfr. fls. 82 e 83).
Por sua vez, os NPP ... e ... deram origem ao processo de contra-ordenação municipal n.º ... (cfr. fls. 1 a 6).
Todavia, no dia 28 de Julho de 2021, foi proferido despacho mencionando o seguinte “Os factos constantes do auto de notícia com a referência NPP: ..., que consubstanciam a infração 1, são os mesmos ínsitos no auto de notícia NPP: ..., a que se refere a infração 2, reportando-se ambos à ocorrência constata no dia .../.../2021, inicialmente pelas 03h00, em que fora acatada a ordem de cessação de ruído de vizinha, e pelas 06h00, quando foi verificado o desrespeito pela mesma.
Nessa conformidade, promove-se o arquivamento da infração 2 por se tratar de dois momentos da mesma situação em que se consubstanciou a contraordenação em apreço.” (cfr. fls. 8).
Ademais, em sede de parecer após a impugnação judicial apresentada, a autoridade administrativa referiu, a este propósito, o seguinte “Relativamente à exceção de caso julgado invocada, refira-se que, efetivamente, no dia .../.../2021, a PSP se deslocara à residência da arguida quatro vezes, tendo levantado três autos de notícia:
- NPP: ... – levantado na sequência de uma denúncia por parte do morador no 1.º …. do prédio onde reside a arguida, sendo aí reportado que a polícia se deslocara ao local, inicialmente pelas 00h50, quando lhe é dada a primeira ordem de cessação da incomodidade, e posteriormente pelas 02h10, em que é constatada a primeira desobediência à mesma. Este auto deu origem ao processo n.º ..., o qual foi arquivado por pagamento voluntário da coima;
- NPP: ...– onde consta que a autoridade policial voltara ao local pelas 03h10, devido a reclamações do mesmo morador e da vizinha do 3º ..., sendo percepcionado ruído de música e de vozes de várias pessoas.
- NPP: ... – referente a nova deslocação da PSP, pelas 06h10, face a novas queixas por parte dos moradores no 1.º …. e no 2º ..., devido a música em volume elevado e vozes. Com base nestes dois últimos autos foi instaurado o presente processo tendo-se considerado ter-se tratado de dois momentos da mesma situação de ruído de vizinhança, com nova notificação verbal de cessação da incomodidade provocada, e nova constatação de não acatamento da mesma.
Ora, nos termos das alíneas h) e i) do artigo 28º do RGR, a contraordenação por ruído de vizinhança verifica-se quando é constatado o desrespeito pela ordem de cessação da incomodidade, emitida pela entidade policial a quem está na origem da produção do ruído. Esse circunstancialismo é notificado ao agente da infração quando lhe é transmitida a referida ordem, o que se verificou nos presentes autos, tendo-lhe, por conseguinte, sido imputadas as infrações na forma dolosa, não podendo a arguida alegar o desconhecimento da consequência do seu respeito.
Nessa conformidade, sempre que o agente da infração desobedece à notificação verbal de pôr termo ao ruído produzido, há uma resolução nova, consubstancializada na intenção de retomar o comportamento que originara a denúncia por parte da vizinhança. Assim, justifica-se a autonomização dos dois processos de contraordenação, não obstante os autos terem sido levantados na mesma noite, em horário distinto.”.
Compulsado o teor dos factos, verifica-se que no processo n.º ..., foi apenas apreciada a advertência de cessação de incomodidade feita pelas 00h50, e a constatação de que a advertência não foi acatada pelas 02h10, tal como consta do auto de notícia com o NPP ....
Ali, não é feita sequer referência às vezes seguintes em que a ... se deslocou ao local, não tendo sido apreciados esses restantes factos, que, adiante-se, foram apreciados nestes autos.
É certo que a decisão administrativa faz menção, nos factos provados, à chamada da ... pelas 00h50 (e também pelas 06h00). Porém, parece-nos que esses factos foram incluídos apenas para a consideração da imagem global dos factos praticados naquele dia pela arguida.
Veja-se que na decisão administrativa proferida nos presentes autos, a arguida foi condenada apenas e só pela prática de uma contra-ordenação.
