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RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
ATENTADO À SEGURANÇA DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO
PRISÃO PREVENTIVA
PRESSUPOSTOS
Sumário
I- Os factos fortemente indiciados, nos termos em que ocorreram, levam-nos a concluir, como fez o tribunal recorrido, que o recorrente agiu “com enorme desfaçatez e com um incompreensível sentimento de impunidade” e, acrescentamos, com indisfarçável desprezo pela vida e integridade física de quantos o rodeiam – constituindo tais factos um reflexo da personalidade de quem os pratica, e, como tal, transmitem um forte e real perigo de continuação da atividade criminosa. II- O perigo de fuga, tal como considerou a decisão recorrida, é muito real e concreto – e não apenas por ser o arguido cidadão … (o que não foi, de resto, determinante na decisão proferida), mas sobretudo por ter o arguido demonstrado, com a conduta adotada, que está disposto a ações extremas para se furtar à ação da justiça. É que, precisamente, o arguido veio a ser detido, nos termos em que o foi, porque se pôs em fuga, na sequência de fiscalização pelas autoridades. III- A adequação e exequibilidade da OPHVE dependem sobretudo da capacidade dos arguidos para respeitarem as restrições que resultam da aplicação dessa medida, requisito que, no caso vertente, a ausência de espírito crítico evidenciada pelo arguido relativamente ao respetivo comportamento indicia não existir.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
No processo nº 234/24.2GELSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo de Instrução Criminal de Loures (Juiz 3), foi o arguido AA, filho de BB e CC, nascido em ........1994, natural da ..., solteiro, ... residente em ..., submetido a primeiro interrogatório judicial, em 23.12.2024, na sequência do qual foi determinada a sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva.
Inconformado, veio o arguido AA interpor recurso daquela decisão, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (após aperfeiçoamento1):
“(a) O Arguido, vem imputado a prática de crimes que no Código Penal, sai punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, não se subsumindo, sequer, à previsão do art.º 202.º, nº1, al. a) do CPP, que inibe a aplicação da medida de prisão preventiva no caso de imputação de crimes com pena de prisão de (máximo) 5 anos.
(b) Os direitos e o Direito, que o Juiz de Instrução tem como primeira função garantir, foram assim objetivamente cilindrados por uma promoção, validada a talhe de foice, que suscita análise sociológica, pela deterioração do funcionamento das instituições que demonstra e pela degradação dos valores inerentes ao Estado de Direito, de que dá respaldo.
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(c) Acresce que, não tendo o Arguido sido jamais condenada por qualquer ilícito, circunstância que, ainda que se provem os factos de que está indiciado, não poderá deixar de ser valorada a seu favor, não se vislumbra razão para que não viesse a ser suspensa na sua execução uma eventual pena de prisão que lhe viesse a ser aplicada, o que é, também, uma hipótese remota – que o despacho recorrido, pasme-se, nem sequer equaciona! – bastando consultar a jurisprudência relativas a casos semelhantes para assim concluir.
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(d) Passo curto se diga, ainda, que os “periculum libertatis”, baseiam-se em futurologia e, sobretudo, PRECONCEITO, não sendo sequer verdade o que consta do despacho recorrido, porventura sem culpa mas assim sendo induzido pela falsidade da indiciação, segundo o qual o Arguido não tem rendimentos conhecidos, uma vez que o Arguido está com contrato de trabalho em vigor!
(e) O perigo de fuga, funda-se na pura especulação fundada em preconceito que tem a sua origem no facto de se tratar de cidadão de outro país, podendo por isso fugir, nos antípodas do que se refere em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04-02-2016, tirado no Processo 150/14.6JBLSB-A.L1-9: «III - Não é por o arguido ser cidadão estrangeiro, bem como enfrentar a forte possibilidade de vir a ser condenado em pena efetiva de prisão, que se pode retirar, sem mais, o perigo de fuga.».
(f) Vai fugir, salvo o devido respeito, como e para onde, se lhe for imposta a apresentação periódica, cumulada com a proibição de se ausentar de território nacional, entrega do passaporte e apreensão do passaporte?
(g) Fugir, para quê, se como se disse, nem é de prever sequer a aplicação de uma pena de prisão efectiva a um arguido, jamais condenada por qualquer ilícito.
(h) Preconceitos que se estendem ao perigo de continuação da actividade criminosa, desde logo, porque é inverosímil que o arguido prossiga a actividade criminosa – equacionando que a é… - quando está já indiciada, não revelando (nem em abstrato, nem em concreto pela fundamentação da decisão recorrida), tal perigo de continuação da actividade criminosa.
(i) Aliás, cremos ser de meridiana clareza que tal perigo há-de ser forçosamente inferido de circunstância posteriores à prática dos factos indiciados, e não com recurso aos mesmos, ou a factos anteriores, sobre os quais, de resto, a decisão recorrida nada refere, bastando, para os debelar, inibir a Arguido de conduzir.
(j) Também quanto ao perigo de perturbação do inquérito, há que aferir, em concreto, a existência de fatos concretos, que se poderão consubstanciar na destruição ou falsificação de prova, intimidação de testemunhas, e não com a possibilidade abstracta e subjectivamente (i)motivada de tal ocorrer, como no caso dos autos ocorre, na mais clamorosa violação dos critérios fixados pela jurisprudência (Vg Ac. TRE de 14.01.2003, Proc. 2864/02-1 e Ac. TRL, de 22.11.2011, Processo n.º 1831/11.1TDLSB.B.L.115).
(k) De resto, “os abundantes meios de que dispõem hoje as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal para investigar os crimes e sobretudo a sua utilização diligente e inteligente são em geral bastantes para obstar a que o arguido possa por si perturbar o decurso do processo” (Germano Marques da Silva) o que significa que, neste estado da investigação, a assunção deste perigo, equivale a uma assunção de negligência no exercício das funções do M.P.
(l) E pasme-se: a aplicação de OPHVE, é afastada, pasme-se, com base no facto de «não satisfaria qualquer das necessidades cautelares, aduzindo-se que apenas sinalizaria uma fuga», olvidando que para que se acautelasse a possibilidade – não probabilidade, porque não está indiciada nenhuma – de fuga, bastaria reter o passaporte do Arguido, assim o impedindo de circular livremente, quer para o seu país de origem, quer mesmo intracomunitariamente, e recorrendo a um argumento para lá de caricato que redundaria na declaração de inutilidade da medida de coação de OPHVE a TODOS (absolutamente todos!) os casos em que tal medida é usada (porque o é!) para acautelar o perigo de fuga.
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(m) Em suma, a aplicação ao Arguido da medida de prisão preventiva, é desproporcionada, porque não obedece a qualquer pressuposto de necessidade, sendo bastante a obrigação de apresentação periódica, cumulada com a proibição de se ausentar de território nacional e de conduzir.
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(n) Foram violados os princípios da legalidade (arts 29.º, n.º 1, da CRP e 191.º, do CPP), excepcionalidade e necessidade (arts 27.º, n.º 3 e 28.º, n.º 2, da CRP e 193.º, do CPP), adequação e proporcionalidade (art. 193.º do CPP), como emanação do princípio da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, bem como, o disposto no art.º 204º do CPP.
Termos em que deverá o presente recurso ser admitido e em consequência ser a decisão recorrida, quanto à aplicação da medida de coação de prisão preventiva, ser revogada com estrondo, sendo substituída pela aplicação de obrigação de apresentação periódica, cumulada com a proibição de se ausentar de território nacional, entrega do passaporte e a proibição de conduzir ou, no limite, OPHVE,
Assim se fazendo sã e serena JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
O Ministério Público apresentou resposta2 ao recurso, pugnando pela respetiva improcedência, e extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“1. O Recorrente alega que a medida de coacção de prisão preventiva foi aplicada com base na existência de perigo de fuga, alegando ter sido invocado “apenas e designadamente” o facto de este ser ….
2. A fuga, ou intenção de subtracção, terá de ser inferida do conjunto de factos conhecidos, sendo necessário proceder a uma apreciação global de todas as circunstâncias relevantes.
