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ERRO DE JULGAMENTO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
IN DUBIO PRO REO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
Sumário
I - Em recurso em que se suscite o erro de julgamento, a convicção da primeira instância pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível ou desprovida de razoabilidade em face das regras da lógica e da experiência comum. II – Nas circunstâncias descritas nos autos, são desprovidas de razoabilidade as dúvidas do tribunal recorrido que, com base nas declarações ao arguido, levaram à sua absolvição com base no princípio in dubio pro reo, quando o mesmo foi intercetado no aeroporto de Lisboa, transportando, desde a ..., na mala de cabine, treze quilos de cocaína, em treze placas retangulares colocadas à vista desarmada numa das duas divisórias, ocupando-a na totalidade, e, na mochila, cerca de um quilo de cocaína, numa placa retangular que certamente seria detetada pela sua simples palpação. III – As regras da experiência dizem-nos que ninguém aceita transportar de avião uma mala de cabine e uma mochila de outrem, sem ter a absoluta certeza do seu conteúdo, correndo o risco de aí se encontrar algum produto ilícito e de, consequentemente, ser detido, não sendo a alegada passagem dos objetos pelo tapete de RX na ... suficiente para acreditar nas declarações do arguido. IV- Devem, assim, ser considerados provados os factos que a primeira instância julgou não provados e o arguido ser condenado como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 75/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B, anexa a esse diploma, em pena de prisão e na pena acessória de expulsão do território de Portugal.
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
I. No processo comum coletivo nº 79/24.0JELSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Sintra, Juiz 7, foi proferido acórdão, em 28.11.2024, no qual se decidiu absolver AA da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 75/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B, anexa a esse diploma, mais se o absolvendo da condenação na pena acessória de expulsão do território nacional, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência ao disposto nos artigos 134.º, 140.º e 151.º, n.º 1, todos da Lei 23/2007, de 4 de julho .
II. Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. « O arguido no âmbito dos presentes autos identificou-se como sendo AA, nascido a ...-...-2001, porém, no processo 11/11.0PEFAR, que correu trâmites no Juízo Central Criminal de Faro – Juiz 6, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, identificou-se como BB, nascido a ...-...-1990, tendo sido condenado naqueles autos, pela prática, em autoria material de Um crime de tráfico de estupefaciente, dois crimes de falsidade de declaração, na pena única de 7 (sete) anos de prisão e na pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 6 (seis) anos.
2. Tal facto não conhecido anteriormente do Tribunal a quo, colide frontalmente com a matéria de facto dada como provada, na medida em que foi dado como provado que o arguido não tem antecedentes criminais, tinha à data da leitura do acórdão 23 (vinte e três) anos quando na realidade, tem antecedentes criminais, pelo mesmo tipo de crime pelo qual se encontrava acusado e tem na realidade 35 (trinta e cinco) anos, entre outros, nomeadamente tudo o que foi dado como provado por remissão do relatório social.
3. Tal omissão, apenas ocorre porquanto o arguido omitiu a sua real identificação, não permitindo assim ao tribunal a quo, ter em conta, a sua real situação pessoal e jurídica.
4. Desta forma, é nosso entendimento, que os autos deveriam ser remetidos ao tribunal a quo, para reabertura da audiência, onde sejam tidos em linha de conta todos estes factos supervenientes, nomeadamente, além da idade do arguido todos os factos dados como provados por referência ao relatório social e ainda os seus antecedentes criminais e após, ser proferido novo acórdão que tenha todos esses novos factos em consideração.
5. Por acórdão proferido nos autos acima identificados foi o arguido AA (que também se identifica como BB) absolvido da prática de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n." 75/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-8, anexa a esse diploma e ainda da condenação na pena acessória de expulsão do território nacional nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência ao disposto nos artigos 134.º, 140.º e 151.º, n.º 1, todos da Lei 23/2007, de 4 de julho.
6. Trazemos tal decisão à apreciação de V. Exªs porque ela merece a nossa discordância no que tange ao modo como foi efetuada a interpretação da prova produzida em audiência, pois se nos afigura que, em decorrência da interpretação conjugada de toda a prova produzida, antes haveria de ser dado como provado que o arguido foi autor do crime de tráfico de estupefaciente que constituiu objeto do julgamento.
7. Sempre sob o devido respeito, afigura-se-nos que a absolvição do arguido ditada pelo douto acórdão impugnado resulta de patente erro na apreciação da prova, revelando-se-nos não conforme com o raciocínio interpretativo que, ditado por critérios de lógica e de senso, deve traduzir uma decisão sem margem que acolha ou reflita uma resolução sem inteiro apoio em tais critérios.
8. Refere o tribunal a quo, no que respeita à matéria de facto dada como provada, a sua convicção se formou com base nas declarações do arguido, a sua idade, o seu percurso pessoal e o contexto por si relatado relativo à forma como ocorreram os factos, bem como o motivo pelo qual aceitou os mencionados objetos, à luz das regras da experiência, levanta uma dúvida ao Tribunal, se efetivamente o arguido tinha conhecimento que trazia consigo produto estupefaciente.
9. Todavia, parece-nos que no que respeita aos factos essenciais relativos à imputação o tribunal a quo acaba por se bastar com a impressão deixada pela ‘estória’ contada pelo arguido e não confere a devida relevância a outros dados probatórios, mormente aos depoimentos prestados pelos elementos da ..., conjugados com os demais elementos de prova documental junta aos autos e analisada em audiência de julgamento.
10. A nosso ver, a versão do arguido não só não é credível como é de todo inverosímil, e impunha-se interpretar os factos atendendo a toda a prova produzida;
11. A nosso ver, a prova produzida impõe, atentas as regras da lógica e de experiência que enformam e limitam o princípio da livre apreciação da prova consagrado positivamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal - nestas incluídas as deduções e induções que ao julgador cabe realizar a partir de todos os factos probatórios -, que se considere como provados todos os factos constantes da acusação que contra o arguido fora formulada.
12. Pelo que vem a referir-se entendemos que a absolvição do arguido resulta de patente erro na apreciação da prova, e que a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida deve ser alterada de forma a dar como assente que o arguido participou, nos exatos moldes descritos na acusação, nos factos que ali lhe são precisamente imputados.
13. Assim, deve a nosso ver, ser dada como provada toda a factualidade que no douto acórdão se deu como não provada (alíneas a), b) e c)).
14. Em decorrência do exposto, afigura-se-nos que, ao absolver o arguido o tribunal a quo violou, por erro de interpretação, as disposições conjugadas do artigo 21.º n.º 1 do DL n." 75/93 de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B, anexa a esse diploma., o que reconduz a vicio definido no art.º 410.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal.
15. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, entendemos que deverá conceder-se provimento ao recurso e, em consequência, ser o arguido condenado pela prática do crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n." 75/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-8, anexa a esse diploma e ainda da condenação na pena acessória de expulsão do território nacional nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência ao disposto nos artigos 134.º, 140.º e 151.º, n.º 1, todos da Lei 23/2007, de 4 de julho».
III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
IV. Notificado para tanto, respondeu o arguido, concluindo pela improcedência do recurso, sem apresentar conclusões.
V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, que emitiu parecer concluindo pela remessa dos autos à primeira instância para reabertura da audiência (atendendo à real idade do arguido e aos seus antecedentes criminais) ou, caso assim não se entenda, pela procedência do recurso e consequente condenação do arguido.
VI – No exercício do contraditório, nada foi acrescentado.
VII – Feito o exame preliminar, em que se corrigiu o efeito do recurso (passando de suspensivo a devolutivo, uma vez que se trata de decisão absolutória), foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.
OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar.
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
1. Da remessa dos autos para reabertura de audiência.
2. Do erro de julgamento.
3. Concluindo-se que houve erro de julgamento, julgando-se provados os factos não provados, indagar do preenchimento dos elementos que integram o crime de tráfico de estupefacientes e da pena concreta.
DO ACÓRDÃO RECORRIDO
Do acórdão recorrido consta a seguinte fundamentação (transcrição):
2. «FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. Factos provados
1. No dia ... de 2024, pelas ... horas e ... minutos, o arguido desembarcou no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, proveniente da ..., no voo ....
2. O arguido transportava consigo na cabine do avião, uma mala, tipo trólei, e uma mochila.
3. No fundo da mencionada mala encontravam-se treze placas de forma retangular, sendo sete de cor escura e seis de cor parda com a inscrição "233", todas envoltas em plástico transparente.