O princípio ne bis in idem, ou princípio da proibição da dupla valoração, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, estabelece que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime (ou, no caso concreto dos autos, da mesma contra-ordenação).
Cumpre dizer, nesta sede, que os agentes da ... se deslocaram cinco vezes ao local, naquela noite (00h50, 02h10, 03h00, 03h10 e 06h00).
Todavia, a autoridade administrativa considerou que apenas foram praticadas duas contra-ordenações, dando origem a dois processos de contra-ordenação, o processo n.º ... (arquivado pelo pagamento voluntário da coima) e os presentes autos.
Posto isto, pese embora pudesse ter sido reunido num só processo a prática das duas contra-ordenações, não existe obrigação legal a que a autoridade administrativa o faça.
Ademais, poderia a arguida ter requerido a apensação de todos os processos de contra-ordenação referentes ao dia ... de ... de 2021, sendo que não ignorava que lhe tinham sido levantados três autos de contra-ordenação. Também não o fez.
Por último, diga-se que, em bom rigor, poderíamos estar perante a prática não de duas, mas de três contra-ordenações (00h50 – advertência, 02h10 – incumprimento; 03h00 – advertência, 03h10 – incumprimento; 06h00 – incumprimento, sendo que já lhe haviam sido feitas, pelo menos, duas advertências).
Contudo, parece-nos que a autoridade administrativa considerou que, após a advertência e a constatação da desobediência dessa advertência, com o consequente levantamento do auto de contra-ordenação, deverá ser feita novamente outra advertência, e se houver origem a incumprimento, lavrado novo auto, repetindo-se o processo enquanto existirem advertências/incumprimentos.
No nosso entender, é discutível um tal entendimento jurídico, ainda que não nos pareça legalmente desadequada a posição adoptada pela autoridade administrativa, tendo um entendimento prudente e garantístico dos direitos dos arguidos.
Note-se que em sede de contra-ordenações ambientais, não é aplicável a proibição de reformatio in pejus, ao abrigo do artigo 75.º da Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais.
Aqui chegados, constata-se que não ocorreu dupla valoração, de modo algum, dos mesmos factos, nem das mesmas infracções.
Acrescente-se que mesmo que a autoridade administrativa tivesse reunido todos os três autos num só processo, e considerasse verificada a prática de duas (ou três) contra-ordenações, sempre aplicaria à arguida tantas coimas quantas contra-ordenações praticadas e, a final, uma coima única resultante do cúmulo das várias coimas aplicadas.
Nos presentes autos, foi apenas aplicada uma coima, pela prática de uma contra-ordenação, contra-ordenação essa que é distinta da que deu origem ao processo n.º ....
Não poderia, a nosso ver, ser considerada uma só contra-ordenação, atendendo a que a prática daquele ilícito contra-ordenacional ocorreu em momentos distintos, tendo a arguida renovado o seu propósito de desobedecer às ordens que lhe foram dadas pelos agentes da ....
Pelo exposto, considera-se que a decisão proferida pela autoridade administrativa não viola o princípio ne bis in idem, improcedendo o alegado pela arguida.”
II.3.C. Da matéria de facto considerada na sentença recorrida (cfr. ref.ª 441882106 de 16-01-2025):
É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1.ª instância:
A. Factos Provados:
Resultaram provados os seguintes factos, com relevo para a decisão a proferir:
1. No dia ... de ... de 2021, pelas 03h00, na sequência de denúncia de ruído de vizinhança, uma brigada da ... deslocou-se ao prédio n.º 9 da ..., em Lisboa, onde contactou o denunciante que referiu não conseguir descansar devido ao ruído em excesso e prolongado de música e vozes, proveniente do ... do mesmo prédio.
2. À chegada ao local foi constatado o ruído denunciado, o qual era audível na habitação do reclamante.
3. Após terem confirmado a proveniência do ruído, os agentes da PSP identificaram na referida fracção a arguida AA, na qualidade de responsável pelo ruído que ali estava a ser produzido, a qual informou que estava na sua residência a conviver com alguns amigos, não se tendo apercebido do ruído que estaria a causar.
