SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
HOMICÍDIO
TENTATIVA
PENA DE PRISÃO
Sumário

I - No recurso à pena alternativa de suspensão da execução da pena de prisão não estão em causa considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. (…) “Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em análise.”
II - A prática de um crime de homicídio tentado, com recurso a armas disparadas inadvertidamente em pleno dia da varanda de um prédio, causa uma enorme insegurança e intranquilidade na população, podendo qualquer projétil inadvertidamente atingir qualquer pacato cidadão que por aquele local passasse. Pelo que as razões de prevenção geral são elevadas.
III - Se o autor dos disparos, para além de ter antecedentes criminais, já usufruiu de oportunidades do sistema penal, conferidas, designadamente, pela suspensão da execução da pena pela prática de um crime de roubo ( crime este que tem como subjacente uma violência contra as pessoas e não só contra o património) e não acolheu os ensinamentos ínsitos, nem se deixou influenciar pelas advertências contidas nas anteriores condenações com penas alternativas, demonstra indiferença e falta de preparação para manter conduta lícita, pautando a sua conduta segundo o dever ser jurídico-penal. Pelo que não deverá ser suspensa na sua execução a pena de prisão aplicada.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
No Processo Comum Coletivo nº 1698/22.4PDAMD Referência: 154022219, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Sintra - Juiz 5 - foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, acordam os juízes que compõem o Tribunal Coletivo:
1. Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pela conjugação dos artigos 131.º, n.º 1 e 22.º e 23.º, todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.
2. Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 (um) ano de prisão.
3. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
4. Suspender a execução da pena de prisão em que o arguido AA é condenado, pelo mesmo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, sujeita a regime de prova, a delinear pela DGRSP.
5. Condenar o arguido BB, como autor material e na forma consumada de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pela conjugação dos artigos 131.º, n.º 1 e 22.º e 23.º, todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
6. Condenar o arguido BB, como autor material e na forma consumada de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 (um) ano de prisão.
7. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido BB, na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
8. Absolver os dois arguidos da qualificativa prevista na alínea h), do n.º 2 do artigo 132.º, n do Código Penal.
9. Condenar os arguidos na taxa de justiça individual que se fixa em 3 (três) UC´s e nas demais custas do processo, fixando-se a procuradoria pelo mínimo, tudo nos termos do disposto nos artigos nos termos do disposto nos artigos 513.º, 514.ºdo Código Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Judiciais e Tabela III, ao mesmo anexa.
10. Condenar o arguido BB a pagar - a título de reparação pelos prejuízos sofridos - ao ofendido CC, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos Euros), nos termos do disposto 82.º-A, n.º 1 do CPP.
11. Absolver o arguido/demandado AA do pedido indemnizatório deduzido pelo Hospital DD, EPE.
12. Julgar procedente o pedido indemnizatório deduzido pelo Hospital DD, contra o arguido/demandado BB e condenar este demandado no pagamento ao demandante, do montante de € 92,91 (noventa e dois euros e noventa e um cêntimos), acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento,
13. Custas cíveis pelo demandado BB (cfr. art.º 523.º, do Cód. de Processo Penal), sem prejuízo da isenção prevista no artigo 4.º, n.º 1, alínea n), do RCP.»
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Inconformado, recorreu BB, formulando as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso vai interposto do acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de Sintra -Juiz 5- que condena o arguido ora recorrente, como autor material de um crime de homicídio na forma tentada, p.p pelo artº. 131º nº1 e 22º e 23º, todos do código penal e de 1 crime de detenção de arma proibida pp pelo art.º 86º nº 1, al. c) da lei 5/2006 de 23 de fev., na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão efectiva e ainda no pagamento das custas processuais. Isto porque,
2. segundo a decisão condenatória, o arguido, ora recorrente, no dia ........2022, na ... em frente ao nº... na ..., o arguido, AA arremessou pedras em direcção ao arguido BB ora recorrente que se encontrava a janela da residência em referência tendo este apontado uma arma e disparou, 4/5 tiros, em direcção aquele que repostou disparando com uma arma caçadeira retirada de um outro indivíduo que se encontrava no local dos factos, tendo efectuado com a mesma disparos em direcção ao recorrente, tudo melhor especificado no douto acórdão que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. Ora, tais factos no entender do recorrente não resultaram minimamente provados, sendo por essa razão os pontos de 2 a 13, não deveriam ter sido considerados como fazendo parte da matéria de factos provados. Na verdade,
4. O arguido, á data dos factos enquanto se encontrava na varanda da residência de um seu irmão, na citada morada, a fumar um cigarro, altura em que, surgiu a testemunha CC irmão do arguido AA, que numa atitude provocatória, começou a provocá-lo, depois já com o irmão AA, arremessando na sua direcção pedras e pedaço de telhas, o que fez com que o recorrente que trazia consigo uma arma de fogo, disparasse tiros, porém não em direcção aos mesmos, mas sim com o intuito de se defender e afastá-los dali; De se referir que, com a testemunha BB, irmão do arguido AA, o recorrente havia tido uma discussão durante a qual este sem mais nem menos o esfaqueou na testa, tendo apresentado então queixa-crime que ainda corre os seus termos legais.
5. Pelo que o recorrente jamais teve a mínima intenção de com os disparos feitos, provocar a morte quer da testemunha BB, quer do arguido AA, não tendo disparado em direcção a nenhum deles, como se refere no acórdão recorrido.
6. De modo a que, o recorrente negou e nega a prática dos factos imputados, pelos quais foi condenado, por os mesmos não corresponderem minimamente á realidade.
7. Sendo certo que não obstante os registos contidos no seu CRC, o mesmo é hoje, uma pessoa trabalhadora e inserido socialmente, não devendo em relação a si, vigorar àquela máxima “o condenado é sempre condenado”. Senão vejamos, das provas produzidas em audiência, inquiridos em audiência,
8. a testemunha, CC, irmão do arguido AA, na parte perceptível, questionado pela MP, com relevância, responde “eu estava a sair da casa e ia a passar o senhor BB começou logo atirar…estava na varanda da casa dele…3 ou 4 tiros o meu irmão apareceu e disse que não era com ele que era comigo…estava o meu irmão e o EE…disse que a conversa não era com o meu irmão…estava lá mais pessoal e depois eu fui-me embora… questionado se ouviu mais tiros responde “ SE HOUVE FOI DE OUTRAS PESSOAS SIM VI PEDRAS DEPOIS ELE ENTROU LÁ PRA DENTRO DE CASA. Havia outra confusão porque eu tinha deitado uma coisa para o chão e ele queria que eu apanhasse, eu não vivia lá, o meu irmão é que vivia… não vi o meu irmão com arma na mão, vieram depois mais pessoas...” (com o registo da gravação, entre 15:01 a 15:22, com a duração de 00:08:36, do dia ........2024);
9. A testemunha HH companheira do irmão do recorrente responde as perguntas da Mma Juiz: “havia uma discussão entre o BB e o BB...eu estava dentro de casa… nós não vimos nada...não vi nada… quando sai a varanda eles estava a atirar coisas lá para cima (referindo a varanda da sua casa) … vi tantos buracos na porta da varanda…não vi o BB com arma…estava la em baixo o BB e o irmão, quando vim a varanda… a pergunta do advogado, responde “eles mandaram telhas pedras e vidros (registo, do dia ........2024, com o inicio 15:31 e fim 15:44, com a duração de 00: 12:51).
10. Foram igualmente inqueridas as testemunhas PSP, FF que responde “recolheu invólucros de caçadeira, no local e cartuxos, (registo entre 14:40 e 14:51 com a duração de 00:06:35 do dia ........2024), GG da PJ, que afirma: fomos comunicados duma altercação entre vários indivíduos, com trocas de tiros … no piso superior da porta tinha uma varanda tinha vestígios… tiramos os dois indícios, no local… (entre as 14:40 e 14:51, dia ........2024 com a duração de 00:10:39);
11. Por sua vez o arguido AA questionado pela Mma Juiz, afirma: “já não me lembro da data do ocorrido… sei que foi perto da passagem de ano…foi pela hora do almoço...estava a sair para um almoço da empresa…ouvi o BB e o BB, na discussão…o senhor BB estava na varanda da casa dele…começou logo a atirar 3/4 vezes… ele disse que a conversa não era comigo que era com o meu irmão… só vi o meu irmão com pedras. Sei que havia uma confusão entre o meu irmão e ele. Estava a descer da casa do meu irmão e ele começou logo a disparar”, declarou quando questionado pelo advogado (registo de gravação, 14:29, a 14:45, 00.15:53 do dia ........2024);
12. O recorrente questionado pela Mma Juiz de direito em audiência diz : “ tinha um café o BB passou e ele mandou um coisa para o chão… fui falar com ele agrediu-me com uma catana na testa fiquei com corte na testa…apresentei queixa…… nesse dia (referindo-se ao dia dos factos) fui visitar o meu irmão, a casa era do meu pai…ele passou a olhar para mim… eu estava na varanda a fumar…ele começou a olhar para mim e ameaçou-me, depois veio o AA, começo a mandaram pedras, garrafadas e eu tinha uma arma disparei mas sem acertar… o problema não era com ele era com o irmão (BB) …atiraram com telhas na direcção do meu irmão depois apareceram mais pessoas… Estavam umas quantas pessoas encostadas aos carros, quando já estava a entrar para a casa ouvi disparos… dois disparos acertaram na porta da casa… (registos entre 14:45 a 15:00, com a duração de 00:14:45 do dia ........2024).