3. A circunstância de um arguido ser estrangeiro é um dos aspectos concretos a atender na ponderação global da existência do perigo de fuga, a ser apreciado juntamente com todas as demais sob pena de discriminação com base na sua nacionalidade.
4. Fez o tribunal a quo a devida ponderação dos elementos indiciadores dos perigos que consigna, entre eles o perigo de fuga, não o justificando exclusivamente com a nacionalidade do arguido, como este alega, mas tendo essa circunstância em conta juntamente com outras, tais como as que resultam da factualidade que consubstancia o ilícito em causa, a sua gravidade e demais elementos relativos à sua situação pessoal, familiar, laboral, económica e psicológica, pelo que não assiste razão ao recorrente.
5. O Recorrente alega que medidas menos gravosas como o termo de identidade e residência, apresentações periódicas ou obrigação de permanência na habitação seriam suficientes para assegurar os fins do processo penal e a ordem pública.
6. Resulta do despacho recorrido a devida ponderação, tendo concluído que as medidas de coacção de apresentações periódicas ou obrigação de permanência na habitação não são adequadas a salvaguardar as exigências cautelares que o caso demanda nem a impedir que o arguido persista na actividade criminosa.
7. A colaboração que o arguido refere ter tido após o momento da detenção não é, por si só, suficiente para fazer cair os argumentos deduzidos no despacho recorrido, nomeadamente que é previsível que o arguido, confrontado com situações que lhe são desfavoráveis, proceda da forma que reiteradamente procedeu, furtando-se à justiça, sendo as demais medidas de coacção que não a prisão preventiva insuficientes para impedir tais intentos.
8. A medida de coacção aplicada mostra-se perfeitamente adequada, proporcional e necessária, tendo por referência os factos imputados ao arguido, a prova produzida até ao momento, os perigos identificados e as normas legais substantivas e adjectivas aplicáveis.
9. Vem o Recorrente requerer que seja solicitada a elaboração de perícia sobre a sua personalidade e de relatório social para fundamentar a decisão de alteração de medida de coacção.
10. Quanto à perícia sobre a personalidade, esta é determinada quando se mostra necessário fazer prova de determinados factos cuja aquisição probatória carece de conhecimentos técnicos ou científicos que o julgador não tem.
11. Contudo, não é claro o que pretende o Recorrente provar com tal exame, na medida em que nada foi invocado quanto à perigosidade do agente ou à existência de características psíquicas independentes de causas patológicas, de modo a fundamentar o exame que vem a requerer, entendendo o Ministério Público não existir fundamentação para a sua realização nesta sede.
12. No que respeita ao relatório social, a sua elaboração só deverá ocorrer se no desenrolar do processo tiverem havido alterações significativas aos pressupostos que determinaram a aplicação inicial da medida de coacção.
13. O Recorrente não vem apresentar qualquer alteração significativa ao circunstancialismo já analisado e ponderado em sede de primeiro interrogatório judicial e aplicação de medida de coacção, pelo que se mostra inútil a sua elaboração, entendendo o Ministério Público que não existe justificação para a sua realização.
14. A decisão a quo não merece qualquer reparo, encontrando-se bem fundamentada e de acordo com a lei, sendo a medida de prisão preventiva adequada, necessária e proporcional às necessidades que no caso se fazem sentir, à gravidade dos crimes em causa e à pena previsivelmente a aplicar em sede de julgamento, sendo a única capaz de acautelar os fortes perigos identificados.
Vossas Excelências contudo, e como sempre, farão JUSTIÇA.”
Nesta Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a resposta apresentada na 1ª instância e aditando:
“Do Auto de Notícia e prova produzida sobressai a gravidade dos factos praticados pelo arguido/recorrente, com correspondência em quatro crimes, um deles considerado criminalidade violenta [crime de resistência e coação sobre funcionário] e outro de atentado à segurança de transporte rodoviário, punível com pena superior a 3 anos de prisão, tal como sobressai a personalidade do arguido revelada com a sua prática: intempestiva, desrespeitosa, agressiva, egoísta e avessa ao direito e às regras, tudo como muito bem escalpelizou o Tribunal a quo.
Deste circunstancialismo decorrem os perigos que o Tribunal a quo identificou e que pretendeu acautelar, do qual não é demais assinalar ser muito elevado o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas atenta a elevada sinistralidade rodoviária que grassa em Portugal e aos sentimentos de impunidade e insegurança que gera na sociedade.
Pelo exposto, somos de parecer que o recurso não merece provimento.”.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer pronunciamento por parte do recorrente.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II. Objeto do recurso
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso3.
No caso, está em questão a prisão preventiva do arguido AA, designadamente, a verificação dos pressupostos legais necessários ao decretamento de tal medida de coação, questionando o recorrente a verificação dos pressupostos do artigo 204º do Código de Processo Penal, e reputando, ainda, violados os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
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III. Elementos do processo com relevo para a decisão
iii.1. Da decisão recorrida
O despacho que determinou a sujeição do arguido à medida de coação de prisão preventiva tem o seguinte teor:
“Indiciam fortemente os autos a prática pelo arguido dos factos e qualificação jurídica descritos no despacho de apresentação antecedente, cujo teor se dá por reproduzido, factos esses que integram ainda, a nosso ver, a prática pelo arguido de um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, p e p pelo art.º 290.º, n.º 1, al. d) e nº 2 do Código Penal. Acresce que, não se mostra cabalmente apurado e esclarecido, se o arguido é detentor de carta de condução ou de outro título válido que o habilite a conduzir veículos motorizados na via pública, em território nacional.
Tais factos resultam indiciados de acordo com a análise critica dos elementos de prova carreados para os autos e elencados no despacho de apresentação antecedente, nomeadamente no teor do Auto de notícia de fls. 4 a 7; fotos de fls. 8 e informação clínica de fls. 9 a 11.
Assim, resulta dos autos que nas circunstâncias de tempo e lugar descritos no auto de notícia, o arguido, para evitar ser fiscalizado no âmbito de uma operação de trânsito que estava a decorrer, efetuada por Militares da GNR que se encontravam no exercício das suas funções e devidamente identificados e uniformizados, e após lhe ter sido dirigida, por DD, Militar da GNR, ordem para parar o veículo que conduzia, com a matrícula AO-..-DR, de sua propriedade, o arguido parou o seu veículo e o ofendido e Militar da GNR DD, solicitou-lhe os documentos de identificação e a carta de condução, face ao que o arguido e encontrando-se o Militar posicionado lateralmente junto ao espelho retrovisor da porta do condutor do veículo conduzido pelo arguido, de forma repentina e num ato voluntário, virou a direção do veiculo para a esquerda e arrancou bruscamente, atingindo e arrastando o Militar da GNR DD, deliberadamente e com o intuito de o atropelar para fugir e não ser sujeito a fiscalização de trânsito.
O Militar da GNR DD, em consequência da descrita conduta do arguido, sofreu as lesões descritas na informação clínica de fls. 9 a 11, as quais se encontram ainda documentadas nas fotos de fls. 8, que o impedirão de exercer a sua atividade profissional, pelo menos durante duas semanas.
Confrontados com o atropelamento do colega e com a fuga aparatosa e a alta velocidade, encetada pelo arguido, os Miliares da GNR, Major EE, Comandante do Destacamento e o Cabo Chefe FF, ambos devidamente identificados e uniformizados, entraram numa viatura daquela policia devidamente caracterizada e identificada e encetaram perseguição ao arguido, mantendo sempre a sua marcha de emergência sinalizada e sem nunca o perder de vista.
Indiferente, o arguido continuou em fuga, percorreu a AE ... até ao nó de acesso a ..., localizado ao quilometro 16,3, em velocidade muito acima da legalmente permitida, e após a passagem superior (ponte) sobre a Auto Estrada e antes da praça das portagens, perdeu o controlo do veículo, despistou-se e embateu nas guardas laterais de segurança do lado direito da faixa de rodagem, danificando-as.
