DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO RÚSTICO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO NEGÓCIO
COMUNICAÇÃO
Sumário

1 - Os elementos constitutivos da exceção prevista na parte final da alínea a) do artigo 1382.º do Código Civil impedem o efeito jurídico pretendido pelos autores, a saber, o reconhecimento do direito de preferência que invocam.
2 – Donde, é sobre a ré compradora que recai o ónus de alegação e prova quer da intenção de dar ao prédio rústico adquirido um diferente destino da cultura, quer da possibilidade legal de concretização desse destino , nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
3 – Quer essa intenção de afetação quer a possibilidade legal de concretização do destino pretendido têm de existir no momento da aquisição formal.
4 – A prova daquela “intenção”, ou seja, a de dar ao prédio um destino diverso daquele que ele tinha à data da aquisição, não se pode bastar com a prova de uma declaração dessa intenção. Isto é, tal declaração, por si só, se desacompanhada da prova de outras intervenções no mundo exterior reveladoras daquela intenção, não é suficiente para impedir o direito de preferência. Embora esteja provado que a primeira ré submeteu à Câmara Municipal de Monchique um pedido de informação prévia (PIP) que teve por objeto o prédio rústico (…), do qual consta que a ré pretende nele edificar uma moradia unifamiliar com a área de 235 m2 e que a Câmara Municipal emitiu parecer favorável à pretensão da 1ª Ré «nos precisos termos em que havia sido apresentada pela 1ª Ré» (sic) (e, ainda, que a 1ª Ré apresentou junto dos Serviços de Finanças de Monchique um requerimento com um pedido de averbamento no prédio (…) de uma parcela urbana com a área de 2500 m2 (facto provado nº 38), para efeitos da previsão do artigo 1381.º, alínea a), do Código Civil, tais factos não relevam porquanto todos aqueles atos são posteriores à data da aquisição formal do prédio. E são-no, inclusive, posteriores à data da citação da 1ª Ré para a presente ação de preferência, pelo que nem sequer podem ser utilizados como elementos auxiliadores de determinação da intenção da compradora (1ª Ré) no momento da aquisição.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 1510/22.4T8PTM.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Eduarda Branquinho


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO
I.1.
(…) e (…), autores na ação declarativa de condenação que moveram contra (…), Lda., (…) e (…), interpuseram recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Portimão – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual julgou a ação e reconvenção parcialmente procedentes e, em consequência:
«a) Reconheceu o direito de preferência dos autores em relação à venda à ré (…), Lda., no dia 9 de junho de 2021, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º (…), freguesia de (…), e inscrito na matriz predial rústica no artigo (…);
b) Declarou que os autores devem ocupar a posição de compradores no contrato supra descrito, por força do seu direito de preferência ficando o prédio acima identificado a pertencer-lhes;
c) Absolveu os réus do pedido restante (direito de preferência sobre a aquisição de 24 de agosto de 2021 do prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º …);
d) Condenou os autores (…) e (…) a pagar à ré (…), Lda. a quantia de cinco mil euros correspondente ao preço por esta pago pela aquisição do prédio descrito em 1), absolvendo-os quanto ao demais peticionado.»

Na presente ação, os autores pediram ao tribunal que:
a) Reconhecesse aos autores o direito de preferência em relação à compra do prédio rústico sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da Secção (…);
b) Reconhecesse aos autores o direito de se substituírem à 1.ª ré na posição de compradora que esta ocupa na respetiva escritura de compra e venda, ficando o prédio (…) a pertencer-lhes, substituindo ainda a 1.ª ré no respetivo registo predial;
c) Condenasse a 1.ª ré e os 2.ºs réus a entregar o referido prédio (…) livre e desocupado;
d) Sendo julgado procedente o peticionado em a) e b), que reconhecesse subsequentemente os Autores o direito de preferência em relação à compra do prédio rústico denominado (…), sito m Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da Secção (…).
e) Reconhecesse aos autores o direito de se substituírem à 1.ª ré na posição de compradora que esta ocupa na respetiva escritura de compra e venda, ficando o prédio (…) a pertencer-lhes, substituindo ainda a 1.º ré no respetivo registo predial;
f) Condenasse a 1.ª ré e os 2.ºs réus a entregar o referido prédio (…) livre e desocupado.
Para fundamentar a sua pretensão os autores alegaram que o autor é proprietário, por via de partilha de herança e desde 29.09.2020, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique, freguesia de (…), sob n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…), o qual confina, pelo lado poente, com o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…) e com o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), ambos objeto de compra pela (…), Lda., sem que os respetivos proprietários, ao tempo, lhe tivessem comunicado o projeto de venda com vista a que ele pudesse exercer o direito de preferência.
Na sua contestação os réus defenderam-se por exceção – invocando, nomeadamente, a caducidade do direito de ação e abuso de direito – e por impugnação; a ré (…), Lda. deduziu ainda reconvenção, pedindo que em caso de procedência dos pedidos dos autores, estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia global de € 15.000,00, a título de preço de aquisição dos prédios supra identificados, e no montante de € 110.000,00, a título de enriquecimento sem causa.
Houve resposta às exceções e ao pedido reconvencional, pedindo os autores / reconvindos que se julgue provada a exceção, por eles invocada, de abuso de direito, relativamente ao pedido reconvencional.

I.2.
Os recorrentes formulam alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A - Da prova produzida, designadamente da escritura do Prédio (…), junta pelos Apelantes na petição inicial como Doc. 5, resulta claro que a 1ª Ré adquiriu o terreno para revenda – “Declara a segunda outorgante que, para a Sociedade sua representada, aceita o presente contrato nos termos exarados e que o prédio objecto da escritura se destina a revenda”.

B- A escritura constitui um documento autêntico, nos termos do artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil, que faz prova plena, nomeadamente, das declarações ali insertas.

C - A 1ª Ré dedica-se à compra, venda e revenda de bens imobiliários, atividade que declarou pretender praticar também relativamente ao Prédio (…) quando declarou em sede de escritura pública que pretendia revender o terreno.

D- A 1ª Ré não se dedica à aquisição de imóveis para habitação do seu gerente nem juntou prova de tal ação ter sido aprovada em Assembleia Geral da Sociedade.