4. Na altura, a arguida foi informada da existência de queixas e notificada verbalmente a fim de cessar a incomodidade, sob pena de incorrer na prática de uma contraordenação, ordem de que a mesma ficou ciente.
5. Contudo, volvidos apenas 10 minutos, a ... voltou a ser contactada, dado que o ruído persistia, conforme fora comunicado pelo mesmo denunciante e por uma moradora no 3.º andar do mesmo edifício, referindo que o ruído era igualmente audível na sua habitação.
6. Nessa conformidade, os agentes da autoridade contactaram novamente a arguida, notificando-a do levantamento do auto de notícia, por desrespeito pela ordem de cessação do ruído que lhe havia sido dada momentos antes.
7. Nessa mesma noite, pelas 00h50, os agentes da PSP já se haviam deslocado ao local da ocorrência onde constataram a incomodidade.
8. Posteriormente, cerca das 06h00, foi novamente solicitada a intervenção da brigada policial, em virtude de o convívio na residência da arguida continuar nos mesmo moldes, lesando o repouso e tranquilidade da vizinhança, em desobediência às ordens que lhe haviam sido transmitidas.
9. A arguida sabia que o convívio que estava a promover, no período nocturno, com a emissão de música amplificada, estava a afectar o descanso e tranquilidade dos seus vizinhos, tendo-lhe sido dadas ordens para cessar com a produção de ruído, sob pena de incorrer numa contra-ordenação, o que a mesma ignorou, continuando com o seu comportamento ilícito e contrário à vivência em comunidade.
10. Ao desrespeitar as ordens da autoridade policial de pôr termo ao ruído, da sua responsabilidade, a arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, uma vez que tinha conhecimento da sua conduta, por ter sido avisada pelos agentes da polícia, circunstancialismo que não a demoveu de continuar com a sua atitude lesiva do direito ao descanso dos restantes residentes.
11. Não existem registos de antecedentes contra-ordenacionais da mesma natureza dos autos na Câmara Municipal de Lisboa, relativos à arguida, tendo outros dois processos sido arquivados por pagamento voluntário da coima.
Mais se provou que:
12. A notificação a que alude o artigo 49.º da Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais foi remetida, no dia ...-...-2021, por carta registada com aviso de recepção, para a ....
13. A carta referida em 12. foi devolvida com a menção “objecto não reclamado”.
14. A notificação referida em 12., foi remetida novamente, no dia ...-...-2021, através de carta simples, para a ....
*
B. Factos não provados
Da produção de prova efectuada em audiência de julgamento ficaram por provar os seguintes factos, com relevo para a decisão a proferir:
a. O aviso para levantamento da carta referida em 12. nunca foi recepcionado pela arguida.
b. A carta referida em 13. nunca foi recepcionada pela arguida.
c. A arguida empreendeu todos os seus esforços para reduzir o ruído.
II.3.D. Da fundamentação exarada na sentença recorrida quanto à sanção aplicada (cfr. ref.ª 441882106 de 16-01-2025):
É a seguinte a fundamentação exarada na sentença recorrida quanto à sanção aplicada:
C. Da Medida da coima
A moldura da coima aplicável à contra-ordenação supra mencionada fixa-se entre 400,00 € e 4.000,00 €, nos termos do disposto artigo 22.º, alínea a) da Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais.
A autoridade administrativa aplicou a coima no valor de 700,00 €.
Por seu turno, o artigo 18.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, estipula que “a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação”.
Ponderando a gravidade da contra-ordenação, face ao bem jurídico protegido pela norma, a culpa da arguida (que agiu com dolo directo), a falta de consciencialização da ilicitude da sua conduta, entende o Tribunal como adequado o valor da coima fixado pela autoridade administrativa, que é próximo do mínimo legal.
Deste modo, atendendo aos factos provados, e a todo o circunstancialismo da conduta da arguida naquele dia (em que, relembre-se, a polícia foi cinco vezes à sua habitação), revelando-se como adequada e proporcional a aplicação à arguida de uma coima no valor de 700,00 €, mantém-se a decisão administrativa na sua globalidade.