Após o descrito despiste, a viatura conduzida pelo arguido ficou parada e posicionada em sentido oposto ao da circulação naquela via de trânsito, ou seja, em sentido oposto ao sentido de trânsito naquela faixa de rodagem. Não obstante, o arguido prosseguiu a marcha do veículo, em velocidade superior à legalmente permitida, sempre em contramão, entrando no ramal de acesso a ... do nó da A….
Nem a aproximação da viatura da GNR, conduzida pelo militar EE, que surgiu à frente do veículo conduzido pelo arguido que continuava a circular em contramão, fez com que o arguido parasse ou abrandasse a velocidade do veículo que conduzia. Pelo contrário, o arguido acelerou ainda mais o seu veículo na direção do veículo policial, face ao que o referido Militar da GNR se viu forçado a virar a viatura para o lado direito da estrada, evitando assim o embate frontal com a viatura conduzida pelo arguido, que continuava a circular a alta velocidade, sempre em contra mão, indiferente ao facto de poder embater nos veículos que circulassem na auto estrada, e indiferente à possibilidade de causar um acidente rodoviário de graves proporções, criando um real e efetivo perigo para a vida ou integridade física de todas as pessoas que circulassem naquela via de trânsito onde o arguido seguia em contramão, a uma velocidade muito superior a 120 Km/hora, consciente e indiferente à elevada possibilidade de provocar uma colisão frontal com os veículos que pudessem circular no correto sentido de trânsito, na referida via da auto estrada, o que só por sorte não ocorreu, tendo o arguido perfeita noção de que a sua conduta era apta a provocar graves acidentes e a criar um elevado perigo para a vida e integridade física de todos os que circulassem naquela via, no correto sentido de trânsito.
O arguido circulou a alta velocidade em auto estrada, em sentido contrário ao sentido de trânsito, o que fez durante quase 1 KM (cerca de 800 metros), num contexto de perseguição policial, sendo perseguido por uma viatura policial que se encontrava devidamente identificada e que assinalava marcha de emergência, conduzida por Militares da GNR, devidamente identificados e uniformizados.
Foi devido à intervenção de uma segunda viatura policial, do Destacamento da GNR de ..., que se logrou parar o arguido e foi-lhe dada, pelos Militares da GNR, ordem para sair da viatura e deitar-se no solo com as mãos à vista, o que o arguido recusou e resistiu, levando a que fosse manietado e algemado, com recurso a força necessária para tanto.
Apurou-se que o arguido conduzia com uma TAS de 1,54 G/L; não tinha seguro de responsabilidade civil obrigatório para conduzir aquele veículo e o mesmo não tinha inspeção periódica válida.
O arguido conduziu da forma descrita, após ter ingerido bebidas alcoólicas e sabendo que conduzia sob o efeito do álcool, com perfeita noção que por isso, não se encontrava em condições para conduzir em segurança já que se encontrava com as aptidões física, mental e psicológica, afetadas, violando de forma dolosa as mais básicas regras de circulação rodoviária. Sabia ainda que não tinha seguro obrigatório de responsabilidade civil, para poder conduzir o referido veículo na via pública, e que o veículo não tinha a inspeção periódica válida, regras estradais que são básicas, do conhecimento geral e de cumprimento obrigatório para o comum dos cidadãos.
O arguido atropelou o Militar da GNR DD, que se encontrava no exercício das suas funções, devidamente uniformizado e identificado, o que fez propositadamente, causando-lhe as lesões descritas nos autos, para não ser fiscalizado no âmbito da operação de fiscalização de trânsito que estava a ser levada a cabo por Militares da GNR, impedindo o exercício de funções dos Militares da GNR, nas circunstâncias de tempo e lugar descritos no despacho de apresentação.
Após, o arguido encetou fuga ao volante do seu veículo, a velocidade muito superior a 120 Km/hora, indiferente ao facto de estar a ser perseguido por viatura policial identificada, que assinalava marcha de emergência, não parou mesmo quando foi confrontado com uma viatura policial que lhe surgiu pela frente, a qual teve de guinar para a berma evitando colidir com o veículo conduzido pelo arguido. O arguido continuou a conduzir em velocidade excessiva o que levou a que se tivesse despistado, levando a que o seu veículo tivesse ficado direcionado em sentido contrário ao sentido de trânsito daquela via da auto estrada.
Persistindo na fuga, o arguido continuou a conduzir o seu veículo em sentido contrário ao sentido de trânsito naquela via, o que fez durante cerca de 800 metros em plena auto estrada, tudo para não ser fiscalizado pelos militares da GNR, completamente indiferente a que, e de forma dolosa e consciente, a sua conduta era apta a causar graves acidentes de viação e que criava um considerável, real e efetivo perigo para a vida e integridade física de todas as pessoas que circulassem naquela auto estrada, no sentido de trânsito correto, incluindo dos próprios Militares da GNR que o perseguiam no cumprimento das suas funções.
O arguido prestou declarações, disse que encetou fuga ao volante do seu veículo, o que fez para não ser fiscalizado pela GNR, disse não se ter apercebido que atropelou um Militar da GNR e que se tal sucedeu, nunca foi sua intenção. Admitiu que tinha ingerido muitas cervejas pese embora não soubesse precisar a quantidade, mas que estaria certamente embriagado.
Disse que a sua carta de condução, …, está na posse do seu irmão, que reside em Loures, onde o arguido tinha estado momentos antes a beber cervejas, explicando que se dirigia para sua casa, na ..., e foi nesse percurso que se deparou com a operação de fiscalização de trânsito. Sabia que não tinha seguro obrigatório, nem inspeção periódica válida e que estava embriagado, por esse motivo encetou fuga conduzindo o seu veículo automóvel tal como descrito no despacho de apresentação, do que se arrepende e justifica por se encontrar num estado de instabilidade psicológica derivado de vários fatores pessoais, como o recente falecimento do seu progenitor.
Declarou que vive em Portugal há cinco anos; partilha um apartamento com um primo, na ...; tem 30 anos de idade; trabalha numa empresa de ….
O arguido, com 30 anos de idade, e apesar de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais, denota uma personalidade altamente avessa ao cumprimento de regras e do direito a que todos os cidadãos estão sujeitos, denotando grande desfaçatez e sentimento de impunidade ao agir nos termos supra descritos, de forma altamente censurável não só por saber que não cumpria a lei, ao não ter seguro de responsabilidade civil obrigatória, não ter inspeção periódica válida, e conduzir sob o efeito do álcool, mas também porque a sua conduta foi apta a provocar graves acidentes de viação com efetivo e real perigo para a vida e integridade física de terceiros, e ao resistir à detenção, como se pode concluir da factualidade que lhe é imputada e que se encontra fortemente indiciado.
Atenta a factualidade descrita, e a referida personalidade do arguido, completamente avessa ao cumprimento da lei, entendo que existe perigo de continuação da atividade criminosa, sendo de prever que o arguido persista em conduzir veículos automóveis na via pública, em incumprimento com a lei, e que continue a conduzir em estado de embriaguez, face à invocada pelo arguido, instabilidade emocional em que se encontraria, sendo de prever que o arguido proceda de igual forma caso se veja confrontado com fiscalizações policiais. Acresce que não se mostra cabalmente esclarecido se o arguido é detentor de carta de condução ou de título que o habilite a conduzir veículos automóveis na via pública.
Acresce que o local onde o arguido foi fiscalizado, não corresponde ao percurso que o arguido disse ter feito, ou seja, de casa do irmão, em …, para a sua casa, na ....
O arguido agiu com enorme desfaçatez e com um incompreensível sentimento de impunidade, já que conforme descrito, atropelou um militar da GNR e encetou uma perigosa fuga, por saber que conduzia sob o efeito do álcool; que não tinha seguro, nem inspeção periódica válidos.