13. Dos depoimentos do agente da PSP e do Inspector da PJ resumiram na recolha dos vestígios dos disparos feitos no local, da apreensão da arma do recorrente, uma vez que a arma utilizada pelo arguido AA não foi encontrada salvo erro, sem nada acrescentar em termos de provas, com esta testemunha PJ, a referir que houve “altercação entre vários indivíduos no local dos factos”,
14. Pelo que, no entender do recorrente, com respeito pela opinião contrária, face ás discrepâncias e contradições, evidentes, entre os depoimentos das testemunhas e o prestado pelo também arguido AA, não deverão ser considerados como fazendo parte da matéria provada, os factos constantes dos suprareferidos pontos 2 a 13, do douto acórdão, os quais foram incorrectamente julgados, verificando-se assim,
15. insuficiência para a decisão da matéria de facto dado como provada, assim como, erro notório na apreciação da prova produzida em audiência (art.º 410º do CPP). Com efeito,
16. As declarações da testemunha BB e do irmão arguido AA, não são coincidentes, designadamente, quando o AA assume a autoria dos disparos contra o recorrente, ainda que com versões distintas, enquanto a testemunha BB afirma que aquele não tinha arma, não o tendo visto a disparar arma de fogo, mormente contra o ora recorrente, não se tendo resultado provado quem disparou contra quem, tão-pouco quem disparou primeiro, se o AA como afirma o recorrente ou, se este como refere aquele,
17. Sendo certo que, do depoimento da testemunha HH, eles, o AA e BB começaram a atirar pedras, telhas entre outros objectos em direcção a porta da casa, não tendo arguido recorrente negado ter feito disparos, com a arma de fogo que detinha para se defender e os afastar do local, defronte a varanda da citada residência onde se encontrava.
18. Posto que, dos depoimentos supra transcritos, não se descortina em como se chegou á conclusão a que se chegou pelo acórdão recorrido, de que a recorrente tenha praticado os factos pelos quais foi julgado e condenado, com o co-arguido neste processo, havendo um desrespeito total pelo princípio da legalidade e de justiça quanto a produção da prova, pelo que se impunha, pois, a prova dos factos que demonstrasse ter o arguido praticado os mesmos factos.
19. Havendo no, mais modesto, entendimento do ora recorrente, um desrespeito total pelo princípio da legalidade e de justiça quanto a produção da prova, o mesmo se diz quanto ao princípio da igualdade, com o arguido a ser o única sentenciado com a pesada pena de prisão efectiva, ao invés do que acontece com o arguido AA, estabelecendo, assim, quanto ao recorrente dois pesos e duas medidas para crimes de idêntica natureza, penalizando, mais, quem menos participação teve nos factos.
20. Concretizando, em relação á insuficiência para a decisão da matéria de facto dado como provada, pontos que o recorrente considera terem sido mal julgados:
ponto 1, não ficou evidente que o recorrente se encontrava na varanda a espera do AA ou do BB para lhes tirar a vida, porquanto ali se encontrava a “fumar um cigarro” quando apareceu a testemunha CC; ponto 2 só fez referência do que se tinha passado entre ele o BB depois de se aperceber que este o olhava com ar provocador; ponto 3 disparou mas não em direcção a CC; ponto 3, as pedradas foram atiradas pelos irmãos antes do recorrente ter disparado os tiros; ponto 5, não ficou demonstrado ter o recorrente disparado contra o arguido AA, ponto 6, após disparos o arguido entrou para a residência onde se encontrava, não tendo sido demonstrado de que não tendo ficado provado a apropriação da dita caçadeira, pelo AA; ponto 9 o recorrente só abandonou a varanda porque estava ser atingido a tiros, pelo arguido AA; ponto 10, o recorrente não confirma os 3 ou 4 disparos, mas sim refere ter disparado, tiros, não sendo esta versão contrariada pelos irmãos; ponto 11º com vários indivíduos em “altercação” não se fez prova de que foram os disparos do recorrente a atingir a testemunha BB na virilha; ponto 12º não tendo sido os disparos feitos em direcção da testemunha BB, inexiste intenção do recorrente em atingir órgãos vitais da testemunha, versão não corroborada por testemunhas; ponto 13º usou a arma para se defender da agressão iminente e não para causar lesões mortais a testemunha BB ou a atingi-lo a metros de distância, como refere o acórdão, o que não foi em momento algum, em audiência de julgamento, contrariada.
21. De modo a que, no entender da recorrente, o douto acórdão viola clamorosamente o disposto no art.º 127º do CPP., atento que a livre a apreciação da prova não é redutível a um íntimo convencimento sem probabilidade de justificação objectiva, mas uma liberdade de apreciação no âmbito das operações lógicas probatórias que sustentem um convencimento qualificado pela persuasão racional do juízo e que por isso também externamente possa ser acompanhado no seu processo formativo segundo o princípio da publicidade da actividade probatória.
22. Ainda, quanto a medida da pena, nos termos do art.º 71º 1 CP a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, art.º 71º/2 CP, devendo ser explanados expressamente os fundamentos da medida da pena, art.º 71/3 do C.Penal.
23. Ora, no caso dos autos, a razão da medida da pena e da prisão, constam dos pontos, subsequentes, do acórdão, de modo muito pouco fundamentada.
24. Acresce que, a nosso ver, do acórdão não constam quais os fundamentos em que se louvou para condenar o arguido na pena de prisão efectiva, assim como existe uma forte contradição entre os fundamentos apontados e a própria decisão, quando confrontada com os factos provados e não provados relevantes para justificar a condenação do arguido/recorrente ou para não lhe suspender a pena, em violação do disposto no art.º 374º/2 do CPP;
25. É que, em direito e por força da lei, as inferências não chegam, não basta concluir, há que dizer fundadamente, porque razão se decide duma maneira e não de outra, o que não sucede no douto acórdão recorrido. Daí que,
26. a nosso ver, o douto acórdão recorrido tem pois que ser revogado, por nulo, porquanto:
a) não indica os fundamentos em que se louvou para atribuir a condenação do arguido numa pena de 4 anos e 6 meses de prisão efectiva.
b) Por outro lado as condições pessoais do arguido, deviam ter pesado na determinação da pena.
27. Fazendo uma apreciação correcta das provas produzidas em audiência de julgamento, o Tribunal “a quo”, não podia deixar de absolver o arguido BB, da prática do crime de homicídio na forma tentada, punindo-o eventualmente por outro tipo de crime, o de ofensa a integridade física, por não se encontrar provada, designadamente a intenção do arguido em provocar a morte do ofendido BB.
28. Sendo certo que, sempre com o devido respeito, o recorrente considera a sua condenação em prisão efectiva feita de uma forma injusta e discriminatória em relação ao outro arguido, no modo, no número de crimes praticados e até pela circunstância em que os mesmos foram praticados.
29. Porém, sem conceder, caso V Exas muito doutamente considerar provados os factos pelos quais o recorrente foi condenada em prisão efectiva, entendemos que esta mesma pena devia/deve ser suspensa na sua execução nos termos do art.º 50º do CP. Isto por que
30. não basta a análise do passado criminal do arguido para dele se concluir que a sua personalidade manifestada no facto, revela uma incapacidade para manter uma conduta conforme ao direito e aos valores que este tutela, de forma a impedir um juízo de prognose favorável no sentido de que a ameaça da pena satisfará ainda as finalidades que lhe subjazem, concluindo-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime,
31. Não devendo vigorar, quanto a si, a máxima, “o condenado é sempre condenado”, sendo de se referir que as condenações anteriores, resultam, da prática de crimes de natureza diversa.
32. Pelo que, foram violadas as seguintes normas jurídicas: os art.ºs 127º, 374º/ 2, 428º/1 do CPP, 71º/3, do CP, artº. 50º. CP, 668º/b CPC, 32º da CRP, segundo o qual todos tem direito a defesa (em conformidade) ….
Nestes termos, deve o presente recurso ser considerado procedente, sendo o arguido recorrente absolvido do crime de pelo qual foi condenado, com as legais consequências.
