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PROCESSO DE TRABALHO
RECONVENÇÃO
COMPENSAÇÃO
Sumário
O réu pode, em reconvenção, pedir o reconhecimento de um crédito sobre o autor, para obter a compensação, para a eventualidade de se provar o direito de crédito do autor, crédito que o réu na sua defesa nega.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO
AA, com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Associação Humanitária Bombeiros Voluntários de ..., também nos autos melhor identificada, pedindo a condenação desta a pagar-lhe:
“1. a quantia de 4.560,00€, relativa a horas Noturnas, e, 2. a quantia de 360,00, relativa a Férias não gozadas 2021 referentes a 2020, e, 3. a quantia de 720,00€, relativa a proporcional de férias de 2021, e, 4. A quantia de 830,00€, relativa a direitos de formação. 5. Os juros vencidos e vincendos à taxa legal, sob as importâncias devidas desde a constituição em mora até efetivo e integral pagamento, que nesta data [com referência à data da instauração da acção] perfaz o montante global de 255,25€.”
Alegou, para o efeito e muito em síntese, que no dia 01 de Agosto de 2018, por contrato de trabalho escrito, foi admitido ao serviço da ré por contrato de trabalho por tempo indeterminado, exercer as funções na sede da empresa, mediante a retribuição mensal de 720,00€, acrescida de subsídio de alimentação, no valor diário de 4,77€.
O autor trabalhou nos anos de 2020 e 2021 em período noturno, conforme decorre do horário de trabalho que praticou e que indica.
Tem a férias não gozadas do ano de 2021 respeitantes a 2020.
A ré nunca proporcionou ao autor qualquer ação de formação, nem aquele usufruiu de quaisquer créditos de horas para esse efeito.
O autor comunicou à ré a denuncia do contrato de trabalho, cumprindo os 60 dias de aviso prévio, e cessando o contrato de trabalho efeitos em 01/01/2023.
A ré - tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se, nessa sede, a conciliação - apresentou contestação, defendendo-se por excepção, para o que invocou a prescrição dos créditos do trabalhador e a caducidade do direito de ação, e por impugnação porquanto, aceitando que celebrou com o autor o alegado contrato de trabalho, impugna a demais matéria de facto que fundamenta a acção, alegando por sua vez que foi o próprio autor quem solicitou à ré, com fundamento de se encontrar a realizar um curso de estudos, a alteração do horário de trabalho, gozou as férias a que tinha direito, ministrou formação ao autor, e que o autor deixou de comparecer no local de trabalho, sem fornecer à ré qualquer tipo de justificação.
Deduziu reconvenção na qual alega, em suma, que durante os dias que se seguiram à inopinada não comparência do autor a ré viu o serviço aglomerado e teve de se organizar, com muito esforço, na última hora, reorganizando todo o restante pessoal ao seu dispor, o que prejudicou muito a imagem e serviço da ré, causando um prejuízo nunca inferior a 1.000,00€, e além disso sempre deverá a ré ser indemnizada pelo autor, no valor de dois meses de retribuição, que é o correspondente ao período de aviso prévio em falta, ou seja, no montante 1.440,00€.
Termina a contestação/reconvenção nos seguintes termos:
“Nestes termos e nos melhores de direito, deve: a) Ser a presente ação julgada totalmente improcedente, por não provada, com as legais consequências;
E sempre, b) Ser a reconvenção julgada procedente, por provada, e o Autor ser condenado nos termos peticionados, ou assim não se entendendo, ser operada a compensação dos créditos da Ré, com os que que o A. vier a provar ter direito a receber, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento, com as legais consequências.”
O autor apresentou resposta em que, no fundamental, pugna pela improcedência da excepção da prescrição deduzida pela ré e, reafirmando a posição já vertida no articulado inicial, impugna a matéria reportada à fundamentação da reconvenção.