Tais factos, traduzidos na violação groseira e de forma dolosa, de regras estradais e de segurança rodoviária, que são de tal forma básicas e cujo incumprimento colocam em risco a vida e integridade física de terceiros, sendo certo que o arguido não teve qualquer pejo em atropelar um militar da GNR, para encetar fuga do local da fiscalização e eximir-se à fiscalização a que estava prestes a ser sujeito. E mesmo sabendo que estava a ser perseguido por uma viatura policial, criando uma situação digna de um verdadeiro filme de ficção, sendo certo que tais factos não se podem analisar fora do real contexto da sinistralidade rodoviária em Portugal, que é o sexto país europeu com mais mortes na estrada.
Não podemos ser tolerantes nem coniventes com este tipo de crimes, no caso concreto, traduzido nos graves factos descritos no despacho de apresentação de que o arguido se acha fortemente indiciado, e não lhes conferirmos a sua verdadeira dimensão e gravidade. Os factos são muito graves, há que os considerar como tal, sendo indiferente que o arguido não tenha antecedentes criminais, e que da sua atuação não tenha resultado a morte de ninguém, face ao risco efetivamente criado pelo arguido com a condução nos termos supra descritos, causando um sério e elevado o risco para vida e integridade física de terceiros.
A elevada taxa de sinistralidade registada em Portugal com as inerentes e tristes consequências, e o elevado registo do número de acidentes com vitimas mortais e feridos graves, são sem dúvida causadores de grande perturbação da ordem e tranquilidade públicas, sendo cada vez mais comuns, neste pais de brandos costumes, situações como a destes autos, em que nitidamente há quem entenda que a lei portuguesa não lhes é aplicável e consequentemente, podem atuar como quiserem, sem lei, nem regras, de qualquer forma, e se preciso for, à custa da vida e segurança de terceiros, que parece não ter qualquer valor para o arguido, colocando em causa por nada, a segurança, vida e integridade física de todas as pessoas que cumprem a lei e que poderão vir a ser futuras vitimas de situações de elevado perigo causado por condutas semelhantes à do arguido, como sucede nestes autos, em que o arguido, de forma consciente e dolosa, sabendo que conduzia sob o efeito do álcool, que não tinha seguro de responsabilidade civil obrigatório, nem tinha efetuado inspeção periódica válida ao seu veículo, e por isso o mesmo circulava na via pública, sabe-se lá em que condições, completamente à margem da lei, e para se furtar a ser sujeito a fiscalização de trânsito, e persistindo em não acatar a lei, nem as mais básicas regras de vida em sociedade, encetou fuga ao volante do seu veículo, mesmo que para tanto pudesse causar vitimas colaterais, que para o arguido não é mais do que uma questão secundária, ou seja, para se furtar à fiscalização de trânsito, por forma a esconder todas as apontadas infrações, o arguido encetou fuga a alta velocidade, o importante era fugir mesmo que nessa fuga pudesse causar vitimas, como sucedeu como o Militar da GNR que foi atropelado e arrastado pelo veículo de fuga do arguido, e quando o arguido circulava a alta velocidade e em contramão na auto estrada, não poderia o arguido deixar de estar ciente que tal atuação era verdadeiramente perigosa e apta a causar acidentes graves, e caso que lhe surgissem veículos pela frente, que circulassem no correto sentido de trânsito, seguramente que causaria acidentes rodoviários, certamente com gravidade, a prever a violência de um embate frontal entre dois veículos que circulassem a uma velocidade média de 120 Km/hora, sendo certo que como se constatou, o arguido circulava a uma velocidade superior.
Toda a descrita situação é absolutamente inadmissível e não pode ser tolerada num Estado de Direito democrático, nenhuma entidade pode ser conivente com tal atuação criminosa, o tribunal considera que pelo facto de o militar da GNR, só por sorte, não ter ficado gravemente ferido, ou não ter falecido, e o facto de, por mera sorte, o arguido não ter causado um acidente grave que certamente teria graves consequências, e por não lhe serem conhecidos antecedentes criminais, que os factos cometidos pelo arguido são menos graves e até toleráveis, escamoteando-se a gravidade das suas condutas. Pelo contrário, o tribunal considera chocante e incrivelmente repugnante toda a atuação do arguido, não só pela forma absurda como nas circunstâncias descritas no despacho de apresentação, o arguido cometeu vários ilícitos criminais e contra ordenações, como em ato seguido, não teve pejo em fugir para se eximir à ação da justiça, mesmo que durante o processo pudesse causar graves acidentes de viação e ferir com gravidade os outros utentes da auto estrada e até ceifar vidas.
Ninguém fica indiferente aos números registados de sinistralidade rodoviária, e à perda de vidas de forma precoce, destroçando as famílias e a comunidade em geral. Por isso, os factos e os crimes de que o arguido se acha fortemente indiciados são muito graves, têm de ser levados a sério, há que mudar mentalidades e há que alertar a comunidade em geral e todos os potenciais prevaricadores, que factos como os que são objeto dos autos, são muito graves, intoleráveis e merecem uma especial censura, não podendo o Tribunal considera-los aceitáveis e “normalizados”, e muito menos que os perigos inerentes aos mesmos se salvaguardam com uma medida de coação também “normalizada” ou “estereotipada”, como a prevista no art.º 198.º do Código do Processo Penal, o que em nosso entender, consubstancia um verdadeiro convite à reincidência e à banalização de condutas graves e criminais como a destes autos, cometidas ao volante de um veículo automóvel, na via publica. Consideramos pois, que a tais factos, de enorme gravidade, não corresponderia por parte da justiça, uma medida de coação em conformidade e proporcional com essa gravidade, nem seria adequada a salvaguardar as exigências cautelares que o caso demanda, nem adequada a impedir que o arguido persista na atividade criminosa, na medida em que a gravidade da conduta e a energia criminosa manifestada na sua prática, inculcam a existência de uma personalidade efetivamente explosiva, sem qualquer tipo de inibidores que, se deparada com situações de conflito (independentemente da (ir)relevância dos motivos), adota atitudes extremadas.
Concluindo-se que a gravidade dos factos objeto dos autos, de que o arguido se acha fortemente indiciado, sendo certo que não está devidamente esclarecido se o arguido é efetivamente titular de carta de condução ou de titulo que o habilite a conduzir veículos motorizados na via pública, em território nacional, e os perigos inerentes a tal conduta criminosa, não ficam acautelados com a aplicação ao arguido da medida de coação de apresentações periódicas, medida de coação, completamente inócua de consequências na vida do arguido, que não lhe permite interiorizar o enorme desvalor da sua conduta, nem acautela os perigos de continuação da atividade criminosa, sendo de prever que o arguido continue a praticar factos semelhantes aos dos presentes autos, sendo certo que o arguido durante muito tempo conduziu o veículo identificado nos autos, sem possuir seguro obrigatório de responsabilidade civil, e sem possuir inspeção periódica válida que existe para assegurar que os veículos que circulam nas estradas portuguesas, reúnem condições de segurança para aí circularem, garantido segurança de todos os utentes das estradas portuguesas.
A tudo isso acresce o posterior comportamento do arguido, que para se furtar a uma fiscalização de trânsito, atropelou um Militar da GNR, encetou fuga que culminou numa perseguição policial, em que o arguido dolosamente conduziu de forma perigosa, em velocidade muito superior à legalmente permitida, o que levou a que se despistasse, acelerou na direção de um veículo policial, com o qual só não colidiu porque este se desviou, conduziu durante quase um KM em contramão, na auto estrada, sabendo que com tal conduta criava um real e efetivo perigo a todos os condutores que circulassem naquela via da auto estrada, consciente que colidiria com os veículos que lhe surgissem pela frente, e que poderia causar graves acidentes de viação.
De acordo com a informação prestada pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (Relatório de Sinistralidade), em 2023 foram fiscalizados 177,7 milhões de veículos.
As infrações apuradas ascenderam a 1,6 milhão, o que representa um crescimento de 10,3% face ao ano anterior.
Relativamente à tipologia de infrações, 58,1% do total registado em 2023 foi referente a excesso de velocidade. Verificaram-se aumentos em todas as tipologias de infrações, destacando-se, para além da ausência de seguro e da inspeção periódica obrigatória (+79,5% e +38,0%, respetivamente), as relativas aos sistemas de retenção para crianças (+10,6%).
