ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
INTERESSE EM AGIR
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
FALTA DE CONVITE A APERFEIÇOAMENTO
Sumário


Em ação de simples apreciação negativa, a falta de alegação dos factos que consubstanciam o interesse em agir, enquanto pressuposto processual, é suscetível de sanação, mediante convite ao autor, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 2, do CPC.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a União de Freguesias ... e ..., pedindo que seja «reconhecido que o caminho que confronta do lado nascente com o prédio da A. atualmente inscrito no artigo matricial urbano nº ...60 da União de Freguesias ... e ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...23/..., não configura um caminho público», alegando para o efeito o seguinte:
«1) A A. é dona e legitima proprietária de um edifício de cave, r/c, andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., da União de Freguesias ... e ..., concelho ...,
2) Descrita na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...23/..., com a chave de acesso PP-...23, Doc. nº 1,
3) E inscrita na Respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...60 da União de Freguesias ... e .... Docs. 2 e 3
4) Tal prédio veio à posse da A. no âmbito processo de Inventário que correu termos no Juízo Local Cível de Barcelos, Juiz ..., com o número 43/21...., transitado em julgado em 19/10/2022,
5) que por sua vez estava na posse de seus familiares há de mais de 40, 50, 60, 70 anos.
6) Assim a A., por si e pelos ante possuidores encontra-se na posse deste imóvel há mais de 40, 50, 60, 70 anos, de forma pública, pacifica, sem oposição de ninguém e liquidando os respetivos impostos do mesmo e colhendo os respetivos frutos ou lucros deste.
7) O prédio confronta a nascente com um caminho de servidão, caminho esse que dá acesso ao prédio da aqui A., bem como a outros prédios rústicos que se situam a sul do seu prédio.
8) Tal caminho de servidão, de acesso carral, com a largura de cerca de 2,00m, e extensão de cerca de 300 metros,
9) desde tempos imemoriais, seguramente há mais de 40, 50, 60, 70 anos, tem uso direto, imediato e exclusivo de acesso ao prédio da Autora, bem como aos prédios rústicos situados a sul do prédio da aqui A,
10) visando sempre somente a satisfação de interesses particulares da A. e dos proprietários desses prédios.
11) Sucede que a A. teve conhecimento de que a aqui Ré, emitiu uma declaração para ser junta a um processo de edificação de uma construção, declaração essa que atesta que o caminho de servidão é público.
12) Tal declaração visa somente possibilitar àquele interessado que “prove” junto da Camara Municipal de que o seu prédio rustico confronta com o domínio público, de forma a que a Camara Municipal autorize a tão almejada edificação.
13) Ora tal declaração atesta uma realidade falsa, atento que o caminho nunca foi público, mas sim de uso particular desde tempos imemoráveis, ou seja, há mais de 40, 50, 60 e 70 anos.»

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A Ré contestou, por exceção, invocando a incompetência material do Tribunal, e por impugnação. Deduziu ainda reconvenção, pedindo que se declare que «o caminho em litígio nos autos é um caminho público».
A Autora apresentou réplica.
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1.2. Em 14.10.2024, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«Considerando o teor dos articulados, antes de mais, ao abrigo do disposto no artigo 7º, nº 2, do C.P.C., convido a autora a esclarecer se a alteração da natureza do caminho a que alude no artigo 7º da petição inicial (designadamente, a alteração de caminho de servidão para caminho público) implicou alguma alteração no uso que, enquanto proprietária do seu prédio, faz de tal caminho e, em caso afirmativo, a descrever tal alteração do uso.
Sem prejuízo do exposto, ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº 3, do C.P.C., determino a notificação das partes para se pronunciarem quanto à eventual verificação da exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir da autora.»

Correspondendo ao determinado, a Autora por requerimento de 28.10.2024 disse nos autos:
«1. A A. presentemente, face a esta situação, criada pela Ré,
2. viu-se na necessidade de ter de murar, e ter de encomendar um portão para colocar nessa vedação murada,
3. para evitar a violação do seu direito de propriedade por qualquer estranho, atento que antigamente, nesse caminho só poderiam circular aqueles que tinham direito à respetiva servidão,
4. e hoje, atento a ação da Ré, qualquer pessoa poderá, se bem o entender por aí circular.
