CRIME DE HOMICÍDIO
ERRO DE JULGAMENTO
LIVRE APRECIAÇÃO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
Sumário


1. A livre apreciação da prova garantida pelo artº 127º do CPP, embora não autorizando o arbítrio, permite o recurso a prova indirecta, nomeadamente, permite a formulação de convicção sobre certo facto não apreensível directamente a partir da verificação de outros factos objectivamente adquiridos e que permitem desembocar logicamente e de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade dos eventos.
2. Assim, se não se consegue provar por meio de prova directa que A esfaqueou, e consequentemente, matou B – porque nenhuma das pessoas presentes viu A sacar de uma faca e espetá-la no peito de B –, mas sabe-se, pelas testemunhas presentes, que apenas A estava junto de B e, inclusive, A e B chegaram a estar fisicamente envolvidos em luta, e que a faca junta aos autos, entregue pelo próprio A, contém vestígios de sangue de B, em conjugação com toda a dinâmica anterior dos eventos, dita a lógica e as regras de experiência comum que só o A é que podia ter morto o B, devendo, assim, dar-se como provado tal facto.

Texto Integral


Acordam, em conferência, por maioria, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito de processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Central Criminal de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, sob o nº 446/23...., após audiência de discussão e julgamento, foi proferido acórdão em 13-06-2024, com a refª ...13 relativamente aos arguidos AA e BB através do qual aquele foi condenado e este absolvido nos seguintes termos (transcrição):
           
V - DECISÃO:
Pelo exposto acordam as Juízes que constituem o Tribunal Colectivo em:
1. Absolver o arguido AA do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, nº 1, al. d), da Lei 5/2006, de 23.02, na redacção dada pela Lei 50/2019, de 24.07, pelo qual vinha pronunciado;
2. Condenar o mesmo arguido AA pela prática em autoria material e concurso efectivo de:
2.1. um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1, do Código Penal, na pena, especialmente atenuada, ao abrigo do disposto no art.º 4º do Dec-Lei 401/882, de 23.09, de 8 (oito) meses de prisão;
2.2. um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 22º. 23º, 131º do Código Penal - para o qual se convola o crime de homicídio qualificado na forma tentada pelo qual vinha pronunciado, na pena especialmente atenuada, ao abrigo do disposto no art.º 4º do Dec-Lei 401/882, de 23.09, de 4 (quatro) anos de prisão;
2.3. Em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas, condenar o arguido AA na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva.
2.4. Declarar, nos termos do disposto nos artºs 2º, nº 1, 3º, nº 1 e 4. 7º, nº 1, al. a) e 8º da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, o perdão de quatro meses à pena única acima aplicada ao arguido AA, sob a condição resolutiva de o mesmo arguido não praticar infração dolosa até ../../2024, inclusive, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da parte da pena perdoada, e, ainda, sob a condição de proceder ao pagamento, no prazo de noventa dias, da indemnização a que nestes autos é condenado a pagar ao ofendido CC.
3. Manter as medidas de coacção a que se encontra sujeito o arguido AA. incluindo a medida de prisão preventiva, até ao trânsito em julgado da presente decisão, por se manterem inalterados os pressupostos de facto e de direito que as determinaram, nos termos dos arºs 191º, 192º, 193º, 202º, 204º, als a) e c) e 213º, nº 1, al. a) e 2, todos do CPP.
4. Determinar a recolha de amostras biológicas ao arguido AA para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos artigos 8.º, n.º 2 e 18.º, n.º3 da Lei n.º 5/2008, de 12/02, a solicitar à entidade competente, que deverá observar o prescrito nos artigos 9º e 10º desse diploma legal.
5. Absolver o arguido BB do crime de homicídio qualificado, p. e p. nos artºs 131º, 132º, nº 1 e 2, al. e), do Código Penal, na pessoa de DD, pelo qual vinha pronunciado;
6. Declarar extintas as medidas de coacção a que se encontra sujeito o arguido BB, incluindo a prisão preventiva em que se encontra, ordenando a sua imediata restituição à liberdade, caso não interesse a sua prisão à ordem de outros processo.
7. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por Centro Hospitalar ... relativamente ao demandado AA e condenar este arguido a pagar ao referido Hospital a quantia de € 2030,31 (dois mil e trinta euros , relativa às despesas de assistência prestados ao ofendido CC, em consequência do conduta do referido arguido/demandado, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido, absolvendo no mais peticionado (que respeita às despesas com a assistência prestado a DD) o demandado AA do pedido.
8. Julgar totalmente improcedente o pedido formulado por Centro Hospitalar ... relativamente ao arguido BB, absolvendo-se o mesmo demandado do referido pedido
9. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante CC e condenar o arguido/demandado AA a pagar-lhe a quantia de 30 000,00 € (trinta mil euros), acrescida de juros de mora, á taxa legal, desde a presente decisão até efectivo pagamento.
10. Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes DD e EE e absolver o arguido demandado BB do pedido nele formulado.

*
Custas na parte crime pelo arguido AA, fixando-se a taxa de justiça individual em 3 UC`s.
Custas do pedido de indemnização civil formulado por CC, por demandante e demandado, na proporção do decaimento.
Custas do pedido de indemnização civil formulado por DD e EE pelos demandantes.
Tudo sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário que haja sido concedido.
*
Comunique, desde já, a presente decisão à DGRSP, ao TEP e ao EP, dando nota que a decisão ainda não transitou em julgado.
*
Após trânsito em julgado:
- Remeta boletins à Direção dos Serviços de Identificação Criminal.
- Diligencie pela recolha de amostras biológicas ao arguido AA para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos artigos 8.º, n.º 2 e 18.º, nº3 da Lei n.º 5/2008, de 12/02, a solicitar à entidade competente, que deverá observar o prescrito nos artigos 9º e 10º desse diploma legal.
- Comunique o trânsito á DGRSP, ao EP e ao TEP
Notifique e Deposite (artigo 372º, n.º 5 do Código de Processo Penal).”
(…)
VIII. Analisando e decidindo.

O objecto dos quatro recursos, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões dos mesmos, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP bem como das nulidades previstas no artº 379º do mesmo CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]

Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º do CPP e os vícios previstos no artº 410º nº 2 do CPP;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

O assistente CC entende que:
- houve erro de julgamento relativamente a dois factos dados por não provados;
- consequentemente, impugna o valor indemnizatório que lhe foi arbitrado pelo Tribunal a quo.

Os assistentes DD e EE, na qualidade de pais da falecida vítima DD, entendem que:
- houve erro de julgamento quanto a certos factos não provados;
- consequentemente, pedem a condenação do arguido BB no crime pelo qual foi pronunciado e ainda no pagamento da indemnização por aqueles peticionada.
           
O arguido AA entende que:
- houve erro de julgamento quanto a certos factos provados e não provados;
- foi violado o princípio in dúbio pro reo;
- existe causa de exclusão da ilicitude uma vez que actuou em legítima defesa;
- não tinha intenção de matar, pelo que deveria ser absolvido do crime de homicídio tentado, quando muito estando em causa um crime de ofensa à integridade física grave;
- a manter-se pena deve a mesma ser suspensa na sua execução.

O Ministério Público entende que:
- houve erro de julgamento em relação a factos que respeitam tanto o arguido BB como o arguido AA;
- os crimes imputados a ambos os arguidos traduzem um crime de homicídio qualificado, um na forma tentada e outro na forma consumada;
- não deveria ter sido aplicado o regime especial de jovens;
- deve ser fixada pena ao arguido BB e alteradas as penas fixadas ao arguido AA, com aumento das mesmas.

Como os recursos do MºPº e dos assistentes DD e EE têm pontos que se sobrepõem, iremos analisar os mesmos em conjunto, no que tange à impugnação da matéria de facto.

Os recursos do assistente CC e do arguido AA, quer pela sua relativa simplicidade, quer pelo diferente objecto, serão analisados em separado.
 
Estará, assim, em causa decidir nos presentes autos pela ordem supra indicada:

I) Recurso do Assistente CC:

I. a) Saber se a matéria de facto impugnada deve ser alterada nos termos propostos e quais as respectivas consequências;
I. b) Saber se o valor indemnizatório deve ser aumentado nos termos requeridos.

II) Recurso do Arguido AA:
II. a) Saber se a matéria de facto impugnada deve ser alterada nos termos propostos e quais as respectivas consequências;
II. b) Saber se foi violado o princípio in dúbio pro reo;
II. c) Saber se o arguido agiu em legítima defesa e se, assim, há exclusão da ilicitude;
II. d) Saber se o crime imputado é o de homicídio ou antes de ofensa à integridade física;
II. e) Saber se pena aplicada deve ser suspensa na sua execução.

III. Recursos do MºPº e dos Assistentes DD e EE:
III. a) Saber se a matéria de facto impugnada deve ser alterada nos termos propostos e quais as respectivas consequências.
III. b) Saber se a qualificação jurídica deve ser alterada estando em causa homicídios qualificados;
III. c) Saber se deveria ter sido, ou não, aplicado o regime especial de jovens;
III. d) Saber se a medida da pena aplicada ao arguido AA deve ser aumentada, analisando-se aqui, neste item, a eventual pena a fixar ao arguido BB em virtude da eventual alteração da matéria de facto nos termos da al. a);
III. d) Saber se deve ser fixada uma indemnização a favor dos assistentes.

Antes de entrarmos na análise dos recursos, e porque em todos é impugnada a matéria de facto, vejamos, primeiro, os factos que foram dados por provados e não provados e a respectiva fundamentação levada a cabo pelo Tribunal a quo (transcrição):

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1.FACTOS PROVADOS:
1.1. No dia 12 de Fevereiro de 2023, cerca das 23 horas, o arguido BB, o arguido AA, primos entre si, FF, namorada do arguido BB, e GG, dirigiram-se ao estabelecimento de diversão noturna denominado “EMP01...”, situado na Alameda ..., em ..., estacionando o veículo no qual se fizeram transportar, nas imediações deste local.
1.2. À data, o arguido BB tinha o cabelo curto e de cor ... e o arguido AA tinha o cabelo curto e de cor ... (“oxigenado”).
1.3. No período compreendido entre as 23h10m e as 23h35m, no interior do referido estabelecimento, um grupo de três indivíduos de nacionalidade ... envolveram-se em altercação verbal com os arguidos, a FF e a GG, relacionada com a abordagem de um dos indivíduos de nacionalidade ... à GG.
1.4. A determinada altura, o arguido AA cruzou-se com um dos indivíduos de nacionalidade ... e o copo que este levava nas mãos caiu e quebrou-se, tendo os ânimos ficado mais exaltados.
1.5. Não ocorreram, contudo, agressões físicas entre ambos os grupos no interior do estabelecimento.
1.6. O segurança do estabelecimento HH e o ofendido CC intervieram e tentaram acalmar os elementos de ambos os grupos.
1.7. Cerca das 23h34m, o arguido AA, que, entretanto havia voltado a sentar-se na mesa junto à porta, enquanto o arguido BB, a FF e a GG se encontravam de pé junto à zona da porta do estabelecimento, dirigiu algumas palavras a um dos indivíduos de nacionalidade ..., que reagiu de forma agressiva, avançando na sua direcção, altura em que o arguido AA se levantou, tendo aquele individuo sido agarrado por um outro individuo.
1.8. Entretanto, o ofendido CC foi ao encontro do arguido BB, da FF e da GG, que naquela altura se encontravam de pé junto da porta da entrada do estabelecimento, e a quem se juntou entretanto o arguido AA.
1.9. O ofendido CC forçou os arguidos a sair do interior do estabelecimento, para evitar desacatos e um possível confronto com o grupo de ..., que estavam em superioridade numérica.
1.10. Nessa altura, vindo do lado exterior do estabelecimento, de um banco situado na zona pedonal onde esteve sentado, o ofendido DD, que vestia uma camisa de cor ..., aproximou-se da entrada do estabelecimento e levou à sua frente o arguido BB para o exterior do mesmo, sendo seguido pelo ofendido CC.
1.11. De imediato, o arguido AA aproximou-se do ofendido CC, que se encontrava já no exterior, e desferiu-lhe um soco na face.
1.12. De seguida, os arguidos colocaram-se em fuga, correndo pela via pedonal Alameda ... em direcção à Rua ..., o arguido BB à frente e o arguido AA atrás deste, sendo que a determinada altura passaram a correr praticamente lado a lado.
1.13. Os ofendidos CC e DD foram no encalço dos arguidos BB e AA, sendo que o ofendido CC seguia logo atrás do arguido AA e ofendido DD um pouco mais atrás.
1.14. Durante a fuga, apercebendo-se que estavam a ser perseguidos, um dos arguidos gritou “eu mato-te”.
1.15. Em poucos segundos, uns metros antes do ecoponto situado no passeio da Rua ... e antes da passadeira de peões ali existente, o ofendido CC alcançou o arguido AA.
1.16. Nessa ocasião, o arguido AA virou-se repentinamente e empunhou, com a mão direita, uma faca em direcção ao ofendido CC, que, assustado, travou sua corrida e tentou retroceder, efectuando movimento de rotação, altura em que escorregou, bateu com o joelho num banco, e caiu de joelhos ao chão.
1.17. Nessas circunstâncias, quando o ofendido CC tentava retroceder, o arguido AA desferiu-lhe um golpe, com a referida faca, na zona lombar/dorsal do lado esquerdo, ferindo-o com gravidade.
1.18. O ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos estavam armados com facas.
1.19. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, o ofendido DD, quando se encontrava junto da passadeira que atravessa a Rua ..., situada ao lado ecoponto, sofreu dois golpes, desferidos com um instrumento corto-perfurante, de forma consecutiva e rápida, através do mesmo orifício, tendo caído inanimado no chão, após percorrer, a cambalear, alguns metros junto à parede que ladeia a Alameda ..., pelo lado esquerdo (tendo em conta o sentido EMP01... - Rua ...).
1.20. Os arguidos fugiram apeados do local, acompanhados por FF, em direcção ao veículo em que se tinham feito transportar.
1.21. Logo após os factos, foram encontradas e apreendidos pelas autoridades policiais:
- no interior do estabelecimento comercial “EMP01...”, um telemóvel da marca ..., Modelo “..., com os IMEI's ...46 e ...53, no qual se encontrava inserido o cartão SIM da EMP02... com o número ...15, que se encontrava bloqueado mas ligado (tendo na capa uma fotografia do casal BB e FF), assim como os talões de consumo que se encontravam na mesa onde se encontrava sentado o grupo dos arguidos;
- na passadeira para peões que atravessa a Rua ..., o cartão de cidadão, título de condução e cartão bancário titulados pelo arguido AA.
1.22. Em consequência dos golpes de navalha que o atingiram, o ofendido DD sofreu um traumatismo de natureza corto-perfurante na região torácica (região sub-mamária esquerda), com um orifício em forma de cauda de andorinha, com o comprimento aproximado de 2,3cm, por 0,4 cm de largura, cuja extremidade medial dista 25 cm da cicatriz umbilical e 5,5 cm do mamilo esquerdo; tendo ainda provocado a laceração dos ventrículos do coração, lesões essas que foram causa directa e necessária da morte do ofendido, declarada no Hospital ..., pelas 00h40m do dia 13 de Fevereiro de 2023.
1.23. As lesões torácicas descritas resultaram de traumatismo de natureza cortoperfurante, devido a acção de instrumento de gume afiado, ou como tal actuando, compatível com o uso de “arma branca”, harmonizando-se com um diagnóstico diferencial médico-legal homicida.
1.24. Por sua vez, em consequência directa e necessária do golpe com instrumento corto-perfurante perpetrado pelo arguido AA, o ofendido CC sofreu uma ferida incisa e perfurante na região dorso/lombar esquerda, com cerca de 4 cm de extensão, com um pneumotórax à esquerda, com derrame pleural, assim como uma pequena fratura do 11º arco costal esquerdo posterior, resultando assim traumatismo de natureza contundente que determinou ao ofendido um período de dezassete dias para cura, com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional em dezassete dias.
1.25. Para o ofendido CC resultaram ainda das lesões sofridas, como consequência permanente, uma cicatriz, que é causa de desfiguração não grave.
1.26. O golpe desferido no corpo do ofendido CC era apto a provocar uma laceração do pulmão, o que, a suceder, provocaria a sua morte.
1.27. A circunstância de o instrumento perfurante utilizado ter atingido o osso do arco costal constituiu atrito à sua progressão.
1.28. Os arguidos ficaram desagradados e agastados por terem sido expulsos do estabelecimento EMP01....
1.29. O arguido AA, ao actuar conforme descrito em 1.11. agiu livre e deliberadamente, com o propósito concretizado de afectar o ofendido CC na sua saúde física, bem sabendo que da sua conduta resultariam lesões para o ofendido, resultado que quis e representou.
1.30. O arguido AA, ao actuar conforme descrito em 1.16 e 1.17., agiu livre e deliberadamente, admitindo como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte do ofendido CC, bem sabendo que lhe infligia golpe com instrumento corto-perfurante em zona onde se situam órgãos vitais, e que tal conduta era acto idóneo a provocar tal resultado, conformando-se com essa possibilidade.
1.31. Sabia o arguido AA que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Do Pedido de indemnização civil formulado por Centro Hospitalar ... EPE
1.32. O Centro Hospitalar ... EPE é uma instituição hospitalar integrada no Serviço Nacional de Saúde.
1.33. No exercício da actividade que desenvolve prestou assistência hospitalar a DD no dia 13.02.2023 e a CC no dia 13.02.2023 a ../../2023 e 2.03.2023, para tratamento das lesões por estes apresentadas em resultado das agressões de que foram alvo no dia 12.02.2023 nas imediações do “EMP01...” supra referidas.
1.34. Da assistência prestada pelo Centro Hospitalar a CC, para tratamento das lesões resultantes da agressão de que foi alvo por parte do demandado AA, resultaram despesas que ascendem a € 2 030,31.
1.35. Da assistência prestada pelo Centro Hospitalar ... a DD resultaram despesas que ascendem a € 211.01.

Do Pedido de Indemnização Civil formulado pelos demandantes DD e EE:
Para além dos factos acima elencados, resultou ainda provado que:
1.36. DD faleceu no estado de solteiro, sem descendentes, testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como seus únicos e universais herdeiros seus pais, DD e EE.
1.37. Em consequência dos golpes de navalha que sofreu na zona torácica resultou a morte de DD.
1.38 DD contava 32 anos de idade, à data dos factos, gozando de boa saúde e estando na posse das suas faculdades de trabalho.
1.39. Os demandantes despenderam com a realização do funeral a quantia de 1 390,00 €.
1.40. O infeliz DD não teve morte imediata e enquanto sobrevivei teve dores graves que com cessaram com aquela.
1.41. Sofreu enorme angústia com a antevisão da própria morte.
1.42. Os demandantes sofreram e continuarão a sofrer no futuro pela morte e pela falta do seu único filho, com quem tinham uma relação afectiva, constituindo com este uma família feliz e unida.
1.43. Não podendo contar com o seu apoio na velhice.
1.44. A demandante mulher desde a morte do DD encontra-se incapacitada para o trabalho, situação que subsiste.
1.45. A demandante entrou em depressão logo após a morte de seu filho DD, apresentando insónias, cefaleias frequentes, grande intolerância aos ruídos e uma necessidade de isolamento que a perturba e que ainda não conseguiu vencer.
1.46. Sendo seguida em psiquiatria privada, encontrando-se medicada com fluoxetina, lexotan 3, morfex 15, triticum, lorazepan e magnesium.

Do Pedido de Indemnização Civil formulado pelo ofendido II
1.47. Para além dos factos acima referidos, ficou ainda provado:
1.48. Em consequência directa e necessária do golpe perpetrado pelo arguido AA contra a pessoa do ofendido CC, este sofreu ainda escoriações no cotovelo e joelho esquerdos.
1.49. O ofendido foi assistido pelo INEM ainda no local, e depois foi transportado para o SU do Hospital ....
1.50. O ofendido quando deu entrada no SU do Hospital ... realizou TAC, tendo permanecido internado 17 dias no serviço de cirurgia para oxigeno-terapia e analgesia até ../../2023, tendo tido alta em 2.03.2023.
1.51. Durante o tempo em que ficou internado o ofendido CC sofreu muitas dores e momentos de grande falta de ar:
1.52. Desde a ocorrência dos factos, apoderou-se do ofendido um sentimento de pânico, do qual ainda hoje se não consegue libertar, pois estão frequentemente a vir-lhe a memória os factos ocorridos.
1.53. No momento em que ocorreu a agressão do arguido AA, o ofendido CC foi tomado de sentimento de pânico, pois encontrava-se indefeso, à mercê de pessoa munida de uma faca, temendo pela sua vida.
1.54. O ofendido sentiu e sente temor do arguido, o que o obrigou a emigrar para o estrangeiro, receando voltar a ..., onde vivem os seus pais e amigos, com medo de aqui o encontrar, por recear pela sua vida, dadas as circunstâncias da actuação do arguido.
1.55. Sente uma tristeza enorme pela falta do seu amigo e colega DD, falecido na mesma ocasião da agressão de que foi alvo.
1.56. À data dos factos, o ofendido CC tinha 31 anos de idade.

Da Contestação do arguido AA:
1.57. GG era, à data dos factos, menor de idade.
1.58. O arguido AA, a determinada altura, queixou-se ao segurança HH da conduta dos indivíduos ....
1.59. O arguido e as pessoas que o acompanhavam mudaram de mesa.
1.60. O ofendido CC empurrou o arguido BB junto à porta do Bar.
1.61. O arguido AA é mais baixo e mais franzino do que o ofendido CC, sendo de compleição física significativamente inferior a este.
1.62. O arguido não pagou o consumo de bebidas no Bar na medida em que foi expulso do mesmo, juntamente com as pessoas que estavam consigo.
1.63. O arguido é destro.

MAIS SE PROVOU:
1.64. O arguido AA não tem registados quaisquer condenações criminais.
1.65. O arguido AA frequentou o ensino regular até à frequência do 8º ano de escolaridade e após registo de retenção não quis prosseguir os estudos, nem mesmo no âmbito de um Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF).
Dos 7 aos 14 anos de idade, o arguido foi jogador de futebol, atividade desportiva que abandonou após sofrer uma lesão.
Relativamente a atividade laboral, não revelou motivação para se integrar profissionalmente, não tendo qualquer formação a esse nível, apenas se dedicou a algumas vendas online de peças de vestuário, dependendo economicamente dos progenitores.
1.66. No período a que se reportam os factos descritos na acusação, AA, então com 18 anos de idade, integrava o agregado de origem, constituído pelos pais e dois irmãos, o mais velho aluno de mestrado na Universidade ..., e o mais novo, estudante do 1º ciclo.
A dinâmica familiar é referenciada como afetiva e de interajuda, residindo o agregado num apartamento T3, com adequadas condições de habitabilidade, em contexto citadino, em ....
1.67. A situação económica do agregado, à data dos factos, assim como na presente data, era e é considerada desafogada e alicerçada na prestação pecuniária do RSI (664€), no abono de família relativo ao irmão menor (120€), na bolsa de estudos atribuída ao irmão mais velho (400€) e nas variáveis receitas que os pais auferem da venda de artigos têxteis e/ou calçado em feiras, e mais recentemente das vendas on-line.
1.68. Como despesas fixas mensais o agregado suporta as referentes à amortização do crédito bancário relativo à aquisição de casa própria (300€), os consumos de abastecimento domésticos, de água, luz e telecomunicações, num valor médio de 210€.
1.69. À data dos factos, no meio de residência, o arguido projetava uma imagem social ajustada.
1.70. Após a data dos factos, o agregado mudou de residência, para uma habitação arrendada no centro urbano de ..., pela qual pagam uma renda de 700€ e arrendaram o apartamento de ..., de que são proprietários, pelo montante de 1000€mensais.
1.71. Relativamente a atividade laboral, o arguido não revelou motivação para se integrar profissionalmente, não tendo qualquer formação a esse nível, apenas se dedicou a algumas vendas online de peças de vestuário, dependendo economicamente dos progenitores.
1.72. O arguido não apresenta qualquer projeto de vida definido, verbalizando interesse pela profissão de barbeiro, ainda não tenha encetado qualquer diligencia nesse sentido.
1.73. AA foi alvo da aplicação de uma suspensão provisória do processo, no âmbito do processo nº 1801/21...., por factos ocorridos em dezembro de 2020, pela prática de factos integradores de crime de dano, tendo-lhe sido aplicado injunções, particularmente a de prestar 40 horas de trabalho socialmente útil, que cumpriu.
1.74. AA deu entrada como preventivo no EP ... a 11 de Março de 2023, no âmbito do presente processo.
Em contexto prisional tem revelado uma postura aparentemente calma, de adaptação ao normativo institucional, sem necessidade de prescrição farmacológica, segundo expressou.
Por não ter a escolaridade mínima obrigatória, o arguido foi inscrito na Escola (ensino recorrente), contudo, assumiu algum absentismo às aulas, por desinteresse pela aprendizagem dos conteúdos curriculares.
1.75. AA sinaliza repercussões ao nível sociofamiliar decorrentes do presente processo, designadamente por os pais terem passado a sentir-se alvo de hostilidades, nomeadamente pelos tios, pais do coarguido, residentes a cerca de 1,3 Km, situação que os levou a considerar a necessidade de alteração de residência para uma diferente área geográfica.
1.76. A existência dos presentes autos são do conhecimento público, nomeadamente através da divulgação pelos meios de comunicação social, com aparentes repercussões negativas na imagem social do arguido.
1.77. O arguido continua a beneficiar de retaguarda familiar apoiante, particularmente, por parte dos pais.
1.78. O arguido BB não tem registadas quaisquer condenações criminais.
1.79. À data dos factos, o arguido BB residia com os seus pais, com dois irmãos menores e com a sua companheira FF. O arguido tem ainda três irmãos mais velhos, autonomizados, com quem o seu agregado mantém convívio regular.
BB e a sua companheira mantinham alguma itinerância entre ..., lugar de residência dos pais da companheira e ....
1.80. A família de BB habita em casa que cedida pelo proprietário do imóvel, já falecido.
A casa apresenta-se degradada, sem luz elétrica, nem água da rede pública, estando o agregado inscrito para acesso a habitação social.
1.81. À data dos factos BB estava inscrito no ensino regular, no 9.º ano de escolaridade no Agrupamento de Escolas ..., onde apresentava problemas de absentismo e não demonstrava motivação para a sua escolarização.
Ajudava os sogros na venda de peças de vestuário em feiras, ajuda que presta desde que iniciou relação de namoro com FF.
Como perspetiva de emprego, BB refere ter gosto pela atividade de comércio em feiras e pretende retomar essas funções aquando do seu regresso à liberdade. Pela família é equacionada a hipótese de jovem emigrar, com o apoio de familiares que residem na ... e no ....
1.82. BB desde que se encontra em prisão preventiva, tem mantido um comportamento ausente de reparos, realizou funções de faxina e no presente frequenta uma formação de cozinha. Beneficia do apoio pessoal, emocional e financeiro da sua família de origem e companheira, que o visitam regularmente e provêm o sustento necessário para a cantina.
Até à data da reclusão do arguido, o rendimento do agregado resultava da atribuição do Rendimento Social de Inserção, com uma prestação mensal no valor de 640,58€ e de abono de família atribuído aos irmãos do arguido, no valor de 344€. Estes rendimentos eram complementados com a recolha de sucata que pais do arguido realizavam e pela retribuição financeira que o pai da companheira do arguido lhe atribuía pela ajuda nas feiras.
A dinâmica social de BB era realizada junto do seu agregado familiar e da sua companheira, e extensivo a outros familiares.
1.83. BB e AA têm laços familiares e mantinham uma relação próxima e de convívio regular, tal como os seus agregados familiares.
1.84. No meio social de inserção, o arguido e respetivo agregado são caracterizados como elementos bem integrados e com um bom relacionamento vicinal.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS:

Não se provaram, com relevo para a decisão da causa, quaisquer outros factos para além dos acima elencados ou que os excedam ou contrariem, designadamente não se provou que:

Da Pronúncia e dos Pedidos de Indemnização Civil:
No momento em que os arguidos BB e AA, e FF e GG já estavam a sair para a zona exterior coberta do estabelecimento, “EMP01...”, o segurança HH tenha avisado em voz alta o ofendido CC que aqueles não tinham pago os seus cartões de consumo.
Acto contínuo e imbuídos de desejo de vingança, os arguidos BB e AA tenham acordado entre si que fugiriam do local por qualquer forma, usando se necessário da força física e das armas brancas - navalha e faca de ponta e mola - que, respectivamente, traziam consigo contra os seguranças, os funcionários do estabelecimento ou qualquer outra pessoa, em conjugação de esforços ou isoladamente, de forma a não procederem ao pagamento das bebidas que haviam consumido, tanto mais que haviam sido expulsos injustamente.
O arguido AA tenha dado um soco na face do CC e se tenha colocado em fuga por se aperceber que os funcionários do estabelecimento “EMP01...” queriam efectivamente cobrar as bebidas consumidas.
O ofendido DD tenha ajudado o seu amigo CC a segurar os arguidos para evitar que estes fugissem sem pagar.
O arguido AA tenha empunhado uma faca de ponta e mola, tenha accionado o respectivo mecanismo de abertura e que a faca com que desferiu golpe no ofendido CC fosse uma faca de ponta e mola.
Na altura em que o ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos tinham facas, o DD já se encontrasse perto da passadeira situada ao lado do ecoponto e a cerca de cinco metros daquele, junto ao arguido BB.
O arguido BB se tenha envolvido, nessa ocasião, em agressões físicas com o ofendido DD.
O ofendido DD e o arguido BB se tenham agarrado mutuamente e tenham recuado uns metros, em direção ao estabelecimento “EMP01...”.
O arguido BB tenha desferido dois golpes no ofendido DD, usando uma navalha com cabo de madeira que trazia consigo, descrita no auto de exame directo de fls. 796 a 797,
O ofendido DD tenha sofrido as lesões descritas em 1.22., que causaram a sua morte, em consequência de golpes de navalha perpetrados pelo arguido BB.
Tenha sido apenas pelo facto de a faca ter ficado espetada no arco costal, impedindo a sua progressão, que não ocorreu uma laceração do pulmão do ofendido, em tudo quanto exceda ou contrarie o constante de 1.26 e 1.27.
O arguido AA tenha tomado a resolução de tirar a vida ao ofendido CC e que só não tenha concretizado essa resolução por razões alheias à sua vontade em tudo quanto exceda ou contrarie o que consta de 1.30.
O arguido BB tenha admitido como possível que da sua conduta resultasse a morte do ofendido DD, que lhe tenha infligido golpes de faca na zona onde se situam órgãos vitais, ou que tenha agido com a intenção concretizada de tirar a vida ao referido ofendido.
Os arguidos tenham sido movidos por sentimentos de vingança, por terem sido explusos do estabelecimento EMP01... para evitar o pagamento da diminuta quantia das duas bebidas ali consumidas (cerca de 8 €)
O arguido AA tenha agido com a intenção concretizada de deter uma arma branca (faca de ponta e mola).
O ofendido CC quando levou a facada desferida pelo arguido AA tenha pensado que morria.
Desde a ocorrência destas agressões o ofendido CC nunca mais tenha conseguido manter um trabalho estável, vivendo da ajuda de pessoas da sua família (pais e namorada), vivendo constantemente nervoso, sempre com medo, desconfiado de tudo e de todos, assim como ganhou medo de sair à noite, mesmo acompanhado de pessoas amigas.

