I - Na tipificação do n.º 1 do art. 176.º do CP, ao nível do bem jurídico protegido, importa distinguir as várias situações aí previstas. Assim, as als. a) e b), as quais implicam um contacto directo com menor, protegem um bem jurídico pessoal (liberdade e a autodeterminação sexual) e as als. c) e d), as quais não implicam contacto directo com menor, protegem um bem jurídico supra-individual ou comunitário (proibição do comércio e proliferação de material pornográfico com menores) e indirectamente a liberdade e a autodeterminação sexual do menor.
II - O crime de trato sucessivo é uma figura jurídica criada pela jurisprudência e pela doutrina, associado a uma actividade criminosa (inicialmente criado para o tráfico de estupefacientes), na qual é difícil quantificar ou isolar os actos criminosos praticados pelo agente e na qual não se verificam os pressupostos do crime continuado.
III - A nível jurisprudencial, admitindo-se o crime de trato sucessivo, a sua caracterização, para uns, assenta numa “unidade resolutiva” e para outros deve resultar da “reiteração” dos actos praticados que devem resultar da estrutura do tipo legal. A construção da figura do crime de trato sucessivo assenta, pois, numa unidade resolutiva, a qual tem como pressuposto uma actividade.
IV - Tal como no tráfico de estupefacientes, as als. c) e d) do n.º 1 do art. 176.º do CP, estão estruturadas por referência a várias actividades e modalidades de acção. Na al. c) estão em causa as actividades de “Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir, ceder ou disponibilizar a qualquer título ou por qualquer meio” materiais pornográficos e na al. d) as actividades de “Adquirir, detiver ou alojar materiais previstos na al. b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder”, os mesmos materiais pornográficos.
V - Sendo a estrutura do crime de tráfico de estupefacientes e do crime de pornografia de menores, p. e p. nas als. c) e d) do art. 176.º do CP idêntica, nada justifica um tratamento diverso do ponto de vista do concurso, porquanto nenhum deles protege directamente bens eminentemente pessoais.
IV - Em todos os crimes tipificados por referência a actividades, nos quais estejam em causa várias modalidades de acção e actos reiterados e quando não estejam em causa, ao nível do bem jurídico, bens eminentemente pessoais, nada obsta a que os mesmos sejam considerados um único crime de trato sucessivo.
I. Relatório
1. Nestes autos, por acórdão de 8 de Maio de 2023, proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., foi o arguido AA, no que a este recurso interessa, absolvido da prática de 25 crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelos artigos 176.º, n.º 1, alínea c), e 177.º, n.º 7, do Código Penal, de 49 crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal; de 243 crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelos artigos 176.º, n.º 1, alínea d), e 177.º, n.º 7, do Código Penal e de 1.403 crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal e ainda, todos, pelos artigos 69.º-B, n.º 2, 69.º-C, n.º 2, do Código Penal e ainda da prática de 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelos artigos 170.º e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e ainda pelos artigos 69.º-B, n.º 2, 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, que lhe vinha imputado e condenado pela prática, em autoria material, de um crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea c), agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 7, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução a pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 5 (cinco) anos, devendo a mesma ser acompanhada de regime de prova, de acordo com plano individual a definir pelos serviços de reinserção social, nos termos dos artigos 50.º, n.ºs 1, 2 e 5, 53.º, n.º 4 e 54.º, todos do Código Penal.
2. Interposto recurso pelo Ministério Público, o Tribunal da Relação de Lisboa, 3ª Secção, por acórdão de 21 de Fevereiro de 2024, julgou o mesmo parcialmente procedente e, consequentemente, foi revogado, em parte, o acórdão de 08 de Maio de 2023, proferido pelo Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., cujo dispositivo se substituiu nos seguintes termos:
“1 - Determina-se o adicionamento à matéria de facto provada do seguinte segmento: “Pelo menos desde o início do ano de 2015 que o arguido utilizou a rede de internet, o seu computador e outros suportes informáticos para transmitir a terceiros imagens e vídeos de cariz pornográfico envolvendo menores de idade.” E a sua retirada dos factos não provados.
2 – Manter a absolvição do arguido AA da prática de 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelos artigos 170º e 177º, nº 1, alínea b), do CP, e ainda pelos artigos 69º-B, nº 2, 69º-C, nº 2, do CP, que lhe vinha imputado na acusação;
3 - Condenar o arguido AA pela prática em autoria material de:
- 26 (vinte e seis) crimes de pornografia de menores, p. e p. pelos artigos 69º-B, nº 2, 69º-C, nº 2, 176º, n.º 1, alínea c), e 177º, nº 7, do CP, na pena de 3 anos de prisão por cada um destes crimes;
- 49 (quarenta e nove) crimes de pornografia de menores, p. e p. pelos artigos 69º-B, nº 2, 69º-C, nº 2, e 176º, nº 1, alínea c), do CP na pena de 1 ano e 10 meses de prisão por cada um dos crimes;
- 1205 (mil duzentos e cinco) crimes de pornografia de menores, p. e p. pelos artigos 69º-B, nº 2, 69º-C, nº 2, 176º, nº 5 do CP, na pena de 7 meses de prisão por cada um dos crimes.
4 – E efectuando-se o atinente o cúmulo jurídico, entende este Tribunal como adequada, proporcional e suficiente, a aplicação ao arguido de uma pena única de 6 anos de prisão efectiva.
5 - Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 10 (dez) anos, nos termos do artigo 69º-B, nº 2, do CP;
6 - Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 (dez) anos, nos termos do artigo 69º-C, nº 2, do Código Penal;”
3. Inconformado com tal decisão, o arguido AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, retirando da respectiva motivação, as seguintes conclusões: (transcrição)
A - Apenas é admissível o recurso de uma decisão do Tribunal da Relação relativamente aos crimes aos quais se tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”.
B - O instituto da «dupla conforme», enquanto fundamento de irrecorribilidade, radica, como se sabe, na constatação de que a concordância de duas instâncias quanto ao mérito da causa é factor indiciador do acerto da decisão, o que, em casos de absolvição ou de condenação em pena de prisão de pequena ou média gravidade, prévia e rigorosamente estabelecidos pelo legislador, justifica a limitação daquele direito.
C – No caso vertente não estamos perante uma situação de dupla conforme porquanto o acórdão recorrido alterou por um lado a matéria de facto dada como provada e por outro agravou a pena aplicada ao Recorrente.
D - Se entre a decisão da 1ª instância e o decido pelo Relação há divergência na matéria de facto apurada com relevo para a medida da pena, falha o pressuposto da dupla conforme reclamado pelo artº 400º, nº1, al.f) do CPP.”
E – E no caso o Tribunal Recorrido entendeu ser de determinar o adicionamento à matéria de facto provada do seguinte segmento: “Pelo menos desde o início do ano de 2015 que o arguido utilizou a rede de internet, o seu computador e outros suportes informáticos para transmitir a terceiros imagens e vídeos de cariz pornográfico envolvendo menores de idade.” Retirando-se a os mesmos dos factos não provados.
F - O “alargamento” da competência do STJ à apreciação das penas parcelares (não superiores a 5 anos de prisão) nada tem de incongruente, pois se trata de questão exclusivamente de direito, compreendida (isto é, integrada) na questão mais geral da fixação da pena conjunta, a qual, nos termos do art. 77º do CP, deve considerar globalmente os factos e a personalidade do agente.
G - Interpreta-se, pois, a al. c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP como atribuindo competência ao STJ para, em recurso de uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão, apreciar também as penas parcelares integrantes daquela pena conjunta não superiores a essa medida, quando elas sejam impugnadas.
H - Atento o supra exposto, entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito Penal que se queira materialmente justo e processualmente conforme, não poderá deixar de ser apreciado e dado provimento ao presente recurso.
I – O douto acórdão para alterar a matéria de facto dada como não provada em primeira instância, socorreu-se do facto de o arguido ter ficheiros no disco a que foi dada a designação de S03, e estão associados a uma pasta do programa emule que se encontrava naquele suporte, e perante tal, este Tribunal de recurso não têm dúvidas que foram descarregados e necessariamente partilhados, através desse programa.
J – Todavia, só através de uma rebuscada interpretação da matéria de facto se pode chegar a tal conclusão, sendo certo que, nem em sede da audiência de discussão e julgamento nem nas anteriores fases do processo, nem no relatório do Sr. Perito da Polícia Judiciária nem mesmo da informação prestada pela Altice a instâncias do Tribunal se retira a existência de qualquer partilha em datas anteriores a 27 e 28 de Setembro de 2021.
K – Pelo que o Tribunal que julgou em primeira instância, perante a inexistência de elementos de prova recolhidos, ao considerar como não provado que o arguido transmitia a terceiros “imagens e vídeos de cariz pornográfico envolvendo menores de idade” desde 2015, mais não fez do que sopesar com espirito crítico e grande sabedoria os factos submetidos à sua sindicância observando e respeitando ainda o principio in dubio pro reo.