Prosseguindo os autos, veio a proferir-se despacho pré - saneador com o seguinte conteúdo:
“A ré “Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de ...” veio, na sua contestação, deduzir reconvenção, pretendendo que seja a autora/reconvinda condenada a pagar à ré o montante de € 1 000,00 a título de indemnização por prejuízos e de € 1 440,00 a título de aviso prévio em falta, por efeito da compensação a operar sobre eventuais créditos que venham a ser reconhecidos ao autor, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos. A reconvenção é uma ação cruzada dirigida pelo réu contra o autor, que, por razões de economia processual, irá ser apreciada ao mesmo tempo que a ação originária. Como escrevem ANTUNES VARELA/SAMPAIO E NORA/MIGUEL BEZERRA, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra, 1985, p. 322, “Na contestação-reconvenção, o réu, sob a veste de reconvinte, deduz um pedido autónomo (reconvencional) contra o autor (reconvindo)”. A reconvenção é admissível se se verificarem uma série de requisitos, uns, positivos, de índole substancial, outros, negativos, de índole processual. Assim, para a admissão da reconvenção, exige-se, prima facie, que esta tenha efeito útil defensivo, i.e., que a reconvenção tenha a virtualidade de, de algum modo, excluir ou reduzir o pedido dos autores (neste sentido, expressamente, Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de dezembro de 1986, CJ V, p. 83), sob pena de não haver qualquer conexão entre as duas ações.
O autor estriba o seu pedido no incumprimento contratual, pedindo créditos laborais. A título de: «1. a quantia de 4.560,00€, relativa a horas Noturnas, e, 2. a quantia de 360,00, relativa a Férias não gozadas 2021 referentes a 2020, e, 3. a quantia de 720,00€, relativa a proporcional de férias de 2021, e, 4. A quantia de 830,00€, relativa a direitos de formação. 5. Os juros vencidos e vincendos à taxa legal, sob as importâncias devidas desde a constituição em mora até efetivo e integral pagamento, que nesta data perfaz o montante global de 255,25€.».
A ré faz um pedido reconvencional para reconhecimento da falta de pré-aviso pela denúncia do contrato de trabalho pelo autor e do seu direito ao crédito de € 2 440,00 a título de indemnização e prejuízos, pedindo a condenação do autor no pagamento por compensação de créditos.
Dispõe o art.º 30 do Código de Processo do Trabalho que 1- Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 98.º-L, a reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação e nos casos referidos na alínea o) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal. 2- Não é admissível a reconvenção quando ao pedido do réu corresponda espécie de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor. Sobre a reconvenção rege ainda o n.º 3 do art.º 98-L, que não cabe aplicar ao caso, dado apenas respeitar ao trabalhador e na ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento. A reconvenção só é admissível, em processo laboral, quando: a)-o valor da ação strictu sensu é superior ao valor da alçada do Tribunal; e b)-o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação (p. ex., quando o empregador pretende ser ressarcido pela falta de aviso prévio quando o trabalhador alega que se despediu ad nutum); ou as questões reconvencionais que tenham relações de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência com a ação, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão. Tal decorre do texto das conjugadas alíneas n) e o) do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, ou seja, que as relações de conexão aí em causa são as que emergem entre as questões reconvencionais e a ação, por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência. Assim, nos termos do n.º 1 do citado artigo 30.º, a reconvenção é admissível: (i) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção; (ii) quando o pedido do réu está relacionado com a acção por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência; (iii) quando o réu invoca a compensação de créditos. O sentido da expressão «facto jurídico que serve de fundamento à ação» empregue no primeiro segmento do preceito em exame, pelo seu exato teor literal e pela sua inserção sistemática em capítulo intitulado «Instância», em que é regulada a cumulação sucessiva de pedidos e de causas de pedir (artigo 28.º), só pode ser entendido como referindo-se, precisamente, à causa de pedir, isto é, «ao facto jurídico concreto e específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão» (cf. n.º 4 do artigo 581.º do Código de Processo Civil; também, VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, 109.º, p. 313), conferir Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03 de maio de 2006 e ainda, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018, consultados no endereço eletrónico da DGSI. O facto jurídico que serve de fundamento à ação é o (in)cumprimento do contrato de trabalho por parte da ré no que respeita à satisfação dos créditos salariais do autor, mais precisamente retribuição de horas noturnas, retribuição de férias e proporcionais de férias e ainda formação. O facto jurídico que serve de fundamento à reconvenção é o (in)cumprimento do prazo de aviso prévio da cessação do contrato de trabalho por iniciativa do autor e correspondente indemnização pelos danos sofridos pelo não cumprimento do aviso prévio. Não há nexo de dependência entre os pedidos, pelo que o pedido reconvencional não tem cabimento legal. Neste sentido, com situações de facto similares, foram consultados os Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-05-2021 e Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 20-09-2021 e 29-01-2024, todos no endereço eletrónico da DGSI. A ré fundamenta tal pedido no exercício do direito de fazer operar a compensação do crédito que alega ter sobre o autor, para o caso de proceder o pedido do autor. A doutrina e a jurisprudência dividem-se, contudo, entende o Tribunal que, atendendo ao disposto nos artigos 847.º e 848.º n.º 2 do Código Civil não é admissível a declaração de compensação feita sob condição. Efetivamente, a ré declara que, caso seja procedente o pedido do autor, pretende compensar alegados créditos, ou seja, a compensação só operará se ocorrer determinado facto futuro e incerto. Atendendo a que esta matéria já foi devidamente escalpelizada em termos jurisprudenciais, inclusive com referência a doutrina, faremos apenas referência aos acórdãos consultados a este respeito, nomeadamente, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11-04-2019, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-06-2020 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01-07-2021, em sentido contrário foi consultado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-03-2022, todos no endereço eletrónico da DGSI. Assim, o pedido reconvencional efetuado ao abrigo do pedido de reconhecimento de compensação de créditos é processualmente inadmissível. Pelos fundamentos expostos, não admito a reconvenção deduzida pela ré-reconvinte “Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntário de ...”. Custas, no que diz respeito ao valor do pedido reconvencional não admitido, a cargo da ré-reconvinte, nos termos do art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do disposto no art.º 1.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho. Valor do pedido reconvencional: € 2 440,00 (dois mil, quatrocentos e quarenta euros).”