Da contestação do arguido AA
FF fosse menor à data dos factos.
O copo de um dos indivíduos de nacionalidade ... se tenha partido inadvertidamente, e que o arguido AA em nada tenha contribuído para a quebra do copo.
O ofendido CC tenha agredido o arguido BB, em tudo quanto exceda ou contrarie o que consta de 1.60.
O ofendido CC tenha agredido a namorada do arguido BB, FF.
O arguido AA tenha desferido o soco no ofendido CC para ajudar o arguido AA e/ou a namorada deste;
Os arguidos não tenham contribuído para a decisão de terem sido expulsos do Bar.
O ofendido CC tenha respondido com um pontapé que acertou em cheio no arguido AA, e que este tenha começado a correr, fugindo do local em pânico, com medo de ser novamente agredido.
O arguido tenha sentido falta de ar e por esse motivo tenha sido alcançado pelo ofendido e por este agarrado pelas costas.
O arguido, ainda agarrado, mas em movimento de fuga, se tenha virado de frente para o ofendido CC, e que, num sentimento de desespero, pânico, aflição e medo, tenha logrado retirar a faca que detinha e que tenha sido por esse motivo, para além da compleição física superior do ofendido CC, que agrediu este, sabendo que se não o fizesse iria ser violentamente agredido.
O arguido AA quando desferiu o golpe no ofendido CC se encontrasse de frente para este, vulgo “cara a cara”
O arguido AA, ao ser alcançado pelo CC, tenha empunhado a faca unicamente para se defender e assustar o CC e para o dissuadir de se aproximar e que tenha sido por não ter logrado tal intuito que desferiu, de seguida, um golpe no ofendido com a faca.
A faca usada pelo arguido AA para agredir o ofendido CC fosse por aquele usada diariamente como feirante, não sendo de ponta e mola, nem de abertura automática, mas manual e não possuindo mais de 10 cm de lâmina.

Da contestação do arguido BB:
O arguido BB não tenha praticado os factos de que vem pronunciado
O arguido BB não tenha tido em 12.02.23 qualquer gesto agressivo com quer que seja, nem tenha tido nas suas mãos qualquer navalha, nomeadamente a examinada a fls. 796 a 797 dos autos.
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3. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

O tribunal baseou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise critica, conjugada e ponderada do conjunto da prova produzida.
Por relevante, no caso em apreço, sublinha-se o seguinte:
Dispõe o art.º 127º do CP que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segunda as regras da experiência comum e livre convicção da entidade competente”.
Ressalvadas as limitações probatórias legalmente impostas, vale, pois, o principio da livre apreciação da prova.
Como é pacífico, o princípio da livre apreciação da prova não significa liberdade não motivada de valoração, constitui antes um modo não estritamente vinculado de valoração da prova e de descoberta da verdade processualmente relevante, isto é, uma conclusão subordinada à lógica e à razão e não limitada por prescrições formais exteriores (cfr. Cavaleiro de Ferreira, "Curso de Processo Penal", II, pag. 65).
A livre apreciação da prova pressupõe, pois, a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objectivos e racionais.
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável, sendo certo que, como é sabido, não se procura uma verdade ontológica e absoluta, mas a verdade judicial e prática, na reconstituição possível: ou seja a verdade possível do passado, na base da avaliação e julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidas.
Caso após a valoração e apreciação conjugada e crítica da prova produzida, o tribunal, ainda assim, não conseguir concluir se determinado facto ocorreu ou não, por se lhe apresentarem dúvidas que não logrou sanar, então terá que dar tal facto como não provado, como o impõe o principio in dubio por reo.
Importa nesta sede explicitar as razões da decisão sobre a matéria de facto, cumprindo a imposição constitucional e o dever legal de fundamentação, através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção.
Indicam-se, de seguida, os elementos de prova que foram ponderados, explicitando-se, depois, as razões de convicção do tribunal relativamente a cada conjunto de factos.
3.1. Foi ponderada pelo tribunal a prova documental, pericial, e pessoal (declarações dos arguidos, dos assistentes e demandantes civil e depoimentos testemunhais) a seguir referida:
3.1.1. Prova documental e pericial:
Auto de noticia lavrado pela PSP, esquadra ..., de fls. 36 e 37, dando conta da deslocação da autoridade policial à Alameda ..., ..., na sequência de comunicação, cerca das 23h45 do dia 12.02.2023, de ocorrência de esfaqueamento de dois indivíduos, nas imediações do EMP01..., com relato dos objectos então recolhidos (uma carteira com borracha com documentos que estava caída no solo junto à passadeira da Rua ... com a Alameda ..., ... relógios ensanguentados e danificados, um telemóvel da marca remi de cor ..., entregue pelo vigilante, possivelmente dos suspeitos ou das vitimas) e das diligências efectuadas com vista ao isolamento do local, no qual eram visíveis sinais hemáticos no solo.
Comunicação da noticia de crime pela PSP à PJ, em 13.2.23, pelas 00h30m, de fls. 55;
Auto de Diligenciais Iniciais, 13.02.2023, de fls. 58 , que revela na parte em que se dá conta da deslocação de inspectores da PJ ao local dos factos, pelas 1.45 h, do dia 13.02.23, verificando que o local se encontrava devidamente preservado pelos elementos do PSP ..., das diligências efectuadas com vista à preservação das imagens do circuito de videovigilância, da entrega dos documentos recolhidos pela PSP junto da passadeira existente na via, da apreensão de objectos recolhidos pelo OPC, bem como os resultantes da inspecção judiciária, constantes do auto anexo.
Auto de apreensão, em 13.02.23, pelas 3h, fls. 15 e a fls. 63 de carteira de plástico azul, contendo documentos (titulo de condução, cartão de cidadão, cartão bancário, cartão de clinica dental light, tudo em nome de AA, e certificado de matrícula ..-LC-..), três relógios, um telemóvel de marca ..., um cachecol de malha polar
Relatórios de admissão na urgência do Centro Hospitalar ..., Epe, de DD, pelas 0:21 do dia 13.02.23 (fls. 64) e de CC, pelas 0:04 do mesmo dia (fls. 65);
Relatório de Inspecção Judiciária, a fls. 70 a 91, efectuado por elementos da Polícia Judiciária, em 13.02.23, com início pelas 16:07, contendo: imagens áreas da localização do EMP01... e zona envolvente (fotos 1 e 2); perspectiva da Alameda ... e localização do EMP01... (fotos 3 e 4); perspectiva da Alameda ... e da zona contígua à Rua ...); perspectiva a partir da Rua ..., sendo visível a passagem para peões, com a localização dos marcadores na referida passagem e na dita ..., que assinalam os diversos vestígios recolhidos (fotos 6 e 7); perspectiva inversa a partir da zona pedonal da Alameda ..., sendo visível a localização dos marcadores (fotos 8); perspectiva da passagem para peões sita na Rua ..., ..., onde foi recolhido a carteira contendo documentos apreendida - vestígio V 1-A (...53) - e onde foi efectuada recolha de amostra de vestígios em manchas de gota supostamente hemáticas - perspectica da localização do marcador 1 - vestígio V 1-B (...56) - (fotos 9, 10 e 11 e 12); foto da carteira com documentos recolhida (fotos 13, 14 e 15); perspectiva de localização do marcador 2, que assinala macha supostamente hemática de “padrão de gota”, onde foi feita recolha - vestígio V 2 (VOOO48868) - (fotos 16 e 17); perspectiva de localização do marcador 3, que assinala mancha abundante supostamente hemática de “padrão de gota”, onde foi feita recolha - vestígio V 3 ( VOOO48869) - (fotos 18, 19 e 20) ; perspectiva de localização dos diversos marcadores (fotos 21 e 22; perspectiva de localização do marcador 4, qua assinala macha supostamente hemática de “padrão de gota”, onde foi feita recolha - vestígio V 4 (...71) - (fotos 23 e 24); perspectiva de localização do marcador 5, que assinala macha supostamente hemática de “padrão de gota”, onde foi feita recolha - vestígio V 5 (...73) - (fotos 25 e 26); perspectiva de localização do marcador 6, relativo à localização de um casaco de cor ... - vestígio V 6 ( ...84) - (fotos 27, 28 e 29); localização de um cachecol em tecido de cor ... - vestígio V 7 (...85) - (fotos nº 30 e 31); relógio marca ..., recolhido pela PSP, em frente ao EMP01... - vestígio V 8 (...92) - (foto 32); relógio de marca ... recolhido pela PSP no interior do EMP01... - vestígio V 9 (...88) - (foto 33); relógio da marca ..., recolhido pela PSP no interior do EMP01... - vestígio V 10 (...92) - (foto 34); telemóvel da marca ..., recolhido pela PSP no interior do EMP01... - vestígio V 11 (...94) - (fotos 35 e 36).
Auto de apreensão, em 13.02.2023, do vestuário usado pelas vitimas, de fls. 11;
Auto de diligência, em 13.02.23, fls. 141, com vista à preservação de imagens captadas pelos sistemas de videovigilância dos estabelecimentos comerciais, tendo sido solicitado a preservação das imagens do estabelecimento “EMP03...”
Auto de diligência (CL), em 13.02.23, fls. 144, contendo relato de inspecção judiciária ao espaço interior do “EMP01...”, no decurso da qual se verificou em cima da mesa mais próxima da entrada, onde se encontravam sentados os arguidos e duas jovens do sexo feminino, e que havia sido preservada por indicação da PJ - se encontravam dois copos em vidro, com cerveja no interior, e três cartões de consumo do estabelecimento, que foram recolhidos e apreendidos
Auto de apreensão efectuado em 13.02.23, dos três cartões de consumo, fls. 145
Relatório de inspecção judiciária efectuado em 13.02.2023, ao interior do EMP01..., realizado por especialista de Policia Cientifica e Criminalista, de fls.189 a 196;
Relatório de exame /reportagem fotográfica, efectuada em 14.02.2023, no Gabinete de Perícia Criminalística da PJ às diversas peças de roupa envergadas pelas vitimas na altura das agressões, recolhidas no Hospital ... - ... pelo inspector JJ, de fls. 204 a 211
Auto de exame directo aos bens apreendidos, efectuado em 13.03.2023, de fls. 491 (roupa das vitimas, carteira de documentos e documentos, relógios, cachecol, 3 cartões de consumo)
Auto de diligência realizada em 20.03.2023, fls. 519, com vista à inspecção do veículo ... modelo ... D com matrícula ..-LC-.., no estabelecimento EMP04..., tendo sido obtida informação de que o veículo tinha sido vendido em 15.02.2023, tendo sido efectuada recolhas de vários vestígios que resultaram negativo para a presença de sangue, conforme exame pericial efectuado a seguir referido.
Relatório de exame pericial efectuado em 20.03.2023, por especialistas de policia cientifica criminalística, fls. 521 ao veículo marca e modelo ... d, matrícula ..-LC-.., que se encontrava no estabelecimento “EMP04...”, tendo sido efectuadas recolhas de vestígios biológicos e pesquisa de eventuais vestígios hemáticos latentes, com recurso a reagente químico adequado, de que resultou a recolha de vários vestígios. Posteriormente submetidos ao teste de Kastle-Meyer o resultado foi negativo para todos eles
Lista dos objectos apreendidos, de fls. 754, da qual consta ter sido apresentado uma navalha dentro de um saco plástico transparente e pequeno, entregue em mão, pelo Dr. KK, constando como data da apreensão 12.06.2023 (entregue em mão juntamente com o requerimento subscrito pelo mesmo Advogado apresentado em 12.06.2023, e junto a fls. 751 dos autos) sendo que tal requerimento reproduz email datado de 10.06.23, de fls. 749.
Ofício de fls. 782/783, datado de 20.06.2023, solicitando ao LPC a realização de perícia, com vista ao exame identificativo, caracterização e enquadramento legal da navalha; determinação da existência de perfis de ADN e de vestígios lofoscópicos no cabo e na lâmina da navalha remetida; em caso positivo de extracção de perfil ou perfis de ADN, proceder á sua comparação com os perfis de ADN dos dois arguidos e das duas vitimas.
Relatório de exame pericial à navalha referida, iniciado em 6.07.023, constante de fls. 793 a 794, da qual consta tratar-se de uma navalha com cabo de madeira com cerca de 21 cm, na qual se verificou a inexistência de vestígios lofoscópicos com valor identificativo
Auto de exame directo á mesma navalha, de fls. 796 e 797, efectuado em 18.07.23, descrita da seguinte forma: “Uma (01) navalha, com o cabo em madeira, com as cores castanha e preta, como aproximadamente 11,5 cm de comprimento, e com Lâmina, em inox, com a imagem/logo de uma mosca numa das faces, de um gume, com cerca de 9 cm de comprimento. No total mede 20.5 cms. A lâmina apresenta a ponta partida. O objecto encontra-se em razoável estado de conservação. Trata-se de uma navalha de abertura manual, como mola de encosto em estado funcional, por norma necessitando da acção das duas mãos para realizar a acção de abertura, por foça do desvio/afastamento da lâmina do sulco acondicionador.
Dada a dimensão da lâmina, inferior a 10 cms, não é enquadrável na definição de “arma branca” conforme estatuído no art.º 2º, nº 1, al. m) da Lei 50/2019 (Lei das Armas), assim a sua detenção não constitui crime. - vide a contrario os artºs 2º, nº 1, al. m), 3º, nº 2, als. d), f) e ab), artº 4º, nº 1, e art.º 86º, nº 1, al. d) do citado diploma.
Efectuada pesquisas online verificou que se trata de uma navalha da marca ...”, madeira “...” (com lâmina de 9,5 cm)”.
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Imagens captadas pelo circuito de videovigilância instalado no “EMP01...”, gravadas na pen-drive junta aos autos, correspondentes ao período compreendido entre as 23h e as 00 h do dia 12.02.23, cujo auto de visionamento consta de fls. 162, tendo delas sido extraídos os 34 fotogramas, juntos a fls. 163 a 179
Imagens captadas pelo circuito de videovigilância instalado no estabelecimento “EMP03...”, sito na Alameda ..., gravadas em pen-drive juntas aos autos, correspondentes ao período compreendido entre as 23h e as 00 h do dia 12.02.23, cujo auto de visionamento consta de fls. 212, tendo delas sido extraídos os 34 fotogramas, juntos a fls. 213 a 223
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Para além exames periciais acima referidos, foram ainda ponderados:
Relatório de exame pericial nº ...19-BBG de fls. 799 a 802, realizado em 18.07.2023, subscrito além de outro, pela especialista de Polícia Científica LL, no qual foram analisados os vestígios recolhidos na inspecção judiciária realizada em 13.02.2023, vestígios ..., V 2, V 3, V 4, V 5 (manchas de sangue) - items 1 a 5; roupa envergada pelas vitimas no momento da agressão: t-shirt envergada por CC - item 6 e uma camisa referenciada como DD (por lapso escreve-se no relatório “camisa referenciada como MM)- item 7; a navalha - item 8 (recolha R 1 lâmina, recolha R 2 cabo), entregue e subsequentemente apreendida nos autos.
Das conclusões de tal relatório consta que nos vestígios V1B, V2, V3, V4 e V 5, na thirt e camisa, e na lâmina da navalha detectaram-se vestígios de sangue, tendo-se obtido:
- na T shirt, um perfil único ou de maior contribuidor idêntico ao perfil de CC;
- no cabo da navalha não se obtiveram resultados;
- nas amostras recolhidas das manchas de sangue localizadas na passagem pedonal e na Alameda ..., na camisa, e na lâmina da navalha, um perfil único, proveniente de individuo do sexo masculino, que não tem identidade com as amostras referência recebidas para exame
De referir que em tal exame não foi analisada amostra referência de DD, tendo sido analisadas amostras referência apenas de ambos os arguidos e do ofendido CC.
O referido exame pericial foi complementado por exame pericial nº ...30-BBG, realizado em 7.08.2023, de fls. 991, comparativo entre os resultados aí obtidos e o perfil genético de DD, tendo concluído que nos items 1 a 5, 7, e 8 (R1) se obteve um perfil único idêntico ao perfil de DD.
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Relevantes para o apuramento das lesões sofridas pelas vitimas, foi ponderada a seguinte prova documental e pericial:
Quanto às lesões sofridas por CC:

Auto de diligência de 13.02.2023, no qual se consignou: “Foi observado pela Dr.ª NN, pelas 00h27, tendo a mesma verificado uma ferida incisa e perfurante na região dorso/lombar esquerda, com cerca de 3,5 a 4 centímetros de extensão. Foi ainda observado um pneumotórax esquerdo, com derrame pleural, assim como pequena fractura do 11º arco costal esquerdo posterior. Não se verificou qualquer laceração pulmonar. O médico Dr. OO explicou que a faca da agressão ficou espetada no arco costal, impedindo a sua progressão, caso contrário teria atingido e lacerado o pulmão e teria provocado perigo para a vida”
Elementos clínicos remetidos pelo Centro Hospitalar ...: - de fls. 121 a 131 (e também a fls. 615 a 616), contendo episódio de urgência de 13.02.2023 (deu entrada 00:04:37 do dia 13.02.23, apresenta ferida incisa e perfurante na região dorso/lombar esquerda, com cerca de 3,5, a 4 cm de extensão. Após infiltração de anestesia local foi explorada a ferida que apresenta trajecto longo em direcção anterior e superior. Apresenta escoriações no cotovelo e joelho esquerdos); relatório da TAC, intitulado Relatório final, subscrito pela Drª PP, de fls. 123 (moderado pneumotórax esquerdo, com derrame plural homolateral ligeiro. Pequena fractura trabecular do 11º arco costal esquerdo (posterior) muito subtil e tendo e conta a espessura de corte. Enfisema subcutâneo adjacente); imagens de Rx (joelho, cotovelo e torax), análise clinicas; episódio de urgência de 2.03.2023 (vitima de agressão: traumatismo torácico. Reavaliação, sem queixas, nega tosse ou dispneia); nota de alta, de fls. 618 (internado em 13.02.2023, teve alta em ../../2023 - hemo-pneumotórax a esquerda, após ferida incisa e perfurante na região dorso/lombar esquerda. Apresenta também escoriações no cotovelo e joelhos esquerdos. Admitido em Cirurgia geral para oexigeoterapia e analgesia. Evolução no internamento: Houve necessidade de colocação de dreno torácico, com drenagem praticamente completa do penumorotorax)
Relatórios de perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, realizados em 15.03.2023 (preliminar) e 31.03.2023 (definitivo), a CC, pelo perito Médico Dr.QQ, que constam de fls. 567 a 568 verso e de fls. 677 a 679, no qual se assinala a data da cura das lesões em 2.03.2023, que as lesões apresentadas pelo examinado são resultantes de traumatismo de natureza corto perfurante, e determinaram 17 dias de doença com afectação para o trabalho em geral e igual período com afectação da capacidade de trabalho profissional. E que do evento resultou, como consequência permanente, cicatriz sensivelmente linear na região dorsal esquerda, junto à linha média, com vestígios de ponto de sutura, com 4,5 cm, que é causa de desfiguração não grave, concluindo-se que de acordo com as sequelas descritas e o exame objectivo efectuado, em conjunto com os registos clínicos facultados, é possível determinar que as sequelas não são causa de afectação grave das capacidades de trabalho geral nem profissional do examinado.
Quanto às Lesões sofridas por DD:
Ficha de urgência, de fls. 120 (deu entrada pelas 00:24 do dia 13.02.23, tendo sido verificado o óbito pelas 00:40, apresenta ferida infra mamária direita).
Auto de diligência em 15.02.23, de fls. 152 e 152 verso e respectiva reportagem fotográfica de fls. 153 a 158, referente à deslocação ao GML e Forense do ..., a fim de assistir à autópsia, realizada pelo médico Dr. QQ, destacando-se do ali relatado que, além de outos pequenos ferimentos na mão e no joelho, foi observado “uma ferida corto-perfurante na região sub-mamária esquerda, com um orifício em forma de cauda de andorinha, com o comprimento aproximado de 2,3, cm por 4mm de largura; Segundo o perito a configuração do orifício de entrada sugeria que a faca que agrediu a vitima havia sido espetada duas vezes (dois movimentos), de forma consecutiva e rápida, através do mesmo orifício, tendo sido retirada parcialmente após entrar uma primeira vez e enfiada novamente para o interior do corpo; A nível do hábito interno o perito observou o seguinte: do orifício de entrada observou duas trajectórias distintas; a primeira no sentido horizontal, de lateral para medial, mas superficial, que atingiu o músculo mas não perfurou qualquer órgão vital; a segunda, numa trajectória ligeiramente ascendente, de lateral para medial e de frente para trás, raspou num arco costal, passou ao lado do pulmão e lacerou o ventrículo esquerdo, saindo pelo ventrículo direito, picando ainda a parte superior do fígado, pelo que o perito aferiu que o golpe foi desferido com uma face com lâmina bastante comprida. Este ferimento provocou uma hemorrogia dentro do pericárdio que saiu para o pulmão, formando um coágulo e sangue fluido com mais de um litro. Em conclusão, e no que diz respeito à causa da morte, o perito referiu que face ao observado a vitima morreu devido à ferida corto-perfurante supra descrita que lacerou os ventrículos do coração, que terá provocado uma morte rápida”
Relatório da autópsia médico-legal, de fls. 882 a 892, realizada em 20.06.2023, entre outro, pelo Dr. QQ, assistente de medicina legal.
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3.1.2. Prova pessoal:
Por se revelar pertinente no circunstancialismo dos autos, e não obstante se encontrarem gravadas, procede-se, de seguida, à enunciação dos relatos, nos aspectos mais relevantes, efectuados pelos arguidos e pelo assistente CC.
Declarações dos arguidos:
O arguido AA declarou no inicio da audiência não pretender prestar declarações sobre os factos de que vinha pronunciado, remetendo-se o silêncio. Ao longo da audiência manteve esta postura, ressalvado o pedido de desculpas que verbalizou ao assistente CC, a que acrescentou “foi o medo” nada mais tendo declarado.
De igual modo em sede de instrução, o mesmo arguido declarou não pretender prestar declarações, tendo sido alertado para a circunstância de ter sido carreado para os autos um novo elemento (a navalha que foi apresentada pela defesa do arguido BB, e que se afirmava ser sua).
O arguido AA apenas prestou declarações no primeiro interrogatório judicial perante JIC, em 11.03.2023, no qual lhe foi comunicado o despacho de indiciação pela prática em autoria de crime de homicídio na forma tentada, na pessoa de CC, declarações que foram reproduzidas em audiência
Nestas confirmou ter-se deslocado com o seu primo BB, a namorada deste FF e a GG - tendo afirmado ter conhecido esta última pouco tempo antes - ao EMP01... no dia 12.02.2023, bem como o desentendimento com indivíduos de nacionalidade ... que ali se encontravam, referindo ter alertado o segurança para o comportamento destes. Posteriormente, a instâncias, disse que chegaram a mudar de mesa para evitar confusão com os .... Disse que, sem querer, partiu um copo que um dos ... trazia na mão. Referiu que o CC empurrou o seu primo BB contra a porta do Bar, para o colocar lá fora, não sabendo porquê. A FF meteu-se no meio e é também empurrada.
Nessa altura, também ele saiu do estabelecimento e desferiu um soco na face do CC, que largou o BB, e lhe desferiu um pontapé, após o que se colocou em fuga, por ter calculado que este lhe ia bater, sendo que o BB também começou a correr.
Parou a cerca de 20/30 metros, por ter ficado cansado, tendo sido alcançado pelo CC, que o agarrou por trás, e então abriu a mala, de onde retirou a faca que ali trazia, abriu manualmente esta faca, e atingiu o ofendido CC, não sabendo precisar como e onde o cortou, apercebendo-se que o corta quando vê sangue na sua mão e na faca, que deixou cair, correndo então em direcção ao carro. Referiu que inicialmente viu o BB a correr, tendo este corrido primeiro, mas depois deixou de o ver até este ter chegado ao carro, juntamente com a FF, seguindo todos para casa do seu pai.
Esclarece que cá fora só viu o CC e a FF. Não se lembrava de o segurança do estabelecimento lhe ter pedido para sair, tendo saído por ter visto o BB e a FF a serem agredidos, sendo que instado a concretizar as agressões, referiu que foram empurrados. Disse que a navalha que consigo trazia está sempre na mala que então levava a tiracolo, porque é a que leva para trabalhar nas feiras. Confirmou que na altura tinha o cabelo loiro, oxigenado. Mais referiu que trazia uma carteira com documentos seus que perdeu na confusão.
A instâncias, referiu ter usado a faca por se ter sentido agarrado e com medo. Referiu ter sido agarrado por trás pelo CC, com os dois braços. Instado a explicar como nessa posição abriu a mala, retirou a faca e abriu a faca, referiu que se estava a mexer e conseguiu abrir a mala e abrir a faca por estar a tentar libertar-se.
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Por seu turno, o arguido BB, prestou declarações no inicio da audiência de julgamento, assim como prestou declarações em primeiro interrogatório judicial perante JIC, realizado em 24.02.2023, integralmente reproduzidas em audiência -, bem como prestou declarações em sede de instrução, em 6.11.2023, que foram quase na sua totalidade reproduzidas em audiência de julgamento, não o tendo sido na parte restante por virtude de todos os sujeitos processuais terem prescindido de tal, incluindo os arguidos e, em particular o arguido BB, que declarou estar ciente do seu conteúdo integral.
Em primeiro interrogatório judicial, negou ter consigo qualquer arma, assim como negou ter agredido quem quer que seja. Referiu de modo pouco circunstanciado uma confusão no EMP01..., onde se tinha deslocado com a sua namorada, FF, seu primo AA e a namorada deste GG. Acabou por precisar que um individuo ... abordou a namorada do AA, numa altura em que este não estava presente, tendo o AA ficado desagrado com a situação quando a sua namorada lhe relatou o sucedido. Posteriormente o AA terá partido um copo que um ... tinha na mão, não sabe se de propósito, o que deixou os ... mais exaltados. Nessa altura, foi para junto da namorada, a quem disse para irem embora. Foi entretanto empurrado e colocado no exterior do estabelecimento por um individuo, e começou a correr, por ter medo. A determinada altura olha para trás vê o seu primo perto do individuo, que trajava uma t shirt azul, e que está no chão. Depois refere que um outro individuo que vinha atrás de si, ao ver o outro no chão, foi atrás do AA. Entretanto a namorada juntou-se a si e correram ambos para o carro, onde entretanto aparece o AA, que os conduziu até sua casa e depois foi para a casa dele. Perguntou ao AA o que se passou e ele disse “tentaram pegar-me, deram-me e eu também dei”. Indagado, referiu não saber se o primo tinha uma faca de ponta e mola e referiu que não mais falou com ele sobre o sucedido, sendo que só depois de ouvir as noticias relacionou que foi o seu primo o autor dos golpes. Acabou por referir que acha que o AA deu um soco a um individuo - não sabe quem - e disse foge, altura em começou a correr, e que o individuo que o colocou no exterior não o agrediu, apenas o empurrou.
Já nas declarações prestadas em sede de instrução, o arguido BB, descreve de maneira distinta o sucedido após a saída do EMP01..., referindo ter presenciado tudo quanto se passou. Versão que, no essencial, manteve em audiência de julgamento.
Assim, referiu que sai do referido Bar, corre pelo lado esquerdo, atravessa a passadeira da Rua ..., ficando do outro lado da via, de frente para a ..., e vê o CC no chão, pensa que por ter escorregado, e o AA a fazer um gesto em relação a ele, sendo que entretanto aproxima-se o DD, relativamente a quem depois o AA fez outro gesto idêntico, e após chega o segurança e profere as seguintes expressões “que estás a fazer, eu parto-te todo, eu mato-te”, tendo-se entretanto o AA retirado para o lado direito e corrido em direcção ao automóvel ..., estacionado nas proximidades, tendo também o declarante e a sua namorada entrado no automóvel.
Referiu, a instâncias, que deixou de correr, por ter deixado de sentir passos atrás de si, que nunca esteve envolvido fisicamente com o CC ou com DD e que o segurança proferiu aquelas expressões já depois de o DD ter sido atingido pelo AA. Não ouviu o CC avisar que havia facas, nem ouviu o AA a gritar “eu mato-te” ou expressão equivalente. O AA atingiu primeiro o CC e depois o DD, referindo que quando aquele é atingido o DD ainda vinha atrás, a caminho.
Disse que, na altura da fuga, não se encontravam outras pessoas na ... e que correu em primeiro lugar, sendo seguido a alguma distância pelo AA.
Mais disse que quando vê o CC este está de costas para o AA, de joelhos e com a mão apoiada no chão, sendo então que o AA lhe desfere a facada, após o que o CC corre para o EMP01..., aparecendo o DD a correr a quem o AA desfere um golpe, não chegando a estar agarrados.
Depois de entrarem no automóvel, conduzido pelo AA, foram a casa do pai deste, e depois foram para casa do seu irmão, onde a mãe tinha feito uma festa surpresa de aniversário para FF. Nessa altura, encontrando-se vários familiares no exterior, designadamente os seus irmãos RR e SS, as suas tias e ao que crê o seu Pai, contaram o que se passou e o AA atirou uma faca para um monte ali situado, não tendo, porém, visto a faca, apenas o movimento.
Instado a explicar, como a faca apareceu, referiu que o irmão e o Pai foram procurar a faca no monte e a encontraram.
Perguntado a razão pela qual não descreveu os factos ora relatados logo no primeiro interrogatório judicial, disse que o não fez por ter receio de represálias.
Em audiência de julgamento, descreveu o ocorrido no interior e no exterior do EMP01... em termos semelhantes, embora com ligeiras alterações e de forma mais pormenorizada, designadamente no que respeita a ter sido o AA a partir o copo que o individuo ... tinha na mão, e ter insistido para irem embora do Bar por o ambiente estar tenso, pretendendo o AA permanecer, sentando-se na mesa. Reafirmou que foi empurrado pelo CC para a porta, não sabendo porque motivo, e que o AA que entretanto se levantara desfere um soco ao CC, e disse-lhe foge, o que fez, começando a correr, sem cuidar de saber se a sua namorada e GG o seguiam.
Reafirmou que correu pelo lado esquerdo da ..., atrás dos bancos, do lado do ecoponto, e o seu primo AA, uns metros atrás, pelo meio da ..., em frente aos bancos. Correu sempre, atravessando a passadeira e ficando do outro lado da via, altura em que deixou de ouvir passos atrás de si, virou-se para a ... e viu o CC de costas para o seu primo AA com a mão apoiada no chão, e o AA a desferir um golpe nas costas do CC, após o que aquele corre em direcção ao Bar. Entretanto surge perto do AA o DD, o AA desfere-lhe dois golpes no peito, e o DD leva a mão ao peito e profere a seguinte expressão “ai, seu filho da puta”.
Reafirmou de igual modo o já relatado em sede de instrução quanto ao ocorrido após terem chegado a casa do seu irmão.
Declarações do assistente CC:
O assistente prestou declarações perante PJ, em 13.02.23, colhidas no Hospital onde se encontrava (fls. 113 e seg), prestou declarações perante Ministério Público em 28.02.2023 (fls. 447 e 448), nas quais confirmou as primeiras, com alguns esclarecimentos), prestou declarações para memória futura em 29.03.2023, perante Juiz de Instrução Criminal, que se encontram gravadas em vídeo no CD junto aos autos, todas elas reproduzidas em audiência, com o acordo de todos os sujeitos processuais - e, por fim, prestou declarações por Webex em audiência de julgamento, tendo sido confrontado com aquelas e com imagens de videovigilância existentes nos autos.
Em sede de declarações prestadas em 13.02.23, logo no dia seguinte aos factos, o ofendido esclareceu quanto às funções que desempenhava no EMP01..., relatou os desacatos ocorridos no interior do estabelecimento, entre dois jovens de etnia cigana, um de cabelo amarelado e outro de cabelo escuro, que estavam acompanhados de duas jovens, e uns indivíduos de nacionalidade ..., sem que tivessem ocorrido confrontos físicos, e descreveu o ocorrido no exterior do bar, nos termos que constam de fls. 110/114, e aqui se dá por reproduzido.
Assinale-se que referiu que, após ter convidado o grupo de etnia cigana a sair do estabelecimento, conduzindo-os para o exterior, quando se encontrava já na zona exterior, na parte coberta do estabelecimento, surge na sua rectaguarda o jovem de cabelo amarelado, que o agride com um soco. No intuito de não pagarem, os dois jovens de etnia cigana colocaram-se em fuga apeados, em direcção à estrada... e uns ecopontos existentes junto de uma passadeira.