L - Não resultando da fundamentação do Acórdão da Primeira Instância a existência de erro notório na apreciação da prova como entendido pelo art. 410º nº 2, alínea c), do Cód. Proc. Penal, não devia o acórdão recorrido ter dado provimento ao recurso quanto a esta matéria como aconteceu.
M – Pois para que aquele erro mereça a tutela do direito deve resultar evidente do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, um engano óbvio, uma conclusão contrária àquela que os factos impõem. Ou seja, que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
N - Concluímos, portanto, que o texto da decisão é lógico, coerente e não apresenta qualquer desfasamento estrutural capaz de corresponder à situação-tipo do vício apontado pelo Acórdão em recurso.
O - O crime de pornografia de menores visa, como se apontou, de forma mais direta ou indireta, defender a autodeterminação sexual de crianças e jovens, ou o seu livre desenvolvimento, de outro ponto de vista, bens jurídicos, de qualquer modo, de caráter eminentemente pessoal.
P – O artº 176º do CP tutela um crime de perigo abstracto quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e de mera actividade quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção, o que se nos afigura correcto mas esta natureza de crime (de perigo) e forma de consumação não afasta de per si a possibilidade de estar em causa bens iminentemente pessoais a tutelar.
Q - No caso do crime de pornografia de menores estamos, como vimos, perante um crime de perigo abstrato, punindo o legislador uma dada atividade pela sua potencialidade lesiva do bem jurídico protegido, independentemente da produção de qualquer dano ou perigo de dano.
R – Entendendo-se que estamos perante um único crime quando o comportamento do agente tem na sua base o que se designa por unidade resolutiva, que se não se confunde com resolução criminosa única, que move o agente para a prática reiterada de atos que, isoladamente considerados, já integrariam a prática do crime.
S – Mais ainda, nas als. a) e b) do nº 1 estará em causa como bem jurídico a liberdade e autodeterminação sexual mas nas als. c) e d) do nº 1 e nos nºs 4, 5 e 6 do artº 176º do CP está em causa apenas uma tutela indirecta desse bem jurídico, nada obstando, assim, a que se considere a prática de um único crime.
T – Apesar de o Acórdão em recurso ter entendido para a fixação da medida da pena que não existe confissão integral e sem reservas, posto que o arguido não demonstra empatia, evidencia falta de interiorização do desvalor do ilícito, indiferença aos bens e valores tutelados pelas normas violadas, inexistência de qualquer arrependimento genuíno, ambivalência de juízo crítico, tal não corresponde à verdade porquanto o mesmo, confessa de imediato a detenção dos equipamentos, facultando códigos de acesso à polícia,, manifesta-se envergonhado, reconhece a existência de um problema, da qual não encontra explicação, e reconhecendo necessidade de ajuda mostra-se disponível para se sujeitar a acompanhamento psicológico e ou psiquiátrico, é manifestamente uma pessoa que se mostra arrependida.
U - A prevenção geral positiva ou de integração, com o intuito de tutela dos bens jurídicos é a finalidade primeira da aplicação de uma pena, não fazendo esquecer a prevenção especial ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade - art. 40º, nº 1, do CP.
V - O limite máximo da pena fixar-se-á, em função da dignidade humana do condenado, pela medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham, enquanto o seu limite mínimo é delimitado pelo "quantum" da pena que em concreto ainda realize eficazmente aquela protecção dos bens jurídicos.
W - O arguido cumpriu já prisão preventiva entre 24 de Março de 2022 e 28 de Maio de 2023, e quer antes, quer depois da sua detenção sempre manteve actividade profissional.
X - Possui enquadramento social, familiar, laboral e habitacional; por outro lado, o arguido nunca esteve detido e nunca havia conhecido o meio ambiente de um estabelecimento prisional e a sua passagem durante 14 meses pelo estabelecimento prisional de ..., foi já grave forma agónica de punição.
Z - No caso sub judice, com o devido respeito, consideramos que o Tribunal a quo devia ter valorado para aferir a medida da pena, o facto de não ter havido qualquer tipo de envolvimento físico para com os menores em causa e em consequência disso, não se provaram consequências nefastas para as vítimas, sendo que os reais danos causados às vítimas, se circunscrevem a eventuais danos psicológicos, de que as próprias não chegam a ter conhecimento, tudo devendo ser ponderado com equidade.
AA - A sua postura permite concluir que não estaremos perante uma carreira criminosa ou uma tendência, mas condutas pontuais, que podemos afirmar, sem sombra de dúvida que foram cometidos por negligência, apreciável nos termos do disposto no art. 15º do CP, mais do que de forma intencional, o que permite um juízo de prognose favorável no que toca à não repetição do ilícito por parte o arguido, entende-se que a referida imagem global aconselha, por proporcional, uma pena manifestamente inferior à pena única de 6 anos de prisão efectiva.
BB - Da análise do texto da decisão, parece-nos evidente que o aqui Recorrente reúne todas as condições para poder beneficiar de uma pena suspensa, não havendo motivos e/ou argumentos decorrentes do Acórdão que nos indique que não possa beneficiar da mesma.
CC - Atendendo a todos os elementos suprarreferidos, consideramos que, a condenação do caso sub judice para além de se apresentar contrária aos princípios e aos fundamentos legais e constitucionais expostos, constituiu uma opressão desnecessária do direito à liberdade do arguido, pelo que se apresenta manifestamente injustificada, severa, excessiva e injusta.
DD – Deveriam ter sido aplicadas ao arguido as seguintes penas parcelares:
Aos crimes de crimes de pornografia de menores p. e p. pelos artigos 176º, nº 1, alínea c) e 177º, n.º 7, do CP uma pena não superior a dois anos de prisão.
Aos crimes de pornografia de menores, p. e p. pelos artigos 69º-B, nº 2, 69º-C, nº 2, 176º, nº 1, alínea c) todos do CP deveria ter sido aplicada a moldura penal mínima de 1 ano.
Finalmente aos crimes de pornografia de menores, p. e p. pelos 69º-B, nº 2, 69º-C, nº 2, 176º, nº 5 todos do CP entende que a pena aplicada não deveria ser superior a um quarto da moldura penal, ou seja seis meses por cada um dos crimes.
E em cúmulo jurídico uma pena não superior a 5 anos.
EE - Por isso, quer as penas parcelares quer a que das mesmas resultou em cúmulo jurídico aplicada ao arguido mostra-se excessiva, desproporcional e desajustada às finalidades da punição, tendo o Tribunal “a quo” violado o disposto nos arts. 40.º e 71.º, ambos do CP, pugnando pela sua redução
FF – Pelo que a pena de prisão a ser aplicada ao arguido deverá ser suspensa na sua execução, mediante a sujeição a regime de prova, obrigatório, nos termos do artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal, tendo em vista a prevenção da reincidência, nos termos do artigo 54.º, n.º 4 do mesmo Código.
GG - Estabelece ainda o artigo 52.º, n.º 1 do Código Penal que o Tribunal pode impor o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, suscetíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade, nomeadamente cumprir determinadas obrigações.
HH - Ou seja, tendo em atenção os factos dados como provados, e respeitando a necessidade de manter o arguido sob uma vigilância dos serviços de reinserção social, a suspensão deve fazer-se mediante a sujeição à regra de conduta de sujeição ao seu tratamento psicológico e psiquiátrico com regularidade (no mínimo) mensal, para o qual já prestou o seu consentimento.
V/ Exas., como seres humanos sábios, pensarão e decidirão necessariamente de forma justa, alcançando a costumada e almejada Justiça, na medida em que, citando Jean de la Bruyere e Pierre Marivaux, o dever dos juízes é fazer justiça e a sua profissão a de a deferir. (fim de transcrição)
4. O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação, respondeu ao recurso, não apresentando conclusões, mas manifestando-se pela sua improcedência.
5. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer, concluindo “emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.”
6. Notificado o recorrente o mesmo não respondeu.
Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos e efectuada a conferência, cumpre decidir.
II. Fundamentação
6. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3
Da leitura dessas conclusões, o recorrente coloca a este Supremo Tribunal de Justiça, as seguintes questões:
Inexistência de vício de erro notório na apreciação da prova que justifique a alteração da matéria de facto pelo acórdão recorrido;
Qualificação jurídica do crime de pornografia de menores;
Medida das penas parcelares e única que devem ser diminuídas e esta suspensa na sua execução.
Vejamos, antes de mais, quais os factos dados por provados.
6.1. Estão provados, em função do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, os seguintes factos: (transcrição parcial excluída a identificação concreta dos ficheiros, excepto o primeiro de cada série)
1) O arguido AA tem residência em Rua da..., local onde, ao menos nos anos de 2020 e 2021, tinha acesso a equipamentos informáticos e à rede de internet mediante serviço contratado pelo arguido à operadora Altice, associado ao IP ...........97.
2) A partir de data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o início do ano de 2015, o arguido utilizou a rede de internet, o seu computador e outros suportes informáticos para procurar, alojar imagens e vídeos de cariz pornográfico. (aditado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa)
3) Neste contexto, no dia 30/09/2021, o arguido tinha colocado e ligado no seu computador portátil, de marca HP, modelo Pavilion G6, com o número de série 5CD..13H27, um disco SSD da marca Toshiba, no qual se encontravam configuradas
quatro partições lógicas.