E - Não resultou provado que a 1ª Ré pretendia construir no Prédio (…), mas apenas que “a Primeira Ré declarou pretender construir ali uma moradia unifamiliar destinada a habitação permanente do seu legal representante”.

F - Não se compreende, assim, a seguinte passagem da sentença recorrida – “Ora, relativamente ao prédio (…), a ré provou que pretende dar esse destino diferente da cultura e que tal é permitido por lei. É o que basta para o pedido dos autores improceder nesta parte” – aliás, única e sem qualquer tipo de justificação.

G - Resulta claro da conjugação dos factos referidos que a sociedade adquiriu o Prédio (…) com vista à revenda do mesmo, sendo manifestamente insuficiente uma declaração do seu representante legal, claro interessado no resultado final dos autos, em como a sociedade pretendia construir moradia para sua habitação.

H - Avalia incorretamente, na nossa opinião, o Tribunal a quo, a declaração do representante legal da 1ª Ré, face à prova plena resultante da escritura de ter beneficiado conscientemente da isenção de IMT junto da Autoridade Tributária.

I - Mostrou-se claro o objetivo da 1ª Ré, de revenda, até à propositura da ação.

J - O destino que a 1ª Ré verdadeiramente pretende dar ao prédio (…), de revenda, não é um destino materialmente relevante para efeitos de direito de preferência, mas apenas para efeitos fiscais e de atividade económica da empresa.

K - É manifestamente relevante notar que 1ª Ré apenas mostrou intenção de urbanizar o Prédio (…) após ser citada nos presentes autos.

L- Não existe um único documento junto pela 1ª Ré que demonstre esta alegada intenção de construir no terreno antes da citação, que ocorreu em 17/06/2022, mas, pasme-se, em 22/06/2022, 1ª Ré apresentou pedido de informação prévia para construção de moradia unifamiliar (que nem um projeto de arquitectura inclui).

M - Nos termos do disposto no artigo 564.º, a) e b), do Código de Processo Civil: “Além de outros, especialmente prescritos na lei, a citação produz os seguintes efeitos: (…) Faz cessar a boa-fé do possuidor” e “(…) Torna estáveis os elementos essenciais da causa, nos termos do artigo 260.º”.

N - O possuidor dos terrenos, a 1ª Ré, incorreu em má-fé e em claro abuso de direito ao proceder às alterações a que terá procedido no imóvel (pedido de informação prévia, pedido de transformação do prédio em misto), já depois da citação, quando as poderia ter feito (ou pelo menos iniciado), se tivesse sido essa a sua vontade, durante quase 12 meses.

O - Um dos elementos essenciais da causa é a descrição do prédio (…), que os Autores pretendem apenas para exploração florestal dos sobreiros ali contidos e outras árvores de fruto.

P - Nunca os Autores proporiam a presente ação se tivessem conhecimento de que o prédio (…) tinha qualquer tipo de projeto de construção pendente que o transformasse em prédio misto.

Q - Toda a factualidade vertida na parte C) da Contestação baseia-se em alegados factos ocorridos após a citação, em manifesta má-fé e em claro abuso de direito, tendo os Autores demonstrado a falsidade de tais alegações.

R - Foi feita, na nossa melhor opinião, uma avaliação errada pelo Tribunal a quo dos factos provados e da natureza da prova produzida.

S - O Tribunal a quo falha ao não retirar do facto de que todo o procedimento com vista à urbanização do terreno foi feito após a citação a devida conclusão, que é a atuação de má-fé da 1ª Ré e o abuso de direito em que incorre ao alterar as características do imóvel após a citação, de forma ostensiva (PIP, relatório de avaliação, procedimento administrativo junto da AT).

T - Este abuso de direito resultou, também, na alteração dos elementos essenciais da causa, nos termos conjugados dos artigos 564.º, b) e 260.º do CPC.

U - A causa de pedir baseou-se, nomeadamente, no facto de o Prédio (…) estar classificado como rústico e apto a cultura, e no facto de a 1ª Ré ter declarado pretender revendê-lo.

V - Tivesse a 1ª Ré iniciado diligências para a urbanização daquele terreno, nunca os Apelantes teriam incluído este terreno na ação proposta.

W - É também a esta conclusão que o Tribunal a quo erradamente não chegou.

X - Entendemos que o Tribunal a quo baseou a sentença recorrida nas premissas certas, mas delas retirou as conclusões erradas.

Y - Nem relevam as alegações de que os terrenos eram agricultados pelos anteriores proprietários.

Z - O artigo 1381.º do CC exclui o direito de preferência nos casos de ser dado fim diferente da cultura ou se for parte componente de prédio urbano, o que não era à data da propositura da ação.

AA - O terreno apenas foi transformado em prédio misto após a citação e consta a parte urbana como provisória no registo predial, face ao registo da presente ação.

BB - Por tudo o exposto, e com o devido respeito, errou o Tribunal a quo ao considerar verdadeira a declaração do representante legal da 1ª Ré relativamente ao destino a dar ao Prédio (…), ao falhar no enquadramento destes factos com a atividade social da 1ª Ré.
CC - E ao ignorar ostensivamente o abuso de direito em incorreu esta Ré pelo facto de ter praticado, em exclusivo, atos com vista à urbanização do terreno após a citação, em violação dos artigos 564.º e 260.º do CPC.

Conclui-se que a 1ª Ré nunca teve intenção de destinar o Prédio (…) a nada mais do que a revenda para lucro, facto objetivo suportado por prova plena, que devia ter sido reconhecido na sentença recorrida, que viola assim o artigo 1380.º do Código Civil.

Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve a douta sentença ser revogada na parte em que absolveu os Réus do direito de preferência sobre a aquisição de 24 de agosto de 2021, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º … (Prédio …), como é de inteira JUSTIÇA!».