De imediato, segue no encalço daqueles, e junto dos ecopontos, o individuo de cabelo amarelo, vira-se repentinamente para si, sacando de uma faca de ponta e mola, com a mão direita. Ao aperceber-se de tal, o depoente escorrega, junto a um banco perto da passadeira, caindo de joelhos e, quando se preparava para recuar, no movimento de rotação, o referido individuo espeta-lhe uma facada, na zona lombar/dorsal do lado esquerdo. Após ter levado a facada, o depoente, apercebe-se da chegada do DD, ainda o tenta avisar das facas, no entanto este não se apercebe, continua em frente e na passadeira junto dos ecopontos aborda o outro individuo de etnia cigana de cabelo escuro, agredindo-se ambos mutuamente, recuando uns metros para trás.
Refere que é junto a uma parede que que o HH é esfaqueado, uma vez que é ali que é encontrado e socorrido, junto a uma mancha de sangue.
Apesar de não ter visto o individuo de cabelo escuro na posse da arma branca, não tem dúvidas que terá sido o mesmo a desferir a facada no seu amigo DD, uma vez que o outro individuo ainda estava naquele momento consigo, não o tendo visto em nenhum momento junto do DD.
Instintivamente, tentou fugir do agressor e dirigiu-se novamente para o Bar, passando pelo DD, que estava caído no chão, aparentando estar gravemente ferido.
Nas declarações prestadas perante Magistrada do Ministério Público, em 28.02.2023, confirmou as declarações anteriormente prestadas perante a PJ, acrescentando que o individuo de etnia cigana com o cabelo escruto manteve sempre uma postura mais calma e de cabelo loiro mais agitado e a causar confusão que optou por pedir-lhes para saírem por questão de segurança, uma vez que estavam em minoria e que antes de ser atingido ouviu um dos referidos indivíduos a dizer “eu te mato”.
Em 29.03.2023, o ofendido prestou declarações para memória futura, perante Juiz de Instrução Criminal, descrevendo o sucedido no interior do estabelecimento, a colocação no exterior do mesmo dos arguidos e o soco que lhe foi desferido pelo arguido AA, a quem se reportou com o individuo de cabelo loiro, nos termos em que tinha já feito anteriormente, acrescentando que o mesmo individuo lhe desfere também um pontapé.
Referiu ainda que o individuo de cabelo loiro fugiu, disse para o de cabelo escuro, anda, e este foi logo atrás, tendo corrido no encalço de ambos, para cobrar os cartões de consumo.
O DD, apercebendo-se da situação, corre também atrás de si.
Ouviu alguém a dizer “eu mato” ou “eu vos mato”, sendo que só os arguidos se encontravam à sua frente, estando distanciados cerca de 3 ou 4 metros, o de cabelo escuro mais atrás. A determinada altura dividiram-se, um ficou na sua faixa, o de cabelo loiro, e o outro vai para a faixa do outro lado, separando-se ao chegar à passadeira.
Vê o de cabelo loiro a puxar de algo, que ao principio lhe pareceu um isqueiro, vê-o a abrir a faca, ficando de frente para si, altura em que fez um movimento de rotação, para fugir, e embateu com o joelho num banco. Nessa ocasião foi atingido por trás, na região dorsal e lombar, não se tendo apercebido de imediato que tinha sido esfaqueado.
Correu em direcção ao EMP01..., onde pediu auxílio, pedindo para chamar a policia e a ambulância.
Em momento posterior do seu depoimento, afirmou que pensa que a faca usada para o atingir pelo individuo de cabelo loiro era de ponta e mola, só tendo visto a faca a abrir, não tendo visto se tinha dispositivo. “Estava fechada e abriu, não sei se com a mão ou com botão”.
Quanto ao golpe que atingiu o DD, referiu inicialmente que, ao fazer a rotação, vê o HH também a fazer a rotação e a colocar a mão no peito, agarrado a uma parede.
Depois referiu que na altura em que o HH estava com a mão no peito, agarrado a uma parede, nessa altura o HH já estava sozinho, os arguidos já tinham fugido.
Perguntado se a facada no HH foi antes ou depois do golpe de que foi vitima, respondeu não saber e que junto a si só esteve o loiro e quando fez o movimento de rotação o de cabelo escuro estava mais perto do HH.
Referiu que não pode dizer que viu o HH a ser atingido, mas que há uma pessoa que viu, que lhe tinha dito que caíram ele e o HH ao mesmo tempo.
Disse que quando fez o movimento de rotação, o de cabelo escuro estava mais perto do HH, não sabendo precisar a que distância deste, reafirmando que os dois indivíduos a determinado momento dividiram-se, o loiro estava à sua frente e o moreno desviou-se para o lado do HH.
Posteriormente, refere que “tenho a noção que quando faço a rotação, o HH não tinha feito a rotação. Sinto que faço a rotação, aleijo-me no joelho, o loiro já não estava comigo. Nessa rotação, vejo o HH ainda meio embrulhado. Estava muito escuro, foi tudo muito rápido. Ainda vejo o HH meio engadilhado, Algo muito rápido. Depois eles fugiram os dois. Não consigo dizer mais do que isto. Por estar com dúvidas, procurei quem viu”, respondendo de seguida que quem viu foi o TT.
Em audiência de julgamento, ouvido por Webex, o assistente começou por referir que, nesta altura, a sua memória do acontecido não era tão viva como anteriormente, mas que procuraria esclarecer na medida do possível.
Descreveu o sucedido no interior do EMP01..., no essencial, em termos semelhantes aos relatos anteriores, confirmando ter sido agredido com um soco na face e um pontapé pelo arguido AA, após ter conduzido o arguido BB para o exterior do estabelecimento, quando se encontrava na zona da esplanada, após o que o AA começou a correr em direcção à Rua ... e a uma passadeira ali existente, já não recordando se o arguido BB, de cabelo escuro correu primeiro, reafirmando o anteriormente declarado por ter os factos mais presentes.
Relatou a agressão de que foi alvo por parte do arguido AA em termos também coincidentes com os relatos anteriores, precisando que correu atrás do AA e quando o alcançou, este virou-se de frente para si, viu que o mesmo tinha uma faca na mão direita, já aberta, tendo concluído, conforme antes havia referido, que se trataria de faca de ponta e mola pela rapidez do movimento, não se recordando de ter visto o gesto de o arguido sacar a faca. Ao ver a faca fez movimento de rotação, virando-se de costas, bateu com o joelho no banco (1º ou 2º banco do lado esquerdo, a contar da passadeira, para quem está virado para o EMP01...), tendo nessa posição sido atingido na zona dorsal lombar esquerda.
Quanto ao DD, referiu que, quando se dirigia para o EMP01..., depois de ter sido atingido, o HH vinha à sua frente, em sentido contrário, e vira para a direita, acrescentando que quando faz a rotação, já vê o HH à sua frente.
Mais referiu que não consegue ver quem atingiu o HH.
Posteriormente, relatou que a meio da rua começa a ver o HH combalido, com a mão no peito, junto á parede e que quando chega ao EMP01..., olha para trás, e vê o HH caído.
A instâncias, referiu não se recordar de ver o BB no momento em que parte do estabelecimento a correr, não recordar se este e o AA tomaram trajectórias diferentes, confirmou que o HH correu pela ... e desviou à direita (atento o sentido passadeira - EMP01...), pelas costas dos bancos, que o vê embrulhado mas não recorda com quem, não conseguindo recordar se com os dois ou com um deles, não sabendo dizer se o AA estava ou não junto do HH, não tendo ideia para onde foi o AA depois de este o ter atingido, tendo a ideia que os dois arguidos se aproximaram do HH, mas não sabendo agora precisar quem se aproximou mais.
Tendo sido confrontado com as declarações antes prestadas, quer perante a PJ e o Ministério Público, quer as declarações para memória futura, declarou que a memória era mais viva nessa altura e que, por isso, confirmava o que tinha na altura dito.
A instâncias da defesa, referiu, no que mais releva, que o HH, segurança, estava no interior do estabelecimento na altura em que é atingido por um soco desferido pelo AA, que no interior do EMP01... não viu gesto agressivo do BB, reafirmou que não viu o HH a ser esfaqueado, não podendo neste momento precisar se viu o BB e em que ponto depois de ele ter começado a fugir.
Referiu ainda ter sido abordado por mensagens por familiar do arguido BB, que insistia que este nada tinha feito, e ter sofrido ameaças e abordagens nas redes sociais.
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Foram ainda ponderados os depoimentos das testemunhas, a seguir referidas, indicando-se nesta sede a sua razão de ciência, e sendo os seus depoimentos valorados a propósito de cada conjunto de factos.
GG, 15 anos, estudante, que, na altura dos factos, se encontrava com os arguidos e FF no EMP01...;
FF, 19 anos de idade, companheira do arguido BB e que também s encontrava com os arguidos, na data dos factos, no EMP01...;
UU, 22 anos, sapador florestal, segundo referiu cliente do EMP01..., que também ali se encontrava na data dos factos;
TT, 27 anos, manobrador de máquinas, conhecido pela alcunha “VV”, e que colocava música no EMP01..., encontrando-se no mesmo na data dos factos;
HH, 47 anos, segurança privado, que nessa qualidade prestava serviços no EMP01..., e aí se encontrava na data dos factos.;
Todas estas testemunhas, à excepção da primeira, foram confrontadas com os depoimentos prestados perante Ministério Público, e perante a PJ, confirmadas perante Ministério Público, com o acordo de todos os sujeitos processuais, face a divergências verificadas com as declarações prestadas em audiência e/ou para aviamento da memória.
Foi também ponderado o depoimento do inspector da PJ JJ, na medida em que relatou as diligências em que interveio e confirmou o teor dos respectivos autos.
Mais foram ponderados os depoimentos de:
DD, 66 anos, funcionário público, pai do falecido, indicado como testemunha na acusação, foi ouvido em declarações, atento a sua qualidade de demandante civil, não se encontrando no local dos factos, revelando as suas declarações para efeitos dos factos alegados no pedido de indemnização civil quanto aos danos sofridos pelos demandantes.
WW, 22 anos, estudante, namorada do DD, testemunha indicada na acusação, comum ao pedido de indemnização civil, também não se encontrava no local dos factos objecto destes autos, não tendo, por conseguinte dos mesmos conhecimento directo.
XX, 46 anos, director de departamento de informática, oferecida no PIC deduzido pelos pais de DD, e as declarações de EE, mãe do falecido DD, também oferecida no mesmo pedido, foram relevantes quanto aos danos sofridos pelos demandantes com a morte do seu filho
As testemunhas arroladas pelo arguido AA, YY e ZZ, pais do referido arguido, depuseram apenas os aspectos referidos no nº 2 do art.º 128º do CPP relativamente ao mesmo arguido.
Foram, ainda, ponderados os depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido BB: AAA, RR, SS, BBB, o primeiro pai e os demais irmãos do referido arguido.
Por fim, foram ponderados os esclarecimentos prestados em audiência pelos Peritos a seguir referidos PP, que subscreveu o relatório da TAC de fls. 123 a 131 dos autos.
LL, especialista superior do LPC, que realizou o exame pericial de fls. 916 a 918 e exame pericial complementar de fls. 990 e 991;
QQ, médico a prestar funções no GBML do ..., que efectuou o exame pericial de avaliação do dano corporal a CC, bem como a autópsia médico-legal à vitima DD.
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Posto isto, para melhor compreensão da dinâmica dos acontecimentos e dos relatos sobre os mesmos efectuados, importa assinalar o seguinte quanto às características do local (que resulta, quer dos depoimentos das testemunhas que revelaram conhecimento do local, quer do relatório de inspecção judiciária e das fotos juntas ao mesmo):
Tomando sempre por referência o sentido Alameda ... - Rua ...:
O EMP01..., situa-se na Alameda ..., do lado esquerdo da mesma.
A Alameda ... é pedonal. Ao longo do seu percurso existem vários bancos, a meio, do lado direito e do lado esquerdo, virados uns para os outros, sendo transitável a pé a zona intermédia compreendida entre os bancos, constituindo ainda zona pedonal a situada por trás dos referidos bancos, quer do lado esquerdo, quer do lado direito.
A porta de entrada e saída para o interior do EMP01... é precedida de uma zona de esplanada, ladeada pela esquerda por uma parede que se desenvolve até quase à ...
A Rua ... é perpendicular à Alameda ..., nela existindo uma passadeira de peões que atravessa a referida rua na zona que dá acesso à parte intermédia da ....
À esquerda da dita passadeira estão colocados, no passeio, ecopontos.
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Quanto aos vestígios recolhidos aquando da inspecção judiciária, tendo sempre por referência o sentido Alameda ... - Rua ..., referira-se que as manchas de sangue - assinalados na inspecção judiciária - iniciam-se próximo do fim da passadeira da Rua ..., do lado esquerdo, ou seja, do lado dos ecopontos situados no passeio (marcador 1 - vestígio ...), continuam pelo lado esquerdo da ..., por trás dos bancos (marcador 2 - Vestigio 2 , marcador 3 - vestígio V3, marcador 4- vestígio V4), até à mancha de sangue, abundante, situada entre 2º e o 3º banco, na zona por trás destes (marcador 5 -vestigio V 5).
Os vestígios hemáticos então recolhidos e acima referidos são todos eles da vitima DD, conforme resulta dos exames periciais.
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No que se refere às imagens captadas pelos sistemas de vigilância do EMP01... e do estabelecimento EMP03..., sito nas proximidades, importa referir que as mesmas não abarcam o local em que as agressões ocorreram, permitindo as primeiras visualizar factos ocorridos no interior do estabelecimento e na zona exterior coberta e as segundas a passagem pela ... dos arguidos, quando já em fuga, e dos que lhe foram no seu encalço.
Registe-se que existe um desfasamento de cerca de 2 minutos entre as horas registadas por ambos os sistemas de videovigilância.
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Importa ainda assinalar que na altura dos factos e nas diligências que se lhe seguiram não foi apreendido o objecto ou objectos corto-perfurantes com os quais foram desferidos os golpes nas vitimas CC e DD.
A navalha apreendida nos autos e descrita no auto de exame directo de fls. 796 e 797, única apreendida nos autos, foi entregue no processo pelo Exmo Advogado do arguido BB, em 12.06.2023 (4 meses após os factos), aquando da apresentação em mão do requerimento na mesma data apresentada e junto a fls. 751 dos autos.
Nesse requerimento, sustentou o arguido BB que a navalha apresentada se trata do instrumento usado pelo arguido AA para atingir quer o ofendido CC, quer o ofendido DD.
A versão que o mesmo arguido apresentou nas declarações prestadas em sede de instrução e em audiência, no sentido de que a referida faca foi atirada pelo AA para um monte, existente nas proximidades da casa do irmão do arguido BB, local para onde os arguidos e FF se dirigiram após os factos e onde estava preparada uma festa de aniversário para a FF, versão que foi corroborada pelos depoimentos das testemunhas FF e pelas testemunhas de defesa arroladas pelo arguido BB, pai e irmãos deste, não se afigura plausível, nem credível.
Os depoimentos a este respeito prestados pelas referidas testemunhas, para além de divergentes entre si em vários aspectos, revelaram-se inconsistentes, não convencendo da sua veracidade, não sendo capazes de explicar por que motivo, tendo assistido ao que afirmaram ter assistido, e sabendo, segundo afirmaram, onde se encontrava a dita navalha, não comunicaram tal facto às autoridades.
Acresce que nas declarações prestadas em primeiro interrogatório o arguido BB não se reportou à referida navalha, sendo certo que tal interrogatório foi precedida de contacto telefónico estabelecido pela então Exma Defensora do arguido com o Inspector chefe da PJ, anunciando a intenção de o arguido se entregar, por pretender colaborar com a investigação uma vez que não teria sido o responsável por qualquer das agressões com arma branca sobre a vitima destes autos - cf. cota de fls. 224, lavrada a fls. 20.02.2023
Como é evidente, a colaboração com as autoridades e a elucidação dos factos ocorridos, implicaria que, sabendo onde se encontrava a navalha que teria constituído o instrumento dos crimes, conforme posteriormente afirmou, o relatasse às autoridades logo nessa altura, por forma a que a mesma fosse apreendida por estas e assegurada a cadeia de custódia desse elemento de prova. Assim como implicaria, uma vez que optou por prestar declarações, que o que posteriormente relatou quanto a ter sido o arguido AA o autor das agressões aos ofendidos, a que se afirmou alheio, tivesse sido logo na altura relatado, contribuindo, assim, como anunciou pretender fazer, para a descoberta dos factos e para a conclusão de não ter sido, como sustentou, o autor de qualquer das agressões.
O arguido BB, mesmo depois da apresentação do arguido AA às autoridades em 11.03.2023, e subsequente sujeição a prisão preventiva, apenas em 10.06.2023 (por e-mail que antecedeu o requerimento de 12.06.2023) manifestou a intenção de apresentar a navalha que veio a ser apreendida nas circunstâncias acima descritas, e apresentou a versão acima referida, no sentido de ter sido o arguido AA o autor das agressões, usando a navalha referida.
Trata-se, por conseguinte, de objecto que esteve fora do domínio da cadeia de custódia da investigação, durante largo período de tempo.
Ademais, como resulta dos exames periciais, não apresenta quaisquer vestígios lofoscópicos, designadamente no cabo, como seria curial que sucedesse.
Apresenta vestígios hemáticos apenas do ofendido DD, conforme também resulta dos exames periciais efectuados.
Tal circunstância, por si só, no circunstancialismo descrito, não comprova que tenha sido o instrumento usado para golpear DD, bem podendo os vestígios hemáticos referidos resultar de outra qualquer ocorrência, designadamente do contacto da dita navalha com roupa envergada pelos arguidos, tanto mais que a infeliz vitima sangrou abundantemente, como resulta dos vestígios recolhidos, sendo natural que o sangue tivesse atingido o vestuário do agressor.
Inexiste, assim, prova suficientemente segura de ter sido a referida navalha a usada nas agressões de que foram vitimas CC e DD.
Posto isto:
3.2. Concretizando as razões de convicção do tribunal relativamente a cada conjunto de factos:
A factualidade provada referida em 1.1. e1.2. resulta incontroverso, quer por referido pelos próprios arguidos, quer em resultado dos depoimentos das testemunhas inquiridas que se encontravam no local, GG, FF, HH e TT
Quanto à factualidade provada elencada em 1.3. a 1.13., 1.28, e 1.57 a 1.63 :
A convicção positiva quanto a tal matéria resulta da apreciação conjugada das declarações dos arguidos, do assistente CC e das testemunhas GG, FF, HH e TT, sendo esta a factualidade que constituiu o denominador comum que nesta parte efectuaram.
Resulta ainda das imagens de vídeo vigilância do EMP01... e do estabelecimento EMP03....
Das imagens do EMP01... visualiza-se, a anteceder a saída dos arguidos do estabelecimento, o descrito em 1.7., 1.8. 1.59 e 1.60.
Visualiza-se, ainda, claramente nas referidas imagens, a vitima DD a levantar-se do banco onde se encontrava sentado no exterior, a dirigir-se ao interior do estabelecimento e a conduzir o arguido BB para o exterior, interpondo-se entre este e o ofendido CC, sendo que só depois este ofendido é atingido pelo arguido AA com um soco na face.
Resulta, assim, infirmada a versão do arguido AA no sentido de que deu um soco no ofendido CC para ajudar o arguido BB e a namorada deste, posto que na altura em que tal sucedeu, já o BB e a FF se encontravam afastados daquele ofendido, sendo certo, por outro lado, quanto à FF, que não resultou comprovado que tenha sido agredida, como aliás referiu nas declarações prestadas em inquérito, com as quais foi confrontada.
A sequência da fuga dos arguidos, seguidos pelo ofendido CC e pela vitima DD, resulta de igual modo das imagens captadas pelo sistema instalado no estabelecimento EMP03..., sendo certo que num primeiro momento o arguido BB começa a correr à frente (conforme se vê das imagens do EMP01...), mas faz necessariamente um compasso de espera, posto que resulta das imagens do estabelecimento EMP03... que os arguidos passaram a correr muito próximos um do outro, quase lado a lado, sendo seguidos pelo CC e um pouco mais atrás pelo DD.
A idade de GG resulta do depoimento desta e da FF.
A factualidade referida em 1.58 foi relatado pelo arguido AA e nesta parte confirmada pela testemunha HH.
O facto referido em 1.61. resulta da percepção do tribunal, conjugado com as declarações do arguido AA e as declarações de CC, no que se refere à sua altura e peso.
O facto referido em 1.62 resulta das declarações dos arguidos, revelando-se plausível, atento o circunstancialismo apurado.
O facto referido em 1.63 foi afirmado pelo arguido AA e corroborado pelo ofendido CC, que esclareceu que aquele empunhava a faca com a mão direita.
A factualidade referida em 1.14, 1.15. a 1.18 ficou comprovada pelo relato efectuado pelo assistente CC, relato que no que se reporta à agressão por si sofrida se mostrou consistente e coincidente nas diversas fases processuais, tendo sido descrita de forma credível e que não suscitou dúvidas quanto à sua veracidade, sendo ainda consentânea com as lesões descritas nos elementos clínicos respeitantes ao mesmo ofendido e no exame de avaliação do dano corporal, bem como consentânea com os esclarecimentos dos peritos Drª PP e Dr. QQ. Tal relato é ainda, nesta parte, coincidente com o referido pelo arguido BB.
O relato do arguido AA ao afirmar que foi agarrado, por trás, pelo ofendido CC, e que ainda assim conseguiu abrir a mala, dela retirar a faca, abri-la, ao mesmo tempo que estava a ser agarrado, não se revela credível e é contrário às regras da experiência e do normal acontecer, sendo certo que, quando indagado a explicar como logrou abrir a face nessas circunstâncias - que referiu não ser de ponta e mola, mas de abertura manual - não avançou explicação plausível, afirmando tão só que foi agarrado em movimento e que tentou libertar-se. Todavia, sendo o ofendido CC mais alto e mais forte que o arguido AA, se o tivesse agarrado por trás e a prender-lhe os braços, certamente lograria imobilizá-lo e impedir de retirar a faca da mala a tiracolo onde a transportava e de abrir a faca. Acresce que tal relato não é consentâneo com a zona do corpo em que o ofendido foi atingido - região lombar/dorsal do lado esquerdo- não sendo compreensível que o arguido desfira um golpe nas costas do ofendido quanto este se encontrava a agarrá-lo e a prender-lhe os braços, tendo além do mais em conta a diferença de envergadura física entre ambos.
Também destituído de plausibilidade a versão inserta na contestação do arguido AA, que não corresponde sequer ao por este relatado, uma vez que o mesmo arguido apenas referiu que cortou o ofendido CC, mas não sabe como nem onde, tendo-se apercebido que o cortou quando viu sangue na sua mão e na faca. Não referiu o arguido AA, nem existe qualquer outro elemento de prova nesse sentido, que, como se alega na contestação, se virou de frente para o arguido, tirou a faca da mala, e, movido pelo medo e por não ter conseguido dissuadir o ofendido de se aproximar, golpeou o ofendido .nas costas. Ademais, uma tal versão implicaria que o arguido rodeasse o ofendido com o seu braço para lograr atingi-lo nas costas, o que não é consentâneo com o facto de ser bastante mais baixo e franzino que o ofendido. Aliás, os Peritos Médicos PP e QQ afastaram a probabilidade de tal hipótese, atento o golpe, a sua profundidade e a sua direcção.
Conforme resulta do relato do ofendido CC, consentâneo com a natureza da lesão provocada e a zona do corpo atingido, este quando é atingido pelo arguido AA está de costas, caído de joelhos - o que também é relatado pelo arguido BB - tentando retroceder, sendo manifesto que inexiste qualquer intenção defensiva por parte do arguido AA.
As lesões sofridas pelo ofendido CC - 1.24. a 1.27. resultam dos elementos clínicos remetidos aos autos, dos exames médicos legais que lhe foram efectuados, conjugados com os esclarecimentos prestados pelos Peritos PP e QQ.
Os factos relativos aos elementos subjectivos da conduta do arguido AA - 1. 1.29 a 1.31 - resultam da materialidade objectiva que se teve como apurada, sendo que quanto à ofensa corporal praticada decorre das próprias declarações do arguido, e quanto à tentativa de homicídio, não tendo sido admitida pelo arguido, decorre da natureza do golpe desferido, da zona corporal atingida, das posições de ofendido e arguido, conjugada com as regras da experiência comum e do normal acontecer, sendo manifesto que o arguido AA, como qualquer outra pessoa mediana na sua situação, pelo menos, admitiu como possível que da sua conduta resultasse a morte do ofendido CC e não obstante actuou do modo descrito, conformando-se com esse resultado.
Já quanto ao motivo que determinou a conduta do arguido não se comprovou que tivesse agido imbuído de desejo de vingança por ter sido expulso do estabelecimento e para não proceder ao pagamento das bebidas consumidas, o que, atento o desencadear dos acontecimentos, não se revela plausível, não tendo sequer resultado apurado que o segurança HH tivesse alertado para a circunstância de os arguidos não terem pago, o que aquele não relatou, sendo que referiu que, na altura, se encontrava no interior do estabelecimento.
De igual modo não se provou que o arguido AA tenha usado uma faca de ponta e mola, sendo o relato a este respeito feito pelo ofendido CC insuficiente para assim concluir, tanto mais que não visualizou o uso de qualquer dispositivo mecânico.
Por outro lado, e como acima se referiu, também não se adquiriu a convicção positiva de ter sido a navalha apresentada pela defesa do arguido BB a usada na agressão perpetrada pelo AA no ofendido CC.
Assim, ficaram por apurar a natureza e características do instrumento corto-perfurante usado pelo arguido AA na agressão ao ofendido CC
As lesões sofridas pelo ofendido CC resultam dos elementos clínicos juntos aos autos e dos exames periciais efectuados, complementados pelos esclarecimentos prestados pelos peritos PP e QQ.
A factualidade referida em 1.20. resulta das próprias declarações dos arguidos e da testemunha FF
*
Quanto à factualidade relativa às lesões sofridas por DD:
Não oferece dúvida, face aos depoimentos das testemunhas inquiridas, a prova documental e pericial produzida, e as próprias declarações dos arguidos, que a infeliz vitima DD foi atingido por dois golpes, nos termos referidos em 1.19., que lhe causaram as lesões descritas 1.22. e 1.23., que foram causa da sua morte - como claramente resulta dos elementos clínicos e do relatório da autópsia médico legal e dis esclarecimentos prestados em audiência pelo Perito QQ.
Não obstante o esforço probatório efectuado, não logrou o tribunal adquirir a convicção positiva, fora de toda a dúvida razoável, de ter sido o arguido BB o autor de tais lesões e de assim ter sido esse arguido a causar a morte da vitima.
O arguido negou a autoria de tais factos, que a determinada altura passou a imputar ao arguido AA. Este, por seu turno, não prestou declarações em sede de instrução e em julgamento e, aquando do primeiro interrogatório judicial, tendo prestado declarações, não o fez sobre tal matéria que lhe não foi imputada no despacho de indiciação.
Das testemunhas inquiridas que se encontravam presentes no EMP01..., nenhuma delas afirmou quer em audiência, quer em declarações prestadas anteriormente, e reproduzidas em audiência, ter presenciado tal agressão, nem nenhuma delas identificou o seu autor.
A testemunha GG descreveu os factos ocorridos no interior do EMP01..., não tendo presenciado o que se passou no exterior, depois de os arguidos começarem a correr e de terem seguido no seu encalço os ofendidos.
A testemunha FF, namorada do arguido BB, também declarou não ter visto a agressão à vitima, referindo apenas ter visto o arguido AA perto do mesmo. No mais, corroborou a versão relatada pelo arguido BB em instrução e em audiência, que acima se referiu, revelando-se o seu depoimento claramente parcial, afirmando, o que é desmentido pelas imagens, que nunca perdeu o arguido BB de vista, podendo garantir que o mesmo não atingiu o DD. Tal depoimento foi divergente do que havia anteriormente declarado, no que respeita à admissão por parte do AA da autoria de tal agressão, que em audiência relatou, não tendo, porém, fornecido explicação plausível para ter omitido tal circunstância aquando das suas anteriores declarações.
A testemunha HH declarou de igual modo, quer nas declarações prestadas na PJ, que confirmou perante MP, quer nas declarações prestadas em audiência, não ter visto a agressão ao HH, nem quem a cometeu, não conseguindo identificar quem se envolveu com o DD.
A testemunha TT referiu que viu o CC a começar a correr atrás do jovem de cabelo loiro e o HH a começar a correr atrás do jovem de cabelo escuro, e quando passa a zona da esplanada do estabelecimento, já vê o CC e o HH já a caminhar na direcção do EMP01..., não tendo visto as agressões, declarações, no essencial, coincidentes com as que havia prestado anteriormente
A testemunha UU, de igual modo referiu ter apenas visto os arguidos começarem a correr, seguidos do CC e do HH, vendo depois o CC a regressar ao EMP01..., tendo avistado nessa altura o HH a cambalear, não tendo presenciado as agressões.
Por seu turno, o assistente CC nas declarações prestadas em audiência efectuou um relato, no que se refere à agressão perpetrada no HH e ao momento em que o vê, algo divergente das demais declarações prestadas ao longo do processo, que acima se deixaram referidas, sendo certo que quando nas declarações iniciais referiu não ter dúvidas que o individuo de cabelo escuro é que terá agredido o HH, fê-lo com base em dedução que efectuou, por o individuo de cabelo claro se encontrar junto de si, partindo ainda da premissa de que as agressões foram simultâneas, o que posteriormente não afirmou com certeza.
Compreensível as hesitações e divergências dos relatos, dada a natureza dos factos e a rapidez com que sucederam, tendo decorrido entre 18 a 20 segundos entre o momento em que ofendido CC vai no encalço dos arguidos e o momento em que regressa ao EMP01..., sem que tal signifique, como é evidente, a vontade de faltar à verdade, tanto mais que o ofendido foi também ele alvo de agressão, o que naturalmente causa efeitos traumáticos, com reflexos na apreensão do sucedido em relação à outra vitima.
Do relato efectuado pelas testemunhas não é possível, por outro lado, extrair indícios seguros, firmes e concordantes entre si que permitam, com base em raciocínio objectivo, concluir pela autoria da agressão ao DD.
A Exma Perita LL esclareceu que a circunstância de a faca que veio a ser entregue pela Defesa do arguido BB apresentar vestígios hemáticos correspondentes ao perfil único de DD não excluiu a hipótese de a mesma faca ter sido utilizada para anteriormente ferir outra pessoa.
Infelizmente as imagens captadas pelo sistema de videovigilância não permitem suprir as deficiências e omissões da prova pessoal efectuada, posto que não abarcam o local onde ocorreram as agressões.
Refira-se que nas imagens captadas pelo sistema do vídeo vigilância visualiza-se o DD a cair no solo em momento posterior à chegada do ofendido ao EMP01..., sendo certo, porém, que o referido ofendido caiu duas vezes.
Por outro lado, conforme ficou a constar do auto de noticia e do relatório de inspecção judiciária a carteira com documentos deixada no local pelo arguido AA, encontrava-se na passadeira junto ao vestígio hemático deixado por DD, assinalados respectivamente como vestígios V 1-A e V 1- B na referida inspecção judiciária.
Valorando de forma conjugada e crítica a prova produzida, o tribunal não logrou ultrapassar a dúvida quanto à autoria da agressão ao ofendido DD, não logrando obter convicção positiva, suficientemente segura, de ter sido o arguido BB o autor da mesma, pelo que tal factualidade, em obediência ao princípio in dúbio por reo, foi considerada como não provada.
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A ausência de registos de condenações criminais dos arguidos resultam dos respectivos certificados de registo criminal.
No que respeita às condições pessoais dos arguidos e seu percurso de vida, interessaram os respectivos relatórios sociais, e os depoimentos de YY e ZZ, quanto ao arguido AA, seu filho.
*
A factualidade referente aos pedidos de indemnização civil formulados pelos demandantes DD e EE, resulta, para além dos elementos clínicos relativos a DD e da autpósia médico legal, das declarações prestadas por ambos, de forma credível e sincera, e dos depoimentos das testemunhas XX e CCC, que revelaram conhecimento dos factos sobre que depuseram, tendo ainda sido considerados os documentos juntos com o pedido civil, a saber: escritura de habilitação de herdeiros, factura e recibos emitidos pela funerária, certificado de incapacidade para o trabalho e relatório médico, ambos relativos á assistente EE.
A factualidade referente aos pedidos de indemnização civil formulados pelo demandante CC, para além dos elementos probatórios acima referidos, teve em consideração as declarações do assistente quanto aos danos sofridos, quer físicos, quer psíquicos, e a perturbação que os factos ocasionaram na sua vida, declarações que se revelaram credíveis e plausíveis e consentâneas com a agressão de que foi vitima,
A factualidade referente ao pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Centro Hospitalar ... EPE resultou ainda das facturas juntas com o mesmo pedido, constantes de fls. 1045 a 1047.
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A factualidade não provada ficou infirmada pela prova produzida, em parte, e, noutra parte, deveu-se a ausência de prova bastante, conforme decorre já do supra exposto.”