5. A A. foi ainda notificada pela Câmara Municipal, tal como consta da prova documental já junta,
6. para que esta ceda ao domínio público uma área de terreno que confina com o caminho de servidão,
7. de forma a que a A. veja aprovado um projeto de construção de uma ampliação que pretendia realizar,
8. que inicialmente não tinha sido exigido pela aquela entidade administrativa,
9. cedência essa que obrigaria, além da cedência do terreno ainda o derrube de um tanque de rega existente na sua propriedade.
10. A A. entende que o recurso à presente ação é essencial, atento que como refere o Prof. Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 79) interesse em agir consiste em estar o direito do demandante carecido de tutela judicial. É o interesse de utilizar a arma judiciária, em recorrer ao processo.
11. O interesse em agir traduz-se no “interesse da parte ativa em obter a tutela judicial de uma situação subjetiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in “As Partes, o Objeto e a Prova na Ação Declarativa – pág. 97).
12. A interposição da presente ação é assim essencial para que a A. obtenha a declaração judicial da (in)existência de um direito, atento que se verifica uma situação de incerteza objetivamente grave que justifica a intervenção judicial.
13. O comportamento da Ré, que para beneficiar e possibilitar licenciamentos de construção a terceiros,
14. aceitou embarcar numa completa ilegalidade, prejudicando assim claramente o direito de propriedade, da A., constitucionalmente protegido no seu art. 64º,
15. além do prejuízo material que tal lhe provoca, bem como no atrasado/obstáculo ao pedido de licenciamento do processo de ampliação do prédio urbano que já se encontrava na Câmara Municipal ....
16. A A. além de ver a sua propriedade devassada,
17. o que jamais aconteceu desde tempos imemoriais,
18. viu ainda a Câmara Municipal a interpelar para ceder ao domínio público uma parcela de terreno que confronta com o caminho de servidão em crise,
19. para assim ver aprovado um projeto de licenciamento de ampliação da sua habitação,
20. que inicialmente nunca havia sido solicitado, tendo tal interpelação só surgido após o comportamento da Ré e a emissão das “tais declarações”.
21. Assim,
22. o recurso a juízo pressupõe, litigiosidade entre as partes ou, no mínimo, um estado de incerteza que imponha uma decisão judicial para acautelar o direito. O que acontece no caso concreto.
23. O estado de incerteza sempre teria de emergir da matéria de facto alegada o que é invocado,
24. Pois, da matéria de facto alegada resulta que há estado de incerteza,
25. uma vez que as partes não estão de acordo quanto aos direitos de cada uma,
26. existindo, sem qualquer sombra de dúvida, um litígio latente, que,
27. atenta a natureza da Ré, e os atos ilegais por si realizados, além dos presentes autos, onde se discute a parte cível,
28. até, já deu origem ao processo crime com o nº 684/24...., que corre os seus termos no DIAP de Braga.
29. A A. concretiza de forma absolutamente clara o facto jurídico de onde deriva o direito real que pretende ver reconhecido, aliás, de forma tão clara que as partes não estão de acordo.
30. É, pois, claríssimo que da matéria de facto invocada emerge um litígio,
31. uma situação de incerteza objetivamente grave, atenta o dano provocado pela Ré na esfera jurídica da A.,
32. que se projecta em circunstâncias exteriores,
33. que é um prejuízo concreto e real,
34. e não em meras conjeturas, caprichos ou hipóteses académicas.
35. Estamos, pois, perante um conflito de interesses entre a A. e a Ré,
36. atento ao estado de indefinição relativamente aos direitos de cada um, se arroga,
37. de molde a justificar, sem qualquer dúvida,
38. a intervenção judicial.
Pelo que, só se poderá considerar, por isso, existir interesse em agir por parte da A. com os devidos efeitos legais.»