I.3.
A recorrida apresentou resposta às alegações, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma:
«1 - O thema decidendum central do presente litigio consistia em aferir da existência do direito de preferência dos Autores relativamente ao prédio rústico, sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…) e ao prédio sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º (…), ao tempo apenas inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…), e ulteriormente na matriz urbana sob o artigo (…), nos termos invocados na petição inicial.
2 - O douto Tribunal discorreu sobre a natureza e afectação dos prédios transacionados entre os Réus para concluir que, in casu, tal direito não assistia aos Autores quanto ao prédio inscrito na matriz rústica sob o artigo (…), da secção (…).
3 - No prédio em causa existe uma parcela urbanizável correspondente a cerca de 30% da área total, nos termos dos artigos 27.º, n.º 1, alínea c) e 31º do PDM de Monchique, publicado no Diário da República n.º 215, 2ª série, de 05 de novembro de 2008.
4 - Em 22.06.2022, a ora Apelada submeteu na Câmara Municipal de Monchique um Pedido de Informação Prévia relativamente ao prédio referido em 1, com vista a nele edificar uma moradia unifamiliar com a área de 235 m2, o qual mereceu parecer favorável daquela Edilidade.
5 - Em consequência, em 08.08.2022 apresentou junto do Serviço de Finanças de Monchique a declaração de Modelo 1 de IMI para criação de um artigo urbano, correspondente à parcela com viabilidade construtiva, e ulteriormente procedeu ao averbamento de alteração à descrição na respectiva Conservatória do Registo Predial.
6 - A circunstância de vir a ser reconhecida uma parcela urbana naquele prédio determina um aumento do valor comercial do mesmo que pode atingir os € 120.000,00 (cento e vinte mil euros).
7 - O prédio, apesar de ter árvores, não se encontrava a ser explorado do ponto de vista agrícola nem sequer cuidado.
8 - Comprovado ficou, pois, nos autos que a ora Apelada destina o prédio adquirido a um fim que não é o da cultura, pelo que falece a pretensão dos Apelantes relativamente ao reconhecimento do direito de preferência ao prédio identificado em 1.
9 - A decisão recorrida não merece, pois, qualquer censura, devendo ser mantida na íntegra.
Face a todo o exposto deve improceder a Apelação, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida, assim se fazendo a costumada Justiça!»

I.4.
O recurso interposto pelos autores foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
As questões a decidir são as seguintes:
1 – Questão prévia: modificação oficiosa da decisão de facto.
2 - Avaliar se se verifica a exceção impeditiva do direito de preferência constante da parte final do artigo 1381.º, alínea a), do Código Civil.

II.3.
FACTOS
II.3.1.
O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade:
1. No dia 09.06.2021, a Ré (…), Lda. (doravante 1ª Ré) comprou, por € 5.000,00, à Ré (…), que vendeu, autorizada pelo Réu marido … (doravante conjuntamente 2ºs Réus), o prédio rústico, sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…), com o valor patrimonial tributário de € 137,77 (doravante Prédio …) – fls. 12 (artigos 1º e 2º da petição inicial).

2. À data, o Autor (…) era (desde 29.09.2010), e ainda é, por via de partilha de herança, proprietário de prédio rústico confinante com o Prédio (…), nomeadamente o prédio rústico, sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…), com o valor patrimonial tributário de € 82,20 (doravante Prédio …) – fls. 13 verso a 15 (artigo 3º da petição inicial).

3. Os Autores são casados entre si no regime da comunhão de adquiridos desde 16.06.1990 – fls. 15 verso (artigo 4º da petição inicial).

4. Da descrição do prédio (…) consta que o mesmo confronta de Nascente com (…) – fls. 13 verso (artigo 5º da petição inicial).
5. O Prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…) foi vendido em 24/08/2021, pelo preço de € 10.000,00 à 1ª Ré pelos Réus … e … (doravante 3ºs Réus) – fls. 17 (artigo 12º da petição inicial).
6. O Prédio (…) confina com o Prédio … (encontrando-se a norte deste), propriedade do Autor – cfr. a confrontação a sul com o pai do autor – fls. 19 e 15 verso (artigo 13º da petição inicial).
7. Os Autores diligenciaram por pesquisar pelos demais prédios confinantes com recurso ao NIPC da 1ª Ré, tendo então, e só então, apurado que a 1ª Ré era também proprietária do Prédio (…), após consulta às bases de dados das cadernetas prediais disponíveis no portal da Autoridade Tributária (artigos 14º e 15º da petição inicial).
8. Após conversa com o vizinho (…), que disse que os terrenos tinham sido vendidos, sem conhecerem o teor do negócio, os Autores diligenciaram, através do seu mandatário, pela obtenção da documentação relativa ao mesmo, nomeadamente escritura, registo predial e caderneta predial, que lograram obter: obtiveram, primeiro, conhecimento das características e identificação do Prédio (…) por via da respetiva caderneta predial, em 14/05/2022 (“Obtido via internet em 2022-05-14”, conforme consta de Doc. 7, fls. 20; de seguida, pediram a certidão predial, que obtiveram em 17/05/2022 (“Certidão permanente disponibilizada em 17-05-2022 e válida até 17-11-2022”, conforme resulta de Doc. 6, fls. 19. Os Autores obtiveram, por fim, conhecimento do teor da escritura do Prédio (…), nomeadamente do preço, no dia 18/05/2022, data em que lhes foi disponibilizada cópia da escritura de compra e venda pela Conservatória dos Registos Civil/Predial/Comercial e Cartório Notarial de (…), conforme Doc. 8 – fls. 21 (artigos 6º a 11º da petição inicial).
9. A 1ª Ré não é proprietária de mais prédios com aqueles confinantes e não era proprietária confinante à data da aquisição do Prédio (…), no dia 9 de junho de 2021 (artigo 16º da petição inicial).
10. Em 19/05/2022, os Autores extraíram a certidão predial rústica referente ao Prédio (…), donde resulta a titularidade da 1ª Ré, conforme Doc. 9 – fls. 22 (artigo 17º da petição inicial).
11. Diligenciaram, nesse seguimento e no mesmo dia, os Autores, pela obtenção da certidão predial do Prédio (…), donde resulta a propriedade do mesmo a favor da 1ª Ré, desde 09/06/2021, conforme Doc. 10, fls. 23 (artigo 18º da petição inicial).

12. A escritura de compra e venda do Prédio (…), de 09/06/2021, foi então requerida pelos Autores em 19/05/2022 e disponibilizada em 25/05/2022, data em que tiveram conhecimento, por via da mesma, do teor do negócio, nomeadamente do preço, conforme Doc. 11, fls. 23 verso (artigo 19º da petição inicial).