4. As sete placas mencionadas continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 7003,000 g/1, com 78% de grau de pureza, a que correspondem vinte e sete mil trezentas e onze doses.
5. As seis placas referidas continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 6024,000 g/1, com 85,1% de grau de pureza, a que correspondem vinte e cinco mil seiscentas e trinta e duas doses.
6. Na mochila encontrava-se uma placa de forma retangular de cor parda, com o logotipo da marca ... inscrito, envolta em plástico transparente.
7. Esta última placa continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1004,000 g/1, com 82,4% de grau de pureza, a que correspondem quatro mil cento e trinta e seis doses.
8. O arguido tinha consigo vinte euros e um telefone móvel com IMEI's ... / 64 e ... / 64.
Das condições pessoais do arguido
9. AA de 22 anos de idade, vive na zona da ..., em habitação arrendada de tipologia T2, agregado partilhado com o seu “primo” mais velho CC.
10. O arguido suporta a sua cota parte nos encargos financeiros com a habitação.
11. Exercia desde finais de 2021 funções laborais no ramo da …, como ..., para a empresa “...”, em regime de contrato, trabalhando de 2ªf a 6ªf, em horário laboral, auferindo em média cerca de 800€/mensais.
12. O arguido é analfabeto, tendo interesse aprender a ler e escrever e obter melhor qualificação profissional. Inscreveu-se no centro de formação da ... em regime noturno.
13. Antes da sua detenção tinha uma rotina centrada no trabalho, convivência com pontuais amigos e a namorada DD.
14. AA é natural da ..., meio rural, vindo a nascer fruto do relacionamento pontual entre os progenitores, que não assumiriam qualquer papel parental de relevo, ficando entregue desde tenra idade aos cuidados dos avós paternos.
15. Na sequência do falecimento do avô paterno, tinha o arguido 6 anos de idade, a família viria a entrega-lo a uma “madrassa-escola religiosa”, situada em ..., para que fosse educado e estudasse por terceiros de acordo com os princípios da religião islâmica.
16. Viveu neste contexto religioso, situado no ..., entre os 6 e os 14 anos de idade, vivência que avalia de forma manifestamente negativa, salientando, à imagem de outras crianças, ter sido obrigado a mendigar por esmolas, ter sido alvo de punições físicas e psicológicas regulares e obrigado a estudos religiosos extremos, descrição que aponta para a sujeição a um contexto de escravatura e maus-tratos.
17. Cerca dos 14 anos de idade, viria a fugir da referida “madrassa”, juntamente com outros alunos mais velhos, tendo deambulado por vários países africanos e trabalhado a espaços, até conseguir financiar a sua ida, via marítima, para a Europa, vindo aos 16 anos de idade a chegar a ..., seria acolhido na qualidade de menor, em campo de refugiados, ao cuidado de uma instituição, contexto onde conseguiu amealhar algum dinheiro, sendo que lhe pagariam 20€/ por semana.
18. Conseguiu fugir desta instituição quando tinha cerca de 17 anos de idade, vindo a atravessar a Europa em situação de sem abrigo, até chegar a Portugal - ..., zona onde vivia um irmão paterno que o acolheu e junto de quem residiu até meados do ano de 2020, altura em que se fixou na região de ....
19. Nunca frequentou a escola e em Portugal desenvolveu a atividade profissional desde os 18 anos de idade, maioritariamente no ramo da …, por conta de terceiros, tendo trabalhado como …, …, … e ….
20. Tem autorização de residência temporária válida.
21. O arguido padece de problemas psicológicos/psiquiátricos, nomeadamente de ansiedade recorrente, défice de sono e terrores, consonante a stress póstraumático.
22. Tem intenção de constituir agregado com a namorada, com quem quer casar e ter filhos.
23. Os avós do arguido já faleceram e este tem como únicas referências familiares, alguns irmãos residentes na Europa e um irmão residente na zona do ....
24. O arguido não regista antecedentes criminais:
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Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, sem prejuízo do Tribunal não atender a alegações conclusivas ou de direito.
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2. Factos não provados
Não se provou que:
a. O arguido tinha conhecimento e transportava treze placas de cocaína na mala e uma placa de cocaína na mochila.
b. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes da substância que detinha, que aceitou transportar por via aérea, para ser posteriormente comercializado, pretendendo obter nessa transação montante pecuniário de valor não apurado.
c. O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a mera detenção, transporte e a comercialização de cocaína eram proibidos e puníveis por lei penal.
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2.3. Motivação
O artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa estabelece que as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.
O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97.º, n.º 4 e 374.º, n.º 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção.
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objeto impõe à sua tentativa de o «agarrar» e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca - derivados da(s) finalidade(s) do processo – veja-se Cristina Líbano Monteiro, "Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra, 1997, pág. 13.
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser de forma diferente (artigo 127.º do Código de Processo Penal).
Daqui resulta, como salienta a doutrina, um sistema que obriga a uma correta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objeto do processo, de modo a permitir-se um efetivo controle da sua motivação – veja-se Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal" pág. 228.
Como é referido pela jurisprudência, quando está em causa a questão da apreciação da prova, não pode deixar de dar-se a devida relevância à perceção que a oralidade e a mediação conferem ao julgador.
Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, 'olhares de súplica' para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos – veja-se para maiores desenvolvimentos sobre a comunicação interpessoal, Ricci Bitti/Bruna Zani, "A comunicação como processo social", editorial Estampa, Lisboa, 1997.
Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, como salienta Carrington da Costa, advertindo para que "todo aquele que tem a árdua função de julgar, fuja à natural tendência para considerar a concordância dos testemunhos como prova da sua veracidade”. Deve, antes, ter-se bem presente as palavras de Bacon: “os testemunhos não se contam, pesam-se" – veja-se “Psicologia do testemunho" - veja-se in Scientia Iuridica, pág. 337.
No que concerne à análise crítica da prova, o Ac. do STJ, 27/02/2003, proferido no proc. 140/03, em que é relator o conselheiro Carmona da Mota, diz: “O valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade. A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detetáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através de contacto pessoal e direto com as pessoas”.
Quem não se lembra que a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis "a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto direto) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a atuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal". E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que "ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar" — veja-se Anotado, vol. IV, pags. 566 e ss.
Finalmente, o velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal [sobre aquela regra “unus testis, testis nullius”, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (De Arnaud, Blackstone, Bentham, Meyer, Bonnier), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação - veja-se Aurélia Maria Romero Coloma,
Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69 a 91; muito antes, no domínio do processo civil português, Alberto dos Reis afirmara que “No seu critério de livre apreciação o tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas” – veja-se Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimp., Coimbra, 1981, pág. 357.
No caso em apreço, a convicção do Tribunal, quanto à matéria de facto provada, formou-se com base nos seguintes meios de prova, analisados criticamente, à luz das regras da experiência comum, da lógica, da razão e da livre convicção do julgador:
• Declarações do arguido AA. O arguido disse desconhecer que no interior da mala e da mochila se encontrava cocaína, afirmando que a pessoa que lhe entregou a mala e o saco lhe disse que continham coisas normais. O arguido afirmou emocionado ter acreditado naquela pessoa. Explicou que a pessoa que lhe entregou a mala e o saco foi-lhe apresentada em Portugal, por um dos seus amigos. no café sito da .... Afirmou que essa pessoa, que se chama EE o ajudou muito em Portugal, tendo-lhe mesmo arranjado trabalho. Explicou que quando estava no aeroporto da ... para regressar a Portugal, o EE estava junto do local de embarque a procurar alguém que lhe fizesse o transporte para Portugal de uma mala e de um saco preto. Falou com ele e disse-lhe que caso a mala e o saco passassem no RX, aceitaria fazer-lhe esse favor. Como a mala e o saco passaram no RX sem qualquer problema aceitou trazer os mesmos para Portugal. Esclareceu que o EE foi até ao tapete de RX com a mala e o saco, tendo este apenas recebido a mala e o saco depois daquele passarem no tapete sem qualquer problema. No aeroporto da ... todas as pessoas conseguem aceder facilmente à zona de embarque. Referiu que o EE lhe tirou foto a si, ao saco e à mala para enviar à outra pessoa que iria ter com este ao aeroporto de Lisboa para o arguido lhe entregar a mala e o saco. Disse, ainda, que a roupa que estava no interior da mala não era dele, apenas a roupa que estava na mochila, tendo colocado o saco plástico preto junto à mesma.