Questão Prévia:
Afigura-se-nos necessário, neste momento, porque está em causa a impugnação da matéria de facto por todos os recorrentes, chamar a atenção para a situação do acórdão recorrido, em violação do disposto no artº 374º nº 2 do CPP,  não ter “enumerado” os factos considerados não provados.

Esta situação claramente dificulta a referência aos factos dados por não provados constantes dos vários recursos, dificultando, por um lado, o cumprimento por parte dos recorrentes do disposto no artº 412º nº 3 al. a) do CPP – cuja análise infra se fará melhor – bem como a análise desta Relação.
Pese embora a referida técnica de não enumerar os factos não provados, constante do acórdão recorrido, não implique a nulidade prevista na al. a) do nº 1 do artº 379º do CPP, que é de conhecimento oficioso, ela obriga-nos, contudo, a corrigir a situação de modo a evitar desnecessários e fastidiosas repetições dos factos dados por não provados, por ser a única forma de os identificar adequadamente e cumprir com a respectiva imposição legal.

Assim, os factos “Não Provados” passam a ter a seguinte numeração em letras do alfabeto com vista a evitar possíveis confusões com a numeração dos factos provados:

Da Pronúncia e dos Pedidos de Indemnização Civil:
a) No momento em que os arguidos BB e AA, e FF e GG já estavam a sair para a zona exterior coberta do estabelecimento, “EMP01...”, o segurança HH tenha avisado em voz alta o ofendido CC que aqueles não tinham pago os seus cartões de consumo.
b) Acto contínuo e imbuídos de desejo de vingança, os arguidos BB e AA tenham acordado entre si que fugiriam do local por qualquer forma, usando se necessário da força física e das armas brancas - navalha e faca de ponta e mola - que, respectivamente, traziam consigo contra os seguranças, os funcionários do estabelecimento ou qualquer outra pessoa, em conjugação de esforços ou isoladamente, de forma a não procederem ao pagamento das bebidas que haviam consumido, tanto mais que haviam sido expulsos injustamente.
c) O arguido AA tenha dado um soco na face do CC e se tenha colocado em fuga por se aperceber que os funcionários do estabelecimento “EMP01...” queriam efectivamente cobrar as bebidas consumidas.
d) O ofendido DD tenha ajudado o seu amigo CC a segurar os arguidos para evitar que estes fugissem sem pagar.
e) O arguido AA tenha empunhado uma faca de ponta e mola, tenha accionado o respectivo mecanismo de abertura e que a faca com que desferiu golpe no ofendido CC fosse uma faca de ponta e mola.
f) Na altura em que o ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos tinham facas, o DD já se encontrasse perto da passadeira situada ao lado do ecoponto e a cerca de cinco metros daquele, junto ao arguido BB.
g) O arguido BB se tenha envolvido, nessa ocasião, em agressões físicas com o ofendido DD.
h) O ofendido DD e o arguido BB se tenham agarrado mutuamente e tenham recuado uns metros, em direção ao estabelecimento “EMP01...”.
i) O arguido BB tenha desferido dois golpes no ofendido DD, usando uma navalha com cabo de madeira que trazia consigo, descrita no auto de exame directo de fls. 796 a 797,
j) O ofendido DD tenha sofrido as lesões descritas em 1.22., que causaram a sua morte, em consequência de golpes de navalha perpetrados pelo arguido BB.
k) Tenha sido apenas pelo facto de a faca ter ficado espetada no arco costal, impedindo a sua progressão, que não ocorreu uma laceração do pulmão do ofendido, em tudo quanto exceda ou contrarie o constante de 1.26 e 1.27.
l) O arguido AA tenha tomado a resolução de tirar a vida ao ofendido CC e que só não tenha concretizado essa resolução por razões alheias à sua vontade em tudo quanto exceda ou contrarie o que consta de 1.30.
m) O arguido BB tenha admitido como possível que da sua conduta resultasse a morte do ofendido DD, que lhe tenha infligido golpes de faca na zona onde se situam órgãos vitais, ou que tenha agido com a intenção concretizada de tirar a vida ao referido ofendido.
n) Os arguidos tenham sido movidos por sentimentos de vingança, por terem sido explusos do estabelecimento EMP01... para evitar o pagamento da diminuta quantia das duas bebidas ali consumidas (cerca de 8 €)
o) O arguido AA tenha agido com a intenção concretizada de deter uma arma branca (faca de ponta e mola).
p) O ofendido CC quando levou a facada desferida pelo arguido AA tenha pensado que morria.
q) Desde a ocorrência destas agressões o ofendido CC nunca mais tenha conseguido manter um trabalho estável, vivendo da ajuda de pessoas da sua família (pais e namorada), vivendo constantemente nervoso, sempre com medo, desconfiado de tudo e de todos, assim como ganhou medo de sair à noite, mesmo acompanhado de pessoas amigas.

Da contestação do arguido AA
r) FF fosse menor à data dos factos.
s) O copo de um dos indivíduos de nacionalidade ... se tenha partido inadvertidamente, e que o arguido AA em nada tenha contribuído para a quebra do copo.
t) O ofendido CC tenha agredido o arguido BB, em tudo quanto exceda ou contrarie o que consta de 1.60.
u) O ofendido CC tenha agredido a namorada do arguido BB, FF.
v) O arguido AA tenha desferido o soco no ofendido CC para ajudar o arguido AA e/ou a namorada deste;
w) Os arguidos não tenham contribuído para a decisão de terem sido expulsos do Bar.
x) O ofendido CC tenha respondido com um pontapé que acertou em cheio no arguido AA, e que este tenha começado a correr, fugindo do local em pânico, com medo de ser novamente agredido.
y) O arguido tenha sentido falta de ar e por esse motivo tenha sido alcançado pelo ofendido e por este agarrado pelas costas.
z) O arguido, ainda agarrado, mas em movimento de fuga, se tenha virado de frente para o ofendido CC, e que, num sentimento de desespero, pânico, aflição e medo, tenha logrado retirar a faca que detinha e que tenha sido por esse motivo, para além da compleição física superior do ofendido CC, que agrediu este, sabendo que se não o fizesse iria ser violentamente agredido.
aa) O arguido AA quando desferiu o golpe no ofendido CC se encontrasse de frente para este, vulgo “cara a cara”
bb) O arguido AA, ao ser alcançado pelo CC, tenha empunhado a faca unicamente para se defender e assustar o CC e para o dissuadir de se aproximar e que tenha sido por não ter logrado tal intuito que desferiu, de seguida, um golpe no ofendido com a faca.
cc) A faca usada pelo arguido AA para agredir o ofendido CC fosse por aquele usada diariamente como feirante, não sendo de ponta e mola, nem de abertura automática, mas manual e não possuindo mais de 10 cm de lâmina.

Da contestação do arguido BB:
dd) O arguido BB não tenha praticado os factos de que vem pronunciado
ee) O arguido BB não tenha tido em 12.02.23 qualquer gesto agressivo com quer que seja, nem tenha tido nas suas mãos qualquer navalha, nomeadamente a examinada a fls. 796 a 797 dos autos.

Vejamos, agora, as concretas questões submetidas a recurso.

I)  Do Recurso do Assistente CC:

I. a) Da Impugnação da Matéria de Facto:

Entende o recorrente CC que o Tribunal a quo errou quando deu por não provados os factos vertidos em p) e q), ou seja, o Tribunal a quo deveria ter dado por provado que:

p) O ofendido CC quando levou a facada desferida pelo arguido AA tenha pensado que morria.
q) Desde a ocorrência destas agressões o ofendido CC nunca mais tenha conseguido manter um trabalho estável, vivendo da ajuda de pessoas da sua família (pais e namorada), vivendo constantemente nervoso, sempre com medo, desconfiado de tudo e de todos, assim como ganhou medo de sair à noite, mesmo acompanhado de pessoas amigas.

Vejamos.

A impugnação da matéria de facto segue o disposto no artº 412º nº3 do Código de Processo Penal que dispõe o seguinte:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”

Tendo a prova sido gravada diz o nº 5 do citado artº 412º do CPP que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Sendo que, nos termos do nº 6 do artº 412º do CPP “no caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”

No que se refere às declarações dos arguidos, aos depoimentos das testemunhas e à sua articulação com os documentos, vigora o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artº 127º do CPP, que assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no artº 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art. 32º nº 8 da Constituição.
 
Assim, “O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida” (Prof. Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).

“Por outro lado diremos também que, dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise da gravação áudio onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.
Ou seja, a convicção do julgador só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”[2]

Conforme se esclarece ainda no Acórdão da Relação de Lisboa (9ª secção) de 08-10-2015, proferida no procº nº 220/15.3PBAMD.L1-9, in dgsi.pt:
“III- O recurso em matéria de facto, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente à decisão sobre os concretos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgado, fazendo referência expressa às concretas passagens/excertos das declarações, que, no seu entendimento, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer;
IV- Não basta ao recorrente enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito (v.g. da prova produzida não resultam provados os factos do tipo legal ou não se provou o crime, pelo que deve ser absolvido), de tal modo que fosse o tribunal superior, oficiosamente a retirar conclusões sobre quais os factos e provas concretas que se ajustariam à sua pretensão final e dentro destas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir a prova gravada na íntegra, uma vez que o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal “ad quem”, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros relevantes (evidentes e óbvios) na apreciação e ou aquisição da prova produzida em sede de primeira instância.”

Por isso é que é absolutamente fundamental que no recurso interposto da matéria de facto, nos termos do artº 412º nº 3 do CPP, o recorrente identifique os concretos factos cuja alteração pretende e as concretas provas que impunham a requerida alteração, não cabendo a este Tribunal de recurso refazer o julgamento, ouvir toda a prova e voltar a decidir.
É que a alteração da matéria de facto em sede de recurso só deve ocorrer se, após cumprimento do disposto no artº 412º do CPP, o Tribunal de recurso constatar que o Tribunal a quo nunca poderia ter decidido como decidiu face à concreta prova produzida e tendo em atenção as regras da experiência comum, da lógica, etc.
Se apenas se constatar que o Tribunal a quo seguiu uma possível solução de entre várias possíveis interpretações válidas resultantes da prova produzida, então, deve ser dada prevalência à convicção do Tribunal a quo por ser o tribunal mais bem colocado para avaliar toda a prova atendendo ao princípio da imediação da prova.

Conforme se esclarece de forma clara no Acórdão da Relação de Guimarães de 23-03-2015:[3]
“I. O recurso visa apenas uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente.
II. Tem-se entendido que impor decisão diferente quanto á matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida.
III. Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está.
IV. A circunstância de alguém, seja por erro de percepção ou por outro motivo, acabar por efectuar declarações inverosímeis ou contraditórias não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal não se encontra adstrito á inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios.” – sublinhado nosso

Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque na sua anotação ao artº 412º do Código de Processo Penal[4]:
“A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de «voltas» do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento. (…)

Por fim, e como explicado de forma muito clara e compreensiva no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 3/2012 de 08-03-2012 (in DR 1ª Série, nº 77 de 18-04-2012):

“Pede -se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.
Esta limitação da capacidade cognitiva da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação sempre esteve presente, como desde logo esclareceu o primeiro diploma legal onde se estabeleceu a documentação das declarações orais.
Com efeito, como foi afirmado no preâmbulo do Decreto -Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, «o objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência)».
O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros. (…)
Como se refere no acórdão de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª «O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar».
Os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão em matéria de facto, a exemplo do que ocorria com o artigo 690.º -A, e actualmente do artigo 685.º -A do CPC e artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, decorrem dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais, com vista a assegurar a seriedade do recurso e obviar que os poderes da Relação sejam utilizados para fins dilatórios.”

Vertendo ao caso concreto, e salvo o devido respeito, o recorrente não demonstra, com os elementos processuais que indica na sua motivação, como é que tais elementos impõem decisão diversa, neste caso, a prova dos dois factos por si destacados, sendo de notar que o facto não provado vertido em p) traduz um estado de espírito que, não só não resulta da simples constatação do tipo e gravidade do ferimento por si sofrido às mãos do arguido AA, como até se mostra contrariado pelas declarações do próprio recorrente prestadas em sede de memória futura ocorridas em 29-03-2023 (cuja acta se encontra a fls. 604 e ss) e constante de registo áudio por nós ouvido na íntegra.

Nessas declarações o recorrente diz claramente que nem sequer sentiu a facada, não se tendo apercebido que estava ferido, até que chegou de novo ao EMP01... onde lhe disseram que estava a sangrar.

Veja-se entre o minuto 21:46  e o minuto 21:50 (...58-...34) a vítima CC diz, após o arguido AA o espetar com uma faca:
“Eu caí, engraçado que eu não sinto a facada….”

E, entre o minuto 22:27 e 22:30, quando a vítima CC chega de novo ao EMP01... refere:
“Eles naltura é que me disseram, «CC estás a sangrar das costas», eu nem me tinha apercebido…”

Ora, o facto não provado vertido em p) é muito concreto e específico, referindo-se ao exacto momento em que o recorrente CC recebe a facada e o que sentiu nesse preciso momento.

Sendo lógico que, se nem sequer se apercebeu que tinha sido esfaqueado, só tomando consciência de tal situação posteriormente quando regressa ao EMP01... e lhe chamam a atenção para o facto de estar a sangrar, então no momento em que foi golpeado não podia ter pensado que ia morrer.

Podia, perfeitamente, ter sentido esse medo no momento em viu o arguido AA com a faca na mão ou mesmo depois no hospital quando foi tratado, mas no momento em que recebe a facada nada sentiu pelo que, nenhum medo podia ter cogitado.

Quanto ao facto negativo vertido em p) também este não se mostra provado pelos elementos processuais que o recorrente indica na sua motivação.

Consta dos autos – aliás foi o motivo pelo qual se procedeu à tomada de declarações para memória futura com tanta urgência e tão cedo na tramitação processual do inquérito –  que o recorrente CC sentiu a necessidade de emigrar para outro país, logo a seguir aos fatídicos eventos do dia 12-02-2023, contudo nada consta dos autos que revele se o mesmo está ou não a trabalhar, e em que condições, se está ou não a ser auxiliado por familiares e quais os concretos problemas de saúde de que eventualmente padeça.

Pelo que, pela simples impugnação dos factos em causa através dos mecanismos previstos no artº 412º nº 3 do CPP, não é possível reverter os dois factos não provados nos termos pretendidos pelo recorrente.

Contudo, o recorrente ainda chama à colação a existência de alguns factos dados por provados pelo Tribunal a quo com os quais entende levarem, em termos lógicos, à prova dos factos vertidos em p) e q).

Vejamos.

Entende o recorrente que o Tribunal a quo, ao ter dado por provado que:
   
1.26. O golpe desferido no corpo do ofendido CC era apto a provocar uma laceração do pulmão, o que, a suceder, provocaria a sua morte.
1.30. O arguido AA, ao actuar conforme descrito em 1.16 e 1.17., agiu livre e deliberadamente, admitindo como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte do ofendido CC, bem sabendo que lhe infligia golpe com instrumento corto-perfurante em zona onde se situam órgãos vitais, e que tal conduta era acto idóneo a provocar tal resultado, conformando-se com essa possibilidade.
1.53. No momento em que ocorreu a agressão do arguido AA, o ofendido CC foi tomado de sentimento de pânico, pois encontrava-se indefeso, à mercê de pessoa munida de uma faca, temendo pela sua vida.
1.54. O ofendido sentiu e sente temor do arguido, o que o obrigou a emigrar para o estrangeiro, receando voltar a ..., onde vivem os seus pais e amigos, com medo de aqui o encontrar, por recear pela sua vida, dadas as circunstâncias da actuação do arguido.
1.56. À data dos factos, o ofendido CC tinha 31 anos de idade.
1.67. A situação económica do agregado, à data dos factos, assim como na presente data, era e é considerada desafogada e alicerçada na prestação pecuniária do RSI (664€), no abono de família relativo ao irmão menor (120€), na bolsa de estudos atribuída ao irmão mais velho (400€) e nas variáveis receitas que os pais auferem da venda de artigos têxteis e/ou calçado em feiras, e mais recentemente das vendas on-line.
1.77. O arguido continua a beneficiar de retaguarda familiar apoiante, particularmente, por parte dos pais.