Relativamente à condução sob o efeito do álcool, em 2023, foram submetidos ao teste de pesquisa de álcool 2,3 milhões de condutores, um aumento de 26,5% comparativamente a 2022. A taxa de infração (nº de infrações por álcool/nº de testes efetuados) desceu de 1,9% em 2022 para 1,7% em 2023, numa cifra quase nada expressiva.
A criminalidade rodoviária, medida em número total de detenções, aumentou 24,2% por comparação com 2022, atingindo 40,6 mil condutores. Do total, 54,9% deveu-se à condução sob o efeito do álcool (+26,2%), seguindo-se 36,9% por falta de habilitação legal para conduzir (+34,8%).
De janeiro a julho de 2024 foram registados 21.486 acidentes com vítimas, 272 vítimas mortais, 1.543 feridos graves e 24.974 feridos leves no Continente e nas Regiões Autónomas.
Estes dados dizem respeitos às vítimas mortais cujo óbito foi declarado no local do acidente ou a caminho do hospital.
Assim, no dia dos factos aqui em causa, dia 22 de dezembro de 2024, só no distrito de Lisboa registaram-se 45 acidentes, uma vítima mortal; 3 feridos graves e 18 feridos ligeiros. A nível nacional, ocorreram, apenas no referido dia, 307 acidentes, com duas vítimas mortais, 9 feridos graves e 90 feridos ligeiros.
No ano de 2023, ocorreram 36.595 acidentes, que causaram 479 vítimas mortais; 2.646 feridos graves e 42.890 feridos ligeiros.
Estes números são assustadores e o assunto é muito sério, um dos grandes fatores da sinistralidade é a associação do consumo de álcool à condução, para além do excesso de velocidade, pelo que, e por tudo o que já se referiu, há que trazer para este triste contexto da sinistralidade rodoviária em Portugal, a atuação do arguido e a sua inerente gravidade e a forma temerária, inconsequente e o enorme sentimento de impunidade com que agiu, com a certeza que não se pode ser conivente com os crimes cometidos pelo arguido e escamotear a sua gravidade só porque não morreu ninguém ou porque o arguido não tem antecedentes criminais.
Ora os factos aqui em causa são muito graves, causadores de enorme perturbação da ordem e tranquilidade publicas, já que causam enorme repúdio social e sentimento de insegurança por parte da população, e há que os considerar como tal.
Acresce que o arguido tem nacionalidade ..., não tem qualquer ligação familiar a Portugal, para além de um irmão que o arguido referiu que vive em ..., de onde o arguido regressava no dia dos factos quando se deparou com a fiscalização policial, não sendo despiciendo que, confrontado com o presente processo e com uma mais que provável condenação, se coloque em fuga tal como sucedeu quando confrontado com uma mera fiscalização policial de trânsito.
Entende-se, face a tudo o que se supra se expôs, que a única medida adequada, suficiente e proporcional para acautelar os aludidos perigos, terá de ser a medida de coação privativa da liberdade, mesmo considerando a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido, atenta a gravidade dos factos por si indiciariamente praticados.
Por fim, importa referir que nem a medida de coação privativa de liberdade de O.P.H.V.E. terá o efeito contentor necessário, sobretudo tendo em conta o perigo de fuga.
Em face do exposto, de harmonia com as disposições conjugadas com os artigos 191.º, 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1, alíneas b) e d), 1.º, alínea j) e 204.º, alíneas a) e c) todos do Código de Processo Penal, determino que o arguido AA, aguarde os ulteriores termos do processo sujeito, para além do T.I.R. já prestado, às medida de coação de prisão preventiva.
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Emita mandados de condução do arguido ao Estabelecimento Prisional.
Notifique e comunique nos termos do art.º 194.º, n.º 10 do Código de Processo Penal.”
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iii.2. Dos factos considerados fortemente indiciados
Tal como reproduzidos no auto de 1º interrogatório judicial de arguido detido, os factos considerados fortemente indiciados na decisão recorrida são os seguintes:
“No dia 22 de dezembro de 2024, pelas 02h03, no decurso de ação de fiscalização devidamente sinalizada, através do corte total do trânsito que circulava na Auto estrada n. ...no sentido ..., ao quilometro 14, os condutores eram devidamente encaminhados para a área de serviço da ....
Nesse local, dentro de condições de iluminação ideias a fim de garantir a segurança dos militares e das pessoas fiscalizadas, era da dada ordem de paragem pelos militares que compunham a equipa de fiscalização.
Nessas circunstâncias de tempo e lugar o arguido conduzia a viatura de matrícula -..- no referido sentido.
Dessa forma, foi dada ordem de paragem ao arguido pelo militar Cabo-Chefe DD, devidamente uniformizado e identificado como militar da Guarda Nacional Republicana.
Ato continuo, solicitados os documentos de identificação e carta de condução pelo militar identificado, o arguido declarou que não tinha a carta.
Face às declarações prestadas pelo arguido, o militar da GNR solicitou-lhe que estacionasse o veículo em parque apropriado contiguo ao local de paragem inicial, para que pudesse acompanhar o militar e informaticamente realizar verificação da documentação em falta, e efetuar o teste de álcool.
Neste momento, encontrando-se o militar posicionado lateralmente junto ao espelho retrovisor da porta do condutor, o arguido de forma repentina, num ato voluntário, virou a direção do veículo para a esquerda e arrancou bruscamente, atingindo e arrastando o militar deliberadamente, no intuito de o atropelar e conseguir ausentar-se do local onde decorria fiscalização
De imediato, os miliares que se encontravam no local foram ao encontro do seu colega, a fim de se aperceberem da sua situação, tendo os miliares Major EE, Comandante do Destacamento e o Cabo Chefe FF, ambos devidamente identificado e uniformizados entraram numa viatura daquela policia devidamente caracterizada e encetaram seguimento ao arguido, mantendo sempre a sua marcha sinalizada e sem nunca o perder de vista.
O condutor do veículo em fuga percorreu a AE nº … até ao nó de acesso a ..., localizado ao quilometro 16,3), em velocidade consideravelmente excessiva, muito acima da permitida, após passar a passagem superior (ponte) sobre a Auto estrada e antes da praça das portagens, perdeu o controlo do veículo despistando-se, embatendo nas guardas laterais de segurança da via do lado direito.
Após o embate, a viatura conduzida pelo arguido ficou parada e posicionada em sentido oposto ao da circulação.
O arguido prosseguiu a marcha do veículo, sempre em contramão, entrando no ramal de acesso a ... do nó da A…, através da via de desaceleração.
Após visualizar a viatura da GNR, conduzia pelo militar EE a aproximar-se do seu veículo, o arguido arrancou com a viatura de forma brusca, em sentido contrário ao do trânsito e em direcção ao veículo policial.
Como o arguido não abrandou, o militar da GNR viu-se forçado a virar a viatura para o lado direito da estrada, evitando assim o embate frontal entre os veículos, enquanto o arguido prosseguiu no mesmo sentido contrário ao da circulação.
O arguido conduziu o veiculo cerca de 800m, da autoestrada … no sentido contrário ao da normal circulação, até ser interceptado por outro veículo da Guarda Nacional Republicana devidamente identificado - veículo do destacamento de intervenção de ... - que se deslocava para auxiliar os restantes colegas, altura em que conseguiram que o arguido parasse a viatura.
Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula AO-..-DR, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 1,54 g/l.
Como consequência directa da actuação do arguido, o militar ea GNR, Cabo–Chefe DD sofre hematomas e escoriações com hemorragia na região frontal à direita, trauma com dor no ombro direito.
Conhecia o Arguido a qualidade profissional dos militares da GNR, que se encontravam no exercício das suas funções e que o emprego de um veículo automóvel contra o referido militar, meio esse que é de per si, pela sua natureza, quando usado da forma como supra descrita, particularmente perigoso, capaz de colocar em perigo a integridade física e até a vida dos miliares, o que não o demoveu da prática de tais actos.