• Depoimento da testemunha FF. Referiu ser Inspetor da Polícia Judiciária, a exercer funções na U.N.C.T.E. e que conhece o arguido do exercício das suas funções. Relatou que na sequência de uma ação de fiscalização de um voo proveniente da ..., que tinham conhecimento ser um destino donde vem produto estupefaciente. Relatou que neste voo foi apreendido produto estupefaciente a 4 indivíduos, entre eles o arguido. Recorda-se que, apesar de não ter abordado este arguido, o mesmo ficou triste, desanimado e cabisbaixo. Afirmou que o aeroporto da ... é arcaico.
• Depoimento da testemunha GG. Referiu ser Inspetor da Polícia Judiciária, a exercer funções na U.N.C.T.E. e que conhece o arguido do exercício das suas funções. Corroborou o depoimento da testemunha anterior, afirmando não ter sido ele que abordou este arguido.
• Depoimento da testemunha HH. Referiu ser Inspetor da Polícia Judiciária, que à data dos factos exercia funções na U.N.C.T.E. e que conhece o arguido do exercício das suas funções. Corroborou o depoimento das testemunhas anteriores, afirmando não ter sido ele que abordou este arguido. Disse, ainda, que no âmbito dessa operação um dos indivíduos abandonou a bagagem de mão e fugiu, afirmando não ter sido este arguido.
• Depoimento da testemunha II. Referiu ser Inspetora da Polícia Judiciária, que à data dos factos exercia funções na U.N.C.T.E. e que conhece o arguido do exercício das suas funções. Corroborou o depoimento das testemunhas anteriores, afirmando não ter sido ela que abordou este arguido. Recorda-se, porém, que este arguido estava mais hostil que os restantes, virava a cara, não se levantava quando lhe pediam, não respondia às perguntas com a mesma prontidão dos restantes arguidos.
A convicção do Tribunal resultou, ainda, da valoração da seguinte prova:
Pericial:
• Exame do LPC de fls. 156;
• Relatório Pericial ao telemóvel – fls. 100 a 106 e 119; Documental:
• Auto de apreensão – fls.12;
• Fotografias – fls. 13 a 20;
• Relatório da PJ – fls. 70 a 74;
• Informação da PJ – fls. 140;
• Restantes documentos juntos aos autos.
Em sede das condições de vida do arguido, teve-se ainda em conta o relatório social e certificado de registo criminal.
Os meios de prova referidos foram todos conjugados e confrontados, procurando-se encontrar os pontos de confluência e coerência dos mesmos.
O arguido prestou declarações e afirmou desconhecer que no interior da mala e que o saco preto que lhe entregaram continham cocaína. O arguido explicou pormenorizadamente, como acima se referiu, como lhe foi entregue a referida mala e o saco plástico preto e os motivos pelos quais o arguido aceitou o transporte da mala e do saco.
As testemunhas inquiridas, de forma coerente e imparcial relataram como foi realizada esta ação de fiscalização preventiva, importando apenas realçar o depoimento das testemunhas FF e II no que concerne ao estado de espírito do arguido.
As declarações do arguido, a sua idade, o seu percurso pessoal e o contexto por si relatado relativo à forma como ocorreram os factos, bem como o motivo pelo qual aceitou os mencionados objetos, à luz das regras da experiência, levanta uma dúvida ao Tribunal, se efetivamente o arguido tinha conhecimento que trazia consigo produto estupefaciente.
Assim, em nosso entender, a prova produzida em julgamento relativamente ao arguido, pelo grau de dúvida levantado, que não pode ser sanado com a produção de outros meios de prova, tem de justificar e fundamenta uma decisão de ausência de prova relativamente aos factos imputados ao arguido e que supra se enumeraram.
O Tribunal segundo o princípio da livre apreciação da prova, deverá nortear-se por regras de lógica, de ciência e de experiência comum, fazendo, tendo por base tais princípios, uma análise crítica das várias provas que relevaram ou, pelo contrário, que, por qualquer motivo, não foram atendidas, para formar tal convicção, em termos de objetividade.
Assim, suspeitar, deduzir ou tirar ilações com maior ou menor grau de probabilidade, é o que cada um de nós poderá fazer.
Todavia, para que os factos pudessem ser dados como provados e o arguido condenado pela sua prática é necessário um grau de certeza que não existe no caso dos autos relativamente a esses factos.
Aqui chegados, podemos concluir que os elementos probatórios apurados em audiência de julgamento, apreciados conjugadamente, não permitem concluir sem dúvidas - em termos de certeza e segurança judiciárias - que fundamentem um juízo inequívoco de culpabilidade do arguido relativamente a esses factos que lhe são imputados.
Em conclusão diremos que da conjugação e análise de toda a prova produzida, não apurou o Tribunal com tal grau de certeza, quer os próprios factos em si, quer a autoria dos mesmos pelo arguido.
Na verdade, perante um impasse relativamente à ocorrência dos factos, é de observância obrigatória o preceito constitucional contido no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio da presunção de inocência, que surge articulado com o princípio in dubio pro reo.
Tal princípio, segundo comentam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “além de ser uma garantia subjetiva, é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos da causa”.
“Este princípio considera-se também associado ao princípio nulla poena sine culpa, pois que o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, ele pronuncia uma sentença de condenação”.
Como afirma Ernst Beling, “toda a dúvida séria exclui a condenação”.
O princípio in dubio pro reo respeita à decisão da matéria de facto, constituindo uma regra legal de decisão em matéria de facto, segundo a qual o tribunal deve decidir a favor do arguido se não se encontrar convencido da verdade ou falsidade de um facto, isto é, se permanecer em estado de dúvida sobre a realidade do mesmo (non liquet).
Tal princípio não constitui uma regra probatória em sentido próprio, i.e. uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, reportando-se, antes, às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida.
O princípio in dubio pro reo estabelece assim que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece os arguidos.
Além disto, dada a existência, no nosso processo penal, de um princípio de investigação, compreende-se que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, não devem ser considerados como provados.
Daqui decorre, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, que “se aquele mesmo princípio (de investigação) obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à condenação, logo se compreende que a falta destas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova - não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão - tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este conteúdo e alcance que se afirma o princípio in dubio pro reo”.
Não se tendo provado com toda a certeza que o arguido Miguel Pereira1 tivesse praticado os factos descritos, não é possível condená-lo pelo crime correspondente: não é o agente que tem que provar a sua inocência, é a acusação que tem que ser provada. Como vimos, a dúvida séria sobre a verificação dos factos, aproveita ao agente.
Na verdade, todos os dados apurados não permitem, com um grau de segurança razoável, dá-los por provados, inexistindo qualquer elemento probatório ou qualquer circunstância que, fundamentadamente, permita imputar a prática destes factos ao arguido.
Por todo o exposto, deram-se por não provados os factos como tal enumerados».
FUNDAMENTAÇÃO 1. Da remessa dos autos para reabertura de audiência.
Defende o recorrente que os autos devem ser remetidos para o Tribunal recorrido para que seja reaberta a audiência porquanto, no dia da leitura do acórdão (28.11.2024), e após a realização da mesma, foi junta ao processo certidão do processo 11/11.0PEFAR, que correu trâmites no Juízo Central Criminal de Faro – Juiz 6, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, e ainda uma informação policial na qual se conclui que o arguido omitiu a sua real identificação, tendo afinal 35 anos (e não 23) e antecedentes criminais, incluindo por tráfico de estupefacientes.
O acórdão proferido no aludido processo, em 01.03.2013, foi confirmado pelo Tribunal da Relação de Évora em 15.10.2013 e transitou em julgado em 20.11.2013.
A informação policial entrada em juízo também em 28.11.2024 refere que «Em resposta ao solicitado através do ofício 131734134 de 22/03/2024, no âmbito do NUIPC 11/11.0PEFAR, informa-se Vossa Excelência que já foi realizado exame comparativo entre as impressões digitais recolhidas ao indivíduo que se identificou como BB, nascido a .../.../1990, e ao indivíduo que em 16/02/2024 se identificou como sendo AA, nascido a .../.../2001, verificando uma absoluta concordância entre as mesmas, pelo que pode afirmar ser a mesma pessoa. Junta-se cópia do Exame Pericial registado neste Setor sob o número 2024004666-CIJ».