“Necessariamente os factos aqui supra indicados como não provados teriam de ser considerados como provados porque são uma extensão da dinâmica dos factos provados”.

Vejamos.

Ao argumentar desta forma, pese embora não o tenha assim qualificado no seu recurso, o recorrente parece suscitar um vício do acórdão recorrido que pode ser reconduzido ao erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º nº 2 al. c) do CPP, o qual, em todo o caso, é de conhecimento oficioso.

Conforme dispõe o artº 410º do Código de Processo Penal:
“1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;     
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”  

Esclarecem Simas Santos e Leal Henriques[5] “Deve notar-se que a al. a) do nº 2 se refere à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.
Por sua vez a contradição a que se reporta a al. b) é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência.
Finalmente o erro notório na apreciação da prova a que alude a al. c) é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente. Esse erro existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, v.g., quando se dá por assente que o arguido está num determinado local a determinada hora e ao mesmo tempo se tem como provado que ele estava em local longínquo minutos depois; ou quando se dá por assente que o arguido disparou três tiros de pistola a 4 metros de uma mesa onde estavam sentadas várias pessoas, no interior de um café apinhado e se dá por provado que ele não previu a possibilidade de atingir mortalmente alguém.(…)
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ao das legis artis.
Não pode esquecer-se que, como se prescreve na 2ª parte do corpo do nº 2, os vícios apontados nas suas alíneas têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou com recurso às regras da experiência comum, não sendo permitida a consulta de outros elementos constantes do processo.”

Como muito bem explicitado no Acórdão do STJ de 15-09-2009 (procº nº 103/09 da 3ª Secção, in Boletim do STJ):
“I -As anomalias, os vícios da decisão elencados no n.° 2 do art. 410.° do CPP têm de emergir, resultar do próprio texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma; esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.
II - Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei -vícios da decisão, não do julgamento.
III - Os vícios previstos no artigo 410.°, n.° 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no art. 127.° do CPP.
IV - Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida; é, afinal, querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
V - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.°, n.° 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.”

Assim, os vícios previstos no artº 410º do CPP, embora de conhecimento oficioso, são vícios que têm de resultar da análise da sentença/acórdão em si, sem recurso a outros elementos processuais, e têm de ser vícios patentes que sobressaem da sentença pela simples leitura desta.

Ou conforme se refere no recente Acórdão do STJ de 06-02-2019 (in stj.pt) tratam-se de vícios que “decorrem do texto da própria decisão”.

Em relação ao vício concretamente anunciado sabemos que:

“O vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPerro notório na apreciação da prova – só se pode verificar quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.”[6]

Nos termos do Acórdão do STJ de 15-09-2009 (já supra citado):
“O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.”

Ora, e adiantando desde já a nossa convicção no caso em apreço, afigura-se-nos que não assiste qualquer razão ao recorrente uma vez que, em nosso modesto entendimento, não se vislumbra em que medida a prova dos factos vertidos em 1.67 e 1.77, que nada têm a ver com o recorrente, referindo-se, antes, à situação económico-familiar do arguido AA, possam levar à conclusão de que a vítima CC pensava que ia morrer no momento em que levou a facada ou que a mesma vítima nunca mais conseguiu trabalhar de forma estável necessitando de ajuda de familiares e vivendo em constante medo.

Como não se percebe em que medida o facto vertido em 1.56, que apenas determina a idade do recorrente, também possa levar à prova dos factos vertidos em p) e q).

Por outro lado, os factos vertidos em 1.26 e 1.30 não permitem concluir o que o recorrente sentiu no momento da facada e as dificuldades posterior enfrentadas no estrangeiro.
 
Restam apenas os factos vertidos em 1.53 e 1.54 que recapitulando dizem o seguinte:
1.53. No momento em que ocorreu a agressão do arguido AA, o ofendido CC foi tomado de sentimento de pânico, pois encontrava-se indefeso, à mercê de pessoa munida de uma faca, temendo pela sua vida.
1.54. O ofendido sentiu e sente temor do arguido, o que o obrigou a emigrar para o estrangeiro, receando voltar a ..., onde vivem os seus pais e amigos, com medo de aqui o encontrar, por recear pela sua vida, dadas as circunstâncias da actuação do arguido.

Ora, uma coisa é temer pela vida, outra, diferente, é pensar que no momento da agressão vai efectivamente morrer.

Uma pessoa pode ajuizar determinada situação como potencialmente lesiva da sua integridade física e, por isso, temer pela vida, sem que, no momento exacto da lesão lhe trespasse o espírito de que vai morrer.

É esta sensação, este prenúncio de que vai morrer que cria um dano moral diferente daquele que surge com o simples temor da situação com que a vítima é apresentada.
Por outro lado, o facto do recorrente sentir temor do arguido, daí ter sentido a necessidade de emigrar, com receio de o reencontrar se voltar para ..., não permite concluir que o recorrente não tem um emprego estável no estrangeiro, que tem de viver de ajuda de familiares e que está sempre nervoso e com medo de socializar.

Não há, assim, qualquer ligação lógica imperativa entre os factos provados em 1.26, 1.30, 1.53, 1.54, 1.56, 1.67 e 1.77  e os factos dados por não provados em p) e q).

Pelo que também não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova, devendo esta parte do recurso do recorrente CC improceder.

I. b) Da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo:

Entende, ainda, o recorrente CC que o valor de € 30.000,00 fixados pelo Tribunal a quo se revela insuficiente em face de tudo quanto sofreu e da gravidade dos factos.

Vejamos, primeiro, o que disse o Tribunal a quo quando fixou o quantum indemnizatório a favor da vítima CC:

Pedido de indemnização civil do demandante CC:
Não restam dúvidas, tendo em conta a factualidade provada, que se verifica, no caso dos autos, a ocorrência de um facto voluntário, consubstanciado na conduta do arguido AA, descrita na matéria de facto dada como provada, a qual se assume, para este efeito, como ilícita, porque violadora do direito à integridade física e à vida do ofendido CC.
Também resultou provado que em consequência da actuação descrita do referido arguido, o ofendido sofreu ferida incisa e perfurante na região dorso/lombar esquerda, com cerca de 4 cm de extensão, com um pneumotórax à esquerda, com derrame pleural, assim como uma pequena fratura do 11º arco costal esquerdo posterior, dores físicas e emocionais. A conduta do arguido AA é abstratamente idónea a gerar as supra referidas consequências na esfera jurídica do demandante, pelo que resulta também verificado o nexo causal necessário entre o facto ilícito – conduta do arguido nos moldes dados como provados – e os danos físicos e morais causados na vítima.
Resultam, pois, verificados os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícito, que é fonte da obrigação de indemnizar, no caso, por violação de direitos de personalidade, nomeadamente os tutelados pelo nº1 do artigo 70º do Código Civil e, de acordo com o qual “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.
De acordo com o estatuído no artigo 496º, nº 1, do Código Civil, apenas serão atendidos aqueles danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, gravidade que deve ser apreciada objectivamente. Com efeito, a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva terem linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada) [cf. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra-1987, página 499], pelo que os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais.
In casu, consideramos que os danos morais sofridos pelo ofendido atingem definitivamente gravidade suficiente para merecer a tutela do direito civil.
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
A indemnização não visa, então, propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido.
Para a fixação dos danos não patrimoniais a ressarcir neste caso há que considerar a factualidade provada, devendo ser tomados em consideração o facto de o arguido ter agido imbuído de dolo eventual, o grau de lesão na personalidade moral da vítima e a situação económica do arguido.
Assim, levaremos em conta que o ofendido CC, tinha à data 31 anos de idade, sofreu muitas dores e momentos de grande falta de ar; que desde a ocorrência dos factos, foi apoderado por um sentimento de pânico, do qual ainda hoje se não consegue libertar, pois estão frequentemente a vir-lhe a memória os factos ocorridos; que no momento em que ocorreu a agressão do arguido AA, o ofendido CC foi tomado de sentimento de pânico, pois encontrava-se indefeso, à mercê de pessoa munida de uma faca, temendo pela sua vida; que sentiu e sente temor do arguido, o que o obrigou a emigrar para o estrangeiro, receando voltar a ..., onde vivem os seus pais e amigos, com medo de aqui o encontrar, por recear pela sua vida, dadas as circunstâncias da actuação do arguido.
Constata-se ainda que a situação económica do ofendido é modesta, sendo idêntica a situação do arguido.
Conjugando estes factos, ao fixar o montante indemnizatório por danos não patrimoniais, crê-se razoável, adequado, justo, equitativo e, dentro dos condicionalismos referidos, fixar a quantia de € 30.000,00 a pagar pelo arguido AA ao ofendido CC.
A quantia em questão vence juros, desde a data da presente decisão porquanto a mesma se mostra actualizada (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2002 (DR I-A de 27.06.2002).”

Ora, o recorrente tinha peticionado uma indemnização no valor de € 100.000,00 (cem mil euros) e, se não há dúvida que o sofrimento humano não tem preço e que as sequelas morais de que o recorrente ainda padece não têm correspondência monetária, não podemos olvidar o sistema legal em que se insere o capítulo da responsabilidade civil extracontratual, uma vez que não podem ser fixadas indemnizações demasiado díspares para situações relativamente semelhantes.

Veja-se que tem sido jurisprudência constante que uma indemnização na ordem dos cem mil euros está reservada para o dano morte, não fazendo sentido, em termos de equidade, que norteia esta disciplina, nem em termos de justiça relativa que deve enformar as decisões judiciais, arbitrar ao recorrente cem mil euros para um dano, seguramente doloroso do ponto de vista emocional, mas que, felizmente, não ceifou a sua vida, e arbitrar o mesmo valor por quem tenha, efectivamente, perdido a vida.

Neste mesmo processo, os assistentes DD e EE, na qualidade de pais da falecida vítima DD, peticionam cem mil euros pelo dano morte do seu filho.

E se os sofrimentos não devem ser comparados, objectivamente há que percepcionar que não estão no mesmo plano.

A vítima DD perdeu o seu bem mais precioso: a sua vida, enquanto que a vítima CC, felizmente, continua vivo embora naturalmente traumatizado.

Veja-se, a título meramente exemplificativo o Acórdão da Relação de Évora de 21-06-2011[7] que proclama com razão:
“I – O dano morte é o maior dos danos não patrimoniais susceptíveis de reparação que a alguém pode ser infligido.”

Assim, e considerando as várias decisões jurisprudenciais nesta matéria, não há como fixar uma indemnização de cem mil euros ao recorrente, afigurando-se-nos, salvo o devido respeito, que o valor arbitrado pelo Tribunal a quo se mostra consentâneo com a prática jurisprudencial, revelando-se equilibrado.

Motivo pelo qual, também esta parte do recurso em apreço tem de improceder, improcedendo, assim, in totum o recurso do assistente CC.

II) Do Recurso do arguido AA:

II. a) Da impugnação da matéria de facto:

O arguido AA entende que houve erro de julgamento no que tange aos factos vertidos em 1.11, 1.16, 1.17, 1.26, 1.27, 1.29, 1.30 e 1.31 dos factos dados por provados, bem como no que tange aos factos dados por não provados vertidos em t), u), v), x), y), z), aa), bb) e cc).

Vejamos, recapitulando os factos impugnados.

Os Factos Provados:

1.11. De imediato, o arguido AA aproximou-se do ofendido CC, que se encontrava já no exterior, e desferiu-lhe um soco na face.
1.16. Nessa ocasião, o arguido AA virou-se repentinamente e empunhou, com a mão direita, uma faca em direcção ao ofendido CC, que, assustado, travou sua corrida e tentou retroceder, efectuando movimento de rotação, altura em que escorregou, bateu com o joelho num banco, e caiu de joelhos ao chão.
1.17. Nessas circunstâncias, quando o ofendido CC tentava retroceder, o arguido AA desferiu-lhe um golpe, com a referida faca, na zona lombar/dorsal do lado esquerdo, ferindo-o com gravidade.
1.26. O golpe desferido no corpo do ofendido CC era apto a provocar uma laceração do pulmão, o que, a suceder, provocaria a sua morte.
1.27. A circunstância de o instrumento perfurante utilizado ter atingido o osso do arco costal constituiu atrito à sua progressão.
1.29. O arguido AA, ao actuar conforme descrito em 1.11. agiu livre e deliberadamente, com o propósito concretizado de afectar o ofendido CC na sua saúde física, bem sabendo que da sua conduta resultariam lesões para o ofendido, resultado que quis e representou.
1.30. O arguido AA, ao actuar conforme descrito em 1.16 e 1.17., agiu livre e deliberadamente, admitindo como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte do ofendido CC, bem sabendo que lhe infligia golpe com instrumento corto-perfurante em zona onde se situam órgãos vitais, e que tal conduta era acto idóneo a provocar tal resultado, conformando-se com essa possibilidade.
1.31. Sabia o arguido AA que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Os Factos Não Provados:
t) O ofendido CC tenha agredido o arguido BB, em tudo quanto exceda ou contrarie o que consta de 1.60.
u) O ofendido CC tenha agredido a namorada do arguido BB, FF.
v) O arguido AA tenha desferido o soco no ofendido CC para ajudar o arguido AA e/ou a namorada deste;
x) O ofendido CC tenha respondido com um pontapé que acertou em cheio no arguido AA, e que este tenha começado a correr, fugindo do local em pânico, com medo de ser novamente agredido.
y) O arguido tenha sentido falta de ar e por esse motivo tenha sido alcançado pelo ofendido e por este agarrado pelas costas.
z) O arguido, ainda agarrado, mas em movimento de fuga, se tenha virado de frente para o ofendido CC, e que, num sentimento de desespero, pânico, aflição e medo, tenha logrado retirar a faca que detinha e que tenha sido por esse motivo, para além da compleição física superior do ofendido CC, que agrediu este, sabendo que se não o fizesse iria ser violentamente agredido.
aa) O arguido AA quando desferiu o golpe no ofendido CC se encontrasse de frente para este, vulgo “cara a cara”
bb) O arguido AA, ao ser alcançado pelo CC, tenha empunhado a faca unicamente para se defender e assustar o CC e para o dissuadir de se aproximar e que tenha sido por não ter logrado tal intuito que desferiu, de seguida, um golpe no ofendido com a faca.
cc) A faca usada pelo arguido AA para agredir o ofendido CC fosse por aquele usada diariamente como feirante, não sendo de ponta e mola, nem de abertura automática, mas manual e não possuindo mais de 10 cm de lâmina.

Tendo presente tudo quanto referimos acerca dos requisitos legais necessários para a impugnação da matéria de facto nos termos do artº 412º nº 3 do CPP, constante do item I. a) supra, mormente o triplo ónus que recai sobre o recorrente, e adiantando, desde já, a nossa convicção, afigura-se-nos não assistir qualquer razão ao recorrente quando este pretende alterar os factos que enumera.

Vejamos.

O recorrente AA oferece como prova que impõe decisão diversa as suas próprias declarações prestadas unicamente em sede de primeiro interrogatório, uma vez que se remeteu ao silêncio, quer no debate instrutório, quer na audiência de julgamento.

Bem como indica alguns trechos dos depoimentos da vítima CC, e ainda da testemunha HH.

Indica, por fim, pequenos trechos do depoimento do perito QQ que analisou os elementos clínicos referentes à ferida da vítima CC.

Ora, e salvo o devido respeito, não só o recorrente AA não consegue demonstrar porque motivo as suas declarações iniciais, deveriam ter sido valoradas positivamente, quando há elementos objectivos no processo, mormente as imagens captadas no EMP01..., que revelam que não estaria a dizer a verdade no que tange ao motivo pelo qual deu um soco à vítima CC, como a vítima que consigo interagiu e que sofreu a facada que o recorrente não nega ter dado, afirma, aliás, sempre afirmou, a forma como a interacção entre si e o recorrente ocorreu.

Veja-se que o Tribunal a quo, analisando as imagens dos eventos captados pela câmara de vigilância do EMP01... e pelo estabelecimento EMP03... refere concretamente:

Visualiza-se, ainda, claramente nas referidas imagens, a vitima DD a levantar-se do banco onde se encontrava sentado no exterior, a dirigir-se ao interior do estabelecimento e a conduzir o arguido BB para o exterior, interpondo-se entre este e o ofendido CC, sendo que só depois este ofendido é atingido pelo arguido AA com um soco na face.
Resulta, assim, infirmada a versão do arguido AA no sentido de que deu um soco no ofendido CC para ajudar o arguido BB e a namorada deste, posto que na altura em que tal sucedeu, já o BB e a FF se encontravam afastados daquele ofendido, sendo certo, por outro lado, quanto à FF, que não resultou comprovado que tenha sido agredida, como aliás referiu nas declarações prestadas em inquérito, com as quais foi confrontada.

Quanto a isto o recorrente AA não foi capaz de inquinar este raciocínio, nem ofereceu prova que invertesse o seu sentido, e muito menos demonstrou em que medida a convicção do Tribunal a quo se mostra erroneamente alicerçada.

Por outro lado, o facto da vítima não ter sentido a faca, no momento em que esta é desferida, em nada afecta a dinâmica dos eventos como contada pela vítima CC que sempre disse que perseguia o arguido louro, ou seja, o arguido AA, que este a determinada altura pára, portanto o arguido estava de costas para a vítima só se virando posteriormente, e a vítima, quando vê o arguido sacar de uma faca, vira, faz “uma rotação”, colocando-se, consequente e necessariamente, de costas para o arguido de quem não consegue fugir porque bate com o joelho num banco, caindo.
           
É neste momento que a vítima CC recebe a facada do arguido AA, não tendo havido qualquer tipo de “engalfinhamento” ou luta corpo a corpo.

Quanto à testemunha HH não só a mesma não assistiu de perto aos acontecimentos, como, e apesar de ter referido que viu o CC “engalhado” com o arguido louro – resta saber o que a testemunha quereria dizer por “engalhado” –  tal testemunho não tem a virtualidade de colocar em crise a versão apresentada pela própria vítima CC por ser a pessoa quem directamente lidou com o arguido e sempre referiu a dinâmica dos eventos ocorridos consigo de forma coerente.

E no que tange ao perito QQ este foi claro e assertivo quando disse que a forma como a lesão foi realizada no corpo da vítima CC, de baixo para cima, era perfeitamente compatível com um ataque pelas costas.

Afirma ainda o recorrente AA que tivesse a dinâmica ocorrido conforme relatada pela vítima CC, então o recorrente teria de ter atingido aquele do seu lado direito e não do seu lado esquerdo uma vez que é destro.

Mas, e salvo o devido respeito, esta afirmação não tem suporte na dinâmica dos factos uma vez que, tendo a vítima se virado de costas, estas podiam ser atingidas em qualquer ponto pelo arguido AA, especialmente se os dois estivessem posicionados de forma desencontrada.

O facto do arguido AA ter atingido o lado esquerdo da vítima só revela a intenção, como infra veremos, de atingir o coração e, assim, causar lesão apta a provocar a morte.

Por outro lado, não faz qualquer sentido a tese defendida pelo recorrente AA quando este afirma que estaria de cara a cara com a vítima pois, se assim fosse, então teria sido mais lógico e mais fácil espetar a vítima no peito, pela frente.

Para ter estado cara a cara e mesmo assim atingir a vítima de costas, teria o arguido de estar “abraçado” com a vítima o que, não só não tem qualquer suporte no que a vítima CC referiu, como isto contraria a restante linha de defesa do arguido AA quando este diz que, sendo a vítima CC mais alto e mais forte, seria um adversário desigual.

Quem, como o arguido alega, enfrenta uma pessoa maior e mais possante (mas desarmado), não se vai deixar agarrar, tendo uma faca na mão vai utilizá-la para dissuadir o oponente e, em última instância, vai espetá-lo pela frente, sendo, assim, inverosímil a versão alternativa que o recorrente aqui apresenta.

Aliás, é exactamente isto que o Tribunal a quo refere na sua motivação que, no que tange ao arguido AA acompanhamos de perto:

O relato do arguido AA ao afirmar que foi agarrado, por trás, pelo ofendido CC, e que ainda assim conseguiu abrir a mala, dela retirar a faca, abri-la, ao mesmo tempo que estava a ser agarrado, não se revela credível e é contrário às regras da experiência e do normal acontecer, sendo certo que, quando indagado a explicar como logrou abrir a face nessas circunstâncias - que referiu não ser de ponta e mola, mas de abertura manual - não avançou explicação plausível, afirmando tão só que foi agarrado em movimento e que tentou libertar-se. Todavia, sendo o ofendido CC mais alto e mais forte que o arguido AA, se o tivesse agarrado por trás e a prender-lhe os braços, certamente lograria imobilizá-lo e impedir de retirar a faca da mala a tiracolo onde a transportava e de abrir a faca. Acresce que tal relato não é consentâneo com a zona do corpo em que o ofendido foi atingido - região lombar/dorsal do lado esquerdo- não sendo compreensível que o arguido desfira um golpe nas costas do ofendido quanto este se encontrava a agarrá-lo e a prender-lhe os braços, tendo além do mais em conta a diferença de envergadura física entre ambos.
Também destituído de plausibilidade a versão inserta na contestação do arguido AA, que não corresponde sequer ao por este relatado, uma vez que o mesmo arguido apenas referiu que cortou o ofendido CC, mas não sabe como nem onde, tendo-se apercebido que o cortou quando viu sangue na sua mão e na faca. Não referiu o arguido AA, nem existe qualquer outro elemento de prova nesse sentido, que, como se alega na contestação, se virou de frente para o arguido, tirou a faca da mala, e, movido pelo medo e por não ter conseguido dissuadir o ofendido de se aproximar, golpeou o ofendido .nas costas. Ademais, uma tal versão implicaria que o arguido rodeasse o ofendido com o seu braço para lograr atingi-lo nas costas, o que não é consentâneo com o facto de ser bastante mais baixo e franzino que o ofendido. Aliás, os Peritos Médicos PP e QQ afastaram a probabilidade de tal hipótese, atento o golpe, a sua profundidade e a sua direcção.

Ora, o que o arguido AA faz é oferecer a sua convicção pessoal, e naturalmente interessada nos factos, sem contudo demonstrar como é que a prova que apresenta impõe decisão diversa.

A prova por si indicada foi analisada pelo Tribunal a quo que a avaliou conforme consta do acórdão recorrido o qual, no que tange ao arguido em referência, não se revela incoerente, violador das regras da experiência ou da lógica tendo sido dado cumprimento ao disposto no artº 127º do CPP, pois a avaliação do Tribunal a quo não se mostra nem arbitrária, nem contra legem.

Terá, assim, de improceder esta parte do recurso do recorrente AA, não devendo ser alterados os factos nos termos requeridos.

Argumenta, ainda, o recorrente que o Tribunal a quo violou o princípio in dúbio pro reo porquanto deveria, ao menos, ter ficado com dúvida em relação à forma como a interacção ocorreu entre si e a vítima CC.

Vejamos.

II. b) Da Violação do Princípio In Dubio Pro Reo:

O princípio do in dúbio pro reo foi transposto para o processo penal a partir do consagrado no artº 32º da Constituição da República Portuguesa que, subordinada à epígrafe “garantias do processo criminal”, diz o seguinte:

“1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”

Ou seja, existindo uma séria dúvida sobre determinado facto, essa dúvida deve ser resolvida a favor do arguido, atento o princípio da presunção da sua inocência.

Ou, conforme muito bem explicitado no Acórdão do STJ de 12-03-2009, cujo relator é Soreto de Barros:

“III- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
V- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
VI- Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. Já o saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada.
VII - A apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.” – sublinhado nosso

No caso em apreço, o Tribunal a quo não manifestou qualquer dúvida ao fixar a matéria de facto.
           
Sendo certo que, apenas da simples análise do acórdão recorrido, sem ponderar os elementos de prova, não se chega à conclusão de que o Tribunal a quo deveria ter ficado com dúvida, pelo que nunca poderia estar em causa um erro notório na apreciação da prova no que tange a este princípio.

Não tendo o Tribunal a quo revelado qualquer dúvida insanável e, no âmbito da mesma, ter decidido contra o arguido, não se verifica o vício apontado por este no seu recurso.

E, da cuidada análise do acórdão ora sob escrutínio não se constata que o Tribunal a quo tivesse alguma dúvida, que se confrontasse com a possibilidade do arguido poder não ter cometido o crime de homicídio na forma tentada e, mesmo assim, decidisse contra si.

Por outro lado, após a audição da prova testemunhal indicada pelo recorrente também nós não ficamos com dúvida alguma sobre a veracidade dos factos provados.

De notar que a dúvida em causa é uma dúvida que assola o Tribunal a quo e não qualquer dúvida que o recorrente possa ter ou manifesta.

Isto, nada tem de subjectivo uma vez que o Tribunal é o único com poderes para julgar os factos, analisar a prova e formar uma convicção.

A observância do princípio in dúbio pro reo é um ditame dirigido ao Tribunal que, na eventualidade de não conseguir, perante a prova facultada e com recurso às regras da experiência comum, da lógica e do que é o normal desenrolar das coisas, fixar os factos necessários ao preenchimento do crime, terá de decidir esse impasse a favor do arguido.

Afirma o recorrente que “conclui-se que o que interessa apurar é se o tribunal, perante a prova produzida, objectivamente, devia ter ficado num estado de dúvida sobre a matéria de facto – e não se o Tribunal ficou efectivamente com qualquer dúvida sobre essa matéria.” – fls. 1579

E daquilo que temos vindo a analisar conclui-se, com segurança que, no que tange ao arguido AA, da prova produzida, objectivamente não há lugar a qualquer dúvida dado o valor probatório atribuído ao depoimento da própria vítima CC que o arguido AA não foi capaz de afastar, conjugado com a restante prova objectiva, mormente, as imagens de vídeo que infirmam a versão do arguido AA, e a perícia que confirma a natureza da lesão.

Pelo que o recurso do arguido AA também tem de improceder nesta parte, não havendo lugar à alteração da matéria de facto nos termos propostos.

II. c) Da Legítima Defesa:

Entende o arguido AA que a sua actuação não deve ser penalmente censurada uma vez que, apesar de ter atingido a vítima CC com uma facada nas costas, fê-lo em legítima defesa, havendo, assim, uma causa de exclusão da ilicitude.

Vejamos, olhando primeiro o que referiu o Tribunal a quo a este respeito:

Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, designadamente legitima defesa ou excesso de legitima defesa, invocados pelo arguido.
Com efeito, como é consabido e decorre do disposto nos artºs 31º a 33º do Código Penal, são requisitos da legitima defesa: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do agente ou de terceiro, que deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou eminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão; c) "Animus defendendi", ou seja, o intuito de defesa por parte do dependente.
A legitima defesa exclui a ilicitude do acto praticado, enquanto o acto praticado com excesso de legitima defesa se situa ao nível da culpa.
O excesso de legitima defesa pressupõe a verificação de todo o condicionalismo da legitima defesa, reportando-se ao excesso dos meios empregados que pode conduzir à atenuação especial da pena e, sendo determinados por perturbação, medo ou susto não censuráveis, pode isentar o agente da pena por falta de culpa.
Ora, como resulta da factualidade provada e não provada, a conduta do arguido ao agir do modo descrito, não se destinou a repelir qualquer agressão actual, designadamente ao seu primo BB e namorada, como invocou, nem à mesma presidiu qualquer propósito defensivo.
Não se verificando os pressupostos da legitima defesa, não se verifica de igual modo o excesso de legitima defesa, que pressupõe aquela.

Ora, o recorrente AA invoca a legítima defesa assente no pressuposto de que a alteração da matéria de facto por si proposta tivesse sido acolhida por esta Relação.

Contudo, tal não sucedeu, pelo que dúvidas não pode haver que, dos factos dados por provados e os dados por não provados, não se pode concluir que o arguido tivesse agido para afastar uma ameaça ou agressão à sua integridade física.

A dinâmica dos factos ocorridos entre a vítima CC e o arguido AA  revelam que este não agiu em legítima defesa uma vez que, quando espeta a faca na vítima esta está de costas para si, aliás, mal a vítima CC viu o arguido AA com uma faca na mão, virou-se para fugir só não o tendo conseguido porque bateu com o joelho no banco e caiu.

O arguido AA aproveita este momento de total fraqueza da vítima para o atingir nas costas, à traição, disso não pode haver a mais pálida dúvida, motivo pelo qual está claramente afastada a possibilidade do arguido AA ter agido em legítima defesa.