13. A 1ª Ré não é proprietária de mais nenhum prédio rústico confinante com os Prédios …, … e/ou … (artigo 21º da petição inicial).

14. O Prédio (…), propriedade do Autor, além de confinante com o Prédio (…), confina com o Prédio (…), encontrando-se a poente do primeiro e a sul do segundo – Docs. 12 a 15, fls. 25 e seguintes (artigos 22º e 23º da petição inicial).

15. Nunca foi dado conhecimento aos Autores, designadamente por quaisquer dos réus, do projeto de venda do Prédio (…), adquirido pela 1ª Ré aos 2ºs Réus em 09/06/2021, nem do projeto de venda do Prédio (…), adquirido pela 1ª Ré em aos 3ºs Réus em 24/08/2021 (artigos 24º a 26º da petição inicial).

16. A área da unidade de cultura fixada para a zona do Algarve, onde o concelho de Monchique se insere, é de 2,5 hectares para terreno de regadio e de 8 hectares para terreno de sequeiro e terreno de floresta – anexo II à Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto, alterada pela Portaria n.º 19/2019, de 15 de janeiro, ex vi do artigo 49.º, n.º 4, da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto (artigo 27º da petição inicial).

17. Nenhum dos prédios envolvidos tem uma área superior à unidade de cultura: a área do Prédio (…) de 1,128000 hectares, a área do Prédio (…) de 0,324000 hectares e a área do Prédio (…) de 0,484000 hectares – fls. 15/20/22 (artigos 28º e 29º da petição inicial).

18. Os Autores destinam o Prédio (…) à atividade florestal para fins agrícolas, nomeadamente ao descortiçamento de sobreiros, embora tenham nas proximidades uma casa – fls. 15 (artigo 31º da petição inicial).

19. Os Autores declararam pretender ampliar a sua atividade aos Prédios … (este composto de cultura arvense, sobreiros, oliveiras) e … (este composto por eucaliptal, pinhal, sobreiral, horta, pomar de citrinos, prunoideas) – fls. 22/2319/20 (artigos 32º e 33º da petição inicial).
20. O prédio (…) tem uma parte do prédio na zona urbana de nível III e a restante área em REN. Na restante área que se situa em REN tem uma pequena parte em RAN; o prédio (…) situa-se todo em REN e possui uma pequena parte em RAN – docs. 16 a 23, fls. 26 verso/140 – (artigo 34º da petição inicial).

*
21. Após a aquisição do segundo dos sobreditos prédios, a primeira Ré procedeu à limpeza integral de ambos os terrenos para mitigar o risco de propagação de incêndios. Fê-lo durante vários dias, à vista de toda a gente, com recurso a maquinaria pesada e a trabalhadores agrícolas (artigos 3º e 4º da contestação da “…”).
22. Na zona onde se localizam os dois prédios, o lugar da Rua (…), freguesia de (…), apenas existem cerca de dez a doze moradores, que ali residem há muitos anos (artigo 5º da contestação).
23. Por tal circunstância, na comunidade em causa, a alteração de titularidade dos imóveis daquela zona, constitui motivo de conversa de rua ou de vizinhança (artigo 6º da contestação).
24. E foi o que ocorreu no caso dos prédios adquiridos pela primeira Ré, tendo sido assunto comentado, entre os populares da zona, que o sr. … (alcunha pelo qual é conhecido …, legal representante da 1ª Ré) havia comprado os prédios em causa (artigo 7º da contestação).
25. Os autores têm domicílio na cidade de Lagos e deslocam-se com regularidade à freguesia de (…), onde possuem diversos prédios que herdaram (artigo 9º da contestação).
26. O objeto social da primeira Ré não integra a atividade ou exploração agrícola ou florestal, nem qualquer atividade conexa com a mesma, antes a compra, venda e revenda de bens imobiliários – fls. 61 (artigo 30º da contestação).
27. A primeira Ré não pretende afetar nenhum dos prédios por si adquirido à exploração agrícola ou florestal (artigo 31º da contestação).
28. Com a aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º (…) e, ao tempo, apenas inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…), a primeira Ré declarou pretender construir ali uma moradia unifamiliar destinada a habitação permanente do seu legal representante (artigo 32º da contestação).
29. No referido prédio existe uma área de 3233,96 m2 caracterizada como urbanizável nível III, nos termos previstos nos artigos 27.º, n.º 1, alínea c) e artigo 31.º do PDM de Monchique (publicado no Diário da República n.º 215, 2ª série, de 05 de novembro de 2008), sendo que o PDM está em processo de revisão (o restante em REN e RAN) – fls. 62/167 (artigo 32º da contestação).
30. Quer a área do prédio rústico (…), quer a demais área rústica (…) destinam-se a servir segundo declaração da “…” relativamente à moradia unifamiliar em simultâneo, a função de zona verde de enquadramento e de proteção contra o risco de incêndio (artigo 34º da contestação).
31. Tal área (i. e., a área do prédio rústico …, quer a demais área rústico …) destinar-se-á, segundo declaração da “…”, ao embelezamento e composição paisagística da moradia (artigo 35º da contestação).
32. A ré declarou que a mesma porção de terreno criará uma barreira destinada a conferir privacidade do urbano a edificar, relativamente às demais propriedades que a circundam, ao mesmo tempo que atuará como área de proteção para mitigação do risco de incêndio (artigo 36º da contestação).
33. Em 23 de junho de 2022, depois de os réus terem sido citados na ação, a primeira Ré submeteu à Câmara Municipal de Monchique um pedido de informação prévia (PIP) que tinha por objeto o prédio rústico (…) – fls. 42 e ss./68 (artigo 42º da contestação e artigo 5.º do Código de Processo Civil).
34. Daquele pedido fez constar que pretendia nele edificar, na referida parcela urbana, uma moradia unifamiliar com a área de 235 m2 (artigo 43º da contestação).
35. Com data de 13 de julho de 2022, notificado à requerente, a aqui 1ª Ré, por ofício datado do dia 15 do mesmo mês, a Câmara Municipal de Monchique emitiu parecer favorável à pretensão nos precisos termos em que havia sido apresentada pela 1ª Ré – fls. 79 (artigo 45º da contestação).