Apreciando:
Trata-se de expediente que foi junto aos autos posteriormente à leitura do acórdão e que, naturalmente, este não poderia ter considerado.
E diz-nos o artigo 165º, nº 1, do CPP, que os documentos devem ser juntos ao processo no máximo até ao encerramento da audiência.
A audiência encerra-se após as últimas declarações do arguido, nos termos do artº 361º, nº 2, do CPP, sem prejuízo do artº 371º, i.e., da produção de prova suplementar para a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, não estando em causa nestes autos esta exceção à regra do artº 361º.
Ainda assim, nunca seria nestes autos que se poderia decidir e declarar que o arguido prestou falsas declarações acerca da sua identidade (seja nestes autos, seja no processo de ..., seja até nos dois).
Não há, em suma, qualquer fundamento legal – aliás, nem sequer invocado – para que se determine a reabertura da audiência.
Improcede, assim, este segmento do recurso.
2. Do erro de julgamento.
É sabido que em face do nosso quadro normativo, a decisão da primeira instância pode ser modificada (artigo 431.º/b) por duas vias diferentes:
Ou através da invocação dos vícios referenciados no artigo 410.º/2 do CPP (a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova, onde, consabidamente, se vem inserindo a violação do princípio in dubio pro reo), vícios, aliás, de conhecimento oficioso, no que se vem denominando de “revista alargada”.
Ou mediante o que se vem denominando de “impugnação ampla”, procedendo-se à invocação de erros de julgamento, de harmonia com o estatuído no artigo 412.º/3 e 4 do mesmo diploma.
No caso dos vícios do artigo 410.º/2 do CPP estamos perante vícios da decisão, sendo que qualquer das situações aí mencionadas se traduz em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspetiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova.
Qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do referido artigo 410.º do CPP, é inerente ao silogismo da decisão e apenas dela pode ser apurado em face da mesma - não sendo possível o recurso a outros elementos que não o texto da decisão, para sua afirmação - ainda que conjugado com as regras da experiência - sendo a consequência lógica e imediata, da sua existência, salvo o caso de ser possível conhecer da causa, o reenvio do processo, nos termos do estatuído no artigo 426.º CPP.
Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410.º/2 CPP, terá que ser detetada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º do CPP, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Qualquer dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal, pressupõe uma outra evidência, não podendo ser confundidos com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem podem emergir da mera divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127.º do CPP.
No caso dos autos, alega o recorrente ter havido erro de julgamento, defendendo que deveriam ter sido julgados provados os pontos que constam do elenco dos factos não provados sob as alíneas a) a c) e que são os seguintes:
a. O arguido tinha conhecimento e transportava treze placas de cocaína na mala e uma placa de cocaína na mochila.
b. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes da substância que detinha, que aceitou transportar por via aérea, para ser posteriormente comercializado, pretendendo obter nessa transação montante pecuniário de valor não apurado.
c. O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a mera detenção, transporte e a comercialização de cocaína eram proibidos e puníveis por lei penal.
Pretende o recorrente impugnar o julgamento sobre a matéria de facto nos termos prescritos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.
Nesta situação a apreciação do Tribunal ad quem alarga-se à análise da prova produzida em audiência, mas com os limites impostos pela norma invocada.
Nos termos deste preceito, “1 - A motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. … 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata nos termos do nº 2 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. … 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Assim, nos termos do normativo acabado de citar, incumbe sobre o recorrente que pretende impugnar amplamente a matéria de facto “o ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art.º 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na ata, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas…” - cf. Ac. do TRC de 06-07-2016, proc. n.º 340/08.0PAPBL.C1, www.dgsi.pt.
Em síntese, o recorrente tem o ónus de expressamente indicar, de acordo com o disposto no artigo 412.º/3, do CPP:
i) Os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados;
ii) O conteúdo específico do meio de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida; e
iii) Se for caso disso, os meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, no âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º/2, do CPP, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. o artigo 430.º/1, do CPP).
No que tange às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente o ónus de, havendo gravação das provas, as mesmas deverem ser efetuadas com referência ao consignado na ata (caso funde as razões da sua discordância em prova gravada), com a concreta indicação das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, pois são essas concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, nos termos dos nºs 4 e 6 do artigo 412.º, do CPP.
Por outro lado, a procedência da impugnação, com a consequente modificação da decisão sobre a matéria de facto, não se satisfaz com a circunstância de as provas produzidas possibilitarem uma decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
E a demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente, que deve relacionar o “conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135).
Como se refere no ac. do TRC de 12-07-2023 (proc. n.º 982/20.6PBFIG.C1, www.dgsi.pt) a impugnação alargada não se satisfaz com “mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador - e não analisando o teor dos depoimentos das indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados.”
No caso sub judice o recorrente convoca na motivação os seguintes elementos de prova (transcrição): «O depoimento prestado pelos inspetores da Polícia Judiciária assume fundamental relevo nesta sede interpretativa e colocam em causa o depoimento do arguido.
• Depoimento da testemunha FF, prestado no dia 05-11-2024, e que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 20 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 34 minutos, referiu ser inspetor da Polícia Judiciária, a exercer funções na U.N.C.T.E. e que conhece o arguido do exercício das suas funções. Relatou que na sequência de uma ação de fiscalização de um voo proveniente da ..., que tinham conhecimento ser um destino donde vem produto estupefaciente. Relatou que neste voo foi apreendido produto estupefaciente a 4 indivíduos, entre eles o arguido. Recorda-se que, apesar de não ter abordado este arguido, o mesmo ficou triste, desanimado e cabisbaixo. Afirmou que o aeroporto da ... é arcaico.
• Depoimento da testemunha GG, prestado no dia 05-11-2024, e que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 35 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 49 minutos, referiu ser inspetor da Polícia Judiciária, a exercer funções na U.N.C.T.E. e que conhece o arguido do exercício das suas funções. Corroborou o depoimento da testemunha anterior, afirmando não ter sido ele que abordou este arguido.
• Depoimento da testemunha HH, prestado no dia 21-11-2024, e que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 20 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 26 minutos referiu ser inspetor da Polícia Judiciária, que à data dos factos exercia funções na U.N.C.T.E. e que conhece o arguido do exercício das suas funções. Corroborou o depoimento das testemunhas anteriores, afirmando não ter sido ele que abordou este arguido. Disse, ainda, que no âmbito dessa operação um dos indivíduos abandonou a bagagem de mão e fugiu, afirmando não ter sido este arguido.
• Depoimento da testemunha II, prestado no dia 21-11-2024, e que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 27 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 37 minutos referiu ser inspetora da Polícia Judiciária, que à data dos factos exercia funções na U.N.C.T.E. e que conhece o arguido do exercício das suas funções. Corroborou o depoimento das testemunhas anteriores, afirmando não ter sido ela que abordou este arguido. Recorda-se, porém, que este arguido estava mais hostil que os restantes, virava a cara, não se levantava quando lhe pediam, não respondia às perguntas com a mesma prontidão dos restantes arguidos. As provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida, são os depoimentos dos inspetores da Polícia Judiciária, conjugada com toda a prova documental, nomeadamente: Pericial:
• Exame do LPC de fls. 156;
• Relatório Pericial ao telemóvel – fls. 100 a 106 e 119;
• Documental:
• Auto de apreensão – fls.12;
• Fotografias – fls. 13 a 20;
• Relatório da PJ – fls. 70 a 74;
• Informação da PJ – fls. 140; - Restantes documentos juntos aos autos».
Analisando as atas das sessões da audiência de julgamento, o recorrente, no que concerne à prova testemunhal, alude genericamente, em forma de resumo, ao depoimento integral de cada testemunha que menciona.
Por isso, liminarmente se dirá que, quanto aos depoimentos dos quatro Inspetores da ..., o recorrente não observou o que impõe o artº 412º, nº 4, do CPP: havendo gravação das provas, as mesmas devem ser efetuadas com referência ao consignado na ata (caso funde as razões da sua discordância em prova gravada), com a concreta indicação das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, pois são essas concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, nos termos dos nºs 4 e 6 do artigo 412.º, do CPP. Quem recorre deve indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem em causa na gravação, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que se quer que o Tribunal de recurso ouça ou aprecie.
