ESCUSA
JUIZ
DECISÃO
CONFIDENCIAL
PUBLICIDADE
Sumário

I. Por regra, os processos de natureza cível – a que se reconduz o apenso referente à escusa – são públicos, salvas as restrições previstas na lei (cfr. artigo 163.º, n.º 1, do CPC; e artigo 33.º, n.º 1, do RGPTC).
II. A tal princípio subjaz o interesse de que a atividade de administração da justiça ocorra sob escrutínio público o que permite proteger as partes, de forma eficaz, de algum tratamento arbitrário, promovendo-se a confiança dos cidadãos, mediante demonstração pública de que a justiça é administrada por via de um processo justo e transparente.
III. Na falta de restrição legal, a publicidade do processo comporta o exame e consulta do processo e a obtenção de cópias ou certidões de quaisquer peças nele incorporadas (cfr. artigo 163.º, n.º 2, do CPC).
IV. Entre as restrições à publicidade contam-se, todavia, as enunciadas no artigo 164.º do CPC, casos em que o acesso aos autos é limitado quando a divulgação do seu conteúdo possa causar dano à dignidade das pessoas, à intimidade da vida privada ou familiar ou à moral pública, ou pôr em causa a eficácia da decisão a proferir.
V. Conforme decorre do n.º 4 do artigo 119.º do CPC, se o pedido de escusa tiver por fundamento algum dos factos especificados no artigo 120.º do mesmo Código, o presidente da Relação ouve, se o entender conveniente, a parte que poderia opor a suspeição, “mandando-lhe entregar cópia da exposição do juiz”.
VI. No caso, não resulta, nem da missiva remetida pela Sra. Juíza, nem de qualquer ato do processo, que a este tenha sido conferida natureza confidencial, não se afigurando aplicável – relativamente aos atos processuais em questão, inseridos no âmbito da tramitação de um processo judicial - a normatividade vertida, em geral, nos artigos 75.º a 78.º do Código Civil.
VII. Não se encontra, quer relativamente à decisão – cuja cópia foi já fornecida – quer ao requerimento de escusa, nenhuma circunstância que possa determinar a limitação da divulgação do respetivo conteúdo, por não se afigurar posta em causa a dignidade de alguém, a intimidade da vida privada ou familiar ou a moral pública, nem o acesso coloca em questão a eficácia da decisão a proferir (atento, inclusive, o facto de a escusa já ter sido decidida).

Texto Integral

I. Por comunicação eletrónica, datada de 18-11-2024, remetida ao processo em referência, a Sra. Juíza de Direito “A” vem expor o seguinte:
“No âmbito do processo supra identificado, por decisão datada de 11.05.2022, foi deferido o meu pedido de escusa relativamente ao processo nº (…)/21.0t8AMD.
Posteriormente, a Mta Juiz, minha substituta legal, ordenou que fosse junto aos autos o meu pedido de escusa bem como a decisão que sobre ele recaiu.
Em consequência de tal ordem, o meu pedido de escusa e a decisão que sobre ele recaiu foram juntos aos autos que correm termos neste tribunal tendo ficado a ser conhecida de todos os intervenientes processuais.
Tanto o pedido de escusa, como a decisão que sobre ele recaiu, são de natureza confidencial, não devendo ser juntos aos autos as suas razões e fundamentos mas tão só, o ofício a informar se foi ou não deferido.
A Mta Juiz substituta, em contrário ao disposto no artigo 126º, do C.P.C., remeteu novamente o processo e, tendo o processo vários apensos, não me apercebi de imediato de que tal tinha acontecido.
Em consequência do sucedido, embora sabendo que a escusa é deferida para o processo, e por tal situação ser inédita, solicitei ao Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que se pronunciasse sobre o assunto.
Sobre tal pedido recaiu decisão no sentido de que estando deferido o pedido de escusa, o processo continuaria a ser despachado pelo juiz substituto nos termos do disposto no artigo 126º, do C.P.C..
Tive conhecimento de que a Mta Juiz, minha substituta legal, ordenou que fosse junta aos autos este último pedido e a decisão integral que sobre ele recaiu, sendo que tanto o pedido como a decisão que sobre ele recaiu, têm natureza confidencial (tanto o pedido como a subsequente decisão foram dirigidos em nome pessoal com o carimbo de “confidencial”).