Ainda que assim não se entendesse, note-se que a arguida não suscitou qualquer questão acerca da medida da coima, referindo apenas que lhe deveria ser aplicada uma admoestação (o que se apreciará de seguida), pelo que entendemos que sempre estaria vedado o conhecimento da dosimetria da coima aplicada nesta sede.
D. Da admoestação
Por fim, cumpre analisar se deverá ser revogada a decisão administrativa na parte em que condenou a arguida numa coima, aplicando-lhe, ao invés, uma admoestação, conforme pretendido pela mesma, ainda que subsidiariamente.
Quanto à aplicação da admoestação, veja-se o seguinte.
Dispõe o artigo 51.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (aplicável ex vi artigo 2.º, n.º 1 da Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais) que:
“1 - Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
2 - A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação.”.
No caso em apreço, pese embora a contra-ordenação seja classificada pela lei como leve, entendemos que nem a gravidade da infracção se pode considerar reduzida, nem a culpa do agente justifica a aplicação da admoestação.
Por todo o acima expendido, parece-nos que a conduta da arguida foi bastante censurável, na medida em que apenas cessou o ruído quando já era praticamente de dia (06h00), sendo a primeira chamada ao local ocorreu pelas 00h50.
Ademais, conforme já acima mencionado, sendo a arguida a pessoa responsável pela habitação, enquanto ali residente, e na ausência da sua proprietária, verificando que não era possível reduzir o ruído excessivo, apenas tinha que determinar que os seus convidados fossem embora, não tendo sido sequer alegado (nem provado) que o tenha feito.
Acrescente-se ainda, como também já se disse, que o facto de a arguida ser jovem, à data da prática dos factos (18 anos), e de o País (e o Mundo) estarem a atravessar a pandemia por Covid-19, não pode servir de fundamento para desresponsabilização da sua conduta, de modo algum, sob pena de se legitimar qualquer conduta semelhante e contrária à lei.
De acordo com o supra exposto, entende-se que não estão reunidos, no caso dos autos, os pressupostos contidos no artigo 51.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, não sendo, por isso, de aplicar ao Recorrente uma admoestação, o que se decide.
II.4. Da apreciação das questões objeto do recurso:
Cumpre agora analisar as já elencadas questões suscitadas pelo recorrente:
II.4.A. Da não apensação de todos os processos contraordenacionais instaurados contra a arguida:
No recurso que interpôs da decisão judicial que conheceu da impugnação que havia apresentado em relação à decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa no âmbito do processo n.º ..., a recorrente acaba por se insurgir contra o facto de não ter sido declarada a conexão entre aquele e o processo n.º ...
Contudo, não tendo sido proferida qualquer decisão pela autoridade administrativa que expressamente tenha declinado a competência por conexão relativamente ao processo com o n.º ... (cfr. II.3.A.), questão que, assim, não foi abordada na decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, o certo é que a recorrente, quanto a tal aspeto, nada invocou na referida impugnação judicial que oportunamente interpôs daquela.
É certo que de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça “em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa” (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2019, de 23-05-20194, para fixação de jurisprudência, in Diário da República, I Série, n.º 124, págs. 3317 a 3324).
Contudo, a regra da competência por conexão (cfr. arts. 36.º do Regime geral das contraordenações e coimas – R.G.C.C., e 2.º, n.º 1, da L.Q.C.A.), não se tratando de uma regra imperativa, baseia-se numa conveniência presumida, presunção que poderá ceder perante realidade processual que a desminta ou quando há prejuízo em lugar de ganho processual, caso em que, naturalmente, poderá ser afastada.
Não se traduzindo a sua preterição em qualquer violação das regras de competência material ou territorial, hipótese sancionada pela lei de processo com a nulidade insanável (cfr. arts. 119.º, al. e), do C.P.P., 41.º, n.º 1, do R.G.C.C. e 2.º, n.º 1, da L.Q.C.A.; CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, págs. 1240 e 1241; GASPAR, António Henriques, in Código de Processo Penal comentado, Almedina, 2014, pág. 389), não consubstanciando uma nulidade, só poderia tratar-se de irregularidade que, não tendo sido oportunamente arguida, sempre se teria que considerar sanada (cfr. arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, 119.º, 120.º e 123.º, n.º 1, do C.P.P.).