Seguindo de perto o acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.11.2021, processo 1229/17.8PAALM.L1-5, Relator Jorge Gonçalves, disponível no site da dgsi:
«Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação (…). (…) Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Assim, o ónus processual de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, previsto na alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., apresenta uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada declaração gravada, nos seguintes termos: - se a acta contiver essa referência, a indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º (n.º 4 do artigo 412.º do C.P.P.); – se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (acórdão da Relação de Évora, de 28/05/2013, processo 94/08.0GGODM.E1). Em síntese: para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens)».
Com efeito, no caso em apreço, estando a prova gravada, o recorrente apenas acrescenta o início e o termo dos depoimentos à cópia integral que fez daquilo que, no acórdão recorrido, se escreveu sobre cada um dos depoimentos, sem observar o art.º 412º nº 4, do CPP.
Por isso, esses indicados elementos de prova (testemunhal) não serão aqui considerados por iniciativa do recorrente.
Quanto aos demais elementos de prova que o recorrente convoca, revisitemos o acórdão recorrido.
Depois de referir as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas, nos moldes acima já transcritos, o acórdão prossegue do seguinte modo:
«A convicção do Tribunal resultou, ainda, da valoração da seguinte prova:
Pericial:
• Exame do LPC de fls. 156;
• Relatório Pericial ao telemóvel – fls. 100 a 106 e 119; Documental:
• Auto de apreensão – fls.12;
• Fotografias – fls. 13 a 20;
• Relatório da PJ – fls. 70 a 74;
• Informação da PJ – fls. 140;
• Restantes documentos juntos aos autos.
Em sede das condições de vida do arguido, teve-se ainda em conta o relatório social e certificado de registo criminal.
Os meios de prova referidos foram todos conjugados e confrontados, procurando-se encontrar os pontos de confluência e coerência dos mesmos.
O arguido prestou declarações e afirmou desconhecer que no interior da mala e que o saco preto que lhe entregaram continham cocaína. O arguido explicou pormenorizadamente, como acima se referiu, como lhe foi entregue a referida mala e o saco plástico preto e os motivos pelos quais o arguido aceitou o transporte da mala e do saco.
As testemunhas inquiridas, de forma coerente e imparcial relataram como foi realizada esta ação de fiscalização preventiva, importando apenas realçar o depoimento das testemunhas FF e II no que concerne ao estado de espírito do arguido.
As declarações do arguido, a sua idade, o seu percurso pessoal e o contexto por si relatado relativo à forma como ocorreram os factos, bem como o motivo pelo qual aceitou os mencionados objetos, à luz das regras da experiência, levanta uma dúvida ao Tribunal, se efetivamente o arguido tinha conhecimento que trazia consigo produto estupefaciente.
Assim, em nosso entender, a prova produzida em julgamento relativamente ao arguido, pelo grau de dúvida levantado, que não pode ser sanado com a produção de outros meios de prova, tem de justificar e fundamenta uma decisão de ausência de prova relativamente aos factos imputados ao arguido e que supra se enumeraram.
O Tribunal segundo o princípio da livre apreciação da prova, deverá nortear-se por regras de lógica, de ciência e de experiência comum, fazendo, tendo por base tais princípios, uma análise crítica das várias provas que relevaram ou, pelo contrário, que, por qualquer motivo, não foram atendidas, para formar tal convicção, em termos de objetividade.
Assim, suspeitar, deduzir ou tirar ilações com maior ou menor grau de probabilidade, é o que cada um de nós poderá fazer.
Todavia, para que os factos pudessem ser dados como provados e o arguido condenado pela sua prática é necessário um grau de certeza que não existe no caso dos autos relativamente a esses factos.
Aqui chegados, podemos concluir que os elementos probatórios apurados em audiência de julgamento, apreciados conjugadamente, não permitem concluir sem dúvidas - em termos de certeza e segurança judiciárias - que fundamentem um juízo inequívoco de culpabilidade do arguido relativamente a esses factos que lhe são imputados.
Em conclusão diremos que da conjugação e análise de toda a prova produzida, não apurou o Tribunal com tal grau de certeza, quer os próprios factos em si, quer a autoria dos mesmos pelo arguido.
Na verdade, perante um impasse relativamente à ocorrência dos factos, é de observância obrigatória o preceito constitucional contido no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio da presunção de inocência, que surge articulado com o princípio in dubio pro reo.
Tal princípio, segundo comentam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “além de ser uma garantia subjetiva, é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos da causa”.
“Este princípio considera-se também associado ao princípio nulla poena sine culpa, pois que o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, ele pronuncia uma sentença de condenação”.
Como afirma Ernst Beling, “toda a dúvida séria exclui a condenação”.
O princípio in dubio pro reo respeita à decisão da matéria de facto, constituindo uma regra legal de decisão em matéria de facto, segundo a qual o tribunal deve decidir a favor do arguido se não se encontrar convencido da verdade ou falsidade de um facto, isto é, se permanecer em estado de dúvida sobre a realidade do mesmo (non liquet).
Tal princípio não constitui uma regra probatória em sentido próprio, i.e. uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, reportando-se, antes, às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida.
O princípio in dubio pro reo estabelece assim que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece os arguidos.
Além disto, dada a existência, no nosso processo penal, de um princípio de investigação, compreende-se que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, não devem ser considerados como provados.
Daqui decorre, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, que “se aquele mesmo princípio (de investigação) obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à condenação, logo se compreende que a falta destas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova - não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão - tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este conteúdo e alcance que se afirma o princípio in dubio pro reo”.
Não se tendo provado com toda a certeza que o arguido (…) tivesse praticado os factos descritos, não é possível condená-lo pelo crime correspondente: não é o agente que tem que provar a sua inocência, é a acusação que tem que ser provada. Como vimos, a dúvida séria sobre a verificação dos factos, aproveita ao agente.
Na verdade, todos os dados apurados não permitem, com um grau de segurança razoável, dá-los por provados, inexistindo qualquer elemento probatório ou qualquer circunstância que, fundamentadamente, permita imputar a prática destes factos ao arguido.
Por todo o exposto, deram-se por não provados os factos como tal enumerados».
Ora, na verdade, o recorrente não invoca em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados na sentença recorrida, mas apenas questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, procurando impor a sua visão dos factos, de modo a que se conclua em sentido contrário ao julgado não provado, dando afinal prevalência à versão da acusação quando o Tribunal teve dúvidas e aplicou o princípio in dubio pro reo.
Vejamos se os elementos probatórios que constam nos autos impõem decisão diversa da recorrida.
Seguindo de perto o acórdão da Relação do Porto de 05.06.2024, Relator Pedro Afonso Lucas, processo 466/21.5PAVNG.P1, «Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art.º 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguida/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesma arguida/arguida), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal».
No mesmo sentido, vide o acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.7.2023, Relatora Alda Casimiro, processo 1074/21.6JAPDL.L1-5, que refere: «A ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo art.º 412º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum. Significa isto que o recorrente não pode pretender substituir a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção» (sublinhado da ora relatora).
Também no acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.12.2024, Relatora Sandra Oliveira Pinto, processo 628/23.0POLSB.L1-5, pode ler-se que «a reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.
(…) Como expressamente resulta do disposto no artigo 412º, nº 3, alíneas a) e b), e nº 4 do Código de Processo Penal, quanto à impugnação da matéria de facto, para além da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, deve o recorrente indicar ainda as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Esse desiderato não se alcança com a mera formulação de opiniões quanto à clareza ou precisão do que foi dito, na medida em que tais elementos possam permitir diferentes conclusões – só se atinge com a indicação das provas que impõem, que obrigam a decisão diversa.
De acordo com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01.04.2008, citado neste último aresto de 05.12.2024 na nota de rodapé nº 6, «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.
As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida» (sublinhado igualmente da ora relatora).
De acordo com o disposto no artº 127º, do CPP, a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador.
Há uma apreciação da prova inteiramente objetiva, nos casos em que é imposta pelas regras da experiência. E há uma apreciação da prova subjetiva que resulta da livre convicção do julgador.
A apreciação subjetiva da prova resulta da imediação e da oralidade, mas só pode ser afastada se o recorrente demonstrar que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência.