4) Neste disco SSD, na partição 2 designada "N.....", o arguido tinha instalado um programa do tipo "P2P" (Ponto-a-Ponto) com a designação de "eMule", programa de aquisição e partilha de ficheiros com outros utilizadores da aplicação, e dentro dessa pasta a subpasta "Incoming", configurada para receber os ficheiros descarregados e ao mesmo tempo disponibilizá-los automaticamente para partilha, subpasta que continha vários ficheiros descarregados através do mesmo programa.
5) A pasta "eMule" continha ainda um ficheiro com o nome "readme.txt", que informou o utilizador dizendo "Welcome to eMule, a filesharing cliente based on the eDonkey2000(C)network".
6) No perfil do utilizador "BB", o do arguido, existia a pasta com o nome "Config", com os nomes "stattistics.ini", "preferences.ini", "known.met", que revelava a utilização pelo arguido do programa "eMule".
7) A partir do programa "eMule" instalado no seu computador, o arguido descarregou, disponibilizou para partilha e partilhou ficheiros relativos a menores envolvidos em comportamentos sexuais explícitos, conforme abaixo descrito.
8) No mesmo dia 30/09/2021, o arguido tinha alocados, em suportes informáticos, que se encontravam na sua residência e na sua disponibilidade e responsabilidade, ficheiros de imagem e ficheiros de vídeo relativos a menores envolvidos em comportamentos sexuais explícitos, nos termos que seguem.
9) O referido disco SSD Toshiba, na partição "N.....", que tinha instalado o diretório "C:\Windows", o proprietário registado "BB" e a conta de utilizador "BB" (de entre outras) continha:
- 16 (dezasseis) ficheiros de imagem;
- 94 (noventa e quatro) ficheiros de vídeo.
10) Através do programa "eMule", com últimos registos dos dias 27/09/2021 e 28/09/2021, o arguido descarregou e partilhou 66 (sessenta e seis) destes ficheiros (mencionados em 9.), com os nomes:
i) ..93_video_jb (2) ADULT dealer part 2 ... .....37.mp4
(…)
11) Nos ficheiros descritos em 10) estão representados, pelo menos, 75 (setenta e cinco) crianças ou jovens, filmados ou fotografados, sendo, pelo menos, 26 (vinte e seis) com idade inferior a 14 anos, conforme ficheiros descritos em ii), iii), iv), vi), vii), xiii), xv), xvii), xvi), xviii), xix, xxiv), xxvi), xxix), xxxv), xxxvi), xxxix, xl, xli, lii), liii), liv), lv), lxvi) e os demais 49 (quarenta e nove) com idade inferior a 18 anos.
12) Nos demais ficheiros mencionados em 9), num total de 44 (quarenta e quatro), que o arguido descarregou da internet e guardou ciente do seu teor, estão representados 34 (trinta e quatro) crianças ou jovens, sendo pelo menos 11 (onze) com idade inferior a 14 anos, nos ficheiros designados
i) f_..02bb
(…)
e os demais 23 (vinte e três) com idade inferior a 18 anos.
13) O disco externo de marca Mitsai, com o número de série GD...21, continha:
- 430 (quatrocentos e trinta) ficheiros de imagem;
- 612 (seiscentos e doze) ficheiros de vídeo;
ficheiros estes que o arguido descarregou através da internet, nomeadamente através
do programa "eMule".
14) Destes ficheiros o arguido guardou nesse disco externo, ciente do seu teor:
- 82 (oitenta e dois) ficheiros de imagem;
- 545 (quinhentos e quarenta e cinco) ficheiros de vídeo;
nos quais estão representados, pelo menos, 715 (setecentas e quinze) crianças ou jovens filmados ou fotografados, sendo, pelo menos, 80 (oitenta), com idade inferior a 14 anos, nomeadamente nos ficheiros designados
i) [girl ... min] video_2018-02-05_16-31-50.mp4
(…)
e os demais 635 (seiscentos e trinta e cinco) com idade inferior a 18 anos.
15) O disco externo de marca Mitsai, com o número de série GD...50, continha:
- 1501 (mil quinhentos e um) ficheiros de imagem;
- 79 (setenta e nove) ficheiros de vídeo;
ficheiros estes que o arguido descarregou através da internet, nomeadamente do "eMule", programa que já tinha tido instalado neste disco externo e que guardou para si, ciente do seu teor.
16) Nestes ficheiros estão representados, pelo menos, 230 (duzentos e trinta) crianças ou jovens filmados ou fotografados, sendo, pelo menos 76 (setenta e seis), com idade inferior a 14 anos, nomeadamente nos ficheiros designados
i) !!!!! Hot Hot Hot Hot Hot !!!!! P... . ... ........av
(…)
e os demais 154 (cento e cinquenta e quatro) com idade inferior a 18 anos.
17) O arguido guardava 1371 (mil trezentos e setenta e um) ficheiros que reproduziam por diversas vezes as crianças ou jovens já representadas nos termos descritos em 16).
18) O disco externo de marca Lindy, com o número de série ...07, continha:
- 1 (um) ficheiro de imagem;
- 101 (cento e um) ficheiros de vídeo;
ficheiros estes que o arguido descarregou através da internet e que guardou, ciente do seu teor.
19) Nestes ficheiros estão representados, pelo menos, 114 (cento e catorze) crianças ou jovens, filmados ou fotografados, sendo, pelo menos, 39 (trinta e nove) com idade inferior a 14 anos, nomeadamente nos ficheiros designados
i) P....... .... ....... .... .......... ... .... ...... .... . .........avi
(…)
e os demais 75 (setenta e cinco) com idade inferior a 18 anos.
20) O disco externo de marca Verbatim, com o número de série IH..01 continha 85
(oitenta e cinco) ficheiros de vídeo, ficheiros estes que o arguido descarregou através da internet, nomeadamente do programa "eMule".
21) Destes ficheiros o arguido guardou nesse disco externo, ciente do seu teor 70 (setenta) ficheiros de vídeo, nos quais estão representados, pelo menos, 75 (setenta e cinco) crianças ou jovens filmados ou fotografados, sendo, pelo menos, 12 (doze) com idade inferior a 14 anos, nomeadamente nos ficheiros designados:
i) Webcam - D.. . .... ..... ..... .... ....... ..... ... .....mp4
(…)
e os demais 63 (sessenta e três) com idade inferior a 18 anos.
22) O dispositivo de armazenamento externo PEN drive, de cor preta e prata, continha 32 (trinta e dois) ficheiros de vídeo, ficheiros estes que o arguido descarregou e que guardou, ciente do seu teor.
23) Nestes ficheiros estão representados pelo menos 37 (trinta e sete) crianças ou jovens, sendo pelo menos 13 (treze) com idade inferior a 14 anos, nos ficheiros designados
i) FILE..15.CHK
(…)
e os demais 24 (vinte e quatro) com idade inferior a 18 anos.
24) Todos os ficheiros acima identificados mostram imagens e filmes de crianças e jovens, de idade nos termos que se deixaram descritos, sempre em exibição e manipulação de forma ostensiva e lasciva do corpo e dos órgãos sexuais, bem como em práticas sexuais de cópula, coito oral e coito anal, com adulto e entre si.
25) O arguido descarregou, partilhou e guardou os ficheiros descritos e detinha-os, conhecendo sempre o seu conteúdo.
26) O arguido descarregou e partilhou os ficheiros descritos em 10), sabendo que os divulgava e disponibilizava para partilha e que os mesmos expunham 75 (setenta e cinco) menores com idade inferior a 18 anos de idade, 26 (vinte e seis) deles de idade inferior a 14 anos, sempre em imagens que mostravam zonas íntimas do corpo e a prática de atos sexuais, e sabia que estava proibida a sua partilha e a detenção para divulgar e que com aquela potenciava a divulgação.
27) O arguido sabia que todos os ficheiros acima descritos, por si divulgados e guardados expunham menores com idade inferior a 18 anos de idade, 257 (duzentos e cinquenta e sete) dos quais de idade inferior a 14 anos, sempre em imagens que mostravam zonas íntimas do corpo e a prática de atos sexuais e sabia que estava proibida a sua partilha e a detenção para divulgar e que com aquela potenciava a divulgação.
28) Mais atuou o arguido ciente de que se tratava de atos que põem em causa a formação da sexualidade de cada um dos menores e que tais materiais induzem a exploração desses menores, não obstante quis adquirir, partilhar, divulgar e armazenar tais ficheiros, comandado apenas pela satisfação dos seus impulsos libidinosos.
29) Atuou o arguido sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que, atuando da forma descrita, praticava atos proibidos e punidos por lei penal.
Da contestação
30) No disco externo de marca de marca Lindy não se encontra instalado nenhum sistema operativo, é um repositório ou arquivo de informação digital, nem existe nenhum programa de partilha, nem registos que possam confirmar a existência de partilha de ficheiros.
31) No disco externo de marca Verbatim não se encontra instalado nenhum Sistema operativo, é um repositório ou arquivo de informação digital, não existindo nenhum programa de partilha instalado ou programa “Portable” que corre sem necessidade de ser instalado, nem registos que possam confirmar a existência de partilha de ficheiros.