Seja como for, a recorrente nem sequer retira de tal questão qualquer consequência jurídica autónoma, pelo que sempre seria inútil (cfr. arts. 4.º do C.P.P. e 130.º do Código de Processo Civil – C.P.C.) conhecer deste segmento do recurso (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-11-2023, processo n.º 835/15.0T8LRA.C4.S15).
II.4.B. Da exceção do caso julgado:
O R.G.R. estabelece o regime de prevenção e controlo da poluição sonora, visando a salvaguarda da saúde humana e o bem-estar das populações (cfr. art.º 1.º, do R.G.R.), sendo aplicável ao ruído de vizinhança (cfr. art.º 2.º, n.º 2, do R.G.R.).
Ora, o ruído de vizinhança é o ruído associado ao uso habitacional e às atividades que lhe são inerentes, produzido diretamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja suscetível de afetar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança (cfr. art.º 3.º, al. r), do R.G.R.).
Comete a contraordenação ambiental leve em causa quem não cumprir a ordem de cessação da incomodidade emitida pela autoridade policial ao produtor de ruído de vizinhança entre as 23 e as 7 horas (cfr. arts. 24.º, n.º 1, 28.º, n.º 1, al. h), do R.G.R.).
São, assim, elementos constitutivos do tipo contraordenacional em causa:
- A produção de “ruído de vizinhança”;
- O não acatamento da ordem policial destinada a fazê-lo cessar imediatamente, quando ocorrer no período noturno.
No processo com o n.º ..., respeitante ao NPP ..., estava em causa o não cumprimento da ordem emitida no dia ...-...-2021, pelas 00h50min, pela autoridade policial de cessação da incomodidade causada pela produção de ruído de vizinhança por parte da recorrente na sua residência sita na ..., o que foi constatado pelas 02h10min, altura em que o tal ruído era audível no interior da residência sita no mesmo prédio no 1.º andar …, tendo o referido processo sido arquivado na sequência do pagamento voluntário por parte da recorrente da quantia de EUR 75 nos termos do art.º 49.º-A, n.ºs 1 e 4, da L.Q.C.A. (cfr. ref.ª 39693185 de 19-06-2024).
Por seu turno, no processo com o n.º ..., estava em causa o não cumprimento de uma nova ordem emitida no dia ...-...-2021, desta vez pelas 03h00min, pela autoridade policial de cessação da incomodidade causada pela produção de ruído de vizinhança por parte da recorrente na sua residência sita na ..., o que foi constatado pelas 03h10min, sendo então tal ruído audível no interior da residência sita no mesmo prédio no 1.º andar ... e também numa outra sita no mesmo prédio, mas no 3.º andar (NPP ..., bem como pelas 06h00min, altura em que tal ruído era audível no interior daquela residência sita no mesmo prédio no 1.º andar ... (NPP ....
O alcance definitivo da decisão da autoridade administrativa ou o trânsito em julgado da decisão judicial que aprecie o facto como contraordenação ou como crime precludem a possibilidade de reapreciação de tal facto como contraordenação (cfr. arts. 79.º, n.º 1, do R.G.C.C. e 2.º, n.º 1, da L.Q.C.A.).
A referida norma vem explicitar a aplicação no domínio das contraordenações do princípio ne bis in idem, que tem consagração constitucional em matéria criminal e segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime (cfr. art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa – C.R.P.).
É certo que, no processo com o n.º 2-39873-2021, não foi propriamente proferida decisão da autoridade administrativa apreciando o facto como contraordenação. No entanto, também não se poderá ignorar que o pagamento da coima nos termos do art.º 49.º-A, n.ºs 1 e 4, da L.Q.C.A. equivale a condenação para efeitos de reincidência (cfr. art.º 49.º-A, n.º 7, da L.Q.C.A.).