Inconformada com esta decisão, dela veio a ré interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
[…]
13- Por tudo supra exposto, dúvidas não subsistem de que o facto jurídico que serve de fundamento à reconvenção – compensação do crédito que alega ter sobre o autor, para o caso de proceder o pedido do autor -, opera, sem qualquer condição aposta pelo réu reconvinte, logo que esteja verificada a existência do crédito do autor.
14- Ou seja, não estamos perante um autêntica condição, mas antes, perante uma compensação eventual, invocada como dependência de um acontecimento intraprocessual, de que o juiz considere o crédito do Autor fundamentada.
15- Pelo que, deve o presente recurso ser admitido, revogando o despacho recorrido e determinando que o Tribunal a quo admita a reconvenção.
16- Não o tendo feito, violou o douto despacho recorrido o disposto nos artigos 30º do Código de Processo do Trabalho e 126.º, n.º 1, al. o), da Lei n.º 62/2013, de 26-08.
Termos em que deve o presente recurso ser provido, e em consequência ser revogado o douto despacho recorrido, substituindo-se por outro que julgue o pedido reconvencional da Ré/apelante admissível, nos termos sobreditos e com as legais consequências.
Assim decidindo, farão V.ªs Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, a habitual
JUSTIÇA.”
O autor apresentou contra-alegações, onde por sua vez concluiu:
[…]
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Tal parecer mereceu resposta da recorrente, reafirmando nas alegações do recurso, pelo que deverá conceder-se provimento ao mesmo.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II OBJECTO DO RECURSO
Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enuncia-se então a questão que cumpre apreciar:
A reconvenção deduzida pela ré é admissível? III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a decisão da causa são os que resultam do relatório supra.
IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
Contendendo com a questão supra enunciada, estabelece o artigo 30.º do CPT, sob a epígrafe Reconvenção:
“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 98.º-L, a reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação e nos casos referidos na alínea o) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal. 2 - Não é admissível a reconvenção quando ao pedido do réu corresponda espécie de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor.”
O artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) dispõe por seu turno e no que para aqui importa:
“Competência cível 1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: (…) n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente; o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão; (…)”
Traz-se também à colação o artigo 266.º do CPC que, acerca da Admissibilidade da reconvenção no regime processual comum, na parte que se entende para aqui pertinente prescreve:
1 - O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.
2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
(…)
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
(…)”
O Tribunal a quo restringiu a fundamentação da inadmissibilidade da reconvenção a, num primeiro argumento, o facto jurídico que serve de fundamento à reconvenção ser diverso do facto jurídico que serve de fundamento à acção e também não haver nexo de dependência (relevante para este efeito) entre os pedidos, e numa outra linha argumentativa que, apesar de a ré/reconvinte declarar também querer fazer operar a compensação do crédito que alega ter sobre o autor, tal declaração é feita sob condição, pois é só para o caso de proceder o pedido do autor, o que torna igualmente inadmissível a reconvenção.
Nada temos a apontar à fundamentação exposta naquele primeiro argumento, que leva a concluir pela inadmissibilidade da reconvenção à luz dos específicos segmentos normativos a que se reporta.