32) No disco externo de marca Mitsai, com o número de série GD...21 não se encontra instalado nenhum sistema operativo, em nenhuma das partições existentes, é um repositório ou arquivo de informação digital nem existindo nenhum programa de partilha instalado.
33) O disco externo de marca Mitsai, com o número de série GD...50 não se encontrava em bom estado de funcionamento, tinha alguns setores danificados ("bad sectors found"), fazia ruídos quando estava ligado e já tinha estado em funcionamento como disco principal no computador da marca HP, modelo Pavilion G6, com o número serie 5CD..13H27.
34) Neste suporte digital não se encontrava instalado nenhum sistema operativo, é um repositório ou arquivo de informação digital nem existia nenhum programa de partilha instalado ou programa “Portable” que corre sem necessidade de ser instalado, nem registos que possam confirmar a existência de partilha de ficheiros.
(NUIPC 495/21.9...)
35) O arguido AA é tio, por afinidade, de CC, nascida em .../.../2005, a qual, atenta esta relação familiar, passou férias de verão de 2021 na residência do arguido, sita em Rua ....
36) Em data não concretamente apurada, mas num dia de julho ou de agosto de 2021, nessa residência, o arguido procurou CC no quarto onde a mesma dormia, encontrando-a deitada, de barriga para baixo.
37) Então, o arguido colocou a sua mão na cama junto ao corpo de CC.
38) Quando CC se mexeu e virou, a mão do arguido passou pela parte da frente do seu peito, tocando no mesmo.
Da contestação
39) O arguido acolhia a menor CC na sua casa para férias e por longos períodos de estadia.
40) Nesses períodos, o arguido diariamente despedia-se à noite da menor, quando esta se encontrava deitada, com um beijinho de boa noite.
41) Por vezes, à noite ou de manhã para acordar a menor, o arguido dirigia-se ao quarto da mesma e encontrando-a deitada de costas, fazia-lhe festas ou “coceguinhas” nas costas, retirando-se depois.
Das condições pessoais do arguido
42) Originário de uma família de condição socioeconómica média, o arguido é o filho mais novo de uma fratria de dois, tendo o seu processo de desenvolvimento decorrido com progenitores, num contexto familiar que descreve como harmonioso e organizado, com um relacionamento de proximidade com os progenitores e irmã.
43) No plano económico, verificava-se uma situação bastante equilibrada, para o que contribuiria a situação profissional do progenitor que trabalhava num estaleiro naval.
44) O pai faleceu há cerca de cinco anos e a progenitora conta com 82 anos de idade.
45) Ao nível escolar, o arguido AA iniciou a escolaridade na idade própria tendo efetuando um percurso escolar normal, vindo a concluir a licenciatura em Gestão no ISEG, mas apenas em 2011.
46) A partir dos 16 anos, inicia-se a trabalhar com o progenitor no estaleiro, situação interrompida aos 21 anos com o serviço militar obrigatório durante dois anos.
47) Mais tarde inicia-se na área da restauração, referindo ter trabalhado no Restaurante “...” até há cerca de quatro anos atrás, quando deu início ao desenvolvimento profissional na área imobiliária, nomeadamente na exploração de aluguer de habitações, que o próprio adquiria e remodelava, sendo proprietário de vários alojamentos nas zonas de ... e ....
48) É também proprietário de uma herdade no ... e de um ..., aos quais se dedicava com bastante afinco.
49) Contraiu matrimónio com a atual esposa aos 24 anos, furto do qual nasceram dois filhos, o filho conta 29 anos sendo licenciado em ... e a filha de 27 anos, é ... da ..., e concluiu recentemente o curso de ....
50) A esposa é empregada no hipermercado ... e sua sócia na exploração do aluguer das habitações.
51) Refere a existência de um bom ambiente familiar e uma situação económica bastante confortável.
52) Ao nível da sua sexualidade, não reconhece qualquer problema apesar de admitir não manter com a esposa uma atividade sexual regular, justificando com a falta de atração.
53) O arguido refere nunca ter mantido consumos aditivos nem aponta qualquer problema ao nível de saúde.
II - Condições Sociais e Pessoais
54) À data da prisão, AA refere que vivia em casa própria na zona de ... com a esposa e os filhos, desenvolvendo a sua atividade profissional de empresário ao nível do imobiliário, adquirindo várias habitações que o próprio remodelava, não tendo empregados a seu cargo, referindo ter uma situação económica desafogada.
55) Dedicava-se à gestão da sua herdade no ... e nos tempos livres ao veleiro que tinha adquirido recentemente.
56) Em termos pessoais, o arguido AA, apresenta um discurso elaborado, valorizando a autonomia económica e os bens materiais, esforçando por apresentar uma imagem de si equilibrada e ajustada aos valores da sociedade que integra.
57) Confrontado com os factos de que se encontra indiciado, assume parte dos mesmos referindo sentir-se envergonhado, mas não demonstra empatia para com as vítimas.
58) Reconhece a existência de um problema, da qual não encontra explicação reconhecendo necessidade de ter acompanhamento psicológico.
59) Perspetiva regressar ao seu agregado familiar contando com o apoio de todos os seus elementos e pretende retomar a atividade da sua empresa, realçando ter muitos projetos imobiliários em curso, referindo dispor de uma situação económica bastante equilibrada.
III – Impacto da situação jurídico-penal
60) Encontra-se preso no Estabelecimento Prisional de ..., mantendo uma conduta adequada usufruindo de acompanhamento psicológico.
61) O arguido demonstra preocupação da sua situação jurídica e das consequências que daí possam advir, revelando ambivalência de juízo crítico e dificuldades de autoanálise perante o presente processo judicial, adotando uma atitude que revela ambivalência no reconhecimento do dano, relativizando o prejuízo para as vítimas e assumindo uma atitude de vitimização.
62) Durante a reclusão tem beneficiado de visitas da esposa e dos filhos.
63) O arguido mostra-se disponível para se sujeitar a acompanhamento psicológico e ou psiquiátrico.
64) O arguido não regista antecedentes criminais.
65) Pelo menos desde o início do ano de 2015 que o arguido utilizou a rede de internet, o seu computador e outros suportes informáticos para transmitir a terceiros imagens e vídeos de cariz pornográfico envolvendo menores de idade.” (fim de transcrição parcial)
6.2. Vejamos as questões colocadas pelo recorrente, iniciando a questão da inexistência de vício de erro notório na apreciação da prova que justifique a alteração da matéria de facto pelo acórdão recorrido.
Porém, antes de analisar as questões colocadas pelo recorrente importa efectuar os seguintes esclarecimentos.
De acordo com os artigos 46º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e artigo 434º do Código de Processo Penal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se “exclusivamente ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432º”.
O artigo 432º do Código de Processo Penal, estatui que “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º.
Por sua vez o artigo 400º do Código de Processo Penal, entre as várias decisões que não admitem recurso, estatui, na sua alínea f), que não cabe recurso dos “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
No caso em apreço, inexistindo confirmação por parte do Tribunal da Relação da decisão da 1ª instância, porquanto a mesma apenas foi parcialmente confirmada, tendo sido, inclusive, agravada a condenação do recorrente, o que suporta legalmente o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça.
Porém, esta circunstância não altera a natureza do recurso o qual versa, apenas, matéria de direito, pois não estamos em presença de nenhuma das situações das alíneas a) e c) do artigo 432º, anteriormente transcritas.
Por força das referidas normas e do sistema de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual versa apenas matéria de direito, a matéria de facto deve-se considerar definitivamente estabilizada pelas instâncias, sem prejuízo do Supremo Tribunal de Justiça conhecer, oficiosamente, dos vícios do artigo 410º, nº2 do Código de Processo Penal, bem como de eventuais nulidades da decisão.4
Vejamos, pois, oficiosamente, o erro notório da apreciação da prova.
O Ministério Público no seu recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitou, de forma clara e assertiva, o erro de julgamento da matéria de facto, especificando de forma correcta o “ponto de facto incorrectamente julgado”, indicando para o efeito “a prova que impõe decisão diversa da recorrida”, tudo ao abrigo do artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal e sintetizada nas conclusões 1, 2 e 4 do seu recurso.
Ao mesmo tempo, o recorrente invoca, na conclusão 3, o vício do erro notório na apreciação da prova da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Perante estes fundamentos de recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa no seu douto acórdão, apesar de apenas elencar como questão a decidir o erro notório na apreciação da prova, a verdade é que faz todo o seu raciocínio de decisão tendo como pressuposto um verdadeiro erro de julgamento, porquanto na alteração da matéria de facto dada por provada, não se limitou ao texto da decisão, mas, antes, procedeu à análise da prova constantes dos autos, nomeadamente testemunhal e pericial.
Após ter concluído que estava em presença de um erro de julgamento e, em consequência ter alterado a matéria de facto, nos exactos moldes que constam do dispositivo, passou a analisar o vício do erro notório na apreciação da prova.