Ora, o arguido, como se diz no acórdão recorrido, “explicou pormenorizadamente (…) como lhe foi entregue a referida mala e o saco plástico preto e os motivos pelos quais (…) aceitou o transporte da mala e do saco”. Designadamente, o arguido disse conhecer a pessoa que lhe entregou a mala e a mochila e que lhe disse que aí se continham coisas “normais”. Essa pessoa, de nome EE, tinha ajudado o arguido anteriormente em Portugal, arranjando-lhe emprego. Referiu que, “quando estava no aeroporto da ... para regressar a Portugal, o EE estava junto do local de embarque a procurar alguém que lhe fizesse o transporte para Portugal de uma mala e de um saco preto. Falou com ele e disse-lhe que caso a mala e o saco passassem no RX, aceitaria fazer-lhe esse favor. Como a mala e o saco passaram no RX sem qualquer problema aceitou trazer os mesmos para Portugal. Esclareceu que o EE foi até ao tapete de RX com a mala e o saco, tendo este apenas recebido a mala e o saco depois daquele passarem no tapete sem qualquer problema. No aeroporto da ... todas as pessoas conseguem aceder facilmente à zona de embarque. Referiu que o EE lhe tirou foto a si, ao saco e à mala para enviar à outra pessoa que iria ter com este ao aeroporto de Lisboa para o arguido lhe entregar a mala e o saco. Disse, ainda, que a roupa que estava no interior da mala não era dele, apenas a roupa que estava na mochila, tendo colocado o saco plástico preto junto à mesma”.
O Tribunal recorrido, atendendo a essas declarações e ponderando que os Inspetores da ... apenas depuseram sobre o estado de espírito do arguido quando foi por eles abordado e se apreendeu o produto estupefaciente, ficou com as dúvidas que justificou. Para essas dúvidas contribuiu certamente o modo como o arguido prestou as suas declarações, com um grau de consistência e uma aparência de credibilidade que levaram a que o Tribunal recorrido não as desconsiderassem de todo, concluindo que o arguido estava a mentir e a inventar uma história.
Este Tribunal da Relação ouviu as declarações do arguido, nos moldes a que alude o art.º 412º, nº 6, 2ª parte, do CPP.
O arguido respondeu a todas as questões que lhe foram colocadas, com clareza e espontaneidade, não vacilando, não entrando nunca em contradição, não demonstrando nervosismo ou qualquer contrariedade. Explicou a razão pela qual viajara à ... sem levar qualquer bagagem e pela qual tencionava regressar a Portugal igualmente sem bagagem.
Mas, perguntamo-nos: será de acreditar nas declarações do arguido?
É que as mesmas, pelo seu teor, suscitam suspeitas, já que a experiência nos diz que ninguém aceita transportar de avião uma mala (de cabine ou de porão) e uma mochila de outrem, sem ter a absoluta certeza do seu conteúdo, correndo o risco de aí se encontrar algum produto ilícito e de, consequentemente, ser detido.
E a passagem dos objetos pelo tapete de RX não é, sem mais, razão para se concluir que os mesmos não continham produtos ilícitos, tranquilizando o arguido. Basta o funcionário que controla o aparelho de RX ser ou estar distraído, ou ser porventura conivente com quem pretende fazer passar produtos ilícitos por um aeroporto, ou até os produtos estarem efetivamente bem dissimulados, impedindo a sua pronta constatação.
Na maioria dos casos, só com uma revista minuciosa e pormenorizada se consegue, em princípio, num aeroporto, detetar o transporte da maioria dos produtos estupefacientes devidamente dissimulados que os respetivos detentores pretendem por aí fazer passar.
No caso dos autos, se verdadeiramente houve controlo de malas através de um aparelho de RX, não pode deixar de duvidar-se da competência de quem, naquele dia, terá “controlado” o RX. Vistas as fotos juntas a fls. 14 a 20, constata-se que, quanto às treze placas retangulares que seguiam na mala de cabine, nem sequer houve o cuidado de as dissimular, por exemplo, num fundo falso da mala: estão – todas, as treze - colocadas à vista desarmada numa das duas divisórias da mala, ao lado umas das outras, ocupando todo o espaço dessa divisória. Abrindo-se a mala, as treze placas saltam logo à vista. O mesmo sucede com a placa retangular colocada na mochila, a qual certamente seria detetada pela sua simples palpação.
Mais ainda, na mala de cabine estavam cerca de treze quilos de cocaína e, na mochila, cerca de um quilo, pelo que o respetivo peso era evidentemente suspeito.
E o arguido sempre referiu que era sua a roupa que estava na mochila, tendo “colocado o saco plástico preto junto à mesma”. Ora, quem viaja, independentemente de não levar bagagem, leva em regra consigo uma bolsa ou uma mochila, nem que seja para guardar a documentação necessária para a viagem e para o dia a dia e os objetos mais pessoais (telemóvel, carregador de telemóvel, eventual medicação que esteja a tomar, um livro, etc.). Bolsa ou mochila que, no caso, mais se impunham, já que o arguido, afinal, transportava alguma roupa, a qual, em regra, não se transporta num saco preto (note-se que o arguido não referiu sequer ter adquirido roupa numa loja do aeroporto ou no caminho para o aeroporto). Na verdade, quem vai viajar não leva roupa num saco de plástico preto, no fundo qual saco do lixo.
Também sabemos que há pessoas com o dom de contar histórias. O arguido terá certamente esse dom. Mas, se acreditássemos nesta história, estaria descoberta uma habilidosa via para se traficar estupefacientes a partir da ..., com uma explicação igual à do arguido, o que se crê ser inadmissível.
Essa explicação não colhe. É desprovida de razoabilidade. Contraria as regras da experiência comum.
Essas regras conduzem a que não se dê credibilidade às declarações do arguido, o qual, naturalmente, como é de lei, pode prestar as declarações que bem entender.
Tais regras da experiência dizem-nos, como acima se referiu, que ninguém aceita transportar de avião uma mala de cabine e uma mochila de outrem, sem ter a absoluta certeza do seu conteúdo, correndo o risco de aí se encontrar algum produto ilícito e de, consequentemente, ser detido.
O arguido não transportou sequer uma pequena quantidade de estupefaciente, transportou cerca de catorze quilos, treze na mala de cabine e um na mochila.
De acordo com as regras da experiência comum, não só o arguido sabia o que transportava, como também sabia que não podia transportar cocaína da ... para Portugal. Trazer mais de treze quilos numa bagagem de mão impõe a conclusão de que o arguido sabia o que trazia. Quem traz a quantidade de cocaína que o arguido detinha e transportava tem que saber que isso é proibido.
Julga-se, assim, provado que o arguido sabia aquilo que transportava, sabia que isso era proibido e que quis atuar com vista a trazer para Portugal produto estupefaciente.
Assim, nos termos do artigo 431º, al. b), do CPP, devem:
- ser eliminados os factos não provados sob as alíneas a), b) e c);
- ser aditados esses factos à matéria provada, com a introdução de factos provados sob o ponto 7.a, 7.b e 7.c, com a seguinte redação:
7.a. O arguido tinha conhecimento e transportava treze placas de cocaína na mala e uma placa de cocaína na mochila.
7.b. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes da substância que detinha, que aceitou transportar por via aérea, para ser posteriormente comercializado, pretendendo obter nessa transação montante pecuniário de valor não apurado.
7.c. O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a mera detenção, transporte e a comercialização de cocaína eram proibidos e puníveis por lei penal.
Procede, assim, este segmento do recurso. 3. Do preenchimento dos elementos que integram o crime de tráfico de estupefacientes e da pena concreta
O arguido vinha acusado da prática de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 22/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B, anexa a esse diploma, mais requerendo o Ministério Público a sua condenação na pena acessória de expulsão do território nacional, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência ao disposto nos artigos 134.º, nº 1, als. e) e f), 140.º e 151.º, n.º 1, todos da Lei 23/2007, de 4 de julho.
Prescreve o n.º 1 do art.º 21.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro que «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer outro título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art.º 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».
Por seu lado, dispõe o art.º 25.º do mesmo Diploma que, «Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI».
Entende-se que o crime de tráfico de estupefacientes, quer na previsão do Dec. Lei n.º 430/83, no seu art.º 23.º, quer na previsão do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, no seu art.º 21.º, não exige nos seus elementos essenciais e típicos que a detenção da droga se destine à venda, bastando-se com a ilícita detenção da mesma ou a mera distribuição, compra, cedência ou proporcioná-la a outrem, ainda que a título gratuito (neste sentido, Ac. STJ, de 25/5/94, in BMJ: 437º-220).
Dos citados normativos resulta que, enquanto o citado art.º 21.º, n.º 1 funciona como dispositivo basilar, já o art.º 25.º privilegia em função do menor grau de ilicitude.