Porém, sem conceder, Caso V. Exas, doutamente, assim não entenderem, deve a pena de prisão aplicada á recorrente BB ser suspensa na sua execução nos termos do art.º 50º da CP, bem como o inserido no relatório do IRS e por ser primário da prática do crime da mesma natureza, bem como o facto de se encontrar, social, familiar (tem um filho de tenra idade, doc. 2 junto) e laboralmente integrado.»
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Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, concluindo nos seguintes termos:
«1. Vem o arguido BB interpor recurso do acórdão proferido por não se conformar com a pena de 4 anos e 6 meses de prisão efetiva em que foi condenado.
2. Ora, o recorrente não cumpre minimamente os requisitos referidos nos preceitos supra, já que, embora refira a existência de erro de julgamento quanto aos factos de 2 a 13 dados como provados, a motivação e as conclusões apresentadas omitem as concretas provas que, em relação a esses factos, impunham decisão diversa da recorrida, nomeadamente pela forma prevista no nº 4 do artigo 412º do CPP.
3. Na verdade, o recorrente limita-se, de uma forma genérica a remeter para a versão do arguido e das testemunhas, mas não indica as passagens concretas dos seus depoimentos que impunha decisão diversa da recorrida.
4. Não resulta das declarações prestadas pelo recorrente em audiência de julgamento que, este, tenha confessado ter sequer na sua posse qualquer arma de fogo, quanto mais assumir ter disparado!
5. Vem agora na sua motivação invocar que confessou só ter disparado a arma de fogo, da janela onde se encontrava, após ter sido apedrejado pela testemunha CC e pelo irmão AA, para se defender!
6. Em suma, repisando as considerações que inicialmente já tecemos, a mera discordância por parte da recorrente em relação à apreciação/valoração da prova feita elo Tribunal a quo não traduz qualquer erro de julgamento, sendo antes uma consequência lógica e inevitável do princípio da livre apreciação da prova.
7.Temos por líquido que da conjugação de todos os meios de prova enunciados na motivação da matéria de facto, criticamente analisados e ponderados pelo Tribunal a quo, resulta à evidencia que foi totalmente acertada a deliberação sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo.
8. O recorrente, ao atacar a deliberação recorrida com base na credibilidade que o Tribunal Coletivo deu, ou não, às declarações dos arguidos ou das testemunhas, o recorrente põe em causa a norma ínsita no artigo 127º do Código de Processo Penal, que determina que o juiz julgue segundo as regras de experiência e a sua livre apreciação.
9. De acordo com este princípio, o Tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que a opção seja devidamente explicitada e convincente de acordo com aquelas duas vertentes.
10. Verifica-se que o douto acórdão recorrido contém a explicação detalhada do processo lógico racional utilizado na apreciação das provas, que determinou a formação da convicção do tribunal e que não existe qualquer contradição entre a prova produzida em audiência de julgamento e a decisão sobre a matéria de facto.
11. Resulta assim do texto do acórdão ora recorrido que o tribunal não teve qualquer dúvida na fixação da matéria de facto, nem a mesma enferma de qualquer insuficiência, contradição ou erro notório na apreciação da prova.
12. No mais limita-se o recorrente a discordar da apreciação da prova feita pelo Tribunal, desvalorizando os depoimentos que convenceram o tribunal, sendo certo que no acórdão vem justificada a credibilidade de cada um dos depoimentos prestados em audiência e demais prova.
13. Efetivamente, lida a integralidade da motivação da matéria de facto integrante do Acórdão, verifica-se que o Tribunal Coletivo analisou criteriosamente as versões dos factos trazidas a julgamento, quer tivessem sido veiculadas pelos arguidos ou por testemunhas ouvidas, esclarecendo de forma cabal, aprofundada e inteiramente coerente as razões pelas quais atendeu ou não às mesmas, sempre em atenção às regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, e apelando de forma conjugada aos demais elementos probatórios mobilizados para os autos.
14. Para se aceder à certeza, para além de toda a dúvida razoável, de que os factos de uma acusação ocorreram e que o arguido foi o seu autor, a lei exige um número mínimo de depoimentos concordantes, nem tão pouco que o arguido os confesse. Um depoimento de uma testemunha pode bastar a esse desiderato como depoimentos podem não ser suficientes para criar no julgador a dúvida sobre se os factos em julgamento ocorreram pela forma como constam da acusação e/ou se foi o arguido a praticá-los (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.05.2016, Proc. nº 92/15.8GAMLG.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.)
15. Parece-nos evidente que a pena de 4 anos e 6 meses de prisão concretamente aplicada não deixa transparecer inobservância dos critérios contemplados no artigo 71º, nºs 1 e 2 e 77º do CP nem desrespeito pelas finalidades das penas, consagradas no artigo 40º, nº 1 do mesmo código.
16. Bem como os fundamentos aduzidos para a aplicação de pena de prisão efetiva, são suficientes, na medida em que o recorrente, como foi referido, averba várias condenações no seu CRC, designadamente de penas de prisão substituídas, não tendo tais condenações, sido suficientes para as finalidades da punição, bem como a sua postura em audiência de julgamento, porquanto o arguido, não assumiu os factos, não mostrou qualquer arrependimento quanto aos mesmos.
17. Pelo que, não poderia a pena ser idêntica à do arguido AA, que apresenta uma situação laboral e económica estável, confessou a maioria dos factos e, não tem antecedentes criminais.
18. Neste sentido, é mister concluir que as finalidades punitivas a que acima se aludiu só poderão ser adequadas e cabalmente repostas, com a aplicação de prisão efetiva, sendo qualquer outra pena, nomeadamente a suspensão da execução da pena de prisão, uma benevolência injustificada e potenciadora da mimetização de comportamentos como aqueles que foram levados a cabo pelo recorrente.
19. Em suma, a medida da pena de prisão imposta ao arguido, bem como o seu cumprimento efetivo, não merece qualquer censura, devendo manter-se nos seus precisos termos.»
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, referindo, em síntese:
Da impugnação da matéria de facto – Questão prévia.
O recorrente pretende impugnar a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo no acórdão recorrido, alegando o vício do erro notório na apreciação da prova – art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP - e a violação do art.º 127.º do CPP, ao abrigo do art.º 412.º, n.º 3 e n.º 4 do CPP, apresentando alguma confusão entre ambos.
Quanto ao alegado vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º410.º, n.º 2, al. c) do CPP, tendo em conta que tal vício terá que resultar necessariamente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, e sendo certo que o próprio recorrente não aponta ou indica os excertos ou extratos do acórdão dos quais resulte tal vício, e que a acórdão recorrido se mostra devidamente fundamentado e apreciada a prova de acordo com as regras da lógica e da experiência de vida, afigura-se-nos que o recurso neste segmento está manifestamente destinado a naufragar.
Quanto à impugnação da matéria de facto nos termos do art.º412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP– má apreciação da prova nos termos do art.º 127.º do CPP - entendemos que manifestamente também deverá improceder, tendo em conta que o recorrente faz apenas uma apreciação subjetiva da prova, sem indicar especificamente o(s) fundamento(s) pelo(s) qual(ais) entende que a mesma impõe decisão diversa, uma vez que, apesar de indicar os factos que em seu entendimento não resultam provados (factos 2 a 13), não indica as provas que impõem decisão diversa, e muito menos o faz por reporte e indicação das passagens em que se funda tal impugnação, não cumprindo o ónus a que está obrigado pelo art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
Consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância identificou corretamente o objeto do recurso, abordou detalhadamente todas as questões suscitadas, argumentou com clareza e correção jurídica, indicou jurisprudência e doutrina relevantes, o que merece o nosso total acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto do recurso em análise diz respeito.
Não obstante, entendemos que, sendo manifesta a improcedência do recurso quanto à matéria de facto, nos termos do art.º º412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, deverá nesta o mesmo ser rejeitado, nos termos do art.º º420.º, n. º1, alínea a) e n. º2, do CPP.
Caso assim não se entenda, o recurso deverá improceder nessa e nas demais vertentes.
Nesta conformidade, o acórdão recorrido não nos merece qualquer reparo ou censura»
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Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir, tal
a) Do vicio decisórios.
b) Insuficiência da prova para a decisão; Impugnação sobre a matéria de facto/Erro de julgamento;
c) Violação do princípio do in dubio pro reo;
d) Medida e execução da pena.
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DO ACORDÃO RECORRIDO
Do acórdão recorrido consta a seguinte matéria de facto provada:
«1. No dia ........2022, cerca das 14H45, CC e o arguido AA encontravam-se na ..., em frente ao n.º …, na ..., quando surgiu à varanda do … andar deste imóvel o arguido BB.
2. O qual, dirigindo-se a CC fez referência a um anterior desentendimento entre os dois.
3. Ato contínuo, o arguido BB empunhou uma arma de fogo de cano curto – pistola -, a qual apontou na direção de CC, efetuando disparos na direção daquele.