Seja como for, na delimitação do conceito do que seja a mesma contraordenação, estão em causa os acontecimentos históricos com relevância contraordenacional, isto é, as ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou mudanças operadas no mundo exterior (cfr. REIS, Alberto dos, in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição-reimpressão, Coimbra Editora, 1985, págs. 206 e 207) que, de acordo com certos elementos, nomeadamente temporais, espaciais, lógicos, cronológicos, subjetivo-motivacionais, à luz da valoração social, devam ser reconduzidos a uma unidade de sentido suscetível de ser, por via substantiva, reconduzida a um tipo de ilícito contraordenacional (cfr. ALBERGARIA, Pedro Soares de, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, 2022, Almedina, págs. 631 e 632 e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26-02-2020, processo n.º 105/17.9GAMGD.G16, cujas considerações, embora a propósito da delimitação do conceito “mesmo crime”, a que alude o referido preceito constitucional, são transponíveis para o domínio contraordenacional).
Ora, perante o que fica dito, mostra-se evidente que não ocorreu, no caso em apreço, qualquer dupla valoração jurídica dos mesmos factos.
Apesar de estar em causa a produção de ruído de vizinhança pela mesma pessoa e no mesmo local, a conduta em causa nos dois processos refere-se ao não acatamento de distintas ordens dadas pela autoridade policial em diferentes momentos temporais para a cessação da incomodidade causada pelo ruído que era produzido no momento em que cada uma delas foi emitida, existindo, assim, uma situação de descontinuidade da conduta típica.
Sendo a recorrente confrontada com a incomodidade causada pelo ruído de vizinhança que produzia pela autoridade policial que, em dois momentos temporais distintos da mesma noite, lhe ordenou para cessar a sua conduta de forma imediata, o não acatamento da segunda ordem necessariamente obedeceu a uma resolução autónoma em relação ao não acatamento da primeira ordem.
Assim, estão em causa acontecimentos históricos temporais distintos, cada um deles com autónoma relevância contraordenacional, pese embora reconduzíveis ao mesmo tipo contraordenacional, e que, de acordo com as mais elementares regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, exigiram à recorrente uma pluralidade de resoluções autónomas, o que é justificativo de uma pluralidade de juízos de censura, tendo as condutas adotadas sido dominadas por distintos sentidos sociais autónomos de ilicitude contraordenacional típica, pelo que não há qualquer violação ao disposto no art.º 29.º, n.º 5, da C.R.P.
Reclama a recorrente que se tratou de uma contraordenação continuada, por aplicação subsidiária do art.º 30.º, n.º 2, do Código Penal (C.P.) (cfr. arts. 2.º, n.º 1, da L.Q.C.A. e 32.º do R.G.C.C.).
Não é sequer consensual a existência de tal figura dogmática no âmbito contraordenacional (cfr. FARIA COSTA, José de, in “Crimes e Contra-ordenações”, Questões Laborais, A. VIII, n.º 17, 2001, págs. 9 a 11).
Não obstante, mesmo defendendo a sua existência em tal domínio, por aplicação subsidiária do C.P., é certo que devido à índole do direito de mera ordenação social, que apenas contempla interesses de carácter funcional ou organizatório, a figura da contraordenação continuada nunca poderá incidir sobre valores pessoais, pelo que seria inaplicável às contraordenações o disposto no art.º 30.º, n.º 3, do C.P. (cfr. ANTUNES, Maria João, in “Concurso de Contra-ordenações”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1.º, Tomo III (julho-setembro 1991), pág. 468).
Contudo, mesmo defendendo a existência da figura dogmática da contraordenação continuada no domínio contraordenacional, entre outros pressupostos, a realização plúrima teria que ser executada dentro do quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminuísse sensivelmente a culpa do agente (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 1031), por aplicação subsidiária do art.º 30.º, n.º 2, do C.P..
Ora, da matéria de facto provada (cfr. II.3.C.) resulta que a recorrente decidiu abrir as portas da sua residência, localizada no … de um prédio habitacional, para os seus amigos, aí levando a cabo, no período noturno, um convívio animado por conversas e ao som de música, suscetível de afetar, como de facto afetou, a tranquilidade da vizinhança.