Com efeito, decorre com clareza do relatório inicial que as causas de pedir da acção e da reconvenção são diferentes[1] – e o art. 30.º/1 do CPT só releva, para efeitos de a admissibilidade da reconvenção, é o pedido do réu emergir do facto jurídico que serve de fundamento à ação (e, distintamente do previsto no art. 266.º/2 a) do CPC, já não do facto jurídico que serve de fundamento à defesa), e nem o pedido reconvencional emerge de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência nos termos previstos na al. alínea n) (ex. vi da al. o)) do n.º 1 do artigo 126.º da LOSJ.[2]
O recurso, aliás, não abrange este segmento da fundamentação da decisão proferida.
Quanto ao entendimento, igualmente sufragado pelo Tribunal recorrido, de que, apesar de a ré/reconvinte também declarar querer fazer operar a compensação do crédito que alega ter sobre o autor, tal declaração é feita sob condição, pois é só para o caso de proceder o pedido do autor, o que também impede a admissão da reconvenção, não faz, com o merecido respeito pela opinião contrária, a melhor aplicação da lei, sendo que (também) a este propósito e como se dá nota na decisão recorrida, a doutrina e a jurisprudência dividem-se[3].
Como é consabido, a compensação é uma das possíveis causas de extinção das obrigações cujo regime substantivo tem assento no Código Civil.
Assim, e quanto aos requisitos da compensação dispõe o artigo 847.º do CC:
“1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos: a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade. 2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente. 3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.”
Estabelecendo o imediato artigo 848.º do mesmo Código, cuja epígrafe é Como se torna efectiva:
“1. A compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra. 2. A declaração é ineficaz, se for feita sob condição ou a termo.”
Considerando que a ré deduziu a reconvenção peticionando, a título subsidiário, que seja operada a compensação dos seus créditos com os que que o A. vier a provar ter direito a receber, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento, e não se questionando a verificação dos demais requisitos, parece que a admissibilidade da reconvenção resulta evidente da conjugação do n.º 1 do art. 30.º do CPT com a parte final da al. o) do n.º 1 do art. 126.º da LOSJ: “salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão”.
Mas será que a declaração de compensação assim efectuada pela ré/reconvinte é, afinal, ineficaz, por ser for feita sob condição?
Revemo-nos na síntese do sumário do Ac. da RL de 09-03-2022 quando aí se diz que “(…) é admissível a reconvenção para compensação eventual quando deduzida para a hipótese de se provar a existência do crédito peticionado na acção (…).”[4]
E aderimos à respectiva fundamentação, onde consta:
«Com efeito, (…) sustentou Vaz Serra[5] que "o art.º 848.º, n.º 2, do nosso CC dispõe que «a declaração (de compensação) é ineficaz, se for feita sob condição ou a termo». Isto não obsta, porém, à admissibilidade da compensação eventual, já que não é feita sob uma autêntica condição, mas apenas sob reserva de uma circunstância (a existência do crédito contra o qual se compensa) que é pressuposto essencial da compensação. Acresce que a compensação eventual não cria uma incerteza como a que o n.º 2 do art.º 848.º se propõe evitar. A compensação eventual representa uma declaração convencional de compensação, pois o seu autor declara que só para o caso de a acção ser fundada, isto é, se tivesse de ser condenado (só então quer a compensação, não desejando, portanto, sacrificar o seu contracrédito, se não for preciso), e seria, consequentemente, ineficaz, se lhe fosse aplicável o n.º 2 do art.º 848.º, mas não é, pelas razões já ditas".[3] No mesmo sentido também seguiu Manuel de Andrade, o qual "advertia[…] por último que nalguns casos a reconvenção pode ser deduzida a título eventual, só para a hipótese de a acção ser julgada procedente";[4] mais recentemente também se pronunciaram neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela[6], no Código Civil Anotado, volume II, 2011, 4.ª edição, Coimbra Editora, página 136, ao afirmar que "o facto de não poder declarada sob condição ou a termo não obsta a que a compensação seja declarada a título subsidiário, para o caso de vir a ser reconhecido o crédito do demandante, cuja existência o demandado impugna. Sendo o crédito do demandante reconhecido judicialmente, o demandado invoca nessa altura, com toda a certeza e determinação exigidas indirectamente na lei, a vontade de extingui-lo mediante compensação com o seu contracrédito"; mais proximamente ainda, também Menezes Cordeiro se mostrou concordante com esta solução, ao escrever no Tratado de Direito Civil, IX: Direito das Obrigações – cumprimento e não cumprimento, transmissão, modificação e extinção, 3.ª edição totalmente revista e aumentada, Almedina, 2017, página 1090, que "pode o demandado numa acção não admitir, a qualquer outro título, uma dívida que lhe seja imputada e, todavia, invocar a compensação a título subsidiário"; por fim, igualmente José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre afinaram pelo mesmo diapasão ao sustentaram que "a reconvenção pode ser deduzida condicionalmente, ficando subordinada à procedência da pretensão do autor"»
Miguel Teixeira de Sousa, no Blog do IPPC - https://blogippc.blogspot.com/ - tem sustentado reiteradamente um entendimento semelhante, com argumentação que se nos afigura convincente.