A situação dos autos não é enquadrável no normativo do art.º 26.º porque a posse das indicadas substâncias não tinha por finalidade exclusiva o «uso pessoal».
Com efeito, o normativo do art.º 26.º pune o traficante consumidor, que é aquele que financia o próprio consumo através da prática de quaisquer das atividades previstas no preceito matriz - o art.º 21.º -, mas só quando estas atividades se desenvolvam em pequenas quantidades, no máximo até à quantidade que não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias (art.º 26.º, n.º 3).
Ora, desde logo a quantidade de estupefaciente apreendida ao arguido não tinha por finalidade exclusiva o “uso pessoal”, pois que, desde logo, não se provou que se destinasse a ser, por ele, consumida.
De harmonia com o dispositivo do art.º 25.º, também ele relacionado com o art.º 21.º, quando a detenção de estupefacientes se processa por forma a que «a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída» merece um tratamento privilegiado. O uso do advérbio «nomeadamente» permite concluir que a ilicitude pode mostrar-se consideravelmente diminuída verificadas que sejam as circunstâncias consignadas no preceito: «os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações».
Entende-se mesmo que o requisitório exigido no art.º 25.º para se ter o tráfico como de menor gravidade passa por outras exigências e pela ponderação de outras circunstâncias, acontecendo que, no tocante à quantidade de droga, esta tem de ser aferida caso por caso, sem ter de se partir por valores predeterminados necessariamente referidos ao «necessário para o consumo individual durante um dia» (neste sentido, Ac. do STJ, de 20.04.94, in BMJ: 436º-204).
Pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2010 (no site da dgsi, Relator Oliveira Mendes», que: «I - O crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, como a sua própria denominação legal sugere, caracteriza-se por constituir um minus relativamente ao crime matricial, previsto no art.º 21.º do diploma citado. II - Trata-se de um facto típico cujo elemento distintivo do crime tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude do facto, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando como fatores aferidores de menorização da ilicitude do facto, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação e a qualidade ou quantidade das plantas substâncias ou preparações. É, pois, a partir do tipo fundamental, concretamente da ilicitude nele pressuposta, que se deve aferir se uma qualquer situação de tráfico se deve ou não qualificar como de menor gravidade. Tal aferição, consabido que a ilicitude do facto se revela, essencialmente, no seu segmento objetivo, com destaque para o desvalor da ação e do resultado, deverá ser feita a partir de todas as circunstâncias que, em concreto, se revelem e sejam suscetíveis de aumentar ou diminuir a quantidade do ilícito, quer do ponto de vista da ação, quer do ponto de vista do resultado. III - Assim e para além das circunstâncias atinentes aos fatores de aferição da ilicitude indicados no texto do art. 25.º, há que ter em conta todas as demais circunstâncias suscetíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzam uma menor perigosidade da ação e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado, sendo certo que para a subsunção de um comportamento delituoso (tráfico) ao tipo privilegiado do citado art. 25.º, como vem defendendo o STJ, torna-se necessária a valorização global do facto, tendo presente que o legislador quis aqui incluir os casos de menor gravidade, ou seja, aqueles casos que ficam aquém da gravidade justificativa do crime tipo, o que tanto pode decorrer da verificação de circunstâncias que, global e conjugadamente sopesadas, se tenham por consideravelmente diminuidoras da ilicitude do facto, como da não ocorrência daquelas circunstâncias que o legislador pressupôs se verificarem habitualmente nos comportamentos e atividades e contemplados no crime tipo, isto é, que aumentam a quantidade do ilícito colocando-o ao nível ou grau exigível para a integração da norma que prevê e pune o crime tipo (…)».
Atendendo ao facto de estarmos perante cocaína (cloridrato) e ponderando a quantidade apreendida (que, ultrapassando no total os 14 quilos e com um grau de pureza entre os 78% e os 85,1%, se situa já num grau de ilicitude muito elevado), a situação dos autos não se subsume no artº 25º do DL em apreço, mas sim no tipo base – o artigo 21º.
A cocaína (cloridrato) vem prevista na tabela I-B anexa ao Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
A descrita conduta do arguido integra, pois, o crime do artigo 21º, nº 1, do DL nº 13/92, de 22 de janeiro.
E, assim se impõe, desde já, a aplicação da respetiva sanção, dado que os factos provados, atenta a sua extensão e abrangência, permitem - com justeza e adequação - a determinação da medida da pena, aqui se convocando o AUJ n.º 4/2016, de 22/02, em que se decidiu “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.”
Note-se que, apesar dos termos aparentemente amplos deste Acórdão, apenas estão ali abrangidas as situações em que, «não obstante decisão absolutória e o disposto no art.º 369º, nº 1, do CPP, o tribunal recorrido procedeu ao apuramento e fixação dos factos relativos à determinação da pena, procedendo então o tribunal da relação às operações de determinação da sanção com base naqueles factos, nos mesmos termos em que o faz nos demais casos de determinação da pena em substituição do tribunal recorrido» (vide Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo V, Coimbra, Almedina, 2024, anotação de António Latas e Pedro Soares de Albergaria ao art.º 424º do CPP, pág. 281).
No caso dos autos, a decisão recorrida contém os factos pertinentes para a determinação da pena a aplicar ao arguido (cfr. os factos provados sob os nsº 9 a 24), procedendo então esta Relação às operações de determinação da sanção com base naqueles factos.
No caso em apreço, a moldura penal abstrata é de prisão de 4 a 12 anos.
*
Cumpre, portanto, proceder à determinação da medida da pena dentro da moldura penal abstrata cominada para o presente ilícito, nos termos supra referidos.
Do princípio da dignidade da pessoa humana, de que decorre o princípio da culpa (patente nos arts. 1º, 13º, nº 1, e 25º, nº 1, da CRP), conjugado com o art.º 18º, nº 2, do texto constitucional, resulta que apenas razões de prevenção geral (i. e., integração e reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação normativa) podem justificar o desencadear de reações criminais. Por seu turno, há que fazer igualmente apelo a critérios de prevenção especial, i. e., de integração social ou socialização, também eles decorrendo da ideia de Estado de Direito material.
Destas considerações deriva que, para a determinação da medida concreta da pena, se tenham em conta, dentro dos limites abstratos definidos na lei, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a culpa deste; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham (art.º 71º, ns. 1 e 2, do CP).
Assim, no caso em apreço, na pena a aplicar ao arguido ter-se-ão em conta os critérios determinativos constantes dos arts. 70º e 71º do CP, designadamente o grau de intensidade do ilícito penal praticado, considerando-se a respetiva natureza e o dolo do arguido na modalidade de dolo direto (art.º 14º, nº 1, do CP).
Ponderar-se-á que se trata de cocaína (cloridrato), i.e., de uma droga dura, que causa dependência e cujos efeitos do consumo destroem vidas e famílias, corroendo a sociedade, sendo elevadas as razões de prevenção geral, tanto mais que estamos perante:
- sete placas que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 7003,000 g/1, com 78% de grau de pureza, a que correspondem vinte e sete mil trezentas e onze doses;
- seis placas que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 6024,000 g/1, com 85,1% de grau de pureza, a que correspondem vinte e cinco mil seiscentas e trinta e duas doses;
- uma placa que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1004,000 g/1, com 82,4% de grau de pureza, a que correspondem quatro mil cento e trinta e seis doses.
O arguido não assumiu os factos de que vinha acusado, contando, ao invés, uma história para se desresponsabilizar, o que revela que não interiorizou o desvalor da sua conduta e elevando as razões de prevenção especial.
O arguido não tem antecedentes criminais registados.
Antes de ser detido à ordem destes autos, tinha alguns hábitos de trabalho.
O ponto médio da moldura penal situa-se nos 8 anos.
Em rigor, nada há, com significativa relevância, que deponha em favor do arguido – exceto o que consta no certificado de registo criminal, onde não constam antecedentes criminais registados em nome de AA – e não existe motivo para que a pena concreta seja fixada abaixo daquele ponto, tanto mais que o tipo e a quantidade de produto estupefaciente detidas e os proventos que a mesma era suscetível de gerar poderiam até ter levado à agravação da sua conduta nos moldes a que se refere o artigo 24º do DL 15/93, de 22 de janeiro.
Ponderando todos os critérios que acima se mencionaram, considera-se, assim, adequada a fixação da pena de 8 anos de prisão.