Sendo a recorrente a anfitriã de tal convívio e cabendo-lhe a disponibilidade do espaço onde o mesmo era levado a cabo, é óbvio que tinha uma forma bastante fácil de pôr termo à produção do ruído de vizinhança que produzia. Na verdade, bastava-lhe desligar a música, comunicar às pessoas que convidara para a sua residência que a teriam que abandonar, indicando-lhes saída e garantindo que dela se retiravam. No entanto, persistir em levar a cabo a referida festa na sua residência integrada num prédio habitacional pela noite dentro, ignorando as duas distintas ordens legítimas que lhe foram comunicadas pela autoridade policial, dependeu exclusivamente de um ato de vontade seu, ato esse que, sem desconhecimento da ilegalidade que praticava, persistiu em renovar na nova resolução que tomou após lhe ser dada a segunda ordem por parte da autoridade policial (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 15-06-2023, processo n.º 97/23.5T8FAR.E17).
Desta forma, sempre inexistiria qualquer situação exterior à recorrente que, de fora e de maneira considerável, tivesse tornado cada vez menos exigível que ela se comportasse de maneira diferente.
Improcede, pois, neste segmento, o recurso interposto.
II.4.C. Da admoestação:
Pugna a recorrente que lhe deveria ter sido aplicada uma admoestação nos termos do art.º 51.º do R.G.C.C.
Fundamenta a sua pretensão no facto de ser a própria lei a classificar a contraordenação em causa como leve, verificando-se uma situação de culpa reduzida. Na verdade, segundo defendeu, “não seria com facilidade que a Recorrente poderia lograr evacuar a fração”, tendo os factos ocorrido “num contexto social muito específico, tratando-se de uma jovem adulta que, à data, tinha acabado de fazer 18 anos, e, como todos os jovens que se encontravam na fração, tinham um desejo exacerbado de conviver com os amigos que não viam há bastante tempo devido às restrições impostas pela pandemia COVID-19, encontrando-se ainda encerrados todos os espaços públicos.
Ora, de facto, a entidade competente pode limitar-se a proferir uma admoestação, mas tal só poderá ocorrer quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique (cfr. art.º 51.º do R.G.C.C.).
A 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões (cfr. art.º 75.º, n.º 1, do R.G.C.C.).
Estando em causa apenas contraordenações, o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista, só apreciando questões de direito, embora num plano de revista alargada (cfr. arts. 41.º, 75.º, n.º 1, do R.G.C.C. e 410.º, n.º 2, e n.º 3, do C.P.P.; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-12-2023, processo n.º 820/23.8T9LRA.C18). Por isso bem se compreende que, nos termos da parte final do art.º 66.º do R.G.C.C., no julgamento realizado em 1.ª Instância, não seja possível a redução da prova a escrito ou a gravação da mesma (cfr. PEREIRA, António Beça, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2014, págs. 223 e 224). Acresce que o Tribunal Constitucional tem entendido que a C.R.P. não impõe o duplo grau de recurso em matéria de facto (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 632/2009, de 03-12-20099).
Assim, para apreciação da questão, ter-se-á apenas que atender à matéria de facto provada (cfr. II.3.C.).
É certo que, tendo em conta a relevância dos direitos e interesses violados, a contraordenação em causa é classificada pela lei como leve (cfr. arts. 28.º, n.º 1, al. h), do R.G.R. e 21.º da L.Q.C.A.).
Contudo, dentro da gravidade suposta pelo tipo contraordenacional em causa, resulta da matéria de facto provada que a conduta adotada pela recorrente se pautou por elevada gravidade tendo em conta que já havia recebido idêntica ordem para cessar imediatamente a incomodidade, o número de vezes que a polícia contactou com a recorrente, o número de horas durante as quais esta prolongou a produção de ruído de vizinhança no período noturno e a própria intensidade deste face ao número de vizinhos que foram incomodados, um dos quais residente vários pisos acima da residência da recorrente.