O arguido agiu com o propósito de conduzir o veículo no sentido contrário ao da circulação, conforme supra descrito, bem sabendo que dessa forma agia contra o direito, o que realizou e quis realizar.
O arguido conduzia o referido veículo em violação do respectivo limite de taxa de álcool no sangue admitida, não observando os mais elementares cuidados no exercício da condução automóvel.
Por força de se encontrar influenciado pelas bebidas alcoólicas que tinha ingerido antes de indicar a condução, o arguido não encontrava em condições de executar, com segurança, tal condução, uma vez que lhe reduzia consideravelmente as elementares faculdades psico-motoras necessárias ao exercício da condução automóvel, designadamente no que respeita à coordenação das funções de sensação, de percepção, de manter a atenção e à coordenação motora. E, nem por isso, se absteve de conduzir aquele veículo nas circunstâncias acima referidas.
De facto, o arguido consciente do perigo inerente ao facto de ir conduzir veículo automóvel etilizado e em sentido contrário ao da circulação, admitiu que podia causar um acidente e provocar lesões no corpo de terceiros e fazer perigar a vida de terceiros, que circulavam nas vias públicas por onde o arguido viesse a circular, querendo actuar nos moldes descritos apesar de consciente do perigo criado e conformando-se com esse perigo.
O arguido agiu com o propósito de desobedecer à ordem de paragem que lhe foi dada pelos guardas da GNR, cuja qualidade conhecia, e de impedir que estes levassem a cabo a sua missão de o fiscalizar, no exercício das suas funções, bem sabendo que ao conduzir o referido veículo contra o Guarda da GNR atentava contra a sua integridade física, o que quis e fez com intuito de se opor ao comando que pelo mesmo lhe foi dirigido, bem como a que este praticasse o acto compreendido na sua função de agente policial, por forma a colocar em causa a autoridade subjacente ao mesmo.
O arguido, ao agir da forma descrita, representou como possível que em consequência da sua conduta poderia ferir e causar dor ao corpo do Guarda da GNR cuja qualidade conhecia e actuou conformando-se com tal resultado.
Sabia que conduzia o veículo na via pública depois de ter ingerido álcool em quantidade que lhe poderia determinar uma TAS igual ou superior a 1,20 gr./l, o que considerou possível e aceitou.
Agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”
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IV. Fundamentação
Insurge-se o recorrente por ter sido sujeito à medida de coação de prisão preventiva, por via da decisão proferida em 24.12.2024. Invoca, para o efeito, inexistir qualquer perigo de fuga (na medida em que possui emprego certo, residência fixa e enquadramento familiar), como inexiste também perigo de perturbação do inquérito (tendo o arguido prestado toda a colaboração no âmbito da investigação), ou de continuação da atividade criminosa (já que se declarou arrependido).
Mais aduz que a medida de coação a que foi sujeito é desproporcional face aos atos praticados, e desnecessária ante as suas circunstâncias de vida, bastando-se as exigências cautelares com a imposição de obrigação de apresentação periódica, ou, no limite, obrigação de permanência na habitação.
Cumpre apreciar.
O direito à liberdade pessoal, na aceção de liberdade ambulatória, é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e também na Constituição da República Portuguesa.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III, proclama a validade universal do direito à liberdade individual e no artigo IX, que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso, admitindo, no artigo XXIX, apenas as limitações à liberdade individual que resultem da lei, para prossecução do reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e da satisfação das justas exigências da ordem pública.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) consagra o direito à liberdade pessoal, no seu artigo 5º, estabelecendo que ninguém pode ser dela privado, a não ser que seja preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal e que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.
Nos termos do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, todos têm direito à liberdade e à segurança, de harmonia com a consagração do direito à liberdade individual como um direito fundamental.
O direito fundamental a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é, porém, um direito absoluto, como os próprios instrumentos de direito internacional e a Constituição da República Portuguesa, admitem.
As medidas de coação são, justamente, meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias4.
A prisão preventiva é aplicável, quando estando fortemente indiciada a prática de algum dos crimes enumerados no artigo 202º do Código de Processo Penal, se verifique algum dos perigos previstos no artigo 204º do mesmo diploma.
Quanto aos pressupostos legais de carácter geral, (aplicáveis quer à prisão preventiva, quer a qualquer outra medida de coação diferente do TIR), referem-se à verificação de algum ou algum dos perigos enumerados nas alíneas a) a c) do artigo 204º do Código de Processo Penal: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação da investigação; c) Perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública ou de continuação da atividade criminosa – que não são de verificação cumulativa.
Quanto aos pressupostos de carácter específico, encontram-se estabelecidos no artigo 202º nº 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, e são cumulativos: a existência de fortes indícios da prática de crime; que o crime indiciado seja doloso; que o crime indiciado corresponda a criminalidade violenta ou seja punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.
E é, no elenco de medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, a mais gravosa para os direitos fundamentais do arguido, dado implicar a total restrição da sua liberdade individual.
Por tal razão tem natureza subsidiária e excecional, o que significa que só deve ser aplicada, se todas as restantes medidas se mostrarem inadequadas ou insuficientes para a salvaguarda das exigências processuais de natureza cautelar que o caso requeira, concretamente, para a aquisição e conservação dos meios de prova e para garantir a presença do arguido nos atos processuais, sobretudo, na audiência de discussão e julgamento.
Deve, igualmente, à semelhança das restantes medidas de coação, com exceção do Termo de Identidade e Residência, ser proporcional à gravidade do crime e às sanções que, num juízo de prognose em relação ao julgamento, virão, possivelmente, a ser aplicadas.
É o que decorre das normas contidas nos artigos 191º, nº 1, 193º e 204º do Código de Processo Penal, de acordo, aliás, com os princípios constitucionais consagrados nos artigos 18º, nº 2, 27º e 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
O princípio da adequação das medidas de coação exprime a exigência de que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a concreta medida de coação imposta ou a impor. Afere-se por um critério de eficiência, partindo da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coação e a previsível capacidade de esta o neutralizar ou conter.
O princípio da necessidade tem subjacente uma ideia de exigibilidade, no sentido de que só através da aplicação daquela concreta medida de coação se consegue assegurar a prossecução das exigências cautelares do caso e não de outra qualquer ou da não aplicação de qualquer delas.
O princípio da proporcionalidade assenta num conceito de justa medida ou proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coação escolhida.
O artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa prevê que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e, tal como em todos os demais campos de aplicação, em matéria de aplicação das medidas de coação o princípio da proporcionalidade também terá de ser decomposto «em três subprincípios constitutivos: o princípio da conformidade ou da adequação; o princípio da exigibilidade ou da necessidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito»5.
Assim, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, é imperioso que, em cada fase do processo, exista uma relação de idoneidade entre a medida aplicada ou a aplicar e a importância do facto imputado, bem assim, a sanção que se julga que pode vir a ser imposta, ou seja, tem de existir uma correlação entre a privação da liberdade individual que a medida de coação implica, a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que, previsivelmente, virá a ser aplicada ao arguido.
Ora, estes princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade que regem a sua aplicação são uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência constante no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
Tanto no que se refere à aplicação das medidas de coação em geral, como, muito especialmente, no que concerne às medidas de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação, às quais é expressamente atribuído carácter excecional ou subsidiário, terão, pois, necessariamente, de obedecer a estes princípios constitucionais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 18º, 27º e 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa6.
É no ponto de equilíbrio entre os direitos em confronto – o direito fundamental à liberdade individual e o da realização da justiça penal (na medida em que a aplicação da prisão preventiva, como de qualquer outra medida de coação, apenas serve para garantir o normal desenvolvimento do procedimento criminal e obstar a que o arguido se exima à execução da previsível condenação), que se garante o respeito pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e se impede o livre arbítrio (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.01.20197).
Feitas estas considerações de carácter geral, que hão de ser tidas em conta na verificação da existência dos pressupostos de que depende a aplicação das medidas de coação impostas ao arguido recorrente, é tempo de nos debruçarmos sobre os concretos aspetos assinalados nas conclusões extraídas da motivação do recurso do arguido. (dos fortes indícios do cometimento do crime imputado)
O recorrente não discute a indiciação considerada na decisão recorrida, seja no que se refere aos factos, seja no tocante ao respetivo enquadramento jurídico.