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1.3. Dispensada a realização de audiência prévia, depois de não ter sido admitida a reconvenção e de se julgar improcedente a exceção de incompetência material do tribunal, foi proferida a decisão recorrida, a julgar verificada a exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir da Autora e a absolver a Ré da instância.
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1.4. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«A) – Verificada a falta de um pressuposto processual que possa ser sanada, o Tribunal, nos termos do artigo 6º, n.º 2 do Código de Processo Civil, providencia pelo seu suprimento, devendo convidar as partes a praticar os atos que, para o efeito, se mostrem necessários.
B) - O interesse em agir constitui um pressuposto processual e a sua falta é passível de ser sanada.
C) - A sanação da falta de pressupostos processuais e o convite ao aperfeiçoamento têm na sua base a ideia de economia processual.
D) - O determinado no artigo 6º, n.º 2 do Código de Processo Civil não constitui uma mera faculdade do juiz, mas sim um verdadeiro dever.
E) – O Tribunal a quo não permitiu o suprimento da falta de interesse em agir, proferindo sentença que absolveu a R. da instância.
F) – O despacho proferido em 14/10/2024 não configura qualquer convite ao aperfeiçoamento nem visou o suprimento da falta de um pressuposto processual.
G) - Os factos alegados pela A. no seu requerimento de 28/10/2024 podiam perfeitamente ter sido inseridos numa petição inicial aperfeiçoada, caso o Tribunal a quo tivesse dado cumprimento ao disposto no citado artigo 6º, n.º 2.
H) – O Tribunal a quo não poderia julgar verificada a exceção inominada de falta de interesse em agir e absolver a R. da instância sem antes convidar a A. a praticar os atos necessários a suprir a mesma.
I) - A decisão recorrida violou o disposto no artigo 6º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
J) - Ao proferir sentença que absolveu a R. da instância sem providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, o Tribunal a quo faz uma interpretação inconstitucional do artigo 278º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil, por violação da garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrada no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o que expressamente se invoca.

DEVE assim revogar-se a douta sentença recorrida, como é de JUSTIÇA!»
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A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
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1.5. Questões a decidir

Atentas as conclusões do recurso interposto pela Autora, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, incumbe decidir se a falta de alegação de factos reveladores de interesse em agir é suscetível de sanação e, na afirmativa, se deveria ter sido proferido despacho convidando ao aperfeiçoamento da petição inicial.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Relevam para a apreciação do objeto do recurso as incidências processuais mencionadas em I.
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2.2. Do objeto do recurso
Nos termos do artigo 10º, nº 3, al. a), do CPC[1], as ações de simples apreciação são as que tem por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
Na medida em que a Autora pretende que se declare que o caminho em causa nos autos não é um caminho público, estamos perante uma ação de simples apreciação negativa.
Segundo Miguel Teixeira de Sousa[2], «[a]s acções de simples apreciação são admissíveis se houver uma incerteza objectiva sobre o direito ou o facto: nas acções de simples apreciação positiva, a incerteza é criada pela negação pelo demandado do direito ou do facto; nas acções de apreciação negativa, a incerteza é originada pela afirmação pelo demandado do direito ou do facto. (c) A incerteza objectiva assegura o interesse processual das partes, pq justifica a utilidade da tutela jurídica
É de notar que nas ações de simples apreciação ou declaração negativa compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga – art. 343º, nº 1, do CCiv. No fundo, corresponde à regra geral em matéria de ónus da prova: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (art. 342º, nº 1, do CCiv).
O interesse em agir, sinónimo da antiga designação de interesse processual, consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação[3]. Por conseguinte, é necessário que se verifique uma situação de necessidade de tutela judiciária, ou seja, de carência da intervenção dos tribunais. Exige-se uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação.