36. Em 08 de agosto de 2022 a primeira Ré apresentou junto dos Serviços de Finanças de Monchique o Modelo 1 do IMI para criação de um artigo urbano relativamente à parcela, com aquela natureza, inserida no artigo (…) – fls. 114 e ss./178 (artigo 80º da contestação).

37. Com data de 11 de agosto de 2022, a primeira Ré apresentou requerimento no Serviço de Finanças de Monchique de onde consta o pedido de averbamento, no prédio rústico (…) de (…), de uma parcela urbana com a área de 2500 m2 – fls. 81 (artigo 47º da contestação).

38. Com data de 18 de agosto de 2022 a 1ª Ré apresentou na Conservatória do Registo Predial o pedido de averbamento de alteração da descrição do prédio (…), da freguesia de (…) – fls. 81 verso (artigo 48º da contestação).

39. Das declarações complementares exaradas naquela requisição de registo, fez a primeira Ré constar o seguinte: Atualmente o prédio tem a natureza de misto, na medida em que, para parte do prédio foi emitido pela Câmara Municipal de Monchique, em 15/07/2022, um parecer favorável ao pedido de informação prévia para viabilidade de construção de moradia unifamiliar, com a área total de 2500 m2 e implantação de 235 m2, tendo o mesmo sido participado mediante apresentação de Declaração Modelo I do IMI, pelo que o lote de terreno para construção encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo provisório (…) da freguesia de (…), concelho de Monchique. Descrição atual do prédio: Prédio misto denominado (…), sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, com a área de 11280 m2, composto por eucaliptal, pinhal, sobreiral, pomar de citrinos, prumoideas, cultura arvense, sobreiros e lote de terreno para construção, com a área total de 2500 m2 e a área de implantação de 235 m2, (…) inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…) e na matriz predial urbana sob o artigo (…), ambos da freguesia de (…), concelho de Monchique – fls. 82 (artigo 49º da contestação).
40. A 1ª Ré instruiu o referido requerimento com os seguintes documentos: caderneta predial rústica obtida via internet aos 16/08/2022; comprovativo provisório de submissão de Declaração Modelo I do IMI; requerimento de informação prévia entregue na Câmara Municipal de Monchique aos 23/06/2022; ofício emitido pela Câmara Municipal de Monchique aos 15/07/2022, contendo resposta ao pedido de informação prévia; reclamação cadastral entregue no Serviço de Finanças de Monchique em 11/08/2022 (artigo 50º da contestação).

41. Na sequência do sobredito pedido de averbamento de alteração da descrição do predial os elementos registrais do prédio da primeira Ré, adquirido por escritura pública outorgada no dia 24.08.2021, aos Réus (…) e (…) denominado (…), sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º (…), passaram a ser os seguintes – fls. 85 verso (artigo 51º da contestação): Prédio misto, denominado (…), com a área total de 11280 m2, inscrito na matriz rústica sob o artigo (…) e na matriz urbana sob o artigo (…), composto por eucaliptal, pinhal, sobreiral, horta em socalcos, pomar de citrinos, prunoideas, cultura arvense e sobreiros e lote de terreno para construção com a área de 2500 m2, com confrontações a norte, (…), Herdeiros de (…), (…) e herdeiros de (…); Sul, "(…), Lda.", (…) e (…); Nascente, (…); Poente, (…). Com data de 19.08.2022 foi emitida pelos serviços de finanças de Monchique a ficha da avaliação do artigo urbano criado na sequência da participação matricial referida no ponto 46 – fls. 87 (artigo 52º da contestação).

42. Em resultado da sobredita avaliação foi inscrito na matriz urbana o artigo provisório n.º (…), da freguesia de (…), com a área total de 2.500 m2 e a área de implantação de 235 m2, entretanto, convertido em definitivo – fls. 144 (artigo 53º da contestação).
43. A demais área deste prédio e a do descrito sob o n.º (…) na mesma Conservatória, servirão os propósitos análogos ao de um logradouro com espécies vegetais autóctones ou pré-existentes, de crescimento e expansão controlados, pelo que o seu fim não é a cultura (aqui significando atividade agrícola ou florestal) mas de embelezamento, e enquadramento na paisagem circundante, da moradia a edificar (artigo 56º da contestação), tendo a ré sociedade intenção de ambos os prédios (o descrito sob o n.º … e a demais área deste prédio descrito sob o n.º …), em virtude da respetiva afetação, assumirem a natureza de parte componente de um prédio urbano (artigo 57º da contestação).
44. A pedido da ré sociedade foi elaborado o relatório de avaliação de fls. 87 verso (artigo 63º da contestação).
45. A circunstância de vir a ser reconhecida uma parcela urbana no prédio descrito sob o n.º (…) determina um aumento do respetivo valor comercial que, no limite, pode chegar aos € 120.000,00 – fls. 87 verso (artigo 93º da contestação).
46. Os prédios adquiridos pela ré não eram limpos nem cuidados (artigos 77º a 83º da contestação).
47. O Autor marido dedica-se à venda de papel e produtos de higiene por conta de outrem e está inscrito nas Finanças com a atividade “comércio por grosso de cortiça em bruto e extrac. Cortiça, resina e apanha out, prod. Flor, exc. Madeira” desde 7 de julho de 2023 – fls. 139 (artigo 86º da contestação).
48. A Autora mulher é funcionária pública, desempenhando as respetivas funções na Câmara Municipal de Lagos (artigo 87º da contestação).

*
49. A presente ação deu entrada no dia 13 de junho de 2022, tendo sido remetida do Juízo Local de Portimão para o Juízo Central, onde veio a ser autuada no dia 30 de janeiro de 2023 – fls. 2 e capas.
50. Os autores procederam ao depósito de € 5.000,00 e € 10.000,00, correspondentes ao preço declarado de venda dos prédios (…) e (…) – fls. 40 verso/37 verso (artigo 39º da petição inicial).