Pelo que esta parte do seu recurso também tem de improceder.

II. d) Da intenção de matar:

Entende ainda o arguido AA que não teve intenção de matar a vítima CC e que, quando muito, estará em causa um crime de ofensa à integridade física, “no extremo, grave, previsto e punível pelo artigo 144º alínea d) do Código Penal.”
 
Ora, também esta tese assenta na situação dos factos terem sido alterados nos termos propostos pelo recorrente o que não aconteceu.

Por outro lado, e salvo o devido respeito, a explicação dada pelo arguido para demonstrar que, se tivesse mesmo intenção de matar a vítima CC, não se teria limitado a dar um único golpe, mas vários, não tem qualquer cabimento lógico.

A intenção de matar, sendo um facto que integra o universo interior, mental e emocional do arguido, é algo que se alcança indirectamente através dos factos objectivamente alcançados.

Assim, uma pessoa que, munido de uma faca, aproveitando-se da situação da vítima, ao querer fugir do agressor, tropeçar e cair, a espeta com tal faca, pelas costas, na zona do coração, só não a tendo morto por motivos alheios à sua actuação – a faca foi “travada” por uma das costelas – revela um claro intento de matar e não apenas de ferir.

Quisesse o arguido AA apenas ferir a vitima CC tê-lo-ia conseguido espetando a faca na perna, por exemplo.

Mas o arguido golpeia a vítima na zona do coração e numa zona com outros órgãos vitais como os pulmões.

Para matar, basta um golpe bem dado, pelo que não faz qualquer sentido afirmar-se que teria de ter desferido muitos golpes para ficar demonstrada a intenção de matar.

Sendo que o arguido AA atinge a vítima de costas, à traição, quando a mesma está caída e indefesa.

O facto de, felizmente, não ter ocorrido qualquer laceração do pulmão da vítima CC, o que a ter ocorrido teria provocado a sua morte, porque a faca bateu no arco costal, impedindo a sua progressão, em nada retira à intenção do arguido de atingir mortalmente a vítima, ou de, pelo menos, ter representado como possível essa possibilidade e, mesmo assim, continuar com a sua acção sobre a mesma.

Pelo que não se pode falar numa simples ofensa à integridade física, ainda que grave, porquanto o dolo em causa é o dolo de matar e não de simplesmente ferir.

Improcede, assim, também esta parte do recurso do arguido AA.

II. e) Da suspensão da execução da pena:

Por fim, e à cautela, pede o arguido AA a substituição da pena de prisão que lhe foi fixada, em 4 anos e 4 meses, por uma pena suspensa na sua execução nos termos do artº 50º do Código Penal.

Vejamos, olhando primeiro o que o Tribunal a quo determinou quando fixou a pena ao arguido AA:

2. Penas a aplicar ao arguido AA:
No caso dos autos, atento o circunstancialismo que rodeou a prática dos factos, as exigências de prevenção especial e geral que se «fazem sentir, entende-se optar, no que ao crime de ofensa à integridade física concerne pela pena de prisão, uma vez que a pena de multa não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - art.º 70º do Código penal.
*
Importa considerar que o arguido à data da prática dos factos, tinha 18 anos de idade.
Nos termos do artº 4º do Dec-Lei 401/82, de 23 de Setembro, se for aplicável pena de prisão a jovem adulto, que á data da prática dos factos tiver completado 16 anos sem ter atingido os 21 anos, deve a pena ser especialmente atenuada, nos termos dos artºs 73º e 74º do Código Penal, se existirem sérias razões para crer que da atenuação resultam sérias vantagens para a sua reinserção social.
A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos, constante do citado diploma legal constituiu o regime-regra do sancionamento penal aplicável a esta categoria etária, cuja aplicação se impõe, sempre que verificados os respectivos pressupostos, posto que, como é sabido, a sua aplicação não é automática.
O juízo de avaliação da vantagem da atenuação especial centra-se fundamentalmente na importância que a diminuição da pena poderá ter no processo de socialização.
No caso, tendo em conta o apoio familiar de que o arguido beneficia e sua inserção social, entende-se que a atenuação especial trará vantagem para ar ressocialização do arguido, pelo será aplicado este regime especial.
Por força da atenuação especial, decorrente da aplicação deste Dec-Lei, a moldura penal dos crimes praticados pelo arguido AA é a seguinte:
- quanto ao crime de ofensa à integridade física simples, pena de prisão até 2 anos ou pena de multa;
- quanto ao crime de homicídio na forma tentada, a pena de um mês a seis anos e três dias de prisão.
Dentro das molduras penais referidas, a determinação da medida concreta das penas de prisão, far-se-á em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização), nos termos do disposto no nº 1 do artº. 71º do C. Penal, tendo em conta designadamente as circunstâncias enumeradas no nº 2 do citado normativo.
A aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artº 40º do Código Penal.
Neste normativo se condensam as três proposições fundamentais quanto à função e aos fins das penas: protecção dos bens jurídicos, reinserção social do agente do crime, a culpa como limite da pena.
A pena deve, assim, ser encontrada numa moldura penal de prevenção geral positiva – com o que se dá satisfação à necessidade comunitariamente sentida de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada - definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida concreta da culpa, que estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção.
Passemos, então, à ponderação dos factores relevantes para a determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido AA, à luz dos normativos citados.
Assim, importa considerar:
A intensidade do dolo com que o arguido agiu, directo, relativamente ao crime de ofensa à integridade física e eventual no que respeita ao crime de homicídio tentado.
A ilicitude das suas condutas revela-se muito elevada, considerando as circunstâncias em que os factos ocorreram, num estabelecimento de diversão e nas suas imediações, na sequência de desacatos entre o seu grupo e outro, a gratuitidade da sua acção, quer no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, quer no que respeita ao crime de homicídio qualificado, fazendo-se o arguido acompanhar para local de diversão de um instrumento cujo perigosidade conhecia, apta a causar lesões e inclusive a tirar a vida.
O modo de execução dos factos, desferindo o soco na face ao ofendido CC por trás, de repente e sem que nada o fizesse supor e posteriormente desferindo o golpe com faca na região dorso/lombar na altura em que o ofendido se encontra de costas, caído de joelhos, preparando-se para retroceder, já não constituindo qualquer perigo para o arguido, inexistindo qualquer razão defensiva que justifique o seu comportamento.
São especialmente intensas as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, tendo em conta a natureza dos bens jurídicos colocados em crise, a integridade física e a vida, cuja violação é fortemente repudiada pela comunidade, em particular no que respeita ao crime de homicídio.
E, por isso, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada do direito.
As necessidades de prevenção especial assumem de igual modo significado, posto que não tendo antecedentes criminais - o que atento a sua idade é circunstância não particularmente valorável - já teve contacto com o sistema judicial, tendo-lhe sido aplicada a suspensão provisória num processo. Embora se encontra familiarmente inserido, não tem projecto de vida profissional consistente, estando dependente economicamente de seus pais.
A favor do arguido, milita a sua inserção familiar e social, a conduta adequada que tem adoptado em meio institucional, bem como a admissão parcial dos factos, muito embora tenha adoptado uma atitude minimizadora e desculpabilizadora da sua responsabilidade, que não consubstancia arrependimento sincero, não obstante o pedido de desculpas que apresentou ao ofendido
Tudo ponderado, tem-se por ajustado a aplicação ao arguido AA das seguintes penas:
- pela prática de crime de ofensa á integridade física, a pena de oito meses de prisão;
- pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, a pena de quatro anos de prisão

3. Pena única:
Nos termos do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única”.
À punição do concurso procede-se através de uma operação de cúmulo jurídico, partindo de todas as condenações singulares (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 285), daí prosseguindo para a determinação de uma moldura penal do concurso, dentro dos limites da qual se encontrará, finalmente, em função das exigências gerais da culpa e de prevenção e tendo em consideração os factos e a personalidade do agente globalmente apreciados, a medida da pena conjunta concretamente aplicável.
Para a determinação da medida da pena importa considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (cfr. artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal), factores a que já se fez referência a propósito da determinação da medida concreta da pena, mas agora vistos a outra luz. Determinante é uma ponderação global dos referidos factos, pesados à luz dos critérios gerais enunciados no artigo 71.º, do Código Penal (aos quais se recorreu já para determinação das penas singulares), sem que tal importe uma violação do princípio da proibição da dupla valoração no momento da determinação da medida concreta no concurso de crimes, pois, voltando a Figueiredo Dias, “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo facto concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: neste medida não haverá que invocar a proibição da dupla incriminação” e “na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, entretanto, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante da moldura penal conjunta” (ob. cit., pág. 291). Este entendimento encontra ecos na jurisprudência, que tem entendido que “o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido” (cfr. acórdão de 03.10.2007, proferido no processo n.º 07P2576, na base de dados da DGSI).
A moldura da pena única do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, num máximo de 25 anos tratando-se de pena de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), pelo que, no caso em apreço, a pena única concreta a aplicar terá como limite máximo 4 anos e 8 meses de prisão e como limite mínimo 4 anos.
Numa visão global dos comportamentos, a actuação do arguido revela, no seu conjunto, uma intensidade de ânimo contrário ao direito que pode qualificar de persistente. Note-se que o arguido, após ter agredido o ofendido com um soco na cara, atentou contra a sua vida, com recurso a uma faca, tudo num espaço de breves segundos, o que é revelador de uma elevada energia criminosa por parte do arguido.
A imagem global carrega, assim, traços significativamente mais negativos do que aqueles que atrás se mencionaram, o que se reflectirá no grau de compressão inerente ao concurso.
Tudo visto e ponderado, entende-se adequada uma pena única que se fixa em 4 anos e 4 meses de prisão, em cúmulo jurídico das penas parcelares supra referidas.

4. Não Suspensão da Execução da Pena Única de Prisão:
Dispõe o artigo 50º, nº1, do Código Penal que «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Trata-se, como vem sendo comummente assinalado na doutrina e jurisprudência, de um poder-dever do julgador, relativamente a penas não superiores a cinco anos, verificados que sejam os pressupostos no citado normativo previsto, ou seja, que a “simples censura do facto e a ameaça da pena realizem de forma adequada e suficientes as finalidades da punição”
Como se assinala no Acórdão do STJ de 13.12.2007 (processo 07P3049), relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, intervêm nesta sede unicamente critérios de prevenção (especial e geral), intervindo a consideração da culpa no momento que precede o da escolha pela aplicação ou não de uma pena de substituição, isto é, no momento da determinação da medida concreta da pena. No caso, e conforme do acima referido, as necessidades de prevenção geral são muito elevaras e as necessidades de prevenção especial são também significativas.
O quadro que emerge da factualidade provada, em ternos de personalidade e condições de vida, não permite concluir, ainda que em termos de expectativa fundada, que exista a possibilidade de o arguido se reintegrar na sociedade e não cometer novos ilícitos em liberdade, beneficiando da suspensão.
Ademais, no circunstancialismo concreto em apreciação, não se revelaria também a suspensão da execução da pena compatível com as exigências de prevenção geral, por não consentânea com o seu efeito essencial de manutenção das expectativas comunitárias na tutela do ordenamento jurídico.
Por todo o exposto, não se suspenderá na sua execução a pena aplicada, por se considerar não verificado o pressuposto de que mesma depende - que a simples censura do facto e ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

 Ora, o recorrente AA não discute, nem as penas parcelares, nem a pena única em si, isto é, não pede penas inferiores, limitando-se a pedir a suspensão da respectiva execução, sendo certo que, tendo-lhe sido fixada uma pena inferior a 5 anos, não se mostra excluída a priori essa possibilidade.

Sucede, contudo que, não só se concorda com a análise do Tribunal a quo quando optou por não suspender a execução da pena, sendo certo que o arguido também não oferece quaisquer elementos concretos para demonstrar que aquela pena é desadequada, como, e infra veremos melhor a propósito da análise do recurso do MºPº, a pena do arguido AA deve, inclusive, ser aumentada pelo que a questão da suspensão da sua execução deixará de ter qualquer relevância ou aplicação.

Improcede, assim, in totum o recurso do arguido AA.

III. Dos Recursos do MºPº e dos Assistentes DD e EE:

III. a) Da Impugnação da Matéria de Facto:
- recursos do MºPº e dos assistentes

O MºPº entende que o Tribunal a quo deveria ter dado por provados os seguintes factos que foram considerados não provados:

f) Na altura em que o ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos tinham facas, o DD já se encontrasse perto da passadeira situada ao lado do ecoponto e a cerca de cinco metros daquele, junto ao arguido BB.
g) O arguido BB se tenha envolvido, nessa ocasião, em agressões físicas com o ofendido DD.
i) O arguido BB tenha desferido dois golpes no ofendido DD, usando uma navalha com cabo de madeira que trazia consigo, descrita no auto de exame directo de fls. 796 a 797,
j) O ofendido DD tenha sofrido as lesões descritas em 1.22., que causaram a sua morte, em consequência de golpes de navalha perpetrados pelo arguido BB.
m) O arguido BB tenha admitido como possível que da sua conduta resultasse a morte do ofendido DD, que lhe tenha infligido golpes de faca na zona onde se situam órgãos vitais, ou que tenha agido com a intenção concretizada de tirar a vida ao referido ofendido.
n) Os arguidos tenham sido movidos por sentimentos de vingança, por terem sido explusos do estabelecimento EMP01... para evitar o pagamento da diminuta quantia das duas bebidas ali consumidas (cerca de 8 €)

E os assistentes DD e EE, pais do falecido DD, entendem que os seguintes factos dados por não provados pelo Tribunal a quo deveriam ter sido considerados provados:
 
f) Na altura em que o ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos tinham facas, o DD já se encontrasse perto da passadeira situada ao lado do ecoponto e a cerca de cinco metros daquele, junto ao arguido BB.
h) O ofendido DD e o arguido BB se tenham agarrado mutuamente e tenham recuado uns metros, em direção ao estabelecimento “EMP01...”.
i) O arguido BB tenha desferido dois golpes no ofendido DD, usando uma navalha com cabo de madeira que trazia consigo, descrita no auto de exame directo de fls. 796 a 797,
j) O ofendido DD tenha sofrido as lesões descritas em 1.22., que causaram a sua morte, em consequência de golpes de navalha perpetrados pelo arguido BB.
m) O arguido BB tenha admitido como possível que da sua conduta resultasse a morte do ofendido DD, que lhe tenha infligido golpes de faca na zona onde se situam órgãos vitais, ou que tenha agido com a intenção concretizada de tirar a vida ao referido ofendido.
dd) O arguido BB não tenha praticado os factos de que vem pronunciado
ee) O arguido BB não tenha tido em 12.02.23 qualquer gesto agressivo com quer que seja, nem tenha tido nas suas mãos qualquer navalha, nomeadamente a examinada a fls. 796 a 797 dos autos.

Antes de entrarmos na concreta análise da impugnação da matéria de facto não provada que ambos os recorrentes fazem, convém estabelecer a seguinte premissa:

Os factos julgados ocorreram no dia 12-02-2023.

A vítima CC, este a partir do hospital, e as testemunhas DDD e HH, foram logo ouvidos pela PJ no dia seguinte, ou seja, no dia 13-02-2023 – cfr. autos de fls.  101 e ss.

A vítima CC foi ainda inquirida perante Magistrado do MºPº em 28-02-2023 (cfr. auto de fls. 447 e ss), sendo que a testemunha DDD foi inquirido por Magistrado do MºPº em 03-03-2023 (cfr. auto de fls. 455 e ss) e a testemunha HH foi inquirida por Magistrado do MºPº em 07-03-2023 (cfr. auto de fls. 463 e ss).

A vítima CC foi ainda ouvida em declarações para memória futura em 29-03-2023 (cfr. auto de fls. 604 e ss), ou seja, um mês e 17 dias após a ocorrência dos factos.

Contudo, apesar dos arguidos se encontrarem representados na diligência para tomada de declarações para memória futura pelos seus ilustres advogados, que fizeram as perguntas que quiseram, e apesar de CC ser uma vítima especialmente vulnerável por ter sido vítima de criminalidade violenta, pelos arguidos foi requerida, mais uma inquirição da vítima CC, desta vez na audiência de julgamento.

A vítima CC foi assim ouvida quatro vezes, duas em Tribunal, perante magistrados judiciais.

Ora, não podemos deixar de referir esta situação pelos seguintes motivos:

O primeiro prende-se com o facto de não se conseguir compreender o motivo pelo qual a vítima CC, sendo uma vítima especialmente vulnerável, tendo já prestado declarações para memória futura e estando a residir no estrangeiro precisamente para se afastar de todo o trauma causado nestes autos, foi obrigada a depor mais uma vez em sede de julgamento.

Especialmente se tomarmos em consideração que o teor do despacho judicial de 19-04-2024 com a refª ...93, constante a fls. 1431 e ss, que autoriza mais uma tomada de declarações à vítima CC começa por dizer o seguinte:

“Como resulta das declarações para memória futura de CC, prestadas perante JIC e na presença dos Exmºs Advogados dos arguidos, com observação dos formalismos legais, o mesmo foi confrontado quer com as imagens juntas aos autos, quer com as declarações anteriormente prestadas em inquérito.
Por outro lado, identificou então as pessoas que terão presenciados os factos, sendo certo que não está demonstrado que tenha contado a terceiros versão distinta da que contou nos autos.”

Ou seja, eram por estes motivos aqui escalpelizados que os arguidos requererem mais uma inquirição por parte da vítima CC, estando claro que tais motivos não tinham fundamento como reconhecido pelo despacho em análise.

Sendo que no referido despacho, o Tribunal a quo também reconhece que:

“Importa ter presente que as vítimas de criminalidade violenta e especialmente violenta são vítimas especialmente vulneráveis, como resulta da conjugação do disposto no artº 1º, al. j) e l), e no artº 67º-A, nº 3 do CPP. (…)
Assume, assim, carácter excepcional nos casos de vítimas especialmente vulneráveis, a presença da vítima em julgamento, quando prestou declarações para memória futura, constituindo a regra a valoração da prova pré-constituída, em conjugação com a restante prova”. – sublinhado nosso

Contudo, apesar dos motivos pelos quais os arguidos requereram mais uma audição da vítima CC não terem qualquer suporte processual, o Tribunal a quo admitiu à mesma a inquirição da vítima CC em sede de julgamento argumentando que:

“…o relato do assistente …será susceptível de contribuir para um melhor esclarecimento dos factos, designadamente relativamente a alguns aspectos das declarações prestadas para memória futura, e, por conseguinte, para descoberta da verdade.” – sublinhado nosso

Ou seja, apesar da vítima especialmente vulnerável ter já dito tudo quanto sabia e se lembrava em três ocasiões distintas e muito próximas temporalmente dos factos, teria de o repetir mais uma quarta vez.

Com as nefastas consequências que essa inquirição implicou, quer para a descoberta da verdade, porquanto, volvidos quase 15 meses sobre os eventos (a inquirição ocorreu em 06-05-2024, cfr. acta de fls. 1435 e ss com a refª ...90) a memória da vítima mostra-se, naturalmente, comprometida, quer para o bem-estar da vítima CC que, tendo emigrado para o estrangeiro para fugir ao trauma que viveu em Portugal, não lhe foi possível deixar ficar para trás esses terríveis acontecimentos.

Ora, da audição que efectuámos da quarta inquirição a que se sujeitou a vítima CC, foi possível perceber, com facilidade, que por o mesmo residir no estrangeiro, a transmissão do seu depoimento foi pouco clara, havendo falhas na transmissão.

Por outro lado, a inquirição da vítima CC em sede de julgamento foi realizada cerca de 15 meses depois da ocorrência dos factos, depois da vítima ter feito um esforço para se esquecer e continuar com a sua vida e, depois de se ter sentido ameaçado, tendo emigrado para o estrangeiro por medo de continuar a viver em Portugal em virtude da ocorrência dos factos.

Pelo que, naturalmente, o depoimento prestado em sede de julgamento se revela o menos coerente e seguro, motivo pelo qual, quando confrontado com aquilo que disse anteriormente, quer perante magistrado do MºPº, que validou as declarações na PJ, quer em sede de memória futura a vítima CC remeteu-se para aquilo que fora dito antes, quando a memória estava muito mais fresca.
 
Veja-se:
“51:33 CC (…) Eu na altura que fiz as gravações (…) a memória, hoje as imagens realmente são muito curtas…daquilo que eu me lembro também passa a ser mais curta.
56:00: eu depois de tudo o que aconteceu tentei nunca mais pegar no processo (…)
56:49 (…) lá está, eu na altura a vivência que eu tinha era mais real (impercetível) e na altura em que eu falei era tudo mais vivo, mais (…) o tempo já não é tão vivo, tão real, como foi há um ano atrás, o meu subconsciente tenta-me apagar constantemente (impercetível)
01:21:52 (…) o 1.º, 2.º até à filmagem no tribunal as memórias estavam mais vivas e eu concordo e assino por baixo tudo o que disse até a última fase em que a memória estava mais fresca (…)
(Gravação 06.05.2024, 16:25:22)
00:18:05 (…) Peço desculpa, mas aquilo que falei para memória futura ainda se mantém. (…)
00:19:09: Aquilo que eu falei [em declarações para memória futura], isso é o mais credível (…)”.

Mas, mais grave ainda é o facto do arguido BB, na sua resposta ao parecer emitido nesta Relação pelo Exmº Sr. PGA, resposta essa junta em 07-10-2024 com a refª ...21 (fls. 1701 e ss) afirmar no ponto 21 da sua resposta que “o próprio CC teve, na única oportunidade em que foi sujeito a verdadeiro interrogatório…”

Ou seja, a vítima especialmente vulnerável tinha de ser “sujeita a verdadeiro interrogatório” para as suas declarações terem algum valor.

E, com isto, inverteram-se totalmente os papeis, sujeitando-se a vítima a interrogatório, enquanto os arguidos prestam declarações.

Afigura-se-nos que foi esta (inaceitável) inversão de papeis que permitiu criar na vítima CC, as dúvidas que o mesmo manifestou no seu depoimento prestado em sede de julgamento, quando outrora não tinha essas dúvidas.
 
Ora, uma vítima não pode ser sujeita a inúmeras e repetidas inquirições onde se perguntam sempre as mesmas perguntas e se confronta com os mesmos elementos de prova, à espera de ver quando a mesma se vai contradizer.

As declarações para memória futura foram extensas, demoradas, realizadas com todo o rigor e formalismo processual, tendo estado presentes os arguidos nas pessoas de seus ilustres mandatários que puderam fazer as perguntas que bem entenderam, e tendo a vítima CC sido confrontada, não só com aquilo que disse anteriormente perante PJ e MºPº, como visionou os vídeos obtidos das câmaras de vigilâncias, quer do EMP01..., quer do estabelecimento EMP03....

Contudo, em sede de julgamento, voltou-se a fazer as mesmas perguntas à vítima CC, repisando toda a dinâmica dos factos, obrigando a vítima a reviver tudo de novo, pelo que a mesma denotou um natural cansaço e desgaste com uma situação que, pisada e repisada, e após mais de um ano sobre os acontecimentos, com ameaças pelo meio, o levou naturalmente a depor com fragilidades.

Ora, tendo isto presente e, considerando que, não pode haver a mais pálida dúvida de que as primeiras declarações prestadas pela vítima CC, em especial, as prestadas para memória futura, que permitiu esclarecer aquelas prestadas na PJ e no MºPº, têm de ser tidas como as mais fidedignas por serem as mais próximas dos acontecimentos em que a memória da vítima ainda se mostra intacta e não corrompida, quer pelo decurso do tempo, quer pela preocupação com as consequências que o seu depoimento iria ter perante os arguidos, não podia o Tribunal a quo ter valorado as últimas declarações prestadas pela vítima CC em sede de julgamento em pé de igualdade com as anteriormente prestadas.

Especialmente quando a vítima CC, confrontado com aquelas anteriores declarações confirma que devem ser essas, e não as actuais, a serem valoradas por terem sido prestadas próximo da cadeia de eventos.

Assim, assiste total razão aos recorrentes, MºPº e assistentes, pais do falecido DD, quando aquele e estes trazem como prova que impõe decisão diversa, essencialmente, as declarações para memória futura.

Pois nessas declarações, prestadas um mero mês e meio após a ocorrência dos factos, a vítima CC não tinha dúvida alguma, aliás, garantia “a 200%” que, após encetada a perseguição na rua, em que ele e a vítima DD corriam atrás dos arguidos, não estava mais ninguém para além dos arguidos.

Isto também é confirmado pelo arguido BB nas declarações que prestou em sede de julgamento.

Pelo que, se cada vítima está a perseguir um arguido, o DD no encalce do arguido BB, e o CC no encalce do arguido AA (o louro), só os arguidos é que podiam ter morto o DD.

E considerando que o arguido AA está “entretido” com a vítima CC, a quem mostra uma faca e depois o espeta com a mesma pelas costas, então é de elementar bom senso que o DD só podia ter sido atingido pelo arguido BB.

Veja-se que a vítima CC explica de forma clara e detalhada nas declarações para memória futura que desata a correr atrás dos arguidos, que encetaram fuga quando foram interpelados para pagar os consumos no EMP01..., e que, a partir de determinada altura, os arguidos dizem algo entre si e separam-se, indo o arguido BB mais para a esquerda da rua enquanto o CC se manteve no encalce do arguido AA.

O DD, que seguia mais atrás, persegue o arguido BB.

Aliás, o próprio arguido BB, nas declarações que prestou em julgamento, confirma que corria mais pela esquerda da via enquanto o AA seguia pelo meio da rua – declarações prestadas em 28-02-2024 minutos 13:11 e ss.

Note-se que, quanto a esta dinâmica, o Tribunal a quo deu como provado que:

1.12. De seguida, os arguidos colocaram-se em fuga, correndo pela via pedonal Alameda ... em direcção à Rua ..., o arguido BB à frente e o arguido AA atrás deste, sendo que a determinada altura passaram a correr praticamente lado a lado.
1.13. Os ofendidos CC e DD foram no encalço dos arguidos BB e AA, sendo que o ofendido CC seguia logo atrás do arguido AA e ofendido DD um pouco mais atrás.
1.14. Durante a fuga, apercebendo-se que estavam a ser perseguidos, um dos arguidos gritou “eu mato-te”.

A vítima CC ainda explica que o arguido AA trava e, virando-se para si, mostra-lhe uma faca que “abre” à sua frente, pelo que, com receio de ser esfaqueado, a vítima CC vira-se, fazendo o que chama uma “rotação”, portanto vira de direcção para fugir do arguido, contudo bate com o joelho num banco caindo indefeso, altura em que é espetado pelo AA.

Tendo o Tribunal a quo, na sequência deste relato dado, e bem, por provado que:

1.15. Em poucos segundos, uns metros antes do ecoponto situado no passeio da Rua ... e antes da passadeira de peões ali existente, o ofendido CC alcançou o arguido AA.
1.16. Nessa ocasião, o arguido AA virou-se repentinamente e empunhou, com a mão direita, uma faca em direcção ao ofendido CC, que, assustado, travou sua corrida e tentou retroceder, efectuando movimento de rotação, altura em que escorregou, bateu com o joelho num banco, e caiu de joelhos ao chão.
1.17. Nessas circunstâncias, quando o ofendido CC tentava retroceder, o arguido AA desferiu-lhe um golpe, com a referida faca, na zona lombar/dorsal do lado esquerdo, ferindo-o com gravidade.

Continua a vítima CC relatando que, quando cai, olha para a sua direita e vê a vítima DD “embrulhado” com o arguido BB, e grita “HH tem faca”, mas nota que o amigo DD não responde.

Tendo o Tribunal a quo dado como provado que:
1.18. O ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos estavam armados com facas.

De notar que quando a vítima CC cai ele ainda não recebeu a facada porquanto a queda deve-se ao facto de ter batido com o joelho no banco ao virar repentinamente.

É quando a vítima CC está caída que o arguido AA lhe dá a facada.

Pelo que, se, quando o CC cai, vê que o amigo DD está  embrulhado com o outro arguido, nunca podia ter sido o arguido AA a desferir os golpes na vítima DD.

A dinâmica dos factos não o permitem.

Até porque, a vítima mortal, DD, de acordo com a autópsia junta aos autos, tinha 1,80m de altura e pesava mais de 100 kgs, tornando-o uma vítima muito mais possante que o arguido AA.