Ora, procedendo o erro de julgamento e a consequente alteração da matéria de facto, inútil se torna apreciar a questão do vício do erro notório, que mais não era, na perspectiva do recorrente, como um pedido, digamos, subsidiário.
Importa não olvidar, em matéria de apreciação da matéria de facto pela Relação, que sendo invocado o erro de julgamento, no qual se pretende ver alterada essa mesma matéria de facto, impõe-se por razões de “(…) método que se comece pelo reexame de mais largo espectro, para que se não tenha eventualmente de entrar na análise mais limitada, o que só sucederá na falência daquele reexame”.5
A impugnação do julgamento da matéria de facto de modo a demonstrar eventuais erros de julgamento e a modificar a matéria de facto, nos termos do artigo 431º ou a existência de qualquer dos vícios nos termos do nº 2 do artigo 410º do Código Processo Penal, são duas realidades distintas.
A este propósito e atenta a sua clareza, permitimo-nos transcrever o sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Junho de 2008, «A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma.
No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma».6
Este entendimento é hoje pacífico na jurisprudência e na doutrina, no que respeita à impugnação da matéria de facto em sede de recurso para o Tribunal da Relação.
Se por um lado o Tribunal da Relação pode apreciar e sindicar a matéria de facto pelas duas vias que se deixaram elencadas, este Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito e, no que respeita aos vícios da decisão, como no caso dos autos, só pode conhecer dos mesmos oficiosamente, por força do artigo 434º anteriormente referido e do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 7/95 de 19/10/1995.7
Os vícios previstos no nº2 do artigo 410º do Código Processo Penal, como resulta do próprio texto legal, forçosamente, resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.
Ora, fazendo uma análise oficiosa do vício do erro notório na apreciação da prova, o mesmo não resulta do texto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem.
É necessário que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.8
Como se refere no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 2011, “O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”.9
Para se verificar este vício tem, pois, de existir uma “(…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum”.10
Este entendimento da jurisprudência é também seguido pela doutrina, como se alcança da transcrição do seguinte texto de Paulo Saragoça da Matta, no qual se refere que, ao tribunal de recurso cabe apenas “ (…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”.11
Nenhuma destas situações se verifica no caso sob recurso.
Da leitura da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se percebe que a alteração da matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, é adequada, está fundamentada e os juízos que são feitos são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.
Inexiste, pois, qualquer vício de erro notório na decisão recorrida, mantendo-se a matéria de facto fixada no acórdão.
6.3. Qualificação jurídica do crime de pornografia de menores
Como resulta das conclusões o recorrente veio defender, tal como já tinha feito ao longo do processo, que os factos por que foi acusado apenas integram a prática de um crime de pornografia de menores agravado.
Vejamos.
O recorrente tinha sido acusado pelo Ministério Público imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de 26 crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelos artigos 69.º-B, n.º 2, 69.º-C, n.º 2, 176.º, n.º 1, alínea c), e 177.º, n.º 7, do Código Penal, de 49 crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelos artigos 69.º-B, n.º 2, 69.º-C, n.º 2, e 176.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal; de 243 crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelos artigos 69.º-B, n.º 2, 69.º-C, n.º 2, 176.º, n.º 1, alínea d), e 177.º, n.º 7, do Código Penal; de 1.403 crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelos artigos 69.º-B, n.º 2, 69.º-C, n.º 2, e 176.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal.
Na decisão da 1ª instância o Tribunal condenou o arguido apenas pela prática de um único crime de pornografia de menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º 1, alínea c) e artigo 177.º, n.º 7 do Código Penal, por entender estar em presença de condutas isoladas, criminalmente punidas, unificadas numa unidade resolutiva, que integra um único crime, consubstanciado na prática pelo arguido da atividade criminalmente punida.
Por sua vez o Tribunal da Relação de Lisboa no douto acórdão recorrido, considerou que estamos em presença de concurso efectivo, verdadeiro ou puro de crimes e em consequência condenou o arguido pela prática dos vários crimes por que vinha acusado.
O recorrente assenta a sua argumentação naquilo a que designa por “unidade resolutiva” e que nas “als. a) e b) do nº 1 estará em causa como bem jurídico a liberdade e autodeterminação sexual mas nas als. c) e d) do nº 1 e nos nºs 4, 5 e 6 do artº 176º do CP está em causa apenas uma tutela indirecta desse bem jurídico, nada obstando, assim, a que se considere a prática de um único crime.”
A questão é controversa na doutrina e na jurisprudência, como se alcança da leitura do acórdão recorrido.
6.3.1 Bem jurídico protegido
A natureza do bem jurídico protegido na alínea c), do nº 1 do artigo 176º do Código Penal, é a chave para responder à questão da qualificação jurídica suscitada no recurso.
A interpretação do artigo 30º do Código Penal, por referência ao crime de pornografia de menores, no sentido de estarmos em presença de um único crime, podemos encontrar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2017 no qual se escreveu: “(…) O crime de pornografia de menores visa, como se apontou, de forma mais direta ou indireta, defender a autodeterminação sexual de crianças e jovens, ou o seu livre desenvolvimento, de outro ponto de vista, bens jurídicos, de qualquer modo, de caráter eminentemente pessoal.
O número de crimes determina-se pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi cometido – conforme critério estabelecido pelo art. 30º, nº 1 do Código Penal.
Por outro lado, dispõe o art. 30.° do Código Penal, no seu n° 2 que: "Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente." Acrescentando o seu n." 3 que: "O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais."
Assim, estabelecida a regra, contempla o legislador exceções para situações em que a acentuada diminuição da culpa do agente justifica um ajuste da moldura abstrata aplicável à conduta, integrando num só crime continuado o que constituiria uma reiteração criminosa.
Assim, de acordo com o disposto no predito preceito são pressupostos do crime continuado:
. a homogeneidade da forma de execução do crime;
a lesão do mesmo bem jurídico;
. a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
O n.º 3 do art. 30.° do CP, aditado pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, com a redação que se deixou supra consignada não veio, na realidade alterar em nada o entendimento jurisprudencial e doutrinal que vinha sendo seguido quanto à matéria, já que que aquilo que se encontrava previsto não era que nos crimes contra bens pessoais, tratando-se da mesma vítima, se devessem unificar as condutas, mas antes que nesses crimes a pluralidade de vítimas constituiria obstáculo a essa unificação. Ou seja, estando em causa a lesão de bens jurídicos eminentemente pessoais, a continuação criminosa só poderá estabelecer-se respeitando à mesma vítima e contanto que se encontrem reunidos os demais requisitos do crime continuado, mormente que estejamos perante uma diminuição acentuada da culpa do agente.
Como se refere no Ac. do STJ de 5/12/2007, proferido no âmbito do Proc. 0783989, disponível in www.dgsi.pt.:
"Na verdade, o elemento nuclear e substancial do instituto do crime continuado é a mitigação da culpa resultante de uma situação exógena à vontade do agente que induza ou facilite a repetição da conduta ilícita por parte daquele. Quando os factos revelarem que a reiteração criminosa resulta antes de uma pré-disposição do agente para a prática de sucessivos crimes, ou que estes resultam de oportunidades que ele próprio cria, está evidentemente afastada a possibilidade de subsumir os factos ao crime continuado, porque se trata então de uma situação de culpa agravada, e não atenuada. " No mesmo sentido o Ac. do STJ de 25/11/2009, proferido no âmbito do Proc. 490/07.0TAVVD.S1, disponível in www.dgsi.pt. no qual se refere:
"A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição; isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. Ao invés, a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso."
Também Leal Henriques e Simas Santos, no seu Código Penal Anotado, em anotação ao art. 30º e seguindo de perto o ensinamento do Prof. Eduardo Correia, dizem:
"Sucede, por vezes, que certas atividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime - ou mesmo diversos tipos legais, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico - e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que portanto atiraria a situação para o campo da pluralidade de infrações), devem ser aglutinadas numa só infração, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente. E quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. O pressuposto da continuação criminosa será, assim, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”
Para além do crime continuado, a nossa ordem jurídica contempla ainda outras modalidades de crime por atenção à duração e estrutura da ação criminosa. Fá-lo por se mostrar de suma importância a fixação do momento em que cessa a ação criminalmente punida, já que é esse o momento “a quo”, a partir do qual se procede à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Assim, atentando na previsão legal constante do art. 119º do Código Penal, os crimes, para além de continuados, podem ser:
. permanentes – em que ocorre uma persistência temporal da ação criminosa, que se mantém una;
. habituais ou de trato sucessivo – em que a ação criminosa envolve a prática de vários atos homogéneos.
Trata-se, este último, de um crime único com pluralidade de atos, ou seja, a consumação do crime protrai-se no tempo. A própria estrutura do tipo incriminador supõe a reiteração. Correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta, ou pode apresentar, mais complexa do que sucede habitualmente e se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes, que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. É o caso de crime de maus tratos, lenocínio ou tráfico.
Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, 2ª Ed., pag. 314, ensina que crimes habituais são “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada”, avançando como exemplos, precisamente, os crimes de lenocínio e de aborto agravado.
A jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem entendido que estamos perante um único crime quando o comportamento do agente tem na sua base o que designam por unidade resolutiva, que se não se confunde com resolução criminosa única, que move o agente para a prática reiterada de atos que, isoladamente considerados, já integrariam a prática do crime. Reiterar significa repetir, pelo que está em causa uma pluralidade de atos homogéneos. Embora a caracterização legal se não esgote nisso, os “atos reiterados” são opostos aos “atos sucessivos”, no sentido de praticados em ato seguido, o que aponta para a necessidade de um certo distanciamento temporal – pelo menos o suficiente para se arredar a existência de um crime contínuo – o que faz o crime perder o cariz episódico isolado, para passar a estruturar-se numa atividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.
Está em causa, como vimos, uma repetição de condutas homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa. Assim, o agente age em cada uma das ocasiões em concretização de um móbil que previamente o animou e que abrange todos os atos praticados em cada uma dessas ocasiões. Age, pois, sob uma unidade resolutiva, reiterando um dado comportamento sempre que as circunstâncias o permitirem. Como refere o nosso STJ em acórdão datado de 29-11-2012 (proferido no Proc. 862/11.6TAFRS.S1, disponível in www.dgsi.pt), estamos, nesses casos, perante uma atividade repetida, que se prolonga no tempo, em que o agente não renova o seu processo de motivação. Também o acórdão do STJ datado de 23-01-08 se pronuncia sobre esta matéria (Proc. 4830/07.3A, disponível in www.dgsi.pt) dizendo que estamos perante uma unidade de resolução criminosa quando ante “repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime”.
Sem prejuízo, não tem o nosso Supremo Tribunal de Justiça uma posição unívoca sobre o assunto, podendo ler-se no acórdão datado de 12-6-2013 (Proc. 1291/10.4JDLSB, disponível in www.dgsi.pt) o seguinte:
“...se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado no caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo ficcionando o julgado um dolo inicial que engloba todas as ações”.
Constituirá óbice à qualificação jurídica operada o facto de estarmos perante ilícitos que tutelem bens jurídicos eminentemente pessoais, inviabilizando a integração num só crime de trato sucessivo os diversos atos reiteradamente praticados numa dada circunscrição temporal, por constituírem uma unidade de resolução criminosa, tal como sucede no crime continuado?
Cremos que não.
No crime continuado estamos perante um determinado número de crimes, autónomos entre si por corresponderem a resoluções criminosas distintas, ainda que sucessivamente renovadas. Vêm a ser integrados num crime único nas circunstâncias especiais legalmente previstas, numa adequação, como se referiu já, da moldura abstrata da punição a aplicar à culpa do arguido.
Assim, os requisitos são precisamente a prática plúrima de ilícitos idênticos entre si, dentro de um quadro facilitador da conduta do agente com reflexos significativos no seu grau de culpa, entendendo-se que os fatores externos ao agente são susceptíveis de atenuar o juízo de censura a realizar sobre o seu comportamento. Recorrendo a linguagem coloquial, diremos que o agente não procurou o ilícito, mas não foi capaz de lhe resistir.
Diferentemente, no crime único de trato sucessivo ou habitual estamos perante um dolo perene, que anima todos os atos reiteradamente praticados pelo agente dentro de um mesmo quadro circunstancial, aquilo a que se denomina de unidade resolutiva.
No caso do crime de pornografia de menores estamos, como vimos, perante um crime de perigo abstrato, punindo o legislador uma dada atividade pela sua potencialidade lesiva do bem jurídico protegido, independentemente da produção de qualquer dano ou perigo de dano. Assim sendo, antecipando-se a tutela dos bens jurídicos e prescindindo a previsão típica da ocorrência de dano, questiona-se se fará sentido “repartir” a atividade a sancionar por referência a cada ato isolado ou agrupar os atos em causa em função do número dos potenciais lesados. A resposta, em nosso entender, deverá ser negativa, dadas precisamente as características dos chamados “crimes de atividade”, de que constitui esclarecedor exemplo o crime de tráfico de estupefacientes. Este também visa, ainda que de forma indireta, a proteção de bens jurídicos eminentemente pessoais, como a integridade física e mesmo a vida de cada um dos “protegidos”. Contudo, por força da estrutura conferida pelo legislador ao ilícito, punindo a atividade, demonstrada a venda de produto estupefaciente a diversos consumidores, o agente não é punido por um crime por referência a cada um dos adquirentes.
Assim, conclui este Tribunal que, no caso do crime de pornografia de menores, não estamos perante um crime de trato sucessivo, estando as condutas isoladas criminalmente punidas unificadas numa unidade resolutiva, mas perante um único crime, consubstanciado na prática pelo arguido da atividade criminalmente punida. (...)”. 12
Em sentido oposto, defendendo uma pluralidade de crimes, ainda que não se reportando às alíneas c) e d) do artigo 176º do Código Penal, a título exemplificativo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 2024, no qual se escreveu: “(…) O crime de trato sucessivo não é uma categoria legal, mas um conceito elaborado pela doutrina e pela jurisprudência, e de que esta lançou mão para, em casos de dificuldade de prova causadas pelo elevado número de condutas repetidas, designadamente, no âmbito de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, ficcionar a existência de um crime único, com culpa agravada pela reiteração (entre outros, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2012, processo nº 862/11.6TAPFR.S1), ficção esta de algum modo suportada na posição de Eduardo Correia segundo a qual, existirá pluralidade de crimes quando o agente se tornou passível de vários juízos de censura da culpa e, portanto, quando ocorra uma pluralidade de resoluções do projecto criminoso, sendo, no entanto, esta pluralidade de resoluções de excluir, sempre que exista uma conexão temporal entre os vários momentos da conduta do agente, de tal modo que, de acordo com as regras da experiência psicológica, seja aceitável admitir que aquele executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação (Direito Criminal, II, Reimpressão, 1971, Almedina, págs. 200 e seguintes).
Sucede, porém, que é hoje jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal o afastamento da figura do crime de trato sucessivo no âmbito dos crimes sexuais (entre outros, acórdãos de 9 de Maio de 2024, processo nº 1392/22.6JACBR.C1.S1, de 11 de Maio de 2023, processo nº 334/21.0GBCTX.L1.S1, de 14 de Julho de 2022, processo nº 42/19.2JAPTM.E1.S1, de 24 de Março de 2022, processo nº 500/21.9PKLSB.L1.S1, de 23 de Novembro de 2022, processo nº 754/20.8JABRG.G1.S1, de 12 de Janeiro de 2022, processo nº 427/18.1JACBR.C1.S1, de 28 de Janeiro de 2021, processo nº 53/17.2JABRG.G1.S1, e de 1 de Outubro de 2020, processo nº 308/18.9GACVD.L1.S1).
Com efeito, a regra que resulta do nº 1 do art. 30º do C. Penal é a de que existem tantos crimes quantas as vezes que o mesmo tipo legal foi preenchido pela conduta do agente.
Ao tipo do crime de pornografia de menores em causa é alheio qualquer elemento de reiteração pelo que, é aplicável a regra geral prevista naquele nº 1, cometendo o arguido tantos crimes, repetidos, quantas as vezes que preencheu, objectiva e subjectivamente, a conduta típica ou seja, à pluralidade de actos corresponde a pluralidade de sentidos de ilicitude típica (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 988 e seguintes).
Aliás, a lei aponta, indirectamente, é certo, no sentido da inadmissibilidade da unificação da conduta através do crime de trato sucessivo. É que o nº 3 do art. 30º do C. Penal afasta a possibilidade de existir continuação criminosa relativamente aos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais – nos quais se incluem, necessariamente, os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual –, quando o crime continuado – contrariamente ao crime de trato sucessivo –, tem um estatuto legal que se caracteriza, além do mais, por um abrandamento da moldura penal (art. 79º do C. Penal) pelo que, por maioria de razão, nenhum sentido faria a unificação de condutas relativamente às quais não se verificam os pressupostos da continuação”. 13
Como se pode ver da jurisprudência citada, existem entendimentos diversos sobre a punição em matéria de crimes sexuais.
Esta diversidade de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nem sempre corresponde a situações de facto e qualificações jurídicas idênticas, às que estão em recurso nos presentes autos, como se pode verificar em relação aos acórdãos citados no anterior acórdão transcrito.
Especificando.