II. 4.
Apreciação do objeto do processo
II.4.1.
Questão prévia
Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A propósito deste preceito legal referem Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe de Sousa[1] o seguinte: «A decisão da matéria de facto pode ser impugnada pelo recorrente quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como sucede quando não tenha sido respeitado documento, confissão ou acordo das partes com força probatória plena. (…) Em qualquer destas situações, a Relação, no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente nos limites objetivo e subjetivo do recurso, deve agir oficiosamente mediante a aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, modificando a decisão da matéria de facto advinda da 1ª instância (artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2). A oficiosidade desta atuação é decorrência da regra geral sobre a aplicação do direito (in casu, das normas de direito probatório material), na medida em que possam interferir no resultado do recurso que foi interposto e, é claro, respeitando o seu objeto global que, no essencial, é delimitado pelo recorrente, nos termos do artigo 635.º, e respeitando também o eventual caso julgado parcelar que porventura se tenha formado sobre alguma questão ou segmento decisório» (itálicos nossos).
Em síntese, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC confere competência ao tribunal da relação para modificar, oficiosamente, a decisão de facto proferida pelo tribunal de primeira instância, usando as provas que constam dos autos, no pressuposto de que os «factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente com força probatória plena impõem decisão diversa».
No caso presente encontra-se junta aos autos (anexa à petição inicial) a escritura pública de compra e venda relativa ao prédio rústico denominado “(…)” sito na Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…).
A escritura pública é um documento autêntico (artigo 369.º do Código Civil).
O artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil, epigrafado Força probatória, e integrado na Subsecção II-Documento autênticos, da Secção IV – Prova documental, dispõe o seguinte:
«1 – Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador».
De acordo com este normativo legal os documentos autênticos apenas fazem prova plena sobre duas espécies de factos, a saber: (i) aqueles que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo; e (ii) os que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora.
A propósito desta questão refere Alberto dos Reis[2] o seguinte: «O funcionário público garante pela fé de que está revestido, que os factos se passaram; não garante que eles sejam conformes à verdade. (…) Tenha-se sempre presente que a prova plena atribuída ao documento autêntico é consequência da fé pública de que o funcionário está revestido, segundo a lei. Ora essa fé só pode abranger os factos de que o funcionário foi agente ou testemunha, isto é, os factos que ele próprio executou e os que se passaram na sua presença, que ele viu ou ouviu (…) A fé pública do notário ou do funcionário cobre as suas ações e as suas perceções, mas não pode ir além destes limites». Também Manuel de Andrade[3] diz que a força probatória material dos documentos autênticos circunscreve-se «(…) à veracidade das atestações do funcionário documentador (nos limites da sua competência), até onde versem atos praticados por ele próprio, ou praticados na sua presença (declarações emitidas, entregas em dinheiro, etc.), isto é, sobre ações e perceções suas (quorum notitiam et scientiam habet propriis, visus et auditus). (…) O documento faz assim prova plena quanto à materialidade (prática, efetivação) de tais atos e declarações; mas não quanto à sua sinceridade, à veracidade ou à falta de qualquer outro vício ou anomalia”. As razões desta força probatória, segundo o mesmo autor, residem na «(…) fé pública atribuída ao funcionário documentador, com as respetivas garantias preventivas (recrutamento cauteloso, inspeções, caução) e repressivas (sanções disciplinares, civis e criminais» e na «(…) própria natureza das atestações a que se reconhece tal força, pois, versando elas sobre factos de que o funcionário se certificou propriis sensibus, visu et auditu, está praticamente excluída a possibilidade de erro».
Diferentemente, quanto aos “juízos pessoais do documentador”, ou seja, as suas apreciações (que são fruto de um trabalho intelectual) elas estão excluídos da “fé pública”, ficando, ao invés, sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, sendo suscetíveis de impugnação mediante simples prova em contrário, sem que seja necessário argui-las de falsas.
A supra referida escritura pública não foi impugnada nos termos previstos no artigo 372.º do Código Civil. Por conseguinte, têm-se por verdadeiros os factos que nela são atestados como resultantes da perceção do oficial público, designadamente que a segunda outorgante (…), que ali interveio na qualidade de procuradora, com poderes para o ato, da sociedade comercial (…), Lda. declarou que, «para a sociedade sua representada, aceita o presente contrato nos termos exarados e que o prédio objeto da escritura se destina a revenda».
Em face do exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, conjugado com o disposto no artigo 371.º/1, do Código Civil, decide-se aditar ao elenco dos factos provados a seguinte factualidade:
«5-A: Na escritura pública relativa à compra e venda aludida em 5), a segunda outorgante (…), que ali interveio na qualidade de procuradora, com poderes para o ato, da sociedade comercial (…), Lda. declarou que, “para a sociedade sua representada, aceita o presente contrato nos termos exarados e que o prédio objeto da escritura se destina a revenda”».