Assim, a fim de evitar mais anomalias no processo que corre termos neste tribunal, relativamente ao qual me foi concedido o pedido de escusa, tomo a liberdade de alertar no sentido de a correspondência que foi dirigida em meu nome pessoal e com natureza confidencial, não ser remetida aos autos tornando-se publica.”.
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II. De acordo com a tramitação constante dos autos, mostra-se relevante para a decisão a proferir, a consideração da seguinte factualidade:
1. Nos presentes autos, a Sra. Juíza de Direito “A” apresentou pedido de escusa, entrado em juízo em 09-05-2022, requerendo a concessão de escusa de tramitação do processo n.º (…)/21.0T8AMD.
2. Em 11-05-2022 foi proferida decisão de deferimento da escusa requerida.
3. A decisão referida em 2. foi objeto de notificação à requerente e ao Ministério Público por notificação expedida em 12-05-2022.
4. Nessa data foi aposto nos autos “Visto em correição”.
5. Em 30-05-2022 o Tribunal da Relação de Lisboa informou o Juízo de Família e Menores da Amadora – Juiz (…), da decisão de deferimento da escusa.
6. Por despacho de 08-03-2023 foi solicitada a este Tribunal da Relação de Lisboa cópia da decisão a que se refere o ofício de 30-05-2022, cópia que foi remetida em 09-05-2023.
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III. Conforme resulta da factualidade precedentemente enunciada, nela não se encontra nenhuma determinação no sentido da junção do pedido de escusa e dos motivos que o determinaram, mas sim, e apenas, o pedido de cópia da decisão proferida sobre a pretensão de escusa, o que foi acolhido, como resulta do exposto, há mais de um ano a esta parte.
Por este motivo, o ora indicado, sob forma de “alerta”, não pode ter acolhimento, uma vez que foi já remetida cópia da referida decisão.
De todo o modo, não se afigura que a decisão judicial proferida em 11-05-2022 revista a natureza de decisão confidencial, isso também não se verificando, inexoravelmente, relativamente a todo e qualquer pedido de escusa e, como se verá, não transparece relativamente ao pedido formulado nos presentes autos.
Com efeito, não se encontra na natureza do processo pelo qual se visa pedir escusa (cfr. artigo 119.º e ss. do CPC), por princípio, alguma restrição de publicidade.
Por regra, os processos de natureza cível – a que se reconduz o apenso referente à escusa – são públicos, salvas as restrições previstas na lei (cfr. artigo 163.º, n.º 1, do CPC; e artigo 33.º, n.º 1, do RGPTC).
A tal princípio subjaz o interesse de que a atividade de administração da justiça ocorra sob escrutínio público o que permite proteger as partes, de forma eficaz, de algum tratamento arbitrário, promovendo-se a confiança dos cidadãos, mediante demonstração pública de que a justiça é administrada por via de um processo justo e transparente (cfr., neste sentido, Lucinda Dias da Silva; “Publicidade e Segredo em Processo Civil – Que fronteiras?” , in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 80.º, n.ºs. 3-4 (jul.-dez. 2020), p. 637).
Na falta de restrição legal, a publicidade do processo comporta o exame e consulta do processo e a obtenção de cópias ou certidões de quaisquer peças nele incorporadas (cfr. artigo 163.º, n.º 2, do CPC).
Entre estas restrições à publicidade contam-se, todavia, as enunciadas no artigo 164.º do CPC, casos em que o acesso aos autos é limitado quando a divulgação do seu conteúdo possa causar dano à dignidade das pessoas, à intimidade da vida privada ou familiar ou à moral pública, ou pôr em causa a eficácia da decisão a proferir.
No artigo 164.º, n.º 2, do CPC enunciam-se, exemplificativamente, diversas categorias de processos em que se justificará uma restrição à publicidade do processo.
Não se encontra enumerada qualquer referência a processo de escusa entre os processos cuja publicidade deve ser restringida.
Mas, certo é que, ponderada a própria tramitação eventual do processo de escusa, não se verifica que o mesmo deva comportar – salvo determinação diversa em contrário – e em todos os casos, a sua confidencialidade.
Com efeito, conforme decorre do n.º 4 do artigo 119.º do CPC, se o pedido de escusa tiver por fundamento algum dos factos especificados no artigo 120.º do mesmo Código, o presidente da Relação ouve, se o entender conveniente, a parte que poderia opor a suspeição, “mandando-lhe entregar cópia da exposição do juiz”.
Note-se que é o próprio legislador a prever, expressamente, a possibilidade de o pedido de escusa ser levado ao conhecimento, por cópia, à parte que poderia opôr a suspeição.