No acórdão de 9 de Maio de 2024, processo nº 1392/22.6..., estavam em causa crimes de pornografia de menores tipificados pelas alíneas a) e b), do nº1 do artigo 176º do Código Penal;
No acórdão de 11 de Maio de 2023, processo nº 334/21.0..., estavam em causa mais de uma centena de crimes de abuso sexual de crianças previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal;
No acórdão de 14 de Julho de 2022, processo nº 42/19.2..., estavam em causa vários crimes de abuso sexual de crianças previstos e punidos pelos artigos 171º nºs 1 e 177º nº 1 al. b), ambos do Código Penal e crimes de abuso sexual de menor dependentes previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 172º nº 1 e 177º nº 1 al. b) ambos do Código Penal;
No acórdão de 24 de Março de 2022, processo nº 500/21.9... estavam em causa, 4 crimes de abuso sexual de menores, p. e p. no art.171.º, n.º 1, agravados pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, e 6 crimes de abuso sexual de menores, p. e p. no art.171.º n.ºs 1 e 2, agravados pelo disposto no art.177.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal;
No acórdão de 23 de Novembro de 2022, processo nº 754/20.8... estavam e causa vários crimes de abuso sexual de crianças previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal;
No acórdão de 12 de Janeiro de 2022, processo nº 427/18.1..., estavam em causa vários crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal do Código Penal;
No acórdão de 28 de Janeiro de 2021, processo nº 53/17.2..., estavam em causa vários crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 171.º números 1 e 2 do Código Penal;
No acórdão de 1 de Outubro de 2020, processo nº 308/18.9...), estavam em causa vários crimes de abuso sexual, previstos e punidos pelo artigo 171º, n.º 1 do Código Penal.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2020, igualmente citado na decisão recorrida, ainda que a situação de facto se reporte à alínea b), do nº1 do artigo 176º do Código Penal parece considerar-se, sem o dizer expressamente, que estamos em presença de uma situação de concurso efectivo em todas as situações de pornografia de menores.
Porém, para além de o referido acórdão não se reportar à alínea do artigo 176º em discussão nos presentes autos, nenhum dos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça igualmente citados na decisão recorrida, se refere a qualquer das alíneas c) e d) do nº1 do artigo 176 do Código Penal.
Na verdade, efectuada uma pesquisa na Base de Dados não encontrámos uma única decisão do Supremo Tribunal de Justiça que expressamente se referisse às alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 176º do Código Penal e à problemática do concurso de infrações quando está em causa um crime de pornografia de menores tipificado nas mesmas.
Por sua vez ao nível dos Tribunais da Relação, encontram-se decisões a considerar como concurso efectivo de crimes situações como a dos presentes autos14 e outras a afastar esse concurso e optar por um único crime.15
Perante esta divergência jurisprudencial, importa clarificar as situações e fazer a distinção das situações de facto e dos bens jurídicos protegidos no artigo 176º do Código Penal.
Da análise do preceito, é indiscutível que a tipificação das alíneas a) e b), do nº 1 do artigo 176º se reporta a situações de facto que implicam contacto directo com menores e, nessa medida, o bem jurídico protegido é a liberdade e autodeterminação sexual dos menores .
Contrariamente, a tipificação das alíneas c) e d) do preceito, tal contacto é inexistente e, por isso, o bem jurídico protegido é supra individual relacionado com o comércio e divulgação de material pornográfico. Nestas situações, a tutela da liberdade e autodeterminação sexual do menor é apenas indireta.
Como referem, a este propósito, José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, “Nas alíneas a) e b) do nº 1 criminaliza-se a utilização direta de menores de 18 anos, ou o seu aliciamento, para espetáculos, fotografias, filmes ou gravações pornográficas. Neste caso é a liberdade e autodeterminação sexual dos menores envolvidos que é posta em causa, através da atividade do agente, seja na intervenção directa dos factos seja no seu aliciamento pessoal para participarem nos mesmos”.16
Por sua vez os mesmos autores, consideram que: “Nas alíneas c) e d) do nº 1 configuram-se condutas que, se bem que susceptíveis de sancionamento criminal, não comportam uma violação direta do bem jurídico liberdade e a autodeterminação sexual de um menor.
Trata-se de travar a proliferação da divulgação de condutas que atentam contra a liberdade e autodeterminação sexual de crianças, elas sim violadoras de bens jurídicos pessoais.” Figueiredo Dias (in Comentário Conimbricense Código Penal, pág. 548), a propósito da alínea d) da versão decorrente da reforma de 2001 do artigo 172º, fala numa "criminalização (...) que não pode deixar de ser iluminada por um bem jurídico supra individual diverso do da liberdade e autodeterminação sexual de uma pessoa”.
Afigura-se-nos que para além de uma tutela indireta da liberdade e auto- determinação sexual do menor, proibindo todo o mercado de produção, distribuição, importação, exportação, divulgação cedência de material pornográfico, também se procura através desta incriminação evitar danos na esfera pessoal do menor, que decorre da sua associação ao mercado pornográfico, com sequelas físicas, emotivas, de reputação e honra que daí advêm. Existe uma tutela antecipada do interesse superior da criança, e do seu direito a ser acautelado ○ seu bem-estar físico e psíquico. Ora, todas as atuações ali descritas são suscetíveis de causar tais danos, pela expansão do conhecimento de tal material pornográfico.”17
Como referem Maria João Antunes e Cláudia Santos, as alíneas c) e d) punem o “comércio de material pornográfico”18 e não directamente a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa.
No mesmo sentido, por referência ao anterior artigo 172º, nº 3 alínea d) do Código Penal, também Figueiredo Dias considera que estamos perante uma “crimilização que, já se sugeriu também, não pode deixar de ser iluminada por um bem jurídico (supra-individual) diverso do da liberdade e autodeterminação sexual de uma pessoa (de uma criança)”19
Ainda no mesmo sentido, M.Miguez Garcia J.M.Castela Rio consideram que, “Nas alíneas c) e d) do nº 1 trata-se de condutas que, embora merecedoras de pena, não configuram uma situação imediata (direta) do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual, mas sim interesses do Estado que poderiam ficar lesados com a proliferação da pornografia.”20
Perante o texto legal e os entendimentos jurisprudenciais e doutrinais referidos, parece-nos curial e adequado, distinguir no nº1 do artigo 176º do Código Penal a tipificação, ao nível do bem jurídico protegido, as várias situações aí previstas.
Assim, importa agrupar as alíneas a) e b), as quais implicam um contacto directo com menor, como protegendo um bem jurídico pessoal (liberdade e a autodeterminação sexual) e agrupar as alíneas c) e d), as quais não implicam contacto directo com menor, como protegendo um bem jurídico supra-individual ou comunitário (proibição do comércio e proliferação de material pornográfico com menores) e indirectamente a liberdade e a autodeterminação sexual do menor.
Chegados aqui e consolidada a natureza do bem jurídico protegido pela norma, importa agora abordar a questão do concurso de crimes.
6.3.2 Concurso de crimes
O artigo 30º do Código Penal, na redação da Lei n.º 40/2010, de 03 de Setembro, sob a epígrafe “Concurso de crimes e crime continuado” dispõe:
1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
Este nº 3 exclui a figura do crime continuado relativamente a crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, o que implica, por identidade de razões, igualmente a exclusão do chamado crime de “trato sucessivo”, quando estejam em causa bens eminentemente pessoais.21
Desde a publicação da Lei n.º 40/2010 de 03 de Setembro, como refere Duarte Rodrigues Nunes, “está expressamente excluída (…) a possibilidade de crime continuado quanto aos tipos de crime que protejam bens jurídicos de cariz eminentemente pessoal (…) independentemente de o bem jurídico ser da titularidade da mesma pessoa ou de pessoas diferentes.”22
O crime de trato sucessivo é uma figura jurídica criada pela jurisprudência e pela doutrina, associado a uma actividade criminosa (inicialmente criado para o tráfico de estupefacientes),23 na qual é difícil quantificar ou isolar os actos criminosos praticados pelo agente e na qual não se verificam os pressupostos do crime continuado.
A propósito da criação da figura do crime de trato sucessivo, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Fevereiro de 2019, “(…) o chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art.º 30.º,n.º 2 do Código Penal).”24
Sobre o crime de trato sucessivo, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Junho de 2013, “O crime de trato sucessivo serve também hipóteses de pluralidade de crimes, mas cuja prática conforma uma actividade, prolongada no tempo, em que se torna tarefa difícil, se não arbitrária, definir o concreto número de actos parcelares que a integram. No entanto, diferentemente do que é requerido na figura do crime continuado, não se verifica uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente.”25
Ainda a propósito do crime de trato sucessivo, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2012, “A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.
Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta” (…) “O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).
Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante”.26
Nesse mesmo acórdão escreveu-se, no respectivo voto a de vencido, a propósito do crime de trato sucessivo, “A categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [artº 119º, nº 2, alínea a), do CP], o crime continuado [artºs 119º, nº 2, alínea b), 30º, nºs 2 e 3, e 79º] e o crime habitual [artº 119º, nº 2, alínea b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [artº 19º, nº 2, do CPP].
(…)
O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854).
Este autor, depois de definir o crime contínuo como o «crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de actos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)», correspondendo «basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de actos», caracteriza assim o crime habitual:
«O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”.
Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.
O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”.
É seguro que, por “actos reiterados”, se deve entender, pelo menos, a pluralidade de actos homogéneos. Actos diversos não são reiterados.
(…) apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.
Na verdade, embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “actos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “actos sucessivos” no sentido de praticados em acto seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal – pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo – o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa actividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.
Mas se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação.
Assim se compreende que, como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infracção às regras de segurança (art. 152º), o crime de lenocínio (art. 170º)».