4. Em face desta situação, o arguido AA agarrou em pedras e arremessou-as na direção do arguido BB, não o tendo atingido.
5. Após o que, o arguido BB apontou a arma que tinha na mão na direção do arguido AA e disse-lhe “Isto não é contigo!”.
6. Voltando a apontar a arma na direção de CC e efetuando mais disparos.
7. Ato continuo, surgiu no local onde se encontravam CC e o arguido AA, um outro individuo cuja identificação se desconhece e que tinha na sua posse uma espingarda caçadeira.
8. O arguido AA de imediato se apropriou desta espingarda caçadeira efectuando dois disparos na direção da varanda onde se encontrava o arguido BB, não o tendo atingido.
9. Na sequência dos disparos efetuados na sua direção, o arguido BB abandonou a referida varanda onde se encontrava.
10. Dos cerca de 4/6 disparos efetuados pelo arguido BB, um deles atingiu CC, de raspão, na virilha.
11. Como consequência da conduta do arguido BB supra descrita, CC foi transportado para o DD, tendo sofrido uma ferida com cerca de 1,5 cm na face anterior da raiz da coxa direita, as quais determinaram um período de doença fixável em 10 dias, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.
12. O arguido BB, atento o circunstancialismo descrito, pelos motivos referidos e utilizando a arma de fogo como usou, disparando-a cerca de 4/6 vezes quando se encontrava a uma distância de cerca de 20 metros de CC bem sabia que os tiros assim disparados poderiam atingi-lo num local onde se encontrassem alojados importantes órgãos vitais, tendo previsto que da sua conduta poderia advir a morte de CC sem que contudo, deixasse de levar a cabo a conduta descrita, com tal resultado se conformando.
13. O arguido BB agiu fazendo uso de uma arma de fogo – pistola -, tendo consciência que face às características deste instrumento este era perigoso e que tal conduta era suscetível de causar leões mortais ao ofendido CC, conformando-se com tal desfecho, revelando total desconsideração pela vida/integridade física do ofendido.
14. O arguido BB conhecia a natureza e as características da arma que detinha – pistola-, bem sabendo que não era titular de licença de uso e porte de arma e que a sua posse e utilização eram proibidas.
15. O arguido AA, atento o circunstancialismo descrito, pelos motivos referidos e utilizando a arma de fogo como usou – espingarda caçadeira-, disparando-a duas vezes quando se encontrava a uma distância de cerca de 20 metros do local onde se encontrava o arguido BB bem sabia que os tiros assim disparados poderiam atingi-lo num local onde se encontrassem alojados importantes órgãos vitais, tendo previsto que da sua conduta poderia advir a morte do arguido BB sem que contudo, deixasse de levar a cabo a conduta descrita, com tal resultado se conformando.
16. O arguido AA agiu fazendo uso de uma arma de fogo- espingarda caçadeira -, tendo consciência que face às características deste instrumento este era perigoso e que tal conduta era suscetível de causar leões mortais ao arguido BB, conformando-se com tal desfecho, revelando total desconsideração pela vida/integridade física de BB.
18. O arguido AA conhecia a natureza e as características da arma que detinha, bem sabendo que não era titular de licença de uso e porte de arma e que a sua posse e utilização eram proibidas.
19. Os arguidos AA e BB agiram sempre de forma live, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
(mais se provou quanto ao arguido AA)
20. O arguido AA não regista qualquer condenação averbada no seu certificado de registo criminal. (…)…
29. O arguido BB regista as seguintes condenações averbadas no seu certificado de registo criminal:
a) pena de multa no montante de € 130,00, por “infracção do artigo 107, alínea 1, da lei do trânsito rodoviário” (lei …), em ...-...-2007, cometida em ….
b) No âmbito do processo n.º 125/13.2PCAMD, por factos de ........2011, decisão de 28-10-2013, transitada na mesma data, foi condenado por um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de um ano.
c) No âmbito do processo n.º 1129/11.5TDLSB, por factos de ........2010, decisão de 28-02-2019, transitada em 07-05-2019, foi condenado por um crime de falsificação de documento, na pena de 11 meses de prisão, substituída por 330 dias de multa, à taxa diária de €5,00.
30. Exerce a profissão de ….
(mais se provou quanto ao pedido de indemnização civil)
31. Em consequência direta e necessária das lesões causadas pelo arguido BB, CC necessitou de ser medicamente assistido no Hospital DD, tendo esta entidade despendido com o tratamento o valor de € 92,91 (noventa e dois euros e noventa e um cêntimos).
E consta a seguinte motivação de facto:
O juízo probatório positivo e negativo alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global dos depoimentos das testemunhas e da prova pericial e documental constante dos autos, tudo à luz da regra da livre apreciação da prova.
O arguido AA declarou que estava a sair de casa para ir a um almoço de final do ano da empresa, quando escutou uma discussão entre o seu irmão CC, que se encontrava na via pública, e o arguido BB, que se encontrava na varanda do … andar de um edifício sito nessa via. Nisto o arguido BB, empunhando uma arma de pequenas dimensões, efectuou disparos na direcção de CC, pelo que AA agarrou nalgumas pedras e arremessou na direcção do arguido BB, que terá dito que o problema não era com ele, mas sim com o irmão, pelo que lhe arremessou pedras, em defesa do seu irmão. Entretanto surgiu no local um indivíduo com uma espingarda caçadeira, pelo que se apoderou de tal objecto e efectuou um disparo na direção dum ponto mais abaixo do local onde o arguido BB se encontrava, não o visando acertar, mas sim assustar, de forma a que parasse de disparar na direcção do irmão, tendo entretanto o arguido BB fugido para o interior da casa. Conhecia o arguido BB desde há anos e nunca tinha tido problemas com ele, ao contrário do seu irmão, que já tinha tido um desentendimento com aquele arguido. O irmão ficou com um ferimento na zona da virilha. Ficou convencido que o arguido BB efectuou cerca de cinco disparos e após uma pequena pausa efectuou outros dois.
Por sua vez o arguido BB referiu ter tido em tempos um desentendimento com CC, que até o levou a deixar de explorar um estabelecimento de café, nada tendo o arguido AA a ver com tal quezília. Aquando dos factos encontrava-se na varanda do 1.º andar da casa do irmão, a quem tinha ido visitar. Ao ver CC na rua, olhando para si, sentiu-se ameaçado e agiu em “legítima defesa” (segundo as suas palavras). Questionou-o acerca do seu anterior comportamento perguntando-lhe “sabes o que me fizeste”, e após uma troca de palavras, tendo CC dito para descer, arremessou-lhe telhas. CC e o arguido AA que, entretanto, surgiu no local, arremessaram-lhe pedras e, entretanto, alguém efectuou disparos com uma arma na sua direcção, quando se encontrava de costas prestes a entrar em casa. As marcas dos disparos - buracos - efectuados por uma caçadeira ficaram visíveis na porta da sua varanda que dá acesso ao interior da casa. Afirmou que não tinha qualquer arma consigo e, consequentemente, não efectuou qualquer disparo.
A testemunha CC, irmão do arguido AA, referiu que estava a sair de casa para ir almoçar com o irmão e outros colegas de trabalho, quando o arguido BB efectuou três ou quatro disparos na sua direcção e um deles acertou-lhe na perna. O irmão AA surgiu, tendo o arguido BB dito que a conversa não era com ele. O irmão reagiu arremessando pedras ao arguido BB e, entretanto, este deslocou-se para o interior da casa. Esta testemunha teve necessidade de receber tratamento hospitalar. Já tinha tido um anterior desentendimento com o arguido BB e afirmou que o arguido BB não arremessou quaisquer telhas.
GG, inspetor da PJ, procedeu à recolha de resíduos de disparo, efectuada na mão do arguido AA, cujo resultado foi positivo.
A testemunha EE, amigo e trabalhador do arguido AA, estava no veículo à sua espera e escutou tiros, mas não viu quem efectuou os disparos. Viu CC a sangrar da zona da virilha. Aliás esta testemunha referiu que estava no veículo a aguardar pelo regresso do arguido AA
HH, cunhada do arguido BB, residente na casa onde aquele arguido se encontrava de visita, apercebeu-se de uma “confusão” e posteriormente constatou que a porta de acesso à varanda ficara com “buracos”, o que foi confirmado pelo seu marido, a testemunha II, que mais escutou o som dos disparos.