II.4.2.
Reapreciação do mérito da decisão
No presente recurso está em causa o segmento decisório da sentença proferida pelo tribunal de primeira instância que absolveu os réus dos pedidos relacionados com o prédio rústico sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da Secção (…), a saber: o reconhecimento do direito de preferência dos autores em relação à compra e venda que teve por objeto aquele prédio e, consequentemente, o reconhecimento aos autores do direito de se substituírem à 1ª Ré na posição de compradora que esta ocupa na respetiva escritura de compra e venda, ficando o referido prédio a pertencer-lhes, substituindo-se ainda a 1ª Ré no respetivo registo predial.
Na sentença recorrida entendeu-se que relativamente ao prédio acima referido a 1ª Ré (compradora) «provou que pretende dar-lhe um destino diferente da cultura e que tal é permitido por lei, sendo quanto basta para o pedido dos autores improceder quanto ao mesmo».
Insurgem-se os apelantes relativamente ao assim decidindo, argumentando que dos factos provados apenas consta que a ré declarou a intenção de dar ao prédio em questão um destino diferente da cultura e que “declarar” não é o mesmo que “provar”. Aduzem os apelantes que resulta da conjugação dos factos provados que a sociedade ré adquiriu o prédio em causa «com vista à revenda do mesmo» e que a “revenda” «não é um destino materialmente relevante para efeitos de direito de preferência, mas apenas para efeitos fiscais e de atividade económica da empresa» e que a ré compradora apenas mostrou intenção de urbanizar o prédio n.º (…) após ter sido citada nos presentes autos. Concluem, dizendo que o julgador a quo «avaliou mal a intenção real da 1ª Ré».
Vejamos.
O tribunal a quo julgou que se mostram preenchidos os elementos constitutivos do direito de preferência dos autores relativamente ao prédio em causa no presente recurso previstos no artigo 1380.º do Código Civil[4], direito que os autores pretenderam fazer valer na presente ação, e julgou também provado que nenhum dos réus comunicou o projeto de venda do referido imóvel aos autores a fim de estes exercerem o direito de preferência na aquisição de tal prédio. O que não vem posto em causa no presente recurso.
No presente recurso está, sim, em discussão a questão do preenchimento dos elementos constitutivos da exceção prevista na parte final da alínea a) do artigo 1382.º do Código Civil – que nestes casos assume a natureza de exceção perentória – os quais, se verificados, impedem o efeito jurídico pretendido pelos autores/apelantes.
A propósito da situação prevista na alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.11.2019[5] escreveu-se o seguinte: «O Supremo Tribunal de Justiça tem interpretado a fórmula quando algum dos terrenos se destine a algum fim que não seja a cultura da alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil como significando quando o adquirente e, em especial, o comprador destine o terreno a algum fim que não seja a cultura. Em consequência, “o fim que releva […] não é aquele a que o terreno esteja afetado à data da alienação, antes o que o adquirente pretenda dar-lhe”. Interpretando a fórmula da alínea a) do artigo 1381.º como significando quando o comprador destine o terreno a algum fim que não seja a cultura, o Supremo Tribunal de Justiça exige que dos factos provados decorram duas coisas: em primeiro lugar, a intenção de afetar o terreno a algum fim que não seja a cultura e, em segundo lugar, a possibilidade física e jurídica (legal ou regulamentar) da afetação correspondente à intenção do comprador. Os dois requisitos explicam-se pelo perigo de fraude: “Caso contrário [— caso não se exigisse a prova de que a intenção de afetar o terreno a algum fim que não seja a cultura é legal e regulamentarmente possível —] estar-se-ia a dar relevo jurídico a simples manifestações subjectivas de vontade, quiçá ficcionadas, que fariam precludir a norma-regra do direito de preferência do proprietário confinante”» (negritos nossos).
A prova daquela “intenção”, ou seja, a de dar ao prédio um destino diverso daquele que ele tinha à data da aquisição, não se pode bastar com a prova de uma declaração dessa intenção. Isto é, tal declaração, por si só, se desacompanhada da prova de outras intervenções no mundo exterior reveladoras daquela intenção, não é suficiente para impedir o direito de preferência. Com efeito, considerando que o direito de preferência previsto no artigo 1380.º/1, do Código Civil se justifica por razões de interesse público ligadas à necessidade de evitar a fragmentação da propriedade agrícola por forma a obter uma racionalidade na sua exploração, compreende-se que a (mera) declaração de uma particular intenção quanto ao destino do prédio adquirido não baste, por si só, para impedir o direito de preferência. Tão pouco, bastará, a declaração, no ato formal de aquisição, do fim da aquisição pois que, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.12.2017[6], citado no recurso dos recorrentes, «O fim da aquisição não é equivalente ao destino do prédio em causa», ademais quando a declaração de que o prédio se destina a revenda visa os efeitos fiscais previstos no artigo 7.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), tornando, por isso, equívoca tal declaração «no plano da concretização das intenções».
De acordo com a regras gerais relativas ao ónus da prova, e dado que estamos perante facto impeditivos do direito de preferência invocado pelos autores, é sobre os réus, em particular sobre a 1.ª ré, que recai o ónus de alegação e prova quer da intenção de dar ao prédio rústico adquirido um diferente destino da cultura, quer da possibilidade legal de concretização desse destino (artigo 342.º/2 do CC), sendo que quer essa intenção, quer essa possibilidade legal têm de existir no momento da aquisição – neste sentido, entre outros, Ac. RE de 7 de novembro de 2024, proc. n.º 591/23.8T8ORM.E1, Ac. RP de 09.03.2023, proc.esso n.º 9959/19.3T8VNG.P1, Ac. Relação do Porto de 23.10.2006, proc. n.º 0655486, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
No caso sub judice, pese embora esteja provado que a 1ª Ré submeteu à Câmara Municipal de Monchique um pedido de informação prévia (PIP) que teve por objeto o prédio rústico (…), do qual consta que a ré pretende nele edificar uma moradia unifamiliar com a área de 235 m2 (factos provados n.ºs 33 e 34) e que a Câmara Municipal emitiu parecer favorável à pretensão da 1.ª ré «nos precisos termos em que havia sido apresentada pela primeira ré» (sic) (facto provado n.º 35) e, ainda, que a 1º Ré apresentou junto dos Serviços de Finanças de Monchique um requerimento com um pedido de averbamento no prédio (…) de uma parcela urbana com a área de 2500 m2 (facto provado n.º 38), dir-se-á que para efeitos da previsão do artigo 1381.º, alínea a), do Código Civil, tais factos não relevam porquanto todos aqueles atos são posteriores à data da aquisição formal do prédio. E são-no, inclusive, posteriores à data da citação da 1ª Ré para a presente ação de preferência, pelo que nem sequer podem ser utilizados, em nosso entender, como elementos auxiliadores de determinação da intenção da compradora (1ª Ré) no momento da aquisição. Não se ignora que está provado que a 1ª Ré «não pretende afetar nenhum dos prédios por si adquiridos e nomeadamente o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da Secção (…), da freguesia de (…), concelho de Monchique à exploração agrícola ou florestal» (facto provado n.º 27) mas tal não basta para julgar impedido o direito de preferência dos autores, pois é necessário provar, por referência à data da formalização do negócio de compra e venda, a que concreto destino diverso do da cultura a compradora pretendeu afetar o prédio adquirido.

Em face de todo o exposto, julgamos que mal andou o tribunal recorrido ao julgar que a ré provou que pretende dar um destino diferente da cultura ao prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…).

Donde, não tendo a 1ª Ré logrado provar os factos impeditivos do direito de preferência dos autores relativamente ao prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…), da freguesia de (…), concelho de Monchique, nos termos supra expostos e como lhe incumbia (artigo 342.º/2, do CC), merece provimento o recurso dos apelantes no sentido de a 1ª Ré ser por eles substituída retroativamente na posição de adquirente do prédio em questão, com os demais efeitos decorrentes dessa modificação subjetiva da relação contratual de compra e venda.