Por outro lado, resulta também da matéria de facto provada que a recorrente agiu com a modalidade mais intensa do dolo, que se mostra direto, revelando os factos cometidos tenacidade e acentuada energia na resolução tomada, uma desvalorização dos sucessivos contactos com a polícia, uma indiferença pela autoridade policial, um sentimento de impunidade e até insensibilidade pelos vizinhos.
Assim, o circunstancialismo demonstrado, em vez de diminuir a gravidade da infração e a culpa da recorrente, é bem demonstrativo da elevada gravidade da sua conduta, bem como da forte intensidade da sua vontade e da censurabilidade da sua conduta.
Não merece, pois, qualquer censura, a não aplicação de uma admoestação.
II.4.D. Da atenuação especial da coima:
Por fim, a recorrente entende que a coima deverá ser especialmente atenuada, dado que se tratou de uma situação isolada, pontual, sem precedentes, não refletindo uma conduta habitual.
A autoridade administrativa atenua especialmente a coima, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima (cfr. art.º 23.º-A, n.º 1, da L.Q.C.A.).
Tendo em conta a matéria de facto provada (cfr. II.3.C.) e o já exposto (cfr. II.4.B. e II.4.C.), não obstante a tenra idade da recorrente à data dos factos, de não se verificarem os pressupostos da reincidência10 (cfr. arts. 26.º e 54.º, n.º 4, da L.Q.C.A.), bem como de, posteriormente ao dia ...-...-2021, não lhe ser conhecida a prática de qualquer outra contraordenação (cfr. art.º 23.º-A, n.º 2, al. b), da L.Q.C.A.), na falta de qualquer ato objetivo revelador de arrependimento (cfr. art.º 23.º-A, n.º 2, al. a), da L.Q.C.A.), as demais circunstâncias do caso demonstram não há qualquer diminuição, muito menos acentuada, da ilicitude do facto que se revela elevada a par da culpa com que a recorrente agiu. Acresce que as desvaliosas características da personalidade da recorrente manifestadas no facto cometido, revelam uma maior insensibilidade a uma sanção e, assim, uma maior insusceptibilidade de ser por ela influenciada, sendo pois mais elevada a necessidade da coima.
Assim, é absolutamente evidente que da factualidade provada não resulta qualquer circunstância que diminua por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima.
Improcede, pois, também neste segmento, o recurso interposto.
II.5. Das custas:
Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso (cfr. art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P.), sendo o arguido condenado em uma só taxa de justiça (cfr. art.º 513.º, n.º 2, do C.P.P.), devendo a condenação em taxa de justiça ser sempre individual e o respetivo quantitativo ser fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais (R.C.P.) (cfr. art.º 513.º, n.º 3, do C.P.P.).
Assim, nos termos do art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e da Tabela III a ele anexa, o recorrente que decaía totalmente deve ser condenado entre 3 UC e 6 UC a título de taxa de justiça, tendo em vista a complexidade da causa.
Ora, não obstante a reduzida complexidade das questões, tendo em conta o seu número e a circunstância de terem sido suscitadas sem o rigor técnico que seria desejável, julga-se adequado fixar a taxa de justiça em 4 UC.
III. Decisão:
Julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pela arguida AA, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.
Condena-se a recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça por ele devida em 4 UC.

Lisboa, 08-04-2024
Pedro José Esteves de Brito
Ana Lúcia Gordinho
Sandra Oliveira Pinto
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1. https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf
2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/458ff4110b557ba080258ac5002d2825?OpenDocument
3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf
4. https://files.diariodarepublica.pt/1s/2019/07/12400/0331703324.pdf
5. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/664e1c191b149d4d80258a6000332c02?OpenDocument
6. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/099b3624d86e03848025852600501f13?OpenDocument
7. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/875ef839c4b4fdb6802589dc002dfac8?OpenDocument
8. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/9232405caa028a5d80258aa600421548?OpenDocument
9. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090632.html
10. Uma vez que o pagamento voluntário da coima da contraordenação anterior foi efetuado após a prática da contraordenação de que tratam os autos, não estando em causa contraordenações muito graves ou graves (cfr. II.3.A.).