FF, Agente da PSP, recolheu as munições deflagradas na via pública e esclareceu a que tipo de armas de fogo correspondiam. Constatou a existência de marcas/vestígios dos disparos efectuados por uma caçadeira na porta da varanda onde o arguido BB se encontrava (do piso superior da habitação), bem como na persiana de uma janela situada muito próxima daquela porta. Nesta parte mais se valorou o auto de apreensão n.º 1, de fls. 11 e relatório de exame pericial de fls. 55 a 57, resultando ter sido apreendidas duas cápsulas deflagradas, com a inscrição .25 auto (de uma pistola 6,35) e uma bucha de cartucho de caça (de uma espingarda caçadeira), recolhidas pela PSP, no dia ........2022, ou seja, logo após os factos e na via pública onde aqueles ocorreram. Quando os agentes da PSP chegaram ao local, só lá se encontravam o arguido AA, CC, não se encontrando o arguido BB (ou seja, este arguido fez questão de desaparecer do local).
No que tange às declarações do arguido AA, em como terá efectuado um disparo com a espingarda caçadeira, mas direcionado mais para baixo em relação ao piso em que o arguido BB se encontrava e que o seu objectivo era apenas assustá-lo, não se acreditou, desde logo em face da existência de marcas/vestígios de disparos na porta de acesso à varanda onde o arguido BB se encontrava, pelo que o seu objectivo era necessariamente atingir o arguido BB.
Da conjugação da prova, também resulta que o arguido BB encontrava-se munido com uma pistola, aliás, só assim se compreende que CC tenha sido atingido na coxa, pois o arguido AA ao disparar a arma, direcionou-a para cima e nunca atingiria o seu irmão, sendo o local de tal lesão compatível com o disparo de uma arma posicionada num plano superior.
Valorou-se os relatórios da perícia de avaliação de dano corporal em direito penal de fls. 40 a 42 e de fls. 52 realizados ao assistente pelo INML, a CC.
Ora, disparos efectuados com armas de fogo na direcção de indivíduos e à distância a que os dois arguidos se encontravam, são susceptíveis de causar lesões corporais mortais, se atingirem órgãos vitais, sendo uma questão de “sorte” para os visados com os disparos, tal não acontecer. Os dois arguidos necessariamente sabiam que poderiam causar a a morte aos visados e ao efectuarem os disparos, tiveram de admitir como possível tal acontecer e, no entanto, conformaram-se com tal desfecho. Mais se valorou o auto de apreensão, de fls. 32; o auto de notícia de fls. 35 a 37; a nota de alta de urgência de fls. 46 a 49; a informação da PSP, de fls. 153, o relatório pericial de avaliação de dano corporal de fls. 40 a 42 e 52 e 53; relatório de exame pericial de fls. 55 a 62 e o relatório de exame pericial de fls. 152.
Quanto à detenção voluntária e conhecimento das qualidades das armas, os arguidos tinham-na, atendendo à utilização que lhes deram, sendo do conhecimento de qualquer cidadão comum que a detenção de armas de fogo lhes está legalmente vedada, tanto é que o arguido BB tentou fazer crer que não detinha nenhuma arma, para se eximir de qualquer responsabilidade penal.
Quanto ao facto provado atinente ao pedido indemnizatório deduzido pelo JJ, a convicção resultou da prova documental referida supra e da factura de fls. 234, comprovativa dos custos da assistência que prestou a CC.
Valorou-se o CRC dos arguidos, quanto à ausência e passado criminal e, outrossim, o relatório da DGRSP quanto à situação pessoal, social e económica do arguido AA.
Diga-se que o arguido BB não colaborou com a DGRSP no sentido da realização de relatório social, pelo que se desconhece as suas condições económicas e financeiras.
A factualidade considerada não provada resulta da ausência de qualquer elemento de prova.
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Quanto à medida da pena consta o seguinte:
Enquadrada a conduta dos arguidos da forma supra descrita, cumpre proceder à determinação das penas a aplicar em concreto, pela prática de cada um dos crimes que resultaram provados. O crime de homicídio (simples) na forma tentada é punido com uma pena (especialmente atenuada) de 1 ano, 7 meses e 6 dias, a 10 anos e 8 meses de prisão [artºs 131º, 23º, nº 2, e 73º, nº 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal].
Ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei 5/2006, é abstractamente aplicável uma pena de prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa até 600 dias.
No que tange ao crime de detenção de arma proibida, importa ter presente o preceituado no artigo 70.º do Código Penal, no sentido que sempre que sejam, em alternativa, aplicáveis pena privativa e pena não privativa da liberdade, impõe-se que o Tribunal exerça um juízo de preferência à segunda, quando entenda que esta realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Este preceito espelha o princípio da subsidiariedade do direito penal e o carácter nocivo das penas detentivas da liberdade, como uma das ideias fundamentais subjacente ao sistema punitivo do nosso Código Penal: a «reacção contra as penas institucionalizadas ou detentivas, por sua própria natureza lesivas do sentido ressocializador que deve presidir à execução das reacções penais» (Robalo Cordeiro, in «Escolha e Medida da Pena», Jornadas de Direito Criminal, CEJ, p. 238).
Ora, no caso concreto, verifica-se que o arguido BB tem antecedentes criminais. Ademais, verifica-se um grau de ilicitude e culpa elevado em toda a actuação dos dois arguidos, mormente na utilização que cada um deles deu à respectiva arma que detinha (efectuaram disparos em plena via pública, tendo admitido como possível e conformaram-se que poderiam causar a morte de outrem, tendo inclusivamente o arguido BB atingido o corpo da vítima CC), a pena de multa não se basta, para exprimir o juízo de censura sobre a conduta dos arguidos e satisfazer as finalidades de prevenção geral e especial, impondo-se a opção pela pena de prisão.
Delineadas que estão as modalidades de cada uma das penas a aplicar aos arguidos, importa aferir da medida concreta das mesmas que, em caso algum, podem ultrapassar a medida da culpa, devendo fazer-se intervir nesta sede a ponderação dos fins de prevenção geral e especial a que se submetem as penas e as medidas de segurança, nos termos do disposto no artigo 40.º, nºs 1 e 2 do Código Penal. Pois que, a lei «através do requisito que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela iminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção» (Figueiredo Dias, In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, p. 281).
Na ponderação das penas concretamente aplicáveis cumpre atender também aos critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal, sendo que as penas devem ser determinadas em função da culpa dos agentes e das exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração que ao caso se imponham, tendo-se em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra os arguidos.
Assim, na pena a aplicar, há que ponderar as exigências de prevenção geral, que constituirão o limiar da punição, sob pena de ser posta em risco a função tutelar do direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada. Ainda há que atender, às exigências de culpa do agente, limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio político-criminal da necessidade da pena e ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigos 1º e 18º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa). Por último, cumpre considerar as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo, e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena.
As finalidades de prevenção e de reprovação de cada um dos crimes em apreço são muito elevadas.
Cumpre, mais concretamente, atender ao seguinte:
- A culpa que assenta no dolo directo quanto ao crime de detenção de arma proibida e no dolo eventual quanto ao crime de homicídio, na forma tentada, sendo manifestamente mais elevada quanto ao arguido BB, pois foi este quem iniciou os disparos com a arma, visando atingir CC, irmão do arguido AA, chegando mesmo a atingi-lo no corpo, tendo o comportamento do arguido AA sido uma reacção (injustificável) ao comportamento daquele.
- O grau de ilicitude, também elevado quanto a cada um dos crimes.
- Por outro lado, negativamente as condenações anteriores sofridas pelo arguido BB e positivamente, a ausência de antecedentes criminais quanto ao arguido AA.
- A postura assumida pelo arguido AA, que em sede de julgamento admitiu ter efectuado um disparo com uma espingarda caçadeira, a merecer individual ponderação em seu abono.
- A ausência de qualquer indício de qualquer consciência critica ou arrependimento por parte do arguido BB.
- O que apurado ficou quanto à respectiva situação pessoal, as condições pessoais e a situação económica do arguido AA. que importam considerar.
- Por fim, cumpre dizer que as necessidades de prevenção geral dos crimes em questão são elevadíssimas, causando uma enorme insegurança e intranquilidade na população, ademais verificando-se o uso de armas de fogo na via pública, podendo inadvertidamente atingir qualquer pacato cidadão que por aquele local passasse.
Assim, na justa ponderação no caso concreto, dentro das molduras legais aplicáveis e fazendo apelo aos critérios plasmados no artigo 71.º, do Código Penal, ora referidos, atenta a gravidade e conexa censurabilidade que os mesmos devem merecer, julga-se adequado aplicar:
- AA
pena de 3 (três) anos de prisão, pelo crime de homicídio, na forma tentada;
pena de 1 (um) ano de prisão, pelo crime de detenção de arma proibida.
- BB
pena de 4 (quatro) anos de prisão, pelo crime de homicídio, na forma tentada;
pena de 1 (um) ano de prisão, pelo crime de detenção de arma proibida.
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Nos termos do artigo 77º, n.º 1 do Código Penal os crimes pelos quais os arguidos foram condenados encontram-se em relação de concurso, pelo que importa proceder à realização do cúmulo jurídico das penas que lhes foram aplicadas.