Certo é que, no caso, não resulta, nem da missiva remetida pela Sra. Juíza, nem de qualquer ato do processo, que a este tenha sido conferida natureza confidencial, não se nos afigurando aplicável – relativamente aos atos processuais em questão, inseridos no âmbito da tramitação de um processo judicial - a normatividade vertida, em geral, nos artigos 75.º a 78.º do Código Civil.
Por outra parte, não se encontra, quer relativamente à decisão – cuja cópia foi já fornecida – quer ao requerimento de escusa, nenhuma circunstância que possa determinar a limitação da divulgação do respetivo conteúdo, por não se afigurar posta em causa a dignidade de alguém, a intimidade da vida privada ou familiar ou a moral pública, nem o acesso coloca em questão a eficácia da decisão a proferir (atento, inclusive, o facto de a escusa já ter sido decidida)
Finalmente, de acordo com o n.º 3 do artigo 164.º do CPC, aditado pelo D.L. n.º 97/2019, de 26 de julho, “o acesso a informação do processo também pode ser limitado, em respeito pelo regime legal de proteção e tratamento de dados pessoais, quando, estando em causa dados pessoais constantes do processo, os mesmos não sejam pertinentes para a justa composição do litígio”.
“Compreende-se a razão de do regime. Estando, por uma lado, em causa dados pessoais não pertinentes para a adequada resolução do conflito, não serão estes relevantes para o tipo de sindicância do conteúdo do processo que está na base do princípio da publicidade, pelo que deixa de se justificar a subordinação dos mesmos ao escrutínio público” (assim, Lucinda Dias da Silva; “Publicidade e Segredo em Processo Civil – Que fronteiras?” , in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 80.º, n.ºs. 3-4 (jul.-dez. 2020), p. 650).
Conforme salienta Isabel Maria Curto Teixeira (“Protecção de Dados e Processo Civil – Recentes alterações legislativas e novas problemáticas”, 2019, p. 7, texto consultado em: https://www.redecivil.csm.org.pt/wp-content/uploads/2020/01/PROTEC%C3%87%C3%83O-DE-DADOS-E-PROCESSO-CIVIL-Isabel-C-teixeira.pdf), “[a] concreta forma de restrição dessa publicidade não esta definida na lei nem em qualquer procedimento ou ferramenta informática, actualmente, cabendo assim a cada concreto Magistrado titular definir os moldes em que o desejar fazer ou considere adequado no processo”.
Nos termos do artigo 4.º do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), entende-se por dados pessoais a informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável, distinguindo-se dentro desse conceito categorias específicas de dados pessoais a que é aplicável um regime especialmente garantístico, como sucede com os dados pessoais sensíveis.
No que diz respeito aos dados pessoais gerais integrados na categoria geral, o tratamento é lícito desde que cumprida pelo menos uma das condições contempladas no art.º 6.º, n.º 1, do RGPD, enquanto que, o tratamento da categoria de dados especiais prevista no art.º 9.º do mesmo regulamento é proibido, salvo se verificada alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 dessa norma, de que cumpre destacar a alínea f) (em que se inclui a possibilidade de tratamento desse tipo de dados quando tanto seja “necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da sua função jurisdicional”).
Ora, no caso em apreço, ponderada quer a decisão sumária – de que já foi fornecida cópia em 2023 – quer o requerimento de escusa – não nos encontramos perante dados sensíveis – cfr. artigo 9.º do RGPD – pelo que, também por esta perspetiva, não se afigura que as normas que tutelam o regime legal de proteção de dados pessoais, encontrem algum respaldo no sentido da limitação do acesso aos atos processuais em questão (designadamente à Sra. Juíza que interveio no processo a que se refere a escusa, por via do deferimento, nos presentes autos, daquela pretensão).
Não se encontra, pois, algum dado pessoal que deva ser salvaguardado de acesso.
A limitação de acesso encontra-se, isso sim, prevista, em geral, para o magistrado que se tenha declarado escusado (conforme decorre do disposto no artigo 30.º, n.º 4, al. b) da Lei n.º 34/2009, de 14 de julho).
Por tudo o exposto, a pretensão expressa na comunicação eletrónica de 18-11-2024 não poderá ter acolhimento.
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IV. Pelos termos e fundamentos expostos, o pretendido pela Sra. Juíza “A” na comunicação eletrónica de 18-11-2024 não poderá, consequentemente, obter acolhimento.
Notifique.

Lisboa, 21-11-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).