Nas ações de simples apreciação não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, pois que, como alertam Antunes Varela e outros, «a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objetiva e grave. Será objetiva a incerteza que brota de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor. (…) A gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor.»[4]
Também Manuel Andrade referia que «nas acções de simples apreciação, é onde este requisito [o interesse em agir, que o autor designava de interesse processual] mais avulta como quid inconfundível com o direito (lato sensu) do demandante. (…) A incerteza deve ser objectiva e grave. Não basta a dúvida subjectiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais. Importa que a incerteza resulte de um facto exterior; que seja capaz de trazer um sério prejuízo ao demandante (…)»[5].
No mesmo sentido se pronunciava Anselmo de Castro: «a interposição da acção de mera apreciação requer um real interesse em agir, consubstanciado num estado de incerteza objectiva que possa comprometer o valor ou a negociabilidade da própria relação jurídica. Não bastará, portanto, um estado de incerteza subjectiva, como seria o caso de alguém se sentir incerto, duvidoso “ab intrinseco”, acerca da existência de um seu direito e vir a tribunal solicitar a declaração de tal situação jurídica. De outro modo qualquer pessoa poderia, por mero descargo de consciência, por uma incerteza puramente subjectiva ocupar a atenção do tribunal. Por isso haverá que requerer-se como pressuposto da acção um estado de incerteza objectiva da situação jurídica respectiva, originado em dúvidas levantadas pela autoridade, quando perante ela é invocada a respectiva relação jurídica, ou pela contraparte ou terceiro de molde a que esse estado de dúvida afecte seriamente o direito em causa»[6].
Igualmente Lebre de Freitas, em diversos textos, designadamente na obra Introdução ao processo civil, Coimbra, Gestlegal, 2017, no ponto nº I.3, concretiza de forma semelhante o conceito de interesse processual na ação de simples apreciação, como pressuposto processual.
Por conseguinte, e em resumo, na ação de simples apreciação negativa o autor tem de alegar na petição inicial que o réu se arroga do direito negado por aquela parte e os factos que demonstram o seu interesse em agir[7], factos esses reveladores da objetividade da incerteza e da gravidade da dúvida.
Atenta a sua natureza, tal como é uniformemente considerado na doutrina e na jurisprudência, o interesse em agir constitui um pressuposto processual. Como não consta do respetivo elenco legal, tem carácter inominado, como bem se qualificou na decisão recorrida.
A ausência de interesse em agir, enquanto pressuposto processual, ou seja, um requisito de ordem formal ou processual que se deve verificar para que o tribunal possa pronunciar-se sobre o mérito da causa, tem como efeito a abstenção do conhecimento do mérito da causa, com a consequente absolvição do réu da instância.

A Recorrente, e bem, não questiona a conclusão do Tribunal recorrido sobre a não alegação na petição inicial dos factos relevadores do interesse em agir.
O que a Recorrente alega é que se trata de um pressuposto processual suscetível de sanação, preconizando que deveria ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando-a a suprir a aludida deficiência da petição inicial.
Se analisarmos o regime dos pressupostos processuais típicos ou dos pressupostos de atos processuais, verificamos que a regra é serem supríveis, tal como resulta, designadamente, dos artigos 14º, 16º, 17º, 20º, nº 1, 27º, 29º, nºs 1 e 2, 2ª parte, 41º, 48º, nº 2, 49º, nº 3, 261º, nº 1, e 316º, nº 1, todos do CPC.
Por outro lado, o artigo 6º, nº 2, determina que «o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.»
Por conseguinte, o juiz deve providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais sanáveis, o mesmo é dizer, na terminologia do artigo 590º, nº 2, al. a), que deve diligenciar pelo suprimento de exceções dilatórias (arts. 576º, nº 2, e 577º) que sejam sanáveis. Em alguns casos, como sucede na situação prevista no artigo 27º, nº 1, em que a incapacidade do autor é suprida através da citação do representante do maior acompanhado, a sanação decorre de ato do próprio juiz – é oficiosa.
Sendo o regime perfeitamente explícito quanto às exceções dilatórias nominadas, resta saber qual será a regra aplicável ao pressuposto processual do interesse em agir, uma vez que a sua falta constitui, pacificamente, uma exceção dilatória inominada.