Cada um dos arguidos será então condenado numa única pena, resultante de uma avaliação conjunta dos factos e da sua personalidade, num quadro de combinação das penas parcelares à luz do princípio do cúmulo jurídico.
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.
Destarte, a moldura legal do concurso é situada entre um mínimo e um máximo de respectivamente, 3 (três) anos de prisão a 4 (quatro) anos de prisão, quanto ao arguido AA e 4 (quatro) anos de prisão a 5 (cinco) anos de prisão, quanto ao arguido BB.
Isto posto, tendo em devida conta as considerações supra expendidas, operando o cúmulo jurídico das penas de prisão nos termos do disposto no artigo 77.º, do Código Penal, considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente, a intensidade das condutas perpetradas, as suas consequências, a postura dos arguidos perante tais práticas e o seu posicionamento perante o ordenamento jurídico vigente, quer no passado, quer na actualidade, impõe-se condenar o arguido AA na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e o arguido BB na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão - artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal.
Da eventual suspensão da execução da pena:
Neste momento deverá equacionar-se a possibilidade (ou não) de aplicação de uma pena de substituição, in casu, da pena de suspensão da execução da pena de prisão.
O nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade — cf. art.º 70.º do CP — devendo o tribunal dar primazia a estas quando se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
A pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos deve ser suspensa na sua execução, se o tribunal puder concluir, em face da personalidade do condenado, das suas condições de vida, conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – a protecção dos bens jurídicos, pela prevenção geral e especial, e a reintegração do condenado na sociedade (artigo 50.º, do Código Penal).
O arguido AA apresenta uma situação laboral e económica relativamente estável e não tem antecedentes criminais.
Podemos concluir, no que concerne à personalidade deste arguido (resultante também das circunstâncias em que cometeu os factos, agindo em “defesa” do seu irmão e admitindo parte do seu comportamento em julgamento), que nada nos indica estarmos perante alguém com inclinação para o crime e que se verifique, pois, o perigo de que venha a cometer delitos, pelo que a execução da pena não se mostra, assim, necessária em termos de garantir a função de prevenção especial.
E, no caso, atendendo aos seus contornos, mormente ao que esteve na génese do comportamento ilícito do arguido (o arguido BB efectuou disparos com uma pistola dirigidos ao seu irmão), tendo o arguido apresentado algum juízo de auto-censura, também a comunidade não encarará, a suspensão, como sinal de impunidade, não colocando irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade.
Destarte, considera-se que a simples ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, desde que acompanhada por rigoroso regime de prova, a ser delineado pela DGRSP, pelo que é de aplicar a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, pelo período de 3 anos e 6 meses, nos termos do artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal.
Isto posto, suspende-se a execução da pena de prisão em que o arguido AA é condenado, pelo período da condenação, ou seja, por 3 anos e 6 meses, acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social, contendo os objectivos de ressocialização a atingir pelo arguido - artigo 50.º, nºs 1 e 5, artigo 53.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
No respeitante ao arguido BB, a distinta postura, não reveladora de qualquer arrependimento ou sentido critico, em sede de julgamento e, outrossim, tendo as condenações anteriores - em pena de multa; prisão suspensa na execução por um crime de roubo; prisão substituída por multa - revelado terem sido totalmente ineficazes para prevenir a prática de crimes pelo arguido, não nos permite formular um prognóstico favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Com efeito, não se apura qualquer laivo de sustentação para formular um juízo favorável de prognose quanto a este arguido, razão pela qual a pena aplicada deverá ser cumprida de forma efectiva, o que se declara.
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2. Fundamentação:
Conforme enunciado são as seguintes as questões a decidir:
a) Dos vícios decisórios: Insuficiência da matéria de facto, erro notório na apreciação da prova.
b) Insuficiência da prova para a decisão; Impugnação sobre a matéria de facto/Erro de julgamento;
c) Violação do princípio do in dubio pro reo;
d) Medida e execução da pena.
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a) «1. Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art.º 410º do C. Processo Penal, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.
O seu regime legal não prevê a reapreciação da prova – contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto –, limitando-se a actuação do tribunal de recurso à detecção do defeito presente na sentença e, não podendo saná-lo, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art.º 426º, nº 1 do C. Processo Penal).
Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69) – Tribunal da Relação de Coimbra, processo 1/19.5GPCBR.C1, de 12/06/2019 – IGFEJ- Bases Jurídico-documentais»
Assim, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a eventual insuficiência da prova para a decisão proferida (questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, enquadrado nos termos do art.º 127º do Cód. Proc. Penal, e insindicável em reexame da matéria de direito), sendo que o vício em questão só pode ter-se como existente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão final.
Não se deteta tal vicio na matéria de facto referida e elencada pelo Tribunal a quo. Os factos estão ordenados, com indicação do lugar e tempo, das condutas assumidas por ambos os arguidos, com os elementos dos tipos jurídico-penais, pelos quais os arguidos foram condenados e todas as condições pessoais para a determinação das penas em concreto. Pelo que improcede, nesta parte o recurso, na medida em que confunde um vício decisório com a convicção alcançada pelo Tribunal a quo.
De igual forma não se verifica erro notório na apreciação da prova, na medida em que tendo em consideração a matéria de facto tida como assente e, bem assim, a motivação da decisão, não nos deparamos com qualquer erro notório na apreciação da prova, porquanto do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não resulta com toda a evidência, a conclusão contrária à que chegou o tribunal, ou seja, inexistem factos provados que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que façam prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos, isto é, quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum.
No erro notório na apreciação da prova, estamos perante uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, em clara violação das regras probatórias ou das legis artis, que conduz a retirar-se de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
É dizer, constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou entre cada um desses, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, e por isso incorreta, incongruência esta que resulta duma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revela, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projeções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum” e da lógica normal da vida, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. p. 341).
A decisão em causa, como resulta do encadeamento dos factos provados e sua fundamentação que acabaram de se expor, contém a enumeração dos factos, a sua motivação, estruturada nos meios de prova criticamente analisados de forma lógica e coerente. Pelo que não estamos no âmbito do erro notório na apreciação da prova de conhecimento oficioso por este Tribunal da Relação, nos termos do artº 410º, nº1, al. c) do C.P.P.
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b) Em sede de recurso, pode o Tribunal da Relação de Lisboa reapreciar a matéria e facto por uma de duas vias.
Por um lado, como consequência da apreciação do referido vício previsto no art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal, ou seja, com um âmbito mais restrito ao texto da decisão.
Por outro lado, poderá o Tribunal da Relação de Lisboa ser chamado a pronunciar-se no âmbito de uma impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, caso em que a apreciação versará sobre a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Neste caso, o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio corretivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida. Tais erros emergirão como resultado de uma deficiente apreciação da prova e terão sempre de corresponder aos concretos pontos de facto identificados no recurso.
Tanto assim é que são reconhecidas limitações ao “segundo” julgamento que ao Tribunal de recurso assiste, com base na prova documentada [vd. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2021, Desembargador Manuel Advínculo Sequeira – ECLI:PT:TRL:2021:510.19.6S5LSB.L1.5.DD «Como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado.
É exatamente por isso, que se exige que o recorrente identifique os pontos de facto que considera mal julgados e relativamente a cada um ofereça uma proposta de correção para que o tribunal “ad quem” a possa avaliar, procedendo à correção da decisão se as provas indicadas pelo recorrente, relativamente a cada um desses factos impugnados, impuserem decisão diversa da proferida.
Entende o recorrente que os factos 2 a 13, não deveriam ter sido considerados como provados. Conforme se referiu, nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, a apreciação versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente e sem que o recurso corresponda a um segundo julgamento. Tais vícios emergem de uma deficiente apreciação da prova de acordo com os concretos pontos de facto identificados no recurso.
O recorrente limita-se a referir partes dos depoimentos de AA e CC que confirmam os disparos efetuados pelo recorrente, a testemunha HH, que nada viu e do próprio recorrente que, em sede de julgamento e contrariando as suas próprias alegações de recurso, nem sequer admitiu que tinha uma arma e, consequentemente, que tivesse feito qualquer disparo.
Por seu turno o Tribunal a quo enuncia as declarações prestadas por AA e CC, faz uma análise critica das mesmas, bem como das do recorrente e demais depoimentos. Refere, ainda, as declarações prestadas por FF, Agente da PSP, recolheu as munições deflagradas na via pública e esclareceu a que tipo de armas de fogo correspondiam. Constatou a existência de marcas/vestígios dos disparos efetuados por uma caçadeira na porta da varanda onde o arguido BB se encontrava (do piso superior da habitação), bem como na persiana de uma janela situada muito próxima daquela porta. Nesta parte mais se valorou o auto de apreensão n.º 1, de fls. 11 e relatório de exame pericial de fls. 55 a 57, resultando ter sido apreendidas duas cápsulas deflagradas, com a inscrição .25 auto (de uma pistola 6,35) e uma bucha de cartucho de caça (de uma espingarda caçadeira), recolhidas pela PSP, no dia ........2022, ou seja, logo após os factos e na via pública onde aqueles ocorreram. Quando os agentes da PSP chegaram ao local, só lá se encontravam o arguido AA, CC, não se encontrando o arguido BB (ou seja, este arguido fez questão de desaparecer do local).