Importa, por isso, ter em conta que se considerou fortemente indiciado o cometimento pelo arguido, em autoria material e concurso efetivo, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º, n.ºs 1 e 2, por referência ao artigo 386º, ambos do Código Penal, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º do Código Penal, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291º, nº 1 do Código Penal, e um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, previsto e punido pelo artigo 290º, nº 1, alínea d) e nº 2 do Código Penal (podendo, naturalmente, discutir-se se este último ilícito não afastará a integração dos factos no crime de condução perigosa – matéria que não foi tratada na decisão recorrida, mas que o recorrente também não trouxe à apreciação deste Tribunal).
Em face do acervo probatório disponível nos autos, não vemos razões para discordar da avaliação das circunstâncias apuradas feita pelo Tribunal a quo, entendendo-se, designadamente no que releva para o preenchimento dos requisitos do artigo 202º do Código de Processo Penal, que se mostra fortemente indiciado, pelo menos, o cometimento dos crimes de resistência e coação sobre funcionário, condução de veículo em estado de embriaguez e atentado à segurança de transporte rodoviário, previstos e punidos nos termos dos artigos 347º, 292º e 290º, todos do Código Penal.
O crime de resistência e coação sobre funcionário é punido com pena de prisão de um a cinco anos, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez é punido com pena de prisão até um ano, ou com pena de multa até 120 dias, e o crime de atentado à segurança de transporte rodoviário agravado (que foi o considerado fortemente indiciado) é punido com pena de prisão de dois a oito anos. O crime de resistência e coação sobre funcionário mostra-se, ainda, abrangido no conceito de criminalidade violenta, por força do disposto no artigo 1º, alínea j) do Código de Processo Penal.
É, pois, de considerar demonstrada a existência de “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos” e, também da “prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta”, nos termos exigidos pelo artigo 202º, nº 1, alíneas a), b) e d) do Código de Processo Penal, pelo que é admissível a aplicação da medida de coação de prisão preventiva. (dos pressupostos para a prisão preventiva)
Preenchido o pressuposto específico do artigo 202º, do Código de Processo Penal, vejamos agora os pressupostos constantes do artigo 204º do mesmo diploma legal, em que se fundou o Tribunal a quo para justificar a prisão preventiva do recorrente (que considerou verificados os perigos de fuga e de continuação da atividade criminosa, contemplados nas alíneas a) e c) do preceito citado).
O recorrente, afirma não se verificar nenhum desses perigos (ou qualquer outro), convocando, por um lado, o seu enquadramento familiar e profissional e ausência de antecedentes criminais, e, por outro, o seu arrependimento e colaboração com a investigação.
Afigura-se-nos que não lhe assiste razão.
Nesta matéria, ponderou o Tribunal recorrido, entre o mais, que “O arguido, com 30 anos de idade, e apesar de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais, denota uma personalidade altamente avessa ao cumprimento de regras e do direito a que todos os cidadãos estão sujeitos, denotando grande desfaçatez e sentimento de impunidade ao agir nos termos supra descritos, de forma altamente censurável não só por saber que não cumpria a lei, ao não ter seguro de responsabilidade civil obrigatória, não ter inspeção periódica válida, e conduzir sob o efeito do álcool, mas também porque a sua conduta foi apta a provocar graves acidentes de viação com efetivo e real perigo para a vida e integridade física de terceiros, e ao resistir à detenção, como se pode concluir da factualidade que lhe é imputada e que se encontra fortemente indiciado.
Atenta a factualidade descrita, e a referida personalidade do arguido, completamente avessa ao cumprimento da lei, entendo que existe perigo de continuação da atividade criminosa, sendo de prever que o arguido persista em conduzir veículos automóveis na via pública, em incumprimento com a lei, e que continue a conduzir em estado de embriaguez, face à invocada pelo arguido, instabilidade emocional em que se encontraria, sendo de prever que o arguido proceda de igual forma caso se veja confrontado com fiscalizações policiais.”
Mais se considerou, na decisão recorrida, que “o arguido, de forma consciente e dolosa, sabendo que conduzia sob o efeito do álcool, que não tinha seguro de responsabilidade civil obrigatório, nem tinha efetuado inspeção periódica válida ao seu veículo, e por isso o mesmo circulava na via pública, sabe-se lá em que condições, completamente à margem da lei, e para se furtar a ser sujeito a fiscalização de trânsito, e persistindo em não acatar a lei, nem as mais básicas regras de vida em sociedade, encetou fuga ao volante do seu veículo, mesmo que para tanto pudesse causar vitimas colaterais, que para o arguido não é mais do que uma questão secundária, ou seja, para se furtar à fiscalização de trânsito, por forma a esconder todas as apontadas infrações, o arguido encetou fuga a alta velocidade, o importante era fugir mesmo que nessa fuga pudesse causar vitimas, como sucedeu como o Militar da GNR que foi atropelado e arrastado pelo veículo de fuga do arguido, e quando o arguido circulava a alta velocidade e em contramão na auto estrada, não poderia o arguido deixar de estar ciente que tal atuação era verdadeiramente perigosa e apta a causar acidentes graves, e caso que lhe surgissem veículos pela frente, que circulassem no correto sentido de trânsito, seguramente que causaria acidentes rodoviários, certamente com gravidade, a prever a violência de um embate frontal entre dois veículos que circulassem a uma velocidade média de 120 Km/hora, sendo certo que como se constatou, o arguido circulava a uma velocidade superior.”
E conclui, em consequência, que “a tais factos, de enorme gravidade, não corresponderia por parte da justiça, uma medida de coação em conformidade e proporcional com essa gravidade, nem seria adequada a salvaguardar as exigências cautelares que o caso demanda, nem adequada a impedir que o arguido persista na atividade criminosa, na medida em que a gravidade da conduta e a energia criminosa manifestada na sua prática, inculcam a existência de uma personalidade efetivamente explosiva, sem qualquer tipo de inibidores que, se deparada com situações de conflito (independentemente da (ir)relevância dos motivos), adota atitudes extremadas”, pelo que “a única medida adequada, suficiente e proporcional para acautelar os aludidos perigos, terá de ser a medida de coação privativa da liberdade, mesmo considerando a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido, atenta a gravidade dos factos por si indiciariamente praticados”.
Não discordamos desta apreciação.
Os factos fortemente indiciados, nos termos em que ocorreram, levam-nos a concluir, como fez o tribunal recorrido, que o recorrente agiu “com enorme desfaçatez e com um incompreensível sentimento de impunidade” e, acrescentamos, com indisfarçável desprezo pela vida e integridade física de quantos o rodeiam – constituindo tais factos um reflexo da personalidade de quem os pratica, e, como tal, transmitem um forte e real perigo de continuação da atividade criminosa.
Por outro lado, o perigo de fuga, tal como considerou a decisão recorrida, é muito real e concreto – e não apenas por ser o arguido cidadão …8 (o que não foi, de resto, determinante na decisão proferida), mas sobretudo por ter o arguido demonstrado, com a conduta adotada, que está disposto a ações extremas para se furtar à ação da justiça. É que, precisamente, o arguido veio a ser detido, nos termos em que o foi, porque se pôs em fuga, na sequência de fiscalização pelas autoridades.
A atitude adotada não poderia ser mais eloquente.
O comportamento denunciado nos autos é, pela sua própria natureza, gravíssimo – e que as mencionadas circunstâncias sejam menorizadas pelo respetivo agente, ao considerar que “sempre colaborou com as autoridades”, “manifestou-se arrependido por todo o ocorrido, demonstrando que o caráter pedagógico e repressivo já fora atingido, e as chances de tornar a repetir os comportamentos fustigados são baixíssimos” e que, por isso, “salta aos olhos que a manutenção da prisão preventiva, além de não ser proporcional aos fundamentos apresentados, tem impacto negativo na vida do recorrente, prejudicando a sua estabilidade profissional e social”, constitui, em si, clara demonstração de que existe um perigo sério de que possa ser repetido e, como justamente se considerou na decisão recorrida, comporta um risco intolerável para a sociedade.