Os apelantes alegam, também, que a 1ª Ré atuou de má-fé e em abuso de direito «ao alterar as características do imóvel após a citação (PIP, relatório de avaliação, procedimento administrativo junto da AT), de que «resultou também na alteração dos elementos essenciais da causa, nos termos conjugados dos artigos 564.º,b) e 260.º do CPC» e que a conduta da 1ª Ré – ter procedido, depois daquele ato processual, a alterações no imóvel em causa nos presente recurso, a saber, ao pedido de informação prévia e ao pedido de transformação do prédio em misto, «quando as poderia ter feito antes, ou, pelo menos, iniciado 12 meses antes» – levou-os (a eles/apelantes) a incluírem o prédio em causa no presente recurso quando não o teriam feito «se tivessem conhecimento de que o prédio (…) tinha qualquer tipo de projeto de construção pendente que o transformasse em prédio misto» (cfr. Conclusões N, O, P e V)».

Para além de os apelantes não extraírem da conduta que imputam à 1ª Ré e que adjetivam de “abusiva” e de “má-fé” qualquer consequência substantiva ou processual, limitando-se a dizer que o tribunal a quo «não retirou as devidas conclusões do comportamento que imputam à 1.º ré», este tribunal de segunda instância julgou já a apelação procedente (no sentido de reconhecer o direito de preferência dos autores em relação à compra e venda que teve por objeto aquele prédio e, consequentemente, o reconhecimento aos autores do direito de se substituírem à 1ª Ré na posição de compradora que esta ocupa na respetiva escritura de compra e venda, ficando o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da secção (…), freguesia de (…), concelho de Monchique a pertencer-lhes, substituindo-se ainda a 1ª Ré no respetivo registo predial), o que retira utilidade à questão de abuso de direito suscitada pelos apelantes e a lei proíbe a prática de atos inúteis (artigo 130.º do CPC). Acresce que não está sequer provado que os autores não teriam feito este investimento, a saber, a propositura da ação de preferência também relativamente ao prédio n.º (…), caso a 1ª Ré tivesse providenciado pelo pedido de informação prévia e pela alteração da natureza do prédio mais cedo. E tanto bastaria para desatender a esta argumentação dos apelantes.

Sumário: (…)

III. Decisão

Em face do exposto, acordam julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida na parte em que absolveu os réus dos pedidos relacionados com o prédio rústico sito em Rua (…), freguesia de (…), concelho de Monchique, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), da Secção (…) e, em conformidade, reconhecem o direito de preferência dos autores em relação à compra e venda que teve por objeto aquele prédio e, consequentemente, o reconhecimento aos autores do direito de se substituírem à 1ª Ré na posição de compradora que esta ocupa na respetiva escritura de compra e venda, ficando o referido prédio a pertencer-lhes, substituindo-se ainda a 1ª Ré no respetivo registo predial.
As custas na presente instância são da responsabilidade da apelada, sendo que a esse título apenas é devido o pagamento das custas de parte porquanto aquela procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pela resposta às alegações de recurso.

Notifique.
DN.
Évora, 27 de março de 2024
Cristina Dá Mesquita
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (com voto de vencida)
Eduarda Branquinho


Voto de vencida:
Considero ter resultado demonstrado que o prédio n.º (…) se destina, pela 1ª Ré adquirente, a fim que não é a cultura (artigo 1381.º, alínea a), do CC), porquanto se encontra provado o seguinte:
- o prédio (…) tem uma parte do prédio na zona urbana de nível III e a restante área em REN;
- o objeto social da 1ª Ré não integra a atividade ou exploração agrícola ou florestal, nem qualquer atividade conexa com a mesma, antes a compra, venda e revenda de bens imobiliários;
- a 1ª Ré não pretende afetar nenhum dos prédios por si adquirido à exploração agrícola ou florestal;
- depois da citação, a 1ª Ré submeteu à Câmara Municipal de Monchique um pedido de informação prévia (PIP) que tinha por objeto o prédio rústico (…);
- a Câmara Municipal de Monchique emitiu parecer favorável à pretensão;
- a 1ª Ré apresentou junto dos Serviços de Finanças de Monchique o Modelo 1 do IMI para criação de um artigo urbano relativamente à parcela, com aquela natureza, inserida no artigo (…);
- a 1ª Ré apresentou requerimento no Serviço de Finanças de Monchique para averbamento, no prédio rústico (…), de uma parcela urbana com a área de 2500 m2;
- a 1ª Ré apresentou na Conservatória do Registo Predial o pedido de averbamento de alteração da descrição do prédio (…), da freguesia de (…);
- foi emitida pelos serviços de finanças de Monchique a ficha da avaliação do artigo urbano criado na sequência da participação matricial;
- a demais área deste prédio e a do descrito sob o n.º (…) na mesma Conservatória, servirão os propósitos análogos ao de um logradouro com espécies vegetais autóctones ou pré-existentes, de crescimento e expansão controlados, pelo que o seu fim não é a cultura (aqui significando atividade agrícola ou florestal) mas de embelezamento, e enquadramento na paisagem circundante, da moradia a edificar;
- a 1ª Ré tem intenção de ambos os prédios (o descrito sob o n.º … e a demais área deste prédio descrito sob o n.º …), em virtude da respetiva afetação, assumirem a natureza de parte componente de um prédio urbano;
- a circunstância de vir a ser reconhecida uma parcela urbana no prédio descrito sob o n.º (…) determina um aumento do respetivo valor comercial que, no limite, pode chegar aos € 120.000,00.
As diligências feitas pela 1ª Ré, na qualidade já de proprietária do prédio, das quais resultam, como é sabido, encargos fixos consideráveis decorrentes da avaliação do prédio que passou de rústico a misto, evidenciam que o mesmo não é destinado a cultura. O que, aliás, é expressamente afirmado na factualidade provada.
Termos em que confirmaria a decisão da 1ª Instância.

_________________________________________________
[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição, págs. 857-858.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª ED. 1950 Reimpressão, pág. 368.
[3] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 227.
[4] Dispositivo legal que tem o seguinte teor: «Os proprietários de prédios confinantes, de área inferior à unidade de cultura. Gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a que não seja proprietário confinante».
[5] Processo 8496/7.5T8STB.E1.S2, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Processo n.º 303/16.2T8CLD.C1, consultável em www.dgsi.pt.