Admite o autor outros casos, como o crime de tráfico de estupefacientes, que considera desdobrar-se ou poder desdobrar-se numa multiplicidade de actos semelhantes, «como claramente resulta da previsão da agravação por diversas circunstâncias, a começar pela da destinação ou entrega a “menores” ou da distribuição “por um grande número de pessoas” (art. 24º, nº 1, als. a) e b), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro)» (ob. cit., páginas 604-620).
Mais incisivo, Figueiredo Dias define crimes habituais como sendo «aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada», dando como exemplo os crimes de lenocínio e de aborto agravado do artº 141º, nº 2, do CP (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 314).
Não é, pois, a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos o cariz de crime de trato sucessivo, que se identifica com a categoria legal do crime habitual, mas somente a estrutura do respectivo tipo incriminador, que há-de supor a reiteração.”
Como se pode ver deste acórdão, mesmo a nível jurisprudencial, admitindo-se o crime de trato sucessivo, a sua caracterização para uns assenta numa “unidade resolutiva” e para outros deve resultar da “reiteração” dos actos que devem resultar da estrutura do tipo legal.
Sem querer tomar partido definitivo sobre a questão entendemos, contudo, que a construção da figura do crime de trato sucessivo assenta numa unidade resolutiva, a qual tem como pressuposto uma actividade. Como se refere no anterior acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado no início desta decisão, “o agente age em cada uma das ocasiões em concretização de um móbil que previamente o animou e que abrange todos os atos praticados em cada uma dessas ocasiões. Age, pois, sob uma unidade resolutiva, reiterando um dado comportamento sempre que as circunstâncias o permitirem.”
A unidade resolutiva abrange a actividade e os actos individuais que a materializam os quais estão abrangidos por essa resolução. É exactamente o que acontece no crime de tráfico de droga. O agente toma a resolução de traficar droga e todos os actos materiais de tráfico, numa das suas 18 modalidade de acção, ficam abrangidos por essa mesma resolução.
Tal como no tráfico de droga, as alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 176 do Código Penal, estão estruturadas por referência a várias actividades e modalidades de acção.
Na alínea c) estão em causa as actividades de “Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir, ceder ou disponibilizar a qualquer título ou por qualquer meio” materiais pornográficos e na alínea d) as actividades de “Adquirir, detiver ou alojar materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder”, os mesmos materiais pornográficos.
Como facilmente se constata, a estrutura do crime de tráfico de estupefacientes27 e do crime de pornografia de menores, previsto e punido nas alíneas c) e d) do artigo 176º do Código Penal é idêntica, nada justificando um tratamento diverso do ponto de vista do concurso, porquanto nenhum deles, como ficou referido, protege directamente bens eminentemente pessoais.
Como referem José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, a propósito do concurso de crimes no crime de pornografia de menores, “ (…) as condutas descritas nas alíneas a) e b) do nº1 do art. 176.° do CP existe uma violação direta do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual que implica que por cada menor utilizado ou aliciado para efeitos de espetáculos, fotografias, filmes ou gravações pornográficas se consuma um crime. Assim, o número de crimes coincide com o número de vítimas usadas ou aliciadas.
Por seu turno, as alíneas c) e d) do nº 1, os n.ºs 4, 5, e 6 do art. 176. ° do CP reconduzem a atuação ilícita à produção, distribuição. Importação, exportação, divulgação, exibição, cedência, aquisição, detenção, acesso, obtenção e facilitação de acesso dos materiais pornográficos. A utilização no plural (materiais), aliado ao facto de que estas atividades são uma forma de tutela indireta da liberdade e auto- determinação sexual, determinam que se conclua que o número de materiais pornográficos em causa relevam para a escolha e medida da pena, mas não para a individualização de crimes consumados. Assim, existirá um só crime, independentemente do número de fotografias, filmes ou gravações.”28
Não podíamos deixar de estar mais de acordo.
Na verdade, não faz sentido, do ponto de vista da punição, tratar de forma diversa os crimes de tráfico de estupefacientes ou o crime de lenocínio em relação à mesma vítima e o crime pornografia de menores, tipificado nas alíneas c) e d), do nº 1 do artigo 176º do Código Penal.
Em todos estes crimes tipificados por referência a actividades, nos quais estejam em causa várias modalidades de acção e actos reiterados e quando não estejam em causa, ao nível do bem jurídico, bens eminentemente pessoais, nada obsta a que os mesmos sejam considerados um único crime de trato sucessivo.
Esta solução, antes da alteração introduzida no nº 3 do artigo 30º do Código Penal pela Lei n.º 40/2010 de 03 de Setembro, era de uma forma generalizada sufragada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, como se pode verificar, a título de mero exemplo, no acórdão de 23 de Janeiro de 2008, no qual se escreveu, reportando-se ao abuso sexual de crianças do artigo 171º do Código Penal, “Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude.”29
Perante o que fica dito, acompanhamos, pois, o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2017, parcialmente já transcrito neste acórdão, o qual tem como sumário: “A conduta do arguido que importou, partilhou e detinha com vista à partilha de 4349 ficheiros de conteúdo pornográfico de menores com idades inferiores a 16 e 14 anos de idade integra a prática pelo arguido de um único crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelo art. 176.º, n.º 1, als. c) e d) e art. 177.º, n.º 6 e 7, do CP, atenta a natureza do bem jurídico violado, na medida em que não é imediatamente a liberdade e autodeterminação sexual ou interesses exclusivamente pessoais que estão em causa na ilicitude em questão, mas um bem jurídico supra individual, de interesse público, de protecção e defesa da dignidade de menores, na produção de conteúdos pornográficos e divulgação ou circulação destes pela comunidade.”30
Assim, entendemos, tal como o Tribunal de 1ª instância, que o arguido apenas cometeu um único crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea c), agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 7, do Código Penal.
Procede, assim, parcialmente o recurso do arguido e em consequência revoga-se o acórdão recorrido, no que respeita à condenação do arguido, prevalecendo em conformidade a sentença da 1ª instância.
Em resumo, confirma-se o acórdão recorrido no que respeita à alteração da matéria de facto e revoga-se na parte relativa à condenação do arguido prevalecendo, nesta parte e em conformidade a sentença da 1ª instância.
Ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso, nomeadamente a medida da pena, porquanto o aqui recorrente não recorreu da decisão da 1ª instância para o Tribunal da Relação de Lisboa.
III. Decisão
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, decide julgar parcialmente procedente o recurso do arguido AA e em consequência:
- confirmar o acórdão recorrido no que respeita à alteração da matéria de facto;
- revogar o mesmo no que respeita à condenação do arguido, prevalecendo nesta parte e em conformidade a sentença da 1ª instância.
Sem custas, atento o vencimento parcial (artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal).
Supremo Tribunal de Justiça, 09 de Abril de 2025.
Antero Luís (Relator)
Carlos Campos Lobo (1º Adjunto)
Horácio Correia Pinto (2º Adjunto)
_____________________________________________
1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. Neste sentido e por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2023, Proc. 7528/13.0TDLSB.L3.S1, disponível em www.dgsi.pt
5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-07-2007, processo n.º 07P2279, in www.dgsi.pt
6. In Proc nº 07P4375 in www.dgsi.pt
7. Publicado no Diário da República I Série de 28 de Dezembro de 1995.
8. Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, pág. 200.
9. Proc. 308/08.7ECLSB.S1.
10. Ac. STJ 19/07/2006 Proc. 1932/06, ambos in www.dgsi.pt.
11. In “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
12. Proc. nº 194/14.8TEL.SB.S1, disponível in www.dgsi.pt
13. Proc. nº 1379/21.6JAPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
14. Nesse sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de Março 2015, Proc. nº 524/13.0JDLSB.E1, disponível em www.dgsi.pt;
15. Nesse sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Dezembro de 2017, Proc. nº 7347/11.9TALRS.L1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03 de Dezembro de 2014, Proc. nº 4190/11.9TAGDM.P, disponíveis em www.dgsi.pt
16. Crimes Sexuais Análise Substantiva e Processual, Coimbra Editora 1ª Edição 2015, pág. 191.
17. Ob. Cit. Págs. 192 e 193.
18. Comentário Conimbricense, I vol., 2.ª edição art. 176.º/ § 3, p. 880.
19. Comentário Conimbricense Tomo I ed., 1999, art. 172/ § 19, pág. 548.
20. Código Penal Parte geral e especial, Almedina 2015, págs. 775 e 776.
21. Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Dezembro de 2018, proc. nº Proc. n.º 2201/17.3JAPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt
22. Curso de Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Gestlegal, 2021, pág. 739.
23. Veja-se, nesse sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2006, proc. nº 06P1709, disponível em www.dgsi.pt
24. Proc. n.º 234/15.3JAAVR.S1, disponível em www.dgsi.pt
25. Proc. nº 291/10.4JDLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt
26. Proc. nº 862/11.6TAPFR.S1, disponível em www.dgsi.pt
27. Contra esta equiparação, o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Fevereiro de 2019 já citado.
28. Ob.cit. pág. 203.
29. Proc. nº 07P4830, disponível em www.dgsi.pt
30. Proc. nº 194/14.8TEL.SB.S1, disponível em www.dgsi.pt