Assim, em publicação do dia 09/07/2020:
«(…) 3. Contra a admissibilidade da reconvenção subsidiária, a RP invoca o disposto no art. 848.º, n.º 2, CC, que determina que a declaração de compensação é ineficaz, se for feita sob condição ou a termo. Salvo o devido respeito, há aqui uma confusão. Uma coisa é não ser possível fazer uma declaração de compensação sujeita a uma condição, outra coisa completamente diferente é deduzir em juízo a compensação para o caso de o crédito do autor vir a ser reconhecido. No primeiro caso, a compensação só operaria se se verificasse a condição aposta pelo declarante, no segundo a compensação opera, sem qualquer condição aposta pelo réu reconvinte, logo que esteja verificada a existência do crédito do autor. Acresce que a existência do crédito do autor não é uma condição da compensação, mas antes um requisito da compensação. Portanto, a dedução subsidiária da compensação em juízo nada tem a ver com a inadmissibilidade da sujeição da declaração de compensação a uma condição. 4. Duas observações finais: -- A compensação subsidiária ou eventual é uma figura antiga; a título de exemplo, cita-se Oertmann, Die Aufrechnung im Deutschen Zivilprozessrecht (1916), 265 ss., e transcreve-se Rosenberg, Lehrbuch des Deutschen Zivilprozessrechts (1927), 309: "A declaração da compensação é insusceptível de ser sujeita a condição (BGB, § 388 (2)). A alegação da compensação (declarada) pode, como qualquer outro acto processual, ser feita de forma eventual, isto é, pode ser invocada como dependência de um acontecimento intraprocessual, em especial de que o juiz considere o crédito do autor fundamentado ou considere não fundamentada uma outra excepção do réu: é a chamada compensação eventual"; -- Também a título de exemplo, a compensação subsidiária é admitida (naturalmente, pode dizer-se) por Antunes Varela/Pires de Lima, Código Civil Anotado II (1997), 136 (precisamente em anotação ao art. 848.º CC), e por Lebre de Freitas/ I. Alexandre, Código de Processo Civil Anotado I (2018), 533. [idem 4.ª Ed. (2021), onde se referencia jurisprudência adrede]» (negrito nosso)
Da publicação feita no dia 06/09/2021 respigamos:
«c) Ainda que se entenda que a compensação subsidiária ou eventual é deduzida sob a condição da existência ou do reconhecimento do crédito do autor, importa referir que esta condição nada tem a ver com aquela a que se refere o art. 848.º, n.º 2, CC. Um pedido subsidiário é -- pode dizer-se -- um pedido condicional. É claro, no entanto, que esta condição nada tem em comum com a condição a que se referem os art. 270.º ss. CC. O acórdão da RG padece desta confusão entre a condição "processual" e a condição "material".»
Tendo concluído em publicação do dia 10.01.2022
«Em suma: a reconvenção subsidiária é uma figura geral e indiscutível da Ciência Processual Civil.»
Concordamos pois com o já citado Ac. da RL de 09-03-2022 quando aí se escreve que, “Este modo de ver as coisas [em suma, o reconvinte não pode pretender a compensação se negar a existência do crédito previamente reclamado pelo reconvindo] seguramente fará sentido relativamente à reconvenção deduzida a título principal, pois que então seria contraditório o reconvinte negar a existência do crédito peticionado na acção e ainda assim arrogar-se como titular de um contracrédito que pretendesse compensar, mas já não quando o faz para a hipótese de se provar a existência daquele.”; Como de forma esclarecedora se lê em anotação ao n.º 2 do art. 848.º do CC no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, “Sendo o crédito do demandante reconhecido judicialmente, o demandado invoca nessa altura, com toda a certeza e determinação exigidas indirectamente na lei, a vontade de extingui-lo mediante compensação com o seu contracrédito.”[7]
Concordamos assim com a afirmação da recorrente expressa em 14 das conclusões do recurso, de que “(…) não estamos perante uma autêntica condição, mas antes, perante uma compensação eventual, invocada como dependência de um acontecimento intraprocessual, de que o juiz considere o crédito do Autor fundamentada.”