Ou seja, de acordo com os vestígios recolhidos, duas armas de características diferentes foram disparadas por ambos os arguidos.
No que tange às declarações do arguido AA, em como terá efectuado um disparo com a espingarda caçadeira, mas direcionado mais para baixo em relação ao piso em que o arguido BB se encontrava e que o seu objectivo era apenas assustá-lo, não se acreditou, desde logo em face da existência de marcas/vestígios de disparos na porta de acesso à varanda onde o arguido BB se encontrava, pelo que o seu objectivo era necessariamente atingir o arguido BB.
Da conjugação da prova, também resulta que o arguido BB encontrava-se munido com uma pistola, aliás, só assim se compreende que CC tenha sido atingido na coxa, pois o arguido AA ao disparar a arma, direcionou-a para cima e nunca atingiria o seu irmão, sendo o local de tal lesão compatível com o disparo de uma arma posicionada num plano superior.
Valorou-se os relatórios da perícia de avaliação de dano corporal em direito penal de fls. 40 a 42 e de fls. 52 realizados ao assistente pelo INML, a CC.
Nesta conformidade, não se detetam vícios de raciocínio sobre a prova produzida na sua globalidade. O trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizados em 1.ª instância, e da fundamentação feita na decisão por via deles, traduz-se fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado como provado o que se deu por provado. Tais conclusões do Tribunal a quo relativas à matéria de facto estão em consonância com a prova produzida e a sua convicção está devidamente fundamentada, com enquadramento legal no art.º 127.º CPP.
De acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, como demonstra e aprecia criticamente a motivação, é razoável e acertado o entendimento do Tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto. As provas existem para a decisão tomada e não se vislumbra qualquer violação ou contrariedade às normas de direito probatório
O recorrente limita-se a fazer uma apreciação subjetiva da prova, sem indicar especificamente os fundamentos pelos quais entende que a mesma impõe decisão diversa, uma vez que, apesar de indicar os factos que em seu entendimento não resultam provados (factos 2 a 13), não indica as provas que impõem decisão diversa, e muito menos o faz por reporte e indicação das passagens em que se funda tal impugnação, não cumprindo, na íntegra, o ónus a que está obrigado pelo art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
Nesta conformidade, improcede o recurso sobre a matéria de facto, sob a vertente, impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal.
Como é sabido e vem sendo repetido por este Tribunal da Relação, em matéria de apreciação da prova, rege o artigo 127°, do Código de Processo Penal: “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Tal livre apreciação da prova, não é livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinam uma convicção racional, objetivável e motivável. Não significando porém, que seja totalmente objetiva pois, não pode nunca dissociar-se da pessoa do juiz que a aprecia e na qual “(…) desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais (…)”, (cf. Professor Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 205). Neste mesmo sentido podem ver-se ainda variadíssimos autores entre os quais Rodrigues Bastos (in Notas ao Código de Processo Civil, III, pág. 221), que defende, que ao juiz “… não é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, mas antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação”. E também o Professor Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, 1 vol., Reimpressão da Universidade Católica) “o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza cientifica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”. É que o sistema processual moderno atribui ao julgador uma maior liberdade, mas não um arbítrio a que a lei seja indiferente. Se o julgador interpreta a liberdade de apreciação como um domínio arbitrário da sua vontade sobre a matéria de facto, e oferece às partes, como conteúdo de jurisdição, a sua fé ou convicção sem provas e sem base objetiva, ultrapassa os limites da liberdade de apreciação, que não pode confundir-se com a supressão da prova, ou com a faculdade, por exemplo, de inverter por seu alvedrio o ónus da prova. A livre valoração da prova não pode, pois, ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas sim valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitia objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão.
«O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspeto trata-se de credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. (…) Importa ainda anotar que a objetividade que aqui importa «não é a objetividade científica (sistemático-conceitual e abstrato-generalizante), é antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodítica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, o que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção (integrada sem dúvida por um momento pessoal)» E, na expressão de Figueiredo Dias, a convicção da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável — Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1993. P. 111.
Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente.
Acresce que o raciocínio na análise das provas, não tem de implicar uma tomada de posição expressa, ou individual sobre todos os meios de prova produzidos quando esses meios de prova não têm qualquer interesse, relevância ou utilidade para a decisão – por exemplo a testemunha que nada presenciou- , sob pena de não ser crítico e antes corresponder a uma mera reprodução da atividade probatória desenvolvida na fase da audiência de discussão e julgamento. O destinatário da decisão tem que perceber qual foi o processo percorrido pelo Tribunal para determinar como provados uns factos e como não provados, outros.
Em suma: A exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, deve ser completa, mas sem que se assemelhe a assentadas reportadas a declarações e depoimentos produzidos em audiência. Deve também ser concisa, contendo as provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo Tribunal tal como a análise crítica da prova.
O Tribunal a quo teve uma leitura diferente dos factos do que aquela que é feita pelo arguido recorrente, designadamente dos factos 2 a 13, e sustentou-a com a análise critica da prova produzida, não só no depoimentos referidos pelo arguido como não credíveis, mas conjugando-os com outros elementos de prova, designadamente o auto de apreensão n.º 1, de fls. 11 e relatório de exame pericial de fls. 55 a 57, resultando ter sido apreendidas duas cápsulas deflagradas, com a inscrição .25 auto (de uma pistola 6,35) e uma bucha de cartucho de caça (de uma espingarda caçadeira), recolhidas pela PSP, no dia ........2022, ou seja, logo após os factos e na via pública onde aqueles ocorreram, sem ultrapassar qualquer ditame do permitido pelo disposto no artº 127º do C.P.P.
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c. Violação do princípio do in dubio pro reo:
Este princípio tem consagração constitucional no art.º 32º/2 da CRP, sendo um corolário lógico do princípio da presunção da inocência. Ademais, afirmam os professores Gomes Canotilho E Vital Moreira que “além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” isto é num estado de conservação da incerteza quanto à prova do ilícito típico, não só ao réu incumbe invocar essa garantia a seu favor; o juiz, vinculado a tomar uma decisão, deve, conquanto que a título oficioso, pronunciar-se pela absolvição do arguido - J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 519.
Como refere esta Relação, no acórdão de 01.02.2011, processo n.º 153/08.0PEALM.L1-5, dgsi.pt, “ o princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica, traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, é um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido, mas não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais, pois em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, deve o aplicador do direito recorrer às regras de interpretação, entre as quais o princípio in dubio pro reo não se inclui”.
A circunstância de haver versões opostas não significa que o tribunal, sem mais, decida pro reo, pois o aqui se exige é uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal …” - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, página 166.
Não é, assim, toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) e acrescenta “O princípio in dubio pro reo pretende responder ao problema da dúvida na apreciação judicial dos casos criminais. Não da dúvida interpretativa, na aferição do sentido da norma (que aliás pode surgir e surge independentemente da atividade jurisdicional), mas da dúvida sobre o facto tipicamente forense” “Cristina Líbano Monteiro, op. cit., p. 13.
A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio – Acórdão do STJ de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265, citado no Ac. do TRC de 09.03.2016, processo n.º 436/14.0GBFND.
Retomando o caso concreto e considerando o objeto do recurso, o Tribunal a quo mediante fundamentação adequada e argumentativa, quer mediante a análise dos depoimentos testemunhais, quer conjugando-os com os documentos e exames periciais dos autos, não ficou com dúvidas face aos factos que considerou provados.
Termos em que improcede, igualmente o recurso, nesta parte.
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d. Medida e execução da pena.
O ponto de partida da tarefa a efetuar não pode deixar de se prender com o disposto no art.º 40º do Cód. Penal, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Com este preceito fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, a ter lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade.
A avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido.
Com este entendimento tem-se visto, aliás, uma consonância com o imperativo constitucional do nº 2 do art.º 18º da Constituição da República, de acordo com o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, sendo certo que se não divisa, no texto fundamental, a eleição de um imperativo ético-penal da retribuição ou expiação da culpa, como direito ou interesse protegido constitucionalmente.
Assim, quando o art.º 71º do Cód. Penal nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art.º 40º.
Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo através de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, págs. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica:
A partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma “sub- moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar” (cfr. obra citada, pág. 229).
Será, pois, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico - normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar.