Recordamos, a propósito, que a verificação dos requisitos do artigo 204º do Código de Processo Penal não é cumulativa, pelo que basta a constatação da existência de um único dos perigos aí elencados para que seja admissível a aplicação da medida de coação de prisão preventiva – e a existência, muito concreta, dos perigos de fuga e de continuação da atividade criminosa está clara e exuberantemente demonstrada.
Por outro lado, a alegada inserção familiar do recorrente9 não é suscetível de afastar este perigo, pois que não representou a mesma qualquer efeito contentor, e nada nos autos aponta no sentido de qualquer mudança objetiva por parte do arguido, que nos faça concluir pelo respetivo reconhecimento do desvalor da sua ação, ou qualquer outro indício de que é possível um diferente juízo de prognose.
E estes perigos de fuga e de continuação da atividade criminosa não conseguem ser debelados através da medida de OPHVE, pois que a permanência na habitação não impediria, designadamente, a fuga do arguido. É que, como é sabido, a adequação e exequibilidade da OPHVE dependem sobretudo da capacidade dos arguidos para respeitarem as restrições que resultam da aplicação dessa medida, requisito que, no caso vertente, a ausência de espírito crítico evidenciada pelo arguido relativamente ao respetivo comportamento indicia não existir.
Acresce que, os factos acima descritos integram o conceito de criminalidade violenta (artigo 1º, alínea j) do Código de Processo Penal) atingindo bens jurídicos estruturantes, e fortemente valorados pela sociedade.
Deste modo, considerando os concretos contornos da atuação em apreço, com destaque para o flagrante desrespeito pela vida e integridade física dos agentes da autoridade, mas também de todos os utentes do espaço comum, aliada à ausência de reconhecimento da gravidade de tais comportamentos, levam-nos a concluir existir, também, um real e concreto perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas a que urge por cobro, e que a manutenção do arguido em OPHVE não é suficiente para o acautelar.
No que tange à proporcionalidade da medida aplicada, importa ter em conta que, face à gravidade dos atos praticados, é de prever que ao arguido venha a ser aplicada pena de prisão efetiva, mesmo tendo em conta a ausência de antecedentes criminais. É errado considerar que, por se tratar de uma primeira ofensa, nunca lhe virá a ser imposta prisão efetiva.
Concedemos que, na prática judiciária, é comum que um indivíduo que cometa pela primeira vez um crime de condução de veículo em estado de embriaguez não seja condenado em pena de prisão. O caso muda de figura, porém, quando numa mesma noite se acumulam crimes de resistência e coação sobre funcionário e atentado à segurança de transporte rodoviário, para mais nos moldes em que os mesmos foram praticados pelo arguido. Como, com inteira justiça, se considerou na decisão recorrida, os atos praticados são gravíssimos, causando justificado horror na sociedade, não podendo os Tribunais da República ficar indiferentes a tais comportamentos, ou branqueá-los com a ausência de antecedentes criminais. É, pois, altamente previsível que ao arguido venham a ser aplicadas, em julgamento, penas de prisão efetiva.
Adicionalmente, importa ter em conta que não pode este tribunal de recurso determinar a realização de qualquer perícia sobre a personalidade do arguido ou a elaboração de relatório social, tendo em vista apurar novos factos, não tidos em conta na decisão proferida em 1ª instância. O recurso é um remédio jurídico – e a apreciação do Tribunal ad quem incide, necessariamente, sobre a decisão proferida na 1ª instância, tendo em consideração os mesmos dados que se apresentaram ao Tribunal a quo. Porém, como é óbvio, as medidas de coação estão sempre subordinadas à cláusula rebus sic stantibus, nos termos do artigo 213º do Código de Processo Penal, pelo que, alterados os elementos dos autos, quanto à indiciação ou quanto às exigências cautelares, o tribunal, oficiosamente ou mediante requerimento, não deixará de reponderar a situação – mas uma tal pretensão terá de ser colocada perante a 1ª instância, com indicação das circunstâncias que, eventualmente, se tenham alterado.
No quadro presente, perante a natureza e circunstâncias dos crimes e personalidade do arguido neles revelada, fazendo um juízo de prognose quanto à perigosidade social do recorrente, consideram-se efetivamente verificados, em concreto, os aludidos perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa, e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, previstos nas alíneas a) e c) do artigo 204º do Código de Processo Penal.
Nestes termos, afigura-se que, no caso em apreço, tal como o refere o Tribunal a quo, a prisão preventiva é a única medida que obstará aos perigos já supra enunciados, e por isso é aquela que se mostra adequada e proporcional, sendo insuficiente para acautelar tais perigos qualquer medida não privativa da liberdade, tal como o é também a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita aos meios de vigilância eletrónica.
A gravidade objetiva dos crimes que vêm indiciados e a previsibilidade de condenação em pena de prisão efetiva justificam, do ponto de vista da proporcionalidade, a imposição da prisão preventiva, a qual se mostra, por isso, proporcional à gravidade dos crimes fortemente indiciados e às sanções para os mesmos legalmente previstas.
Em conclusão, a decisão recorrida mostra-se suficientemente fundamentada e encontram-se preenchidos os pressupostos, quer os de carácter geral quer os de carácter específico, legalmente exigidos para que ao arguido recorrente pudesse ser aplicada a medida de coação de prisão preventiva, medida essa que, de entre o elenco das medidas de coação que a lei prevê, é a única que, por ora, se mostra capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares que o caso requer, pelo que o despacho impugnado não violou qualquer normativo legal ou constitucional, designadamente os artigos 32º da Constituição da República Portuguesa, 191º, nº 1, 193º, 202º e 204º, todos do Código de Processo Penal, nem os princípios da proporcionalidade, adequação e subsidiariedade.
Assim, é de negar integral provimento ao recurso, mantendo-se o recorrente em prisão preventiva.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo que determinou a sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
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Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.
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Lisboa, 08 de abril de 2025 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Ana Lúcia Gordinho
Pedro José Esteves de Brito
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1. As conclusões apresentadas na sequência do convite dirigido ao recorrente por este Tribunal apresentam ligeiras divergências em relação ao teor da motivação (sobretudo no tom do discurso), com acrescentos que não constavam da motivação originalmente apresentada (nomeadamente, no que se reporta às normas alegadamente violadas), resultando claro que o recorrente aproveitou o ensejo para «aperfeiçoar» o próprio recurso, o que bem sabe estar-lhe legalmente vedado – ainda assim, face à matéria em discussão, e atento o teor da motivação do recurso, não se configura tal desconformidade como motivo de imediata rejeição.
2. A resposta do Ministério Público na 1ª instância é anterior à apresentação das conclusões do recurso (neste Tribunal), existindo, em consequência, ligeiro desfasamento, face ao que depois veio a ser alegado – naturalmente que se terá em conta o que consta da motivação, e o que dela ressuma para as conclusões (e não mais).
3. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
4. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 254.
5. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 264.
6. José António Barreiros, As Medidas de Coacção e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal, Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª edição, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª edição, volume II, pág. 250; Leal-Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, vol. 1, 3ª edição, pág. 1270.
7. No processo nº 65/19.1JBLSB-A.L1-3, relatado pela Desembargadora Cristina Almeida e Sousa. No mesmo sentido, vd., ainda, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19.06.2019, no processo nº 207/18.4PDBRR.L1-3, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira, e de 07.01.2016, no processo nº 576/14.5GEALRF.L1-9, relatado pelo, então, Desembargador Antero Luís, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
8. O que, sem dúvida, é suscetível de facilitar a concretização da fuga, por poder dispor de apoio fora do país, que outros, em idênticas circunstâncias, não teriam.
9. Diz-se, na decisão recorrida, que o arguido “vive em Portugal há cinco anos; partilha um apartamento com um primo, na ...; tem 30 anos de idade; trabalha numa empresa de …”.