Importa precisar que a matéria relativa aos pressupostos processuais não integra o conceito de causa de pedir, exercendo funções distintas, pelo que a falta de alegação de factos reveladores do interesse em agir não determina a ineptidão da petição inicial nos termos do artigo 186º, nº 2, al. a). Somente a falta de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (art. 5º, nº 1) poderá determinar a ineptidão da petição inicial, geradora da nulidade de todo o processo (art. 187º, nº 1), e a consequente procedência da exceção dilatória prevista no artigo 577º, al. b), cuja consequência é a absolvição da instância (art. 278º, nº 1, al. b)).
A este propósito são reveladoras as palavras de Lebre de Freitas, na obra Acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra Editora, 2000, págs. 37 e 38: «[o] autor há-de indicar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma, os quais constituem a causa de pedir (art. 498-4), que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido, embora pela natureza das coisas, essa indicação não tenha, nas acções de simples apreciação negativa da existência dum direito (não na acção de simples apreciação negativa da existência dum facto jurídico, que, como tal, tem de ser individualizado (…) mas já pode não (…) conter [a individualização] a pretensão da inexistência do direito real) o mesmo rigor que naquelas em que o autor afirma a existência dum seu direito (cabe ao réu, nestas acções, a prova dos factos constitutivos do seu direito [art. 343-1 do CC] bem como a sua alegação [art. 502-2], pelo que, sem prejuízo da dedução, sempre possível, da reconvenção (…) a acção de simples apreciação se mantém, até à contestação, aberta a todos os eventuais factos constitutivos do direito do réu. Assim, ao autor mais não é exigível, ao propor a acção, do que a alegação dos factos, do seu conhecimento, que o réu afirma como constitutivos do seu direito, ou, no limite, do que a individualização do direito que o réu se arroga sem dizer porquê. (…) A exigência do estado de incerteza gerado pelas afirmações do réu, ou por outros factos igualmente graves e susceptíveis de justificar a intervenção judicial, é manifestação do pressuposto processual ou interesse em agir (…)».
Posto isto, no nosso entender, o pressuposto processual interesse em agir é suscetível de sanação.
Em primeiro lugar, inexiste qualquer norma que imponha a solução contrária.
Em segundo lugar, o atual modelo de processo civil, na ausência de norma expressa que o impeça ou que a tal não obste a própria natureza do vício, aponta tendencialmente no sentido da admissibilidade da sanação de todos os vícios em que seja materialmente possível o seu suprimento, uma vez que a preocupação que norteia o regime legal é a de assegurar que o processo, sempre que possível, termine por uma decisão de mérito. Esse é o regime-regra aplicável a qualquer vício, designadamente à falta de um pressuposto processual, constituindo manifestação do mesmo, no que respeita às exceções dilatórias, o disposto no artigo 278º, nº 3, do CPC.
Dito de outra forma, no caso especifico dos pressupostos processuais, a consequência do vício só é declarada quando o pressuposto em falta é absolutamente insuscetível de suprimento.
Como apontam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[8], «[a]ntes da revisão de 1995-1996 do CPC de 1961, a lei previa a sanação da falta de alguns pressupostos processuais, como a capacidade e a legitimidade em caso de litisconsórcio necessário. Com a revisão, o que era exceção, dependente duma lei que especialmente a previsse, tornou-se a regra e a falta, em geral, dum pressuposto deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância, que só tem lugar quando a sanação for impossível ou quando, dependendo ela da vontade da parte, esta se mantiver inativa.» Os mesmos autores, em anotação ao artigo 590º do CPC, afirmam[9]: «Quanto à insupribilidade, é hoje residual, respeitando tão-só àquelas exceções que, pela sua natureza ou por via do seu regime, não consentem suprimento, oficioso ou mediante convite às partes, ao abrigo do art. 6-2».