Isto é importante reter porquanto, tendo tal vítima sido atingida pela frente, a única forma que o arguido AA podia a ter golpeado da maneira como foi golpeado, obrigaria a que tivesse segurado a vítima.

Veja-se, que a ferida sofrida pelo DD, de acordo com a autópsia, implicava uma primeira entrada com a respectiva arma, seguindo uma primeira trajectória que não teria provocado a morte por não ter atingido qualquer órgão, a qual depois foi parcialmente retirada (mas não por completo) e novamente empunhada para dentro, seguindo agora uma segunda trajectória, essa sim, fatal por ter atingido os ventrículos do coração de DD.

Este movimento duplo em que a arma, depois de uma entrada inicial, só é retirada parcialmente sem sair completamente do corpo da vítima – por isso só havia uma ferida em forma de andorinha – em face do tamanho da vítima que, relembre-se, tinha de altura 1,80m e pesada bem mais de 100 kgs, teria de implicar que a vítima estivesse a ser segurada.

O que só é consentâneo com a percepção do CC quando diz que vê o DD ainda embrulhado com o arguido BB.

Se o DD tivesse sido esfaqueado pelo AA teria este, logo após ter esfaqueado o CC pelas costas, de ganhar equilíbrio, pois o movimento de lançar uma faca para dentro de um corpo musculado e retirá-la carece de força e agilidade, correr para junto do DD, que estaria a uns 4 a 5 metros, enfrentar um homem com 1,80m de altura e mais de 100 kgs de peso sendo que as fotografias da autópsia revelam também o tamanho físico da vítima – quando o arguido AA afirmou que tive medo do CC porque este era maior e mais forte – lançar-se sobre o mesmo e segurá-lo de modo a conseguir retirar a faca parcialmente, num movimento rápido, e alterar-lhe a trajectória dentro do corpo da vítima.

Ora, neste cenário pergunta-se o que estava a vítima DD a fazer?

Estava ali convenientemente parado à espera que o arguido AA se lançasse sobre si?

Quando todos os relatos são unânimes de que perseguia o arguido BB.

E deixaria, então, do nada de perseguir o BB?

Note-se que, na versão do arguido BB, o mesmo diz que está a fugir e que, a partir de determinada altura, deixou de ouvir passos atrás de si, pelo que, pára e olha para trás, e é quando alegadamente vê o arguido AA esfaquear o CC e depois o DD.

Mas, se assim foi, o que é que fez o DD deixar de perseguir o arguido BB e estar calmamente ali à espera que o AA o esfaqueasse?

E vendo o AA lançar-se sobre si, pois a ferida foi sofrida no peito, pelo que o AA estaria de frente para a vítima, esta não reage, não se defende e deixa-se ser golpeado?

Quando muito, fugiria como fez o CC mas, aí, receberia com a faca também pelas costas.

Não faz sentido.

O único cenário consentâneo, quer com a dinâmica inicial dos factos – as duas vítimas perseguem cada uma o “seu” arguido – quer com a natureza e localização dos ferimentos – no CC nas costas e no DD no peito, com a particularidade de haver uma ferida mas duas entradas num movimento rápido e subtil – bem como com a diferença física entre arguidos e vítimas, é o cenário percepcionado pelo CC que é o mais lógico.

Isto é, cada um persegue o “seu” arguido, os mesmos a determinada altura param, viram-se para as respectivas vítimas, o CC vendo a navalha abrir na mão do AA vira-se para fugir mas bate com o joelho e cai, sendo aí, nesse momento, atingido pelas costas pelo AA enquanto, em simultâneo, o DD embrulha-se com o BB e nessa luta é perfeitamente possível o BB ter introduzido a faca no corpo da forma como se mostra relatado na autópsia.

Tanto mais que, do relatório da autópsia consta a existência de escoriações nos braços da vítima consentâneas com uma “rixa”.

Ora, o Tribunal a quo não terá valorado o depoimento da vítima CC quando este diz, nas declarações para memória futura, que quando cai – portanto antes de receber a facada – olha e vê o amigo DD embrulhado com o outro arguido, que sabemos só podia ser o arguido BB porquanto o HH perseguia o BB, enquanto que o CC perseguia o AA.

Disso não há a menor dúvida, tanto que o CC afirma nas suas declarações para memória futura que não tem dúvida que o DD foi para o lado do moreno (BB) e o louro (AA)  ficou no seu lado.

Ora, não se compreende porque o Tribunal a quo não valorou esta parte do depoimento do assistente, porquanto o testemunho da vítima CC, neste ponto é claro e seguro, aliás, a vítima CC repete mais do que uma vez esta sequência.

Sendo que CC diz que não tem dúvida quando “na fracção de segundo que faz a rotação” vê o DD embrulhado com o outro arguido.

Por outro lado, pelo depoimento da testemunha DDD prestado perante magistrado do MºPº, este foi claro ao referir que viu as duas vitimas caírem, quase em simultâneo, facto que a vítima CC disse ter-lhe sido dito por esta vítima após a ocorrência dos factos.

Ora, se cada uma das vítimas está a perseguir um arguido, e se cada arguido está “entretido” com a sua vítima, e ambas as vítimas caem quase em simultâneo, logicamente e de acordo com as regras da experiência, cada arguido atingiu a sua respectiva vítima.

Veja-se, quando o CC cai ainda não recebeu a facada, porque não é a facada que o faz cair, antes o facto de ter tropeçado no banco com o joelho.

Quando o CC, caído, olha e vê o seu amigo DD ainda envolvido com o arguido BB.

Caindo a vítima DD logo de seguida, pois tendo o CC caído reparou que o amigo ainda estaria de pé agarrado ao arguido BB, pelo que a queda da vítima DD teria de ter ocorrido logo a seguir, daí a testemunha DDD – que foi insultado em pleno julgamento por alguém da assistência que assim foi expulsa do julgamento – ter dito que a imagem que retinha era que ambos tinham caído quase em simultâneo.

É certo que a testemunha HH referiu que quem viu “engalhado” era o CC com o arguido louro mas, admite-se como possível, dado que a vítima CC não descreve qualquer intervenção dessa natureza com o arguido AA, que a situação visualizada fosse antes entre o DD e o arguido BB e que, na realidade quem ele viu foram estes últimos dois e não aqueles, tanto mais que esta testemunha diz que vê o HH cair e o CC engalhado quando quem terá caído primeiro foi o CC estando do HH envolvido com o BB.

Ora, ainda que ninguém tenha visto o arguido BB com uma navalha – note-se que os arguidos não mostraram terem armas consigo sendo que o CC só viu quando o AA lha mostrou – e muito menos viram o BB a golpear o HH, pela sequência lógica da dinâmica dos factos e pela percepção com que o CC ficou, dúvidas não podem existir que, estando o AA com o CC em quem espeta uma faca pelas costas, e o HH envolvido com o BB, caindo logo de seguida, que só o BB é que podia alguma vez ter atingido o DD.

É por isso que a vítima CC quando explica a razão pela qual afirmou na PJ que tinha a certeza que o BB atingiu o DD é porque, daquilo que viu e viveu, o AA esteve sempre consigo, enquanto que o HH esteve sempre com o BB.

Nem daria tempo ao AA fazer o movimento de golpear o CC, que é fisicamente maior e mais forte, com o natural atrito que o corpo da vítima implica para a acção perfurante, retirar a navalha e logo de seguida, correr uns 4-5 metros (distância que o CC diz ter estado do HH) e atingir o HH no coração.

Até porque, o DD foi golpeado duas vezes, num movimento rápido e sequencial que terá produzido apenas uma ferida não tendo o arguido retirado a faca totalmente da primeira vez quando investe uma segunda – cfr. relatório de autópsia e esclarecimentos do perito QQ – algo que, tivesse sido o AA a fazer, o arguido BB não podia ter visto, segundo afirmou nas suas declarações, estando do outro lado da rua a uma distância de 5 a 6 metros, sendo que o movimento dos golpes foi rápido e estava escuro.

O que nos traz à faca entregue pela defesa do arguido BB.

Ora, não faz qualquer sentido a versão apresentada pelo arguido BB e familiares quanto ao modo como a faca lhes chegou à posse tendo o Tribunal a quo, e bem, referido a este propósito que:

A versão que o mesmo arguido apresentou nas declarações prestadas em sede de instrução e em audiência, no sentido de que a referida faca foi atirada pelo AA para um monte, existente nas proximidades da casa do irmão do arguido BB, local para onde os arguidos e FF se dirigiram após os factos e onde estava preparada uma festa de aniversário para a FF, versão que foi corroborada pelos depoimentos das testemunhas FF e pelas testemunhas de defesa arroladas pelo arguido BB, pai e irmãos deste, não se afigura plausível, nem credível.
Os depoimentos a este respeito prestados pelas referidas testemunhas, para além de divergentes entre si em vários aspectos, revelaram-se inconsistentes, não convencendo da sua veracidade, não sendo capazes de explicar por que motivo, tendo assistido ao que afirmaram ter assistido, e sabendo, segundo afirmaram, onde se encontrava a dita navalha, não comunicaram tal facto às autoridades.
Acresce que nas declarações prestadas em primeiro interrogatório o arguido BB não se reportou à referida navalha, sendo certo que tal interrogatório foi precedida de contacto telefónico estabelecido pela então Exma Defensora do arguido com o Inspector chefe da PJ, anunciando a intenção de o arguido se entregar, por pretender colaborar com a investigação uma vez que não teria sido o responsável por qualquer das agressões com arma branca sobre a vitima destes autos - cf. cota de fls. 224, lavrada a fls. 20.02.2023
Como é evidente, a colaboração com as autoridades e a elucidação dos factos ocorridos, implicaria que, sabendo onde se encontrava a navalha que teria constituído o instrumento dos crimes, conforme posteriormente afirmou, o relatasse às autoridades logo nessa altura, por forma a que a mesma fosse apreendida por estas e assegurada a cadeia de custódia desse elemento de prova. Assim como implicaria, uma vez que optou por prestar declarações, que o que posteriormente relatou quanto a ter sido o arguido AA o autor das agressões aos ofendidos, a que se afirmou alheio, tivesse sido logo na altura relatado, contribuindo, assim, como anunciou pretender fazer, para a descoberta dos factos e para a conclusão de não ter sido, como sustentou, o autor de qualquer das agressões.
O arguido BB, mesmo depois da apresentação do arguido AA às autoridades em 11.03.2023, e subsequente sujeição a prisão preventiva, apenas em 10.06.2023 (por e-mail que antecedeu o requerimento de 12.06.2023) manifestou a intenção de apresentar a navalha que veio a ser apreendida nas circunstâncias acima descritas, e apresentou a versão acima referida, no sentido de ter sido o arguido AA o autor das agressões, usando a navalha referida.

Aliás, tivesse a faca sido assim atirada para o monte conforme referido, teria de ter, no mínimo, as impressões digitais do AA ou algum vestígio seu, dado que nem o sangue na lâmina foi limpo, contudo, da análise efectuada à faca, não haviam quaisquer vestígios no cabo, nem em nenhuma outra parte da faca pertencentes ao AA, havendo apenas sangue da vítima mortal DD na lâmina.

Por outro lado, considerando que consta dos autos que o AA vendeu o carro utilizado na fuga, três dias depois, em 15-03-2023, alterou a cor do cabelo e até fez uma tatuagem, tudo indicativo de querer apagar qualquer vestígio que o pudesse ter ligado ao fatídico dia em questão, mas depois não tem qualquer problema em deixar à mão de semear a faca do crime ademais ainda com vestígios de sangue da falecida vítima?
Não faz qualquer sentido.

Pelo que há que perguntar porque motivo o arguido BB, ou seus familiares, estariam na posse de tal faca.

Mais importante ainda é o facto de ter sido claramente detectado sangue da vítima mortal DD e apenas sangue desta vítima.

Ora, o arguido BB disse que o AA havia espetado a vítima CC e de seguida golpeou o DD, sendo que sabemos que os golpes desta vítima foram fatais.

Portanto, o arguido BB imputa ao primo a execução dos dois crimes.

Contudo, a navalha entregue só tinha sangue da vítima mortal.

E, se é verdade que a perita LL, ouvida em declarações em julgamento referiu que o facto de não haver vestígios de sangue do CC não permitia afastar a possibilidade de tal faca ter sido utilizada para também esfaquear esta vítima – tudo dependia se a faca tivesse sido previamente limpa entre esfaqueamentos –  não é menos verdade que a amostra recolhida foi “limpinha” ou seja, o ADN encontrado foi uma amostra isenta de contaminação.

Ora, sabemos que, a ter sido utilizada a mesma faca para golpear ambas as vítimas, com segundos de intervalo, que haveria sempre mistura de vestígios, algo reconhecido pela perita pese embora um dos vestígios, o adquirido em último lugar, pudesse hipoteticamente “apagar” o primeiro.

Contudo, um ADN não “apaga” outro, pois o ADN não desaparece da faca; quando muito, o segundo ADN pode mascarar o primeiro de modo a tornar impossível identificá-lo.
 
Mas haverá sempre contaminação de ADN’s, tanto que a perita, embora dizendo que não podia excluir a hipótese da faca ter sido previamente utilizada em outra vítima – com esse raciocínio também não se consegue excluir a hipótese da faca de ter cortado uma banana ou descascado uma maçã – também não podia garantir que o tivesse ocorrido.

Ora, a perita foi bem clara – minutos 7:45 e ss – ao afirmar que o ADN que isolaram era um perfil “limpinho” isto é, não continha contaminantes estranhos como pedaços de outro ADN.

Sendo o perfil limpinho só podemos concluir que apenas o sangue do DD – vítima mortal – é que sujou a dita lâmina pois, em termos de normalidade, a ter havido mistura de sangues, e isso teria de ter ocorrido tivesse a arma sido utilizada para esfaquear o CC e logo de seguida o HH, como afirma o BB, então o perfil encontrado nunca seria “limpo”.

Assim, ainda que, hipoteticamente, não se pode excluir tout court que o facto da faca não conter vestígios do sangue do CC que não pudesse ter sido utilizada para esfaquear o CC, contudo, sabendo que a faca não teria sido limpa entre facadas e que o perfil detectado foi limpinho e de um único indivíduo, reduzem-se as possibilidades do “não se pode excluir” para o campo das improbabilidades, isto é, de que é altamente improvável que a faca tenha sido a mesma.

O que afasta a tese do BB de que ambas as vítimas foram atingidas pela mesma arma.

Por outro lado, a arma entregue nos autos era manual, tendo de ser aberta com duas mãos contudo, a arma descrita pelo CC nas suas declarações para memória futura, é uma arma de abertura fácil, uma vez que o CC não hesitou em descrevê-la assim, dizendo que o arguido AA tinha a arma na mão, de início até lhe pareceu um isqueiro, e que, de um momento para o outro, a arma abre à sua frente (minutos 21:06 a 21:16).

Pelo que podemos concluir com a segurança necessária que cada arguido tinha a sua arma, não tendo o CC sido esfaqueado com a arma utilizada para atingir o DD.

Argumentou ainda o BB que a faca entregue pela sua defesa, e que se confirma pela análise nela efectuada, tem a ponta partida e que isso teria ocorrido precisamente porque o AA, ao espetar o CC, partiu a ponta quando esta embateu no arco costal e, por isso, ao espetar o HH já a lâmina estava partida.

Contudo, esse cenário teria de implicar que a ponta da navalha estaria alojada no corpo do CC o que não ocorreu, não tendo sido detectado qualquer elemento metálico na zona da lesão que pudesse confirmar esse cenário.

Pelo que, também quanto a este aspecto o relato do arguido BB não merece qualquer credibilidade.

Assim, trabalhando com dados objectivos o que temos é:

- na prática a faca só continha ADN da vítima mortal;
- esse perfil era limpo, portanto não havia contaminação de outros ADN’s;
- a faca entregue nos autos era de abertura manual obrigando à utilização de duas mãos enquanto que a faca visualizada pelo CC era de abertura rápida.
- a faca estava na posse do BB.

Logo, cada vítima foi atingida por faca diversa.

E, se assim é, então cada vítima foi atingida pelo respectivo arguido que perseguia, isto é, cada arguido atingiu a sua respectiva vítima.

Disto não pode haver dúvidas, que este é o único cenário consentâneo com a lógica da dinâmica dos eventos, do desenrolar dos movimentos dos quatro intervenientes –  os dois arguidos e as duas vítimas – das posições relativas dos mesmos, e daquilo que foi directamente testemunhado, quer pelo CC, quer pelo DDD.

Salvo o devido respeito, não conseguimos sufragar o entendimento do Tribunal a quo para afastar a faca apreendida nos autos como sendo a arma do crime que vitimou o DD quando o mesmo diz:

“Apresenta vestígios hemáticos apenas do ofendido DD, conforme também resulta dos exames periciais efectuados.
Tal circunstância, por si só, no circunstancialismo descrito, não comprova que tenha sido o instrumento usado para golpear DD, bem podendo os vestígios hemáticos referidos resultar de outra qualquer ocorrência, designadamente do contacto da dita navalha com roupa envergada pelos arguidos, tanto mais que a infeliz vitima sangrou abundantemente, como resulta dos vestígios recolhidos, sendo natural que o sangue tivesse atingido o vestuário do agressor.”

Então o sangue na faca não prova que tivesse sido o instrumento para golpear o DD mas já prova que o agressor sujou a faca com sangue da vítima que lhe espirrrou para a sua roupa?

Mas se espirrou sangue para a roupa do próprio arguido, então é porque o arguido atingiu a vítima com a dita faca, ou pelo menos, que o arguido agrediu a vítima, caso contrário não teria sangue na sua própria roupa.

Por isso, se nos afigura acertada a observação efectuada pelo MºPº nas suas 40ª a 43ª conclusões quando diz:

“40. Ora, quem veio trazer ao processo a faca/navalha com vestígios hemáticos apenas e só do falecido DD, mostrando ter acesso e total disponibilidade sobre a mesma, foi precisamente o suspeito de ter praticado o crime, aquele (o moreno, o BB) a quem foi atribuída toda a interacção com o falecido.
41. Se é certo que não foi assegurada a cadeia de custódia, como bem se refere no acórdão, percecionar esta prova como possivelmente forjada também nos parece inverosímil e impraticável, à luz das regras da experiência, desde logo, porque pressupunha que os familiares do arguido BB, de algum modo tivessem mantido acesso ao sangue do falecido, 4 meses depois.
42. A que acresce que se a pretensão era fazer acreditar o Tribunal a quo que aquela navalha tinha sido utilizada tando para agredir o ofendido CC como o falecido, se era para forjar prova nesse sentido, sempre seria de obter também vestígios hemáticos de CC e coloca-los na navalha juntamente com os de DD, o que mais uma vez nos parece inverosímil e impraticável.
43. Assim, a navalha apreendida deveria ter sido considerada como a utilizada por BB para desferir os golpes letais em DD, como descrito nos factos, que supra indicamos como devendo ser dados pelo Tribunal a quo.”

Aliás, a não ser que as autoridades policiais confisquem a arma do crime no momento da sua prática, haverá sempre quebra da cadeia de custódia, pelo que este argumento não pode servir para simplesmente se descartar uma prova objectiva que existe nos autos.

Nem do exame realizado na arma resulta que a mesma tivesse estado ao sol e à chuva em cima de um monte, algo que teria de ter sido detectado, mormente, sinais de ferrugem na lâmina e vestígios de terra ou pó onde a arma supostamente teria estado, ademais durante 4 meses.

O facto dos documentos pessoais do AA terem estado caídos na passadeira junto aos alguns vestígios hemáticos da vítima mortal DD (houve vestígios espalhados pela rua em diversos locais) de per se também não permite afastar o único cenário lógico supra explanado porquanto, com a fuga que o arguido AA encetou – o CC diz que ele foi na direcção do BB e os dois fugiram para a esquerda – esses documentos, que estariam numa bolsa plástica, poderiam ter caído com toda a facilidade.

Sendo que, dita a lógica, o mais provável é terem caído no momento em que o AA saca da navalha para a apontar ao CC.

Se os documentos caíram nesse momento, e este é o cenário mais consentâneo com as regras da lógica pois, o AA teria de ter aberto a bolsa que consigo trazia e, ao dela retirar a arma que até então estava oculta – as testemunhas são unânimes em dizerem que não viram os arguidos com armas no bar – poderia, com toda a facilidade, até porque era de noite, ter inadvertidamente feito a bolsa com os documentos cair com o movimento de retirar outro objecto da bolsa, e, assim, concluir-se então que os documentos caíram no momento em que o AA está com o CC e não com o DD que, nesse preciso momento, está envolvido com o BB.

Os documentos terão, assim, caído na interacção com o CC e não com o DD.

Quanto à posição assumida pelo arguido BB ao longo do processo e reiterado na sua resposta aos recursos, uma situação em que o mesmo insiste para demonstrar que  a vítima CC não merece credibilidade, prende-se que o motivo oferecido por este para a fuga dos arguidos logo a seguir a terem sido expulsos do EMP01...: afirma o CC que os arguidos fugiram porque não queriam pagar os respectivos consumos enquanto que o BB diz que isso é uma explicação sem fundamento lógico atendendo ao facto de ter deixado no bar o seu telemóvel que vale muito mais do que qualquer consumo em dívida.

Ora este argumento é falacioso uma vez que, pese embora o BB tenha inadvertidamente deixado o seu telemóvel no EMP01..., não soube que o tinha feito, resultando das suas declarações que pensou que tivesse perdido o telemóvel no percurso da fuga.

Por outro lado, o arguido BB refere que não tinha sítio para guardar uma arma consigo, contudo a sua namorada, FF, perante a PJ (diligência de 23-02-203 – fls. 237 e ss)  descreveu com todo o pormenor a roupa que o BB trajava nesse dia relatando que também tinha na sua posse uma bolsa tipo necessaire da ....

As explicações oferecidas pelo arguido BB não têm, assim, qualquer suporte na lógica nem nas regras da experiência comum.

Pelo que, e salvo o devido respeito, o Tribunal a quo errou quando não fixou como provados os factos tendentes a imputar ao arguido BB a prática do homicídio na vítima DD.

Por outro lado, não se nos afigura possível afirmar que o arguido BB tenha agido apenas com dolo eventual, dada a natureza da ferida sofrida pelo DD.

Note-se que do relatório da autópsia, e dos esclarecimentos do respectivo perito QQ, sabemos que houve uma primeira entrada pela faca que segue uma determinada trajectória, que não seria mortal para a vítima, uma vez que nenhum órgão foi atingido, depois, num movimento rápido e sequencial a lâmina é parcialmente removida e novamente inserida – daí só existir uma ferida ou um orifício – desta vez em nova trajectória que já atinge, em cheio, ambos os ventrículos do coração e ainda pica parte do fígado.

É este segundo movimento, esta segunda investida na vítima que nos leva a concluir, com segurança, que o BB queria mesmo matar a vítima, se não, se fosse só um acto do momento, teria feito um golpe e deixado a vítima, como fez o AA.

Mas, ao invés, o BB, para se certificar faz um segundo golpe, logo de seguida – o relatório da autópsia fala num movimento rápido e só podia ser para explicar o motivo pelo qual a lâmina não é totalmente retirada entre os dois golpes – virando a trajectória para o lado do coração.

Dada a natureza do ferimento, as duas trajectórias seguidas pela faca num movimento quase único em que a lâmina só sai parcialmente, não pode haver qualquer dúvida que o arguido BB quis atingir o HH mortalmente, não se limitando a se conformar com esse resultado.
 Assim, atentos os elementos trazidos pelos recorrentes – MºPº e assistentes, pais do falecido DD – os quais, conjugados com as regras da experiência comum, da lógica, da dinâmica dos acontecimentos e do normal decorrer das coisas, altera-se (parcialmente) a matéria de facto nos termos requeridos, passando a constar dos factos provados os seguintes factos:

f) Na altura em que o ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos tinham facas, o DD já se encontrava perto da passadeira situada ao lado do ecoponto e a cerca de cinco metros daquele, junto ao arguido BB. (1.18 a)
g) O arguido BB envolveu-se, nessa ocasião, em agressões físicas com o ofendido DD. (1.18 b)
i) O arguido BB desferiu dois golpes no ofendido DD, usando uma navalha com cabo de madeira que trazia consigo, descrita no auto de exame directo de fls. 796 a 797. (1.19 a)
j) O ofendido DD sofreu as lesões descritas em 1.22., que causaram a sua morte, em consequência de golpes de navalha perpetrados pelo arguido BB. (1.19 b)
m) O arguido BB agiu livre e deliberadamente, tendo infligido dois golpes de faca na zona onde se situam órgãos vitais, e que tal conduta era acto idóneo a provocar tal resultado, a morte, o que quis. (1.31 a)

Na sequência de tal e, só por mero lapso é que não terá constado dos factos dados por não provados no acórdão recorrido que o arguido BB sabia que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei, há que também dar agora este facto por provado, por indissociável do facto vertido em m), passando ser o facto 1.31-b).

Passando os novos factos provados a ter a seguinte sequência numérica, estando a negrito os factos novos que agora transitam para a matéria de facto provada:

1.18. O ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos estavam armados com facas.
1.18-a) Na altura em que o ofendido CC gritou para o ofendido DD que os arguidos tinham facas, o DD já se encontrava perto da passadeira situada ao lado do ecoponto e a cerca de cinco metros daquele, junto ao arguido BB.
1.18-b) O arguido BB envolveu-se, nessa ocasião, em agressões físicas com o ofendido DD.
1.19. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, o ofendido DD, quando se encontrava junto da passadeira que atravessa a Rua ..., situada ao lado ecoponto, sofreu dois golpes, desferidos com um instrumento corto-perfurante, de forma consecutiva e rápida, através do mesmo orifício, tendo caído inanimado no chão, após percorrer, a cambalear, alguns metros junto à parede que ladeia a Alameda ..., pelo lado esquerdo (tendo em conta o sentido EMP01... - Rua ...).
1.19-a) O arguido BB desferiu (os) dois golpes no ofendido DD, usando uma navalha com cabo de madeira que trazia consigo, descrita no auto de exame directo de fls. 796 a 797.
1.19-b) O ofendido DD sofreu as lesões descritas em 1.22., que causaram a sua morte, em consequência de golpes de navalha perpetrados pelo arguido BB.
(…)
1.22. Em consequência dos golpes de navalha que o atingiram, o ofendido DD sofreu um traumatismo de natureza corto-perfurante na região torácica (região sub-mamária esquerda), com um orifício em forma de cauda de andorinha, com o comprimento aproximado de 2,3cm, por 0,4 cm de largura, cuja extremidade medial dista 25 cm da cicatriz umbilical e 5,5 cm do mamilo esquerdo; tendo ainda provocado a laceração dos ventrículos do coração, lesões essas que foram causa directa e necessária da morte do ofendido, declarada no Hospital ..., pelas 00h40m do dia 13 de Fevereiro de 2023.
(…)
1.30. O arguido AA, ao actuar conforme descrito em 1.16 e 1.17., agiu livre e deliberadamente, admitindo como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte do ofendido CC, bem sabendo que lhe infligia golpe com instrumento corto-perfurante em zona onde se situam órgãos vitais, e que tal conduta era acto idóneo a provocar tal resultado, conformando-se com essa possibilidade.
1.31. Sabia o arguido AA que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.
1.31-a) O arguido BB agiu livre e deliberadamente, tendo infligido dois golpes de faca na zona onde se situam órgãos vitais, e que tal conduta era acto idóneo a provocar tal resultado, a morte, o que quis.
1.31-b) Sabia o arguido BB que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Não se nos afigura necessário dar como provados os factos vertidos em dd)O arguido BB não tenha praticado os factos de que vem pronunciado – e em ee) – O arguido BB não tenha tido em 12.02.23 qualquer gesto agressivo com quer que seja, nem tenha tido nas suas mãos qualquer navalha, nomeadamente a examinada a fls. 796 a 797 dos autos – conforme peticionado pelos assistentes porquanto tais factos são absorvidos pelos restantes entretanto considerados provados.

Por fim, e no que tange ao facto não provado vertido em n) Os arguidos tenham sido movidos por sentimentos de vingança, por terem sido explusos do estabelecimento EMP01... para evitar o pagamento da diminuta quantia das duas bebidas ali consumidas (cerca de 8 €) – que o MºPº pretende seja aditado ao rol dos provados, afigura-se-nos, modestamente, não resultar da prova escalpalizada nos autos, convicção segura para deferir o pretendido.