Resta dizer que a “defesa de bens jurídicos”, mencionada no referido art.º 40º, deve ser entendida como propósito de prevenção geral positiva ou de integração, com o fim de “estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida e, portanto, como modelo de orientação para os contactos sociais, ou ainda como réplica perante a fração da norma, executada à custa do seu infrator. A defesa de bens jurídico-penais é, ela mesma, em geral, o desiderato de todo o sistema penal globalmente considerado, e não um fim que se possa considerar privativo das penas.
Quanto à prevenção especial, sabe-se como pode ela operar através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida, e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa. Esta, tanto quanto sabemos, a orientação quase unânime do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria.
Já o nº 2 do art.º 71º do Cód. Penal manda atender, na determinação concreta da pena, “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”.
Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.
No caminho da concretização da pena a aplicar tomar-se-ão pois em conta os critérios consignados no citado artigo 71º do Cód. Penal e, assim a culpa do agente, as necessidades de prevenção e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Conforme refere o Tribunal a quo “O crime de homicídio (simples) na forma tentada é punido com uma pena (especialmente atenuada) de 1 ano, 7 meses e 6 dias, a 10 anos e 8 meses de prisão [artºs 131º, 23º, nº 2, e 73º, nº 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal].
Ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei 5/2006, é abstractamente aplicável uma pena de prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa até 600 dias.»
Tendo afastado, em termos assertivos, a aplicação da pena de multa em relação ao último crime, porquanto atento um grau de ilicitude e culpa elevados em toda a actuação dos dois arguidos, mormente na utilização que cada um deles deu à respectiva arma que detinha (efectuaram disparos em plena via pública, tendo admitido como possível e conformaram-se que poderiam causar a morte de outrem, tendo inclusivamente o arguido BB atingido o corpo da vítima CC.
Fazendo uma análise comparativa em relação a cada um dos arguidos, escreve o Tribunal a quo:
«- A culpa que assenta no dolo directo quanto ao crime de detenção de arma proibida e no dolo eventual quanto ao crime de homicídio, na forma tentada, sendo manifestamente mais elevada quanto ao arguido BB, pois foi este quem iniciou os disparos com a arma, visando atingir CC, irmão do arguido AA, chegando mesmo a atingi-lo no corpo, tendo o comportamento do arguido AA sido uma reacção (injustificável) ao comportamento daquele.
- O grau de ilicitude, também elevado quanto a cada um dos crimes.
- Por outro lado, negativamente as condenações anteriores sofridas pelo arguido BB e positivamente, a ausência de antecedentes criminais quanto ao arguido AA.
- A postura assumida pelo arguido AA, que em sede de julgamento admitiu ter efectuado um disparo com uma espingarda caçadeira, a merecer individual ponderação em seu abono.
- A ausência de qualquer indício de qualquer consciência critica ou arrependimento por parte do arguido BB.
- O que apurado ficou quanto à respectiva situação pessoal, as condições pessoais e a situação económica do arguido AA que importam considerar.
- Por fim, cumpre dizer que as necessidades de prevenção geral dos crimes em questão são elevadíssimas, causando uma enorme insegurança e intranquilidade na população, ademais verificando-se o uso de armas de fogo na via pública, podendo inadvertidamente atingir qualquer pacato cidadão que por aquele local passasse.
Assim, na justa ponderação no caso concreto, dentro das molduras legais aplicáveis e fazendo apelo aos critérios plasmados no artigo 71.º, do Código Penal, ora referidos, atenta a gravidade e conexa censurabilidade que os mesmos devem merecer, julga-se adequado aplicar (…)
Ou seja, a distinção das penas aplicadas tem em conta o passado criminal dos arguidos, existente quanto ao arguido recorrente e a contribuição do arguido AA para a descoberta da verdade: AA, que em sede de julgamento admitiu ter efectuado um disparo com uma espingarda caçadeira a contrastar com a posição do recorrente, assumida em audiência de julgamento e nessa conformidade aplicando as seguintes penas:
- AA
pena de 3 (três) anos de prisão, pelo crime de homicídio, na forma tentada; pena de 1 (um) ano de prisão, pelo crime de detenção de arma proibida.
- BB
pena de 4 (quatro) anos de prisão, pelo crime de homicídio, na forma tentada;
pena de 1 (um) ano de prisão, pelo crime de detenção de arma proibida.
As penas em concreto para ambos os arguidos no que concerne ao homicídio tentado situam-se próximo do terço da moldura penal mais elevada, sendo que a diferença em relação aos dois arguidos já está acima explicitada ( o arguido AA contribuiu para o esclarecimento da verdade e não tem antecedentes criminais, o arguido recorrente negou os factos e em face ao observado, a sua postura em audiência de julgamento não demonstrou qualquer consciência critica ou arrependimento e tem antecedentes criminais)
Em relação ao crime de detenção de arma proibida, ambas as penas foram aplicadas pelo limite mínimo.
Pelo que as penas em concreto se mostram justas adequadas e proporcionais.
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Da suspensão da execução da pena de prisão:
Escreve Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, ob. cit., págs. 343 e 344, apesar da conclusão por um prognóstico favorável, à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. “Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.”
Devemos, pois, indagar se no caso as exigências de prevenção geral obstam à suspensão da execução da pena de prisão.
Estamos perante a prática de crimes de homicídio tentado, com recurso a armas cuja detenção foi considerada proibida que como bem refere o Tribunal a quo causa uma enorme insegurança e intranquilidade na população, ademais verificando-se o uso de armas de fogo na via pública, podendo inadvertidamente atingir qualquer pacato cidadão que por aquele local passasse.
Pelo que as razões de prevenção geral são elevadas.
Já no que respeita á necessidades de prevenção especial, o Tribunal a quo e bem estabelece diferenças entre os dois arguidos, tendo em conta os antecedentes criminais ou ausência deles e de acordo com a personalidade evidenciada no julgamento, a que acresceram as condições pessoais.
O arguido AA apresenta uma situação laboral e económica relativamente estável e não tem antecedentes criminais.
Podemos concluir, no que concerne à personalidade deste arguido (resultante também das circunstâncias em que cometeu os factos, agindo em “defesa” do seu irmão e admitindo parte do seu comportamento em julgamento), que nada nos indica estarmos perante alguém com inclinação para o crime e que se verifique, pois, o perigo de que venha a cometer delitos, pelo que a execução da pena não se mostra, assim, necessária em termos de garantir a função de prevenção especial.
E, no caso, atendendo aos seus contornos, mormente ao que esteve na génese do comportamento ilícito do arguido (o arguido BB efectuou disparos com uma pistola dirigidos ao seu irmão), tendo o arguido apresentado algum juízo de auto-censura, também a comunidade não encarará, a suspensão, como sinal de impunidade, não colocando irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade.
Destarte, considera-se que a simples ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, desde que acompanhada por rigoroso regime de prova, a ser delineado pela DGRSP, pelo que é de aplicar a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, pelo período de 3 anos e 6 meses, nos termos do artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal.
Isto posto, suspende-se a execução da pena de prisão em que o arguido AA é condenado, pelo período da condenação, ou seja, por 3 anos e 6 meses, acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social, contendo os objectivos de ressocialização a atingir pelo arguido - artigo 50.º, nºs 1 e 5, artigo 53.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
No respeitante ao arguido BB, a distinta postura, não reveladora de qualquer arrependimento ou sentido critico, em sede de julgamento e, outrossim, tendo as condenações anteriores - em pena de multa; prisão suspensa na execução por um crime de roubo; prisão substituída por multa - revelado terem sido totalmente ineficazes para prevenir a prática de crimes pelo arguido, não nos permite formular um prognóstico favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Com efeito, não se apura qualquer laivo de sustentação para formular um juízo favorável de prognose quanto a este arguido, razão pela qual a pena aplicada deverá ser cumprida de forma efectiva, o que se declara.
Como vimos, o recorrente evidencia uma personalidade distinta que se apurou da sua postura em julgamento pela falta de juízo de autocensura, pois para além de ter antecedentes criminais, o arguido já usufruiu de oportunidades conferidas, designadamente, pela suspensão da execução da pena no crime de roubo ( crime este que tem como subjacente uma violência contra as pessoas e não só contra o património) e não acolheu, nem se deixou influenciar pelas advertências contidas nas anteriores condenações, tendo já beneficiado de penas alternativas. Com efeito, demonstra indiferença e falta de preparação para manter conduta lícita, pautando a sua conduta segundo o dever ser jurídico-penal.
Nestes termos, não deverá ser suspensa na sua execução a pena de prisão aplicada.
Pelo que a sentença não merece qualquer reparo quanto à pena aplicada, demostrando pacificamente a diferença das penas aplicada a cada um dos arguidos, sem qualquer violação do princípio da igualdade ou legalidade.
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3. Decisão:
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido BB e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respetiva taxa de justiça.
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Lisboa, 8 de abril de 2025
Alexandra Veiga
Alda Tomé Casimiro
Ana Lúcia Gordinho