No mesmo sentido refere Teixeira de Sousa[10]: «Apesar de o regime só se referir à falta de pressupostos processuais (e, portanto, às excepções dilatórias), o mesmo vale para a falta de pressupostos de actos processuais (como, p. ex., a falta de m.j. do réu (art. 41.º)) e para as nulidades processuais sanáveis que sejam de conhecimento oficioso (como é o caso, p. ex., da falta de citação do réu (art. 187.º, al. a), 188.º e 196.º)). Pode mesmo dizer-se, ainda mais genericamente, que o regime deve ser aplicado sempre que se verifique um vício susceptível de sanação.»
Em terceiro lugar, a concessão da possibilidade de sanação da falta de alegação dos factos consubstanciadores do interesse em agir é compatível com o fundamento que está na base da sua exigência e com os princípios fundamentais que regem o processo civil.
A exigência do interesse em agir nas ações de simples apreciação negativa visa obstar aos graves inconvenientes que resultariam para os particulares se fossem demandados como réus, sujeitos ao ónus da prova de demonstrar o direito ou o facto que o autor nega, sem verdadeira razão de ser. Se assim é, deve ser dada a oportunidade ao autor de concretizar o seu interesse, alegando os factos que justificam o recurso ao tribunal, em conformidade com a garantia de acesso aos tribunais prevista no artigo 2º, nº 1, do CPC e no artigo 20º, nº 1, da CRP. Dando essa possibilidade ao autor, assegura-se um estatuto de igualdade das partes (art. 4º do CPC) e garante-se um processo equitativo (art. 20º, nº 4, da CRP).

Concluindo-se que a exceção dilatória é sanável, a solução não pode ser outra que não a decorrente do disposto nos artigos 6º, nº 2, e 590º, nº 2, al. a), do CPC: impunha-se convidar a Autora a suprir a falta de alegação dos factos que concretizam o seu interesse em agir.
Tendo o processo sido decidido com base na falta de um pressuposto processual sanável, a omissão do dever de convite à sanação torna a decisão recorrida nula por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), uma vez que não podia ser apreciada tal falta sem antes ter sido dada a oportunidade de a parte sanar essa falta.

Termos em que procede a apelação.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente o recurso, revoga-se a decisão recorrida e, em sua substituição, convida-se a Autora, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão, a apresentar nova petição inicial em que supra a apontada falta de alegação factual quanto ao interesse em agir.
Custas a suportar pela Recorrida.
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Guimarães, 02.04.2025
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
António Beça Pereira
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira


[1] São do Código de Processo Civil todas as normas que se citarem sem indicação da respetiva fonte.
[2] CPC Online, versão de novembro de 2024, em anotação ao art. 10º do CPC (nota 6).
[3] Antunes Varela et al., Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 178.
[4] Obra citada, págs. 186 e 187.
[5] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 81.
[6] Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, Almedina, pág. 117.
[7] Neste sentido, podem citar-se os seguintes acórdãos: do STJ nº 1/2008 (relatado por Azevedo Ramos), de 04.12.2007, publicado na 1ª Série do DR de 31.03.2008; desta Relação de Guimarães de 18.02.2016 (Conceição Bucho), proferido no processo 207/13.0TBVRM-A.G1 e de 17.12.2018 (Amália Santos) – proc. 154/15.1T8VFL.G1; da Relação de Coimbra de 19.01.2010 (Judite Pires) – proc. 422/08.9TBSCD.C1, de 22.03.2011 (Pedro Martins) – proc. 158/09.3TBVZL.C1 e de 16.10.2012 (Falcão de Magalhães) – proc. 50/09.1TBALD.C1; da Relação de Lisboa de 04.07.2013 (Teresa Albuquerque) – proc. 563/12.8TBSSB.L1-2 e de 03.12.2015 (Ondina do Carmo Alves) – proc. 11243/14.0T2SNT-B.L1-2; da Relação de Évora de 14.09.2017 (Albertina Pedroso) – proc. 43/06.2TBBJA-A.E1.
[8] Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 4ª edição, Almedina, pág. 46.
[9] Ob. cit., pág. 623.
[10] Ob. cit., em anotação ao art. 6º do CPC.