Veja-se que o facto em causa se insere no mundo interno da psique dos arguidos, naquilo que teriam concretamente sentido aquando do desferimento, respectivo, dos golpes que atingiram as duas vítimas.

Mesmo que se aceite como plausível que os arguidos fugiram para não quererem pagar os consumos, e que pudessem ter-se sentido discriminados por terem sido os únicos expulsos quando, na sua óptica, os ... também tinham contribuído para o mau ambiente dentro do bar, a verdade é que ambos os arguidos passaram a ser perseguidos e foi na sequência da perseguição que terão sacado das facas.

Por outro lado, o Tribunal a quo já deu como provado o seguinte facto, o qual não foi impugnado:
1.28. Os arguidos ficaram desagradados e agastados por terem sido expulsos do estabelecimento EMP01....

Sendo que, todo o clima prévio era de tensão e agitação, não sendo possível, assim, com a segurança que o direito penal exige, a partir das certezas que já temos, extrapolar para aquilo que os arguidos teriam em mente quando cada um esfaqueou a sua vítima.

Procede, assim, em parte a impugnação da matéria de facto apresentada pelos recorrentes MºPº e assistentes DD e EE.

III. b) Da natureza dos crimes imputados aos arguidos:
- recurso do MºPº

Entende o MºPº que aos arguidos deve ser imputada a prática de um crime de homicídio qualificado nos termos do artº 132º nº 2 al. e) do Código Penal, na forma tentada em relação ao arguido AA e na forma consumada em relação ao arguido BB.

Vejamos, olhando primeiro as considerações tecidas pelo Tribunal a quo no acórdão recorrido:

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

1. Enquadramento fáctico-jurídico:
O despacho de pronúncia proferido nos presentes autos delimita o objecto do processo.
Proceder-se-á à análise, ainda que sucinta, dos elementos que preenchem cada um dos tipos de ilícito pelos quais os arguidos estão pronunciados e ao enquadramento das condutas de cada um dos arguidos e apuramento das respectivas responsabilidades.
1.1.
Crime de ofensa à integridade física:
O direito à integridade física é um direito constitucionalmente consagrado (artigo 25º da Constituição da República Portuguesa) e, como tal, inviolável, pertencendo a um núcleo de direitos, liberdades e garantias merecedores de tutela penal.
Dando consagração a esta tutela constitucional, o Código Penal consagra um capítulo aos crimes contra a integridade física, que se inicia com o artº 143º, o qual contém o tipo fundamental doloso, na forma de ofensa à integridade física simples, constituindo a “ofensa ao corpo ou à saúde de outra pessoa” o elemento comum as form É indiscutível que o bem jurídico protegido através deste tipo legal é a integridade física de outra pessoa, na dupla vertente bem estar do corpo e da saúde.
Trata-se de crime de material ou de dano, que abrange um determinado resultado - lesão do corpo ou saúde de outrem.
No que ao caso interessa, assinale-se que o tipo legal do art.º 143º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor e sofrimento causados.
Por outro lado, não revelam, para preenchimento do tipo objectivo do ilícito, os meios usados pelo agressor ou a duração da agressão.
O tipo legal do art.º 143º do CP exige o dolo em qualquer das suas modalidades (art.º 14º do CP).
Crime de detenção de arma proibida:
Estipula o artigo 86.º, n.º 1, d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que comete tal crime:
«Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)
al d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias”.
O ilícito em apreço configura um crime de perigo abstracto, bastando para consumação do tipo de crime a adopção de uma das condutas típicas, consideradas perigosas, independentemente da lesão do bem jurídico protegido.
O legislador entendeu que estas condutas são de tal modo potencialmente perigosas que antecipa a tutela penal não exigindo a lesão de um bem jurídico para a consumação do crime.
O que se pretende com a incriminação em causa, é assegurar o controlo do Estado sobre a existência de armas em poder de particulares, obviando, assim, à disseminação destas pela sociedade, de forma indiscriminada e incontrolável, assim se prevenindo a lesão de bens jurídicos que podem ser postos em causa com esse tipo de comportamento.
É um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção, tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidades públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas
São elementos objectivos constitutivos do crime de detenção de arma proibida a prática de uma das condutas típicas: (quem) detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo” armas ou instrumentos descritos no tipo.
Quanto ao elemento subjectivo exige-se o dolo, sendo que no caso se apurou que o arguido quis deter as armas de fogo e as munições que lhe foram apreendidas, bem sabendo que não se encontrava para tanto habilitado, e conhecendo o carácter ilícito da detenção das armas e munições, verificando-se assim preenchido o elemento subjectivo na modalidade de dolo directo.
Crime de homicídio:
Dispõe o art.º 131º do Código Penal, que "Quem matar outra pessoa é punido com pena de pisão de 8 a 16 anos".
O tipo legal fundamental matricial do crime de homicídio está aqui consagrado, protegendo-se o bem jurídico vida. O tipo objectivo consiste em matar outra pessoa. No plano subjectivo, trata-se de um crime doloso, abrangendo o dolo em qualquer das suas modalidades (directo, necessário e eventual) - artºs 13º e 14º do CP.
O art.º 132º do Cód. Penal prevê uma forma agravada do homicídio simples, recorrendo para o efeito a um critério generalizador e descrito com recurso a conceitos indeterminados, determinante de um tipo de culpa agravada. Aí se prescreve: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.” (nº 1).
“É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior ,entre outras, a circunstância de o agente: “(…) e) ser determinado (…) por qualquer motivo torpe ou fútil”
De acordo com o ensinamento da generalidade da doutrina, reiteradamente seguido jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a partir do tipo de homicídio do art.º 131º do C. Penal, o art.º 132º do mesmo diploma legal prevê e pune um homicídio qualificado que resulta de a morte ter sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade (tipo de culpa, constituído por uma cláusula geral, contida no nº 1), fornecendo o legislador um enunciado, meramente exemplificativo, de circunstâncias susceptíveis de revelarem especial censurabilidade ou perversidade (nº 2).
O método de qualificação combina um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica dos exemplos-padrão. A qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral, descrito com conceitos indeterminados (n.º 1), cuja verificação é indiciada por circunstâncias, umas relativas ao facto, outras ao autor, elencadas no n.º 2, a título exemplificativo, os renomados exemplos-padrão. São estes que dão estrutura, delimitando-os também, àqueles conceitos abertos de especial censurabilidade ou perversidade, embora de modo não automático.
Por conseguinte, as circunstâncias enunciadas no citado normativo não são taxativas e não operam automaticamente.
A verificação das circunstâncias enunciadas no nº 2 do art.º 132º – ou situação valorativamente análoga - constituiu um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade que fundamenta a moldura penal agravada, impondo-se, sempre, contudo, para o preenchimento do tipo de ilícito homicídio qualificado, a conclusão pela verificação, no caso concreto, da cláusula geral prevista no n.º 1 do referido art.º 132.º, n.º 1, do C.P. , ou seja, pela “especial censurabilidade ou perversidade” (cf. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Livraria Almedina, 1995, pág. 66).
No homicídio qualificado, o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao julgador concluir pela aplicação do artigo 132º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou outra circunstância susceptível de preencher o Leitbild dos exemplos-padrão” (Teresa Serra, op.cit., pág. 64), ou, segundo Figueiredo Dias, “o que motiva a agravação … tem a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples”. («Homicídio qualificado», Colectânea de Jurisprudência, ano XII – 1987, tomo 4, pág, 52).
Tendo em conta as circunstâncias que, atento a factualidade provada, o caso concreto convoca, importa ainda referir sucintamente o seguinte:
Motivo torpe ou fútil» é «o motivo da actuação que, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana» (in FIGUEIREDO DIAS, "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, págs. 32-33).
Como se assinala no Ac. do STJ, de 17.01.2007 (disponível, como os demais citados sem distinta indicação em www.dgsi.pt) :«Na doutrina, tem sido atribuído ao motivo fútil o alcance de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana. A nossa jurisprudência, a tal respeito, não se dissocia desse entendimento, identificando o motivo fútil não tanto pelo seu pouco relevo ou importância, mas sim pela «desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal em que ela se objectivou: no fundo o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade»
No que tange ao tipo subjectivo, importa apurar se a situação, correspondente a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga, foi representada pelo agente e, se assim foi, se a mesma é susceptível de revelar uma situação de especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Por último, como é sabido, crime de homicídio é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, e de resultado, quanto ao objecto da acção.
Há tentativa, quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se - artº 22º, nº 1, do CP

E explicita o n.º 2 do mesmo normativo o que são actos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores
*
1.2. Apreciando a conduta dos arguidos que resultou comprovada, à luz do que acima se expôs.
Quanto ao arguido BB:
Conforme resulta da factualidade que acima se deixou elencada, não ficou provado ter sido o arguido BB o autor dos golpes, com instrumento corto-perfurante, que causaram a morte da infeliz vitima DD, pelas razões que acima se deixaram elencadas em sede de motivação da matéria de facto
Não se tendo provada a factualidade a este respeito imputado ao arguido BB no despacho de pronúncia, forçoso é concluir pela absolvição do crime de homicídio qualificado pelo qual vinha pronunciado.
Quanto ao arguido AA:
Não se provou que o arguido AA tdetivesse e tivesse usado uma face de ponta e mola.
Não se provou a natureza e características do instrumento corto-perfurante usado pelo arguido para desferir o golpe no ofendido CC.
E, assim sendo, não se pode ter por verificado o crime de detenção de arma proibida pelo qual vinha pronunciando, impondo-se nesta parte a sua absolvição.
*
Não oferece qualquer dúvida que o arguido AA ao agir, de forma livre e deliberada, desferindo um soco na face de CC, conforme descrito em 1.11. supra da factualidade provada, fazendo-o com o propósito concretizado de afectar o referido ofendido na sua saúde física, sabendo que da sua conduta resultariam lesões para o referido ofendido, agindo ainda ciente do caracter proibido da sua conduta, praticou o crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º do CP, pelo qual vinha pronunciado.
Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, designadamente legitima defesa ou excesso de legitima defesa, invocados pelo arguido.
Com efeito, como é consabido e decorre do disposto nos artºs 31º a 33º do Código Penal, são requisitos da legitima defesa: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do agente ou de terceiro, que deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou eminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão; c) "Animus defendendi", ou seja, o intuito de defesa por parte do dependente.
A legitima defesa exclui a ilicitude do acto praticado, enquanto o acto praticado com excesso de legitima defesa se situa ao nível da culpa.
O excesso de legitima defesa pressupõe a verificação de todo o condicionalismo da legitima defesa, reportando-se ao excesso dos meios empregados que pode conduzir à atenuação especial da pena e, sendo determinados por perturbação, medo ou susto não censuráveis, pode isentar o agente da pena por falta de culpa.
Ora, como resulta da factualidade provada e não provada, a conduta do arguido ao agir do modo descrito, não se destinou a repelir qualquer agressão actual, designadamente ao seu primo BB e namorada, como invocou, nem à mesma presidiu qualquer propósito defensivo.
Não se verificando os pressupostos da legitima defesa, não se verifica de igual modo o excesso de legitima defesa, que pressupõe aquela.
*
Face à factualidade provada, não oferece dúvida que o arguido AA preencheu de igual modo a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de homicídio, p. e p. pelo art.º 131º do CP, na forma tentada, na pessoa do ofendido CC.
Com efeito, o arguido praticou actos de execução do crime de homicídio, idóneos a produzir o resultado morte, na pessoa do assistente CC, desferindo-lhe, com uma faca, um golpe na região dorso/lombar esquerda, onde se alojam órgãos vitais, como sabia, fazendo-o quando o ofendido se encontrava de costas e caído de joelhos no chão.
Não obstante as lesões sofridas pelo assistente, o resultado morte não se verificou, por razões alheias à vontade do arguido, sendo certo que o golpe desferido no corpo do ofendido era apto a provocar uma laceração do pulmão, o que, a suceder, provocaria a sua morte.
Agiu o arguido de forma livre deliberada e consciente, ciente do caracter proibido da sua conduta, admitindo como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte do assistente CC.
Agiu, por conseguinte, quanto a este ilícito, o arguido AA com dolo eventual, i.e., na definição legal contida no art.º 14º, nº 3, do CP, representando como consequência possível da sua conduta a morte do arguido, actuando do modo descrito, conformando-se com tal resultado.
Perante esta factualidade, e uma vez que o resultado morte, com o qual o arguido se havia conformado, se não verificou, estão preenchidos o elemento subjectivo e actos de execução atinentes aos elementos objectivos do tipo legal p. e p. pelo artº 131º do Cód. Penal.
A este respeito importa assinalar que a admissão do dolo eventual como forma de comissão do crime doloso, na sua forma tentada, é posição acolhida pela nossa doutrina e jurisprudência – cf., entre outros, Eduardo Correia, Direito Criminal II, 240, Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, 4.ª ed.,
Como se escreve no mencionado Acórdão do STJ de 21.11.84: “pelo facto de no dolo eventual não existir uma intenção directamente dirigida à consumação do crime nem por isso se pode dizer que o agente não tomou uma decisão sobre o crime. O acto de conformação com a realização de facto criminoso representado (…) vale essa decisão indubitavelmente, ao contrário do que acontece com a negligência”
Também de acordo com Fernanda Palma, in Tentativa Possível em Direito Penal, Almedina, 2006, 79 e ss, citada no referido Ac. da R G de 25.03.2019: “ o dolo eventual é ainda uma forma de decisão da realização do facto típico, ou, em última análise, decisão pela lesão do bem jurídico, uma vez que na situação de dolo eventual o agente ao aceitar o risco da verificação do resultado típico (“conformando-se” com ele – artigo 14º, nº 3 do CP), preferindo-o aos custos da não realização da sua conduta, inclui essa aceitação, nos fundamentos da decisão e opta pela lesão do bem jurídico”.
A questão que se coloca é a de saber se os actos de execução praticados revelam, no caso, a especial censurabilidade do agente, por força da verificação da circunstância agravativa prevista na alínea 131º, nº 2, al. e), “ser determinado por motivo torpe ou fútil”
Não ficou provado o que foi a este respeito consta da pronúncia, ter o arguido agido motivado por desejo de vingança por ter sido expulso do estabelecimento EMP01... e para evitar o pagamento das duas bebidas ali consumidas.
Não se tendo apurado tal motivação, nem qualquer outra que haja presidido à conduta do arguido AA, e não sendo suficiente, para que se tenha por verificada a circunstância "motivo fútil", para os efeitos da alínea c) do n.º 2 do art.º 132° do C. Penal, que a reacção do agente seja desproporcionada ao condicionalismo que a despoletou, posto que desproporcionalidade existirá sempre entre o homicídio e qualquer razão que o motive, concluiu-se que a conduta do arguido AA, sendo, sem dúvida, altamente reprovável, revelando grande desprezo pela vida humana - o que sucede, em regra, na prática do crime matricial de natureza dolosa - , não preenche a qualificativa referida
Assim sendo, o arguido será punido pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 132º, nº 1, 22º, 23º e 72º do Código Penal.
*
Também quanto a este crime se não verifica uma situação de legitima defesa ou excesso de legitima defesa, dando-se por reproduzidas as considerações que acima se fizeram quanto aos respectivos pressupostos.
Na verdade, como ficou provado, o arguido AA desfere o golpe na região dorso/lombar esquerda do ofendido CC, sem qualquer intuito defensivo, na altura em que o ofendido CC nenhum perigo ou ameaça para si representava, na altura em que este já o não perseguia, tinha virado costas e tentava retroceder.”

Ora, o MºPº entende que o crime praticado por ambos os arguidos, um na forma tentada e outro na forma consumada, é um crime de homicídio qualificado e não um homicídio simples como foi imputado ao arguido AA, uma vez que, o Tribunal a quo absolveu o arguido BB.

E reconduz o factor que entende ser agravante à alínea e) do nº 2 do artº 132º do Código Penal, ou seja:
“ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.”

Contudo o entendimento propugnado pelo MºPº para qualificar os homicídios em causa tinha por pressuposto a alteração da matéria de facto dada por não provada em:
n) Os arguidos tenham sido movidos por sentimentos de vingança, por terem sido expulsos do estabelecimento EMP01... para evitar o pagamento da diminuta quantia das duas bebidas ali consumidas (cerca de 8 €)

Alteração que não foi aqui atendida nesta decisão, motivo pelo qual, não existem factos que permitam qualificar o homicídio, quer na forma tentada, perpetrado pelo arguido AA, na pessoa de CC, quer na forma consumada executada pelo arguido BB na pessoa de DD.

Mas, mesmo que se tivesse dado por provado aquele facto, só por si o mesmo não implicaria necessariamente a qualificação dos homicídios, sendo ainda necessário formular-se um juízo acrescido de especial censurabilidade.

Como bem explicado no Acórdão do STJ de 21-06-2012:[8]
“A qualificação do homicídio, na construção do art. 132.º do CP, assenta num juízo de especial censurabilidade ou perversidade sobre a conduta do agente, constituindo os exemplos-padrão descritos no n.º 2 do artigo indício dessa culpa agravada. A comprovação, no facto, de circunstâncias que preenchem um dos exemplos-padrão tem um efeito de indício da especial censurabilidade ou perversidade, efeito de indício esse que, todavia, pode ser afastado mediante a verificação de outras circunstâncias que o anulem, quer dizer, que constituam contra-prova bastante do efeito indício ligado á afirmação de uma das circunstâncias do n.º 2 do art. 132.º”

No caso em apreço, e ainda que hipoteticamente se pudesse considerar haver sentimentos de vingança subjacentes à actuação dos arguidos, a verdade é que os mesmos foram perseguidos pelas vítimas, não tendo os arguidos sacado das suas respectivas facas logo a seguir a terem sido expulsos do bar, altura em que faria mais sentido estivessem os mesmos imbuídos de sentimentos de vingança e retaliação.

Pelo que, deve manter-se a imputação ao arguido AA da prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, e ao arguido BB, em face da alteração da matéria de facto supra operada deve ser-lhe imputada a prática de um crime de homicídio simples, na forma consumada p. e p. pelo artº 131º do Código Penal.

III. c) Da (não) aplicação o Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes:
- recurso do MºPº

Entende ainda o MºPº que o Tribunal a quo não deveria ter aplicado ao arguido AA o regime especial de jovens previsto no DL nº 401/82 de 23 de Setembro, apesar do mesmo ter apenas 18 anos ao tempo da prática dos factos.

Vejamos, olhando, primeiro o que disse o Tribunal a quo acerca da aplicação deste regime:

“Importa considerar que o arguido à data da prática dos factos, tinha 18 anos de idade.
Nos termos do artº 4º do Dec-Lei 401/82, de 23 de Setembro, se for aplicável pena de prisão a jovem adulto, que á data da prática dos factos tiver completado 16 anos sem ter atingido os 21 anos, deve a pena ser especialmente atenuada, nos termos dos artºs 73º e 74º do Código Penal, se existirem sérias razões para crer que da atenuação resultam sérias vantagens para a sua reinserção social.
A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos, constante do citado diploma legal constituiu o regime-regra do sancionamento penal aplicável a esta categoria etária, cuja aplicação se impõe, sempre que verificados os respectivos pressupostos, posto que, como é sabido, a sua aplicação não é automática.
O juízo de avaliação da vantagem da atenuação especial centra-se fundamentalmente na importância que a diminuição da pena poderá ter no processo de socialização.
No caso, tendo em conta o apoio familiar de que o arguido beneficia e sua inserção social, entende-se que a atenuação especial trará vantagem para ar ressocialização do arguido, pelo será aplicado este regime especial.”

Ora, adiantando desde já a nossa convicção e, salvo o devido respeito pelo entendimento plasmado no acórdão recorrido, afigura-se-nos que o regime especial de jovens não deve ser aplicado ao arguido AA, nem ao BB.

Vejamos, começando com o arguido AA.

Invoca o Tribunal a quo, num pequeno parágrafo, como fundamento da aplicação do referido regime especial “o apoio familiar de que o arguido beneficia e a sua inserção social”.

O Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes, aprovado pelo DL nº 401/82 de 23-09 veio dar corpo ao disposto no artº 9º do Código Penal e visa estabelecer um direito mais “reeducador” do que punitivo assente no facto do jovem entre os 16 e 21 anos ainda não deter uma personalidade totalmente formada e de poder cometer ilícitos com base na sua imaturidade.

Por isso, há quem aponte no referido regime a missão primordial de ressocializar o jovem, caindo a tónica nesse aspecto, como parecer ter sido o entendimento do Tribunal a quo.

Contudo, olhando o regime apenas por esse prisma, os factos de que dispomos relativamente ao arguido AA não parecem apontar para uma vantagem na sua ressocialização com a atenuação das respectivas penas.

Vejam-se os seguintes factos, estando por nós sublinhados aqueles que se nos afiguram essenciais para a questão em análise:

1.64. O arguido AA não tem registados quaisquer condenações criminais.
1.65. O arguido AA frequentou o ensino regular até à frequência do 8º ano de escolaridade e após registo de retenção não quis prosseguir os estudos, nem mesmo no âmbito de um Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF).
Dos 7 aos 14 anos de idade, o arguido foi jogador de futebol, atividade desportiva que abandonou após sofrer uma lesão.
Relativamente a atividade laboral, não revelou motivação para se integrar profissionalmente, não tendo qualquer formação a esse nível, apenas se dedicou a algumas vendas online de peças de vestuário, dependendo economicamente dos progenitores.
1.66. No período a que se reportam os factos descritos na acusação, AA, então com 18 anos de idade, integrava o agregado de origem, constituído pelos pais e dois irmãos, o mais velho aluno de mestrado na Universidade ..., e o mais novo, estudante do 1º ciclo.
A dinâmica familiar é referenciada como afetiva e de interajuda, residindo o agregado num apartamento T3, com adequadas condições de habitabilidade, em contexto citadino, em ....
1.67. A situação económica do agregado, à data dos factos, assim como na presente data, era e é considerada desafogada e alicerçada na prestação pecuniária do RSI (664€), no abono de família relativo ao irmão menor (120€), na bolsa de estudos atribuída ao irmão mais velho (400€) e nas variáveis receitas que os pais auferem da venda de artigos têxteis e/ou calçado em feiras, e mais recentemente das vendas on-line.
1.68. Como despesas fixas mensais o agregado suporta as referentes à amortização do crédito bancário relativo à aquisição de casa própria (300€), os consumos de abastecimento domésticos, de água, luz e telecomunicações, num valor médio de 210€.
1.69. À data dos factos, no meio de residência, o arguido projetava uma imagem social ajustada.
1.70. Após a data dos factos, o agregado mudou de residência, para uma habitação arrendada no centro urbano de ..., pela qual pagam uma renda de 700€ e arrendaram o apartamento de ..., de que são proprietários, pelo montante de 1000€mensais.
1.71. Relativamente a atividade laboral, o arguido não revelou motivação para se integrar profissionalmente, não tendo qualquer formação a esse nível, apenas se dedicou a algumas vendas online de peças de vestuário, dependendo economicamente dos progenitores.
1.72. O arguido não apresenta qualquer projeto de vida definido, verbalizando interesse pela profissão de barbeiro, ainda não tenha encetado qualquer diligencia nesse sentido.
1.73. AA foi alvo da aplicação de uma suspensão provisória do processo, no âmbito do processo nº 1801/21...., por factos ocorridos em dezembro de 2020, pela prática de factos integradores de crime de dano, tendo-lhe sido aplicado injunções, particularmente a de prestar 40 horas de trabalho socialmente útil, que cumpriu.
1.74. AA deu entrada como preventivo no EP ... a 11 de Março de 2023, no âmbito do presente processo.
Em contexto prisional tem revelado uma postura aparentemente calma, de adaptação ao normativo institucional, sem necessidade de prescrição farmacológica, segundo expressou.
Por não ter a escolaridade mínima obrigatória, o arguido foi inscrito na Escola (ensino recorrente), contudo, assumiu algum absentismo às aulas, por desinteresse pela aprendizagem dos conteúdos curriculares.
1.75. AA sinaliza repercussões ao nível sociofamiliar decorrentes do presente processo, designadamente por os pais terem passado a sentir-se alvo de hostilidades, nomeadamente pelos tios, pais do coarguido, residentes a cerca de 1,3 Km, situação que os levou a considerar a necessidade de alteração de residência para uma diferente área geográfica.
1.76. A existência dos presentes autos são do conhecimento público, nomeadamente através da divulgação pelos meios de comunicação social, com aparentes repercussões negativas na imagem social do arguido.
1.77. O arguido continua a beneficiar de retaguarda familiar apoiante, particularmente, por parte dos pais.
 
Como se constata dos factos em apreço, o arguido não se mostra motivado, nem para continuar as suas aprendizagens, nem para encetar um trabalho com o qual pudesse vir a adquirir a sua autonomia.

Os seus pais também ficaram isolados, sendo alvo de hostilidades por parte dos progenitores do arguido BB, tios do arguido AA.

Por outro lado, na ponderação acerca da aplicação do regime especial para jovens delinquentes deve estar sempre presente, não só a personalidade do arguido, mas a gravidade objectiva dos ilícitos penais cometidos, sendo que o nº 7 do preâmbulo do regime em apreço é claro ao estabelecer que:

“As medidas propostas não afastam a aplicação - como ultima ratio - da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a 2 anos.”

Ou seja, o limite imposto à aplicação do referido regime é a defesa dos valores da sociedade, bem como da prevenção da criminalidade, que no caso concreto se manifestam.

Como bem explicado no Acórdão do STJ de 13-01-2021[9], o qual aqui seguimos de perto:
           
“I - A aplicação do regime penal especial para jovens não é obrigatória nem automática, sendo necessário que se tenha estabelecido positivamente que há razões para crer que dessa atenuação especial resultem vantagens para a reinserção social do jovem sem ser afectada a exigência de prevenção geral, isto é, de protecção dos bens jurídicos e da validade das normas.
II -O juízo a formular sobre as vantagens da atenuação especial para a reinserção social tem de assentar em condicionalismo que, não se reduzindo à idade do agente, atenda a todo o condicionalismo do cometimento do crime.
III - Assim, não será de aplicar o regime dos jovens delinquentes quando do conjunto dos factos praticados e a sua gravidade o desaconselham em absoluto, por não se mostrar passível de prognose favorável à reinserção social do arguido.
IV - A adequada reinserção social do arguido, ou seja, a sua correcta reintegração na sociedade, depende necessariamente de considerações de natureza preventiva, particularmente especial, cuja avaliação deve ter presente, designadamente, a gravidade do facto ou factos perpetrados e as suas consequências, o tipo e a intensidade do dolo, os fins que subjazem ao ilícito, o comportamento anterior e posterior e a personalidade do arguido à luz dos factos, isto é, neles manifestada e reflectida.
V - As medidas propostas no regime penal especial para jovens, como resulta do próprio preâmbulo do DL n.º 401/82, de 23-09 (ponto 7), não deverão ser aplicadas quando, em concreto, se mostre necessário defender a comunidade e prevenir a criminalidade, que será à partida, embora carecendo de apreciação, o caso de a pena aplicável ser de prisão superior a dois anos.
VI - Assim, razões atinentes às necessidades de reprovação e de prevenção do crime poderão levar à não aplicação daquele regime, designadamente quando a ele se opuserem considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.
VII - Um juízo de prognose, como o que está ínsito no mencionado regime penal dos jovens, pressupõe uma valoração do conjunto dos factos e da personalidade do arguido, quanto a saber se, em termos prospectivos, a imagem global indicia positivamente uma esperança fundada de que da atenuação especial da pena resultem vantagem para a reinserção do arguido.
VIII - A avaliação das vantagens da atenuação especial para a reinserção do jovem tem de ser equacionada perante as circunstâncias concretas do caso e do percurso de vida do arguido, e não por considerações abstractas desligadas da realidade; do julgamento do caso concreto tem de resultar claramente a convicção do juiz sobre a natureza expressiva das [sérias] vantagens da atenuação para a reinserção do jovem condenado.”
- negrito e sublinhados nossos

Ora, no caso em apreço, está em causa, no que tange ao arguido AA, a prática de um crime de homicídio, embora na forma tentada.

Sendo que o crime só não se consumou por factores alheios à vontade do arguido.

Na sua defesa, o arguido alega ter actuado em legítima defesa, contudo esse cenário não ficou provado, revelando apenas que o arguido tentou desculpar-se da sua actuação criminosa invertendo a situação e imputando à