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Da expulsão do arguido:
Requereu o Ministério Público, na acusação, que ao arguido seja aplicada a pena acessória de expulsão do território nacional, nos termos dos artigos 34.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, 134º, nº 1, als. e) e f), 140º e 151º, nº 1, todos da Lei 23/2007, de 04.07.
O artigo 34º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22 de janeiro, diz que, sem prejuízo do disposto no artigo 48.º, em caso de condenação por crime previsto no presente diploma, se o arguido for estrangeiro, o tribunal pode ordenar a sua expulsão do País, por período não superior a 10 anos, observando-se as regras comunitárias quanto aos nacionais dos Estados membros da Comunidade Europeia.
Dispõe o artigo 134º sob a epígrafe fundamentos da decisão de afastamento coercivo ou de expulsão, que
«1 - Sem prejuízo das disposições constantes de convenções internacionais de que Portugal seja Parte ou a que se vincule, é afastado coercivamente ou expulso judicialmente do território português, o cidadão estrangeiro:
a) Que entre ou permaneça ilegalmente no território português;
b) Que atente contra a segurança nacional ou a ordem pública;
c) Cuja presença ou atividades no País constituam ameaça aos interesses ou à dignidade do Estado Português ou dos seus nacionais;
d) Que interfira de forma abusiva no exercício de direitos de participação política reservados aos cidadãos nacionais;
e) Que tenha praticado atos que, se fossem conhecidos pelas autoridades portuguesas, teriam obstado à sua entrada no País;
f) Em relação ao qual existam sérias razões para crer que cometeu atos criminosos graves ou que tenciona cometer atos dessa natureza, designadamente no território da União Europeia;
g) Que seja detentor de um título de residência válido, ou de outro título que lhe confira direito de permanência em outro Estado membro e não cumpra a obrigação de se dirigir, imediatamente, para esse Estado membro;
h) Que tenha contornado ou tentado contornar as normas aplicáveis em matéria de entrada e de permanência, em território nacional ou no dos Estados membros da União Europeia ou dos Estados onde vigore a Convenção de Aplicação, nomeadamente pela utilização ou recurso a documentos de identidade ou de viagem, títulos de residência, vistos ou documentos comprovativos do cumprimento das condições de entrada falsos ou falsificados.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade criminal em que o estrangeiro haja incorrido.
3 - Aos refugiados aplica-se o regime mais benéfico resultante de lei ou convenção internacional a que o Estado Português esteja obrigado».
Diz-nos o artº 140º da Lei em apreço, que:
«1 - A decisão de afastamento coercivo pode ser determinada, nos termos da presente lei, pelo diretor nacional do SEF, com faculdade de delegação
2 - Compete ao diretor nacional do SEF a decisão de arquivamento do processo de afastamento coercivo.
3 - A decisão judicial de expulsão é determinada por autoridade judicial competente.
4 - A decisão de expulsão reveste a natureza de pena acessória ou é adotada quando o cidadão estrangeiro objeto da decisão tenha entrado ou permanecido regularmente em Portugal».
E lê-se no artº 151º do mesmo diploma, sobre a pena acessória de expulsão, que:
«1 - A pena acessória de expulsão pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro não residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a seis meses de prisão efetiva ou em pena de multa em alternativa à pena de prisão superior a seis meses.
2 - A mesma pena pode ser imposta a um cidadão estrangeiro residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a um ano de prisão, devendo, porém, ter-se em conta, na sua aplicação, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal.
3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a pena acessória de expulsão só pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro com residência permanente, quando a sua conduta constitua perigo ou ameaça graves para a ordem pública, a segurança ou a defesa nacional.
4 - Sendo decretada a pena acessória de expulsão, o juiz de execução de penas ordena a sua execução logo que cumpridos:
a) Metade da pena, nos casos de condenação em pena igual ou inferior a cinco anos de prisão;
b) Dois terços da pena nos casos de condenação em pena superior a cinco anos de prisão.
5 - O juiz de execução de penas pode, sob proposta fundamentada do diretor do estabelecimento prisional, e sem oposição do condenado, decidir a antecipação da execução da pena acessória de expulsão logo que cumprido um terço da pena, nos casos de condenação em pena igual ou inferior a cinco anos de prisão e desde que esteja assegurado o cumprimento do remanescente da pena no país de destino».
Debruçando-se sobre este artº 151º, o Supremo Tribunal de Justiça esclareceu, por acórdão de 06.03.2014 (disponível no site da dgsi e relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Santos Cabral) que:
«Decorre do exposto que em relação à aplicação da pena acessória de expulsão a lei descrimina entre o cidadão estrangeiro residente, e o não residente, sendo certo que os pressupostos exigidos naquela primeira situação destacam-se pela sua exigência. Na verdade, para os residentes o decretar da expulsão deverá ter subjacente não só uma ponderação das consequências que dimanam para o arguido, como também para aqueles que constituem o seu agregado familiar. Igualmente presente deverá estar o avaliar da gravidade dos factos praticados e os seus reflexos em termos de permanência em território nacional. Distinta é a situação daquele em relação ao qual não existe uma relação jurídica que fundamente a legalidade da situação de permanência no País e que se encontra numa situação irregular que, só por si, já é justificante do desencadear de procedimento administrativo com vista á sua saída do solo nacional. Na verdade, o conceito de residente no País não é a mera constatação de uma situação factual imposta pelas circunstâncias, mas sim uma noção jurídica que tem subjacente o incontornável pressuposto de detenção de um título de residência que a recorrente efectivamente não tem - confrontar artigo 74 e seguintes do diploma citado. Não sendo uma mera aplicação automática da pena principal o certo é que o decretar da expulsão nesta especifica envolvente se justifica em função de uma condenação em pena de prisão e tem o pressuposto da ilegalidade da sua permanência no País como aponta o nº 1 do artigo 151 da Lei 23/2007. A razão da diversidade de tratamento encontra-se ligada à circunstância de a fixação de residência ter subjacente a criação de um vínculo social e económico e de todo um processo de socialização e identificação comunitária. Tais necessidades estão arredadas em relação ao cidadão que não mora no Pais e em relação ao qual o exercício pelo julgador do poder-dever de verificar, e decidir, de acordo com os pressupostos legais apenas exige a existência de uma condenação em prisão superior a seis meses pela prática de crime doloso. No caso vertente, como aponta a decisão recorrida, a recorrente invoca uma situação de residente que não detêm pois que a mesma é uma não residente em termos jurídicos. Assim, não estão infirmados os pressupostos da expulsão decretada».
No caso dos autos, o arguido tem autorização de residência temporária válida – facto provado sob o ponto 20 -, pelo que se encontra em situação regular em território nacional.
Vai condenado, pelo presente acórdão, em pena de prisão de 8 anos, necessariamente efetiva, pela prática de um crime de elevada gravidade, sendo muito elevadas, no caso, como se referiu supra, as exigências de prevenção geral e especial.
É, pois, caso de decretar a expulsão do arguido.
Em face do exposto, a pena acessória a aplicar ao arguido é fixada em 10 anos.
O recurso procede, pois, nestes moldes.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente provido o recurso interposto pelo Ministério Público nos seguintes moldes:
1.1. Determina-se a eliminação, na matéria de facto não provada, das alíneas a), b) e c).
1.2. Determina-se que sejam aditados à matéria provada factos provados sob os pontos 7.a, 7.b e 7.c, com a seguinte redação:
7.a. O arguido tinha conhecimento e transportava treze placas de cocaína na mala e uma placa de cocaína na mochila.
7.b. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes da substância que detinha, que aceitou transportar por via aérea, para ser posteriormente comercializado, pretendendo obter nessa transação montante pecuniário de valor não apurado.
7.c. O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que a mera detenção, transporte e a comercialização de cocaína eram proibidos e puníveis por lei penal.
1.3. Revoga-se o acórdão recorrida, condenando-se o arguido AA como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 75/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B, anexa a esse diploma, na pena de 8 anos de prisão, mais se o condenando na pena acessória de expulsão do território de Portugal por 10 anos.
Sem custas.
O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas de todos os Juízes apostas eletronicamente – art.º 94º, nº 2, do CPP.
Lisboa, 8 de abril de 2025
Ana Cristina Cardoso
João Grilo Amaral
Sandra Oliveira Pinto
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1. A menção a este nome será certamente lapso de escrita, que não afeta a decisão.