Acresce que nos parece também acertado o acórdão da RC de 15-02-2022 quando na sua fundamentação se argumenta que “Assim, perante o normativo em causa, na defesa da economia processual (evitar a duplicação de processos) e da compensação de créditos (imediata liquidação de dívidas), o facto da ré contestar o crédito do autor não impede o conhecimento do contracrédito, avaliado no caso do reconhecimento (judicial) do crédito da autora.”[8] (e de cujo Sumário consta: “O réu pode, em reconvenção, pedir o reconhecimento de um crédito, para obter a compensação, para o caso de não proceder a defesa dele consistente na negação do direito de crédito do autor.”)
Sabido, ademais, que existem créditos que por regra carecem de fixação judicial, por recurso até a critérios de equidade, como sucede por ex. com as indemnizações por danos não patrimoniais ou pelo designado dano biológico[9], seria de todo irrazoável que o réu não pudesse contrapor um crédito que detivesse sobre o autor por não aceitar in limine o crédito que, com tal natureza, este sobre si se arrogasse.
Deve, pois, ser admitida a reconvenção para efeitos de (eventualmente) a ré/reconvinte poder obter a compensação, se não houver outras razões para a não admitir, já que este Tribunal de recurso só reapreciou a questão da inadmissibilidade da reconvenção com fundamento em a ré fundamentar o pedido reconvencional no exercício do direito de fazer operar a compensação do crédito que alega ter sobre o autor, para o caso de proceder o pedido do autor.
V - DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, devendo em sua substituição, e se não houver outras razões para a não admitir, o Tribunal recorrido proferir decisão que admita a reconvenção para que, se for caso disso, a ré possa obter a peticionada compensação de créditos.
Custas da apelação a cargo do recorrido.
Notifique.
Guimarães, 02 de Abril de 2025
Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor
[1] Tem razão o recorrido quando conclui que Sendo a causa de pedir da ação interposta pelo Trabalhador fundamentada no incumprimento do dever de a entidade empregadora pagar as retribuições devidas pela cessação do vínculo laboral e, por sua vez, a causa de pedir da reconvenção deduzida pela Entidade empregadora, fundamentada na cessação do contrato de trabalho por iniciativa do Trabalhador, nomeadamente no incumprimento, por parte deste, do prazo de aviso prévio e danos sofridos por decorrência, o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação. [2] Cf. Ac. RG de 02-02-2023, Proc. 1416/22.7T8GMR-A.G1, www.dgsi.pt, com o mesmo Relator e em que sumariamos: “As relações de acessoriedade, complementaridade ou dependência, previstas na alínea n) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e para que remete a alínea o) do mesmo número, exigíveis para que a reconvenção seja admissível, devem estabelecer-se entre as questões reconvencionais e as suscitadas na ação, de molde que entre o pedido do autor e o pedido reconvencional tem de haver um nexo de “tal ordem que a relação dependente não pode ser desligada da acção principal”. [3] Afastámo-nos assim do entendimento perfilhado no Ac. desta Relação de 16-12-2021, Proc. 704/21.4T8BRG-A.G1, www.dgsi.pt [4] Na mesma linha, para além da doutrina e jurisprudência aí citadas, Ac.s RP de 20.01.1998 e de 18.01.2000, Emídio Costa e Lemos Jorge, respectivamente, in BMJ n.ºs 473 – pág. 566 - e 493 – pág. 420. [5] Também, citando Vaz Serra (na RLJ, 104.º, págs. 372/373), defende Abílio Neto no seu Código Civil Anotado - EDIFORUM, 9.ª Edição, pág. 606 - que “Não obstante o disposto no n.º 2 [do art. 848.º do CC], a compensação pode ser invocada apenas subsidiariamente no processo (…).” [6] Este autor também in Das Obrigações em geral, Vol. II, 4.ª Ed., Almedina, pág. 205. [7] Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. II, Coimbra Editora, 3.ª Ed. Revista e Actualizada, pág. 141. [8] Proc. 1058/20.1T8ACB-A.C1, Fernando Monteiro, www.dgsi.pt [9] Cf., por ex., Ac. STJ de 26-01-2016, Proc. 2185/04.8TBOER.L1.S1, Fonseca Ramos, e Ac. RC de 21-03-2013, Proc. 793/07.4TBAND.C1, Henrique Antunes, ambos em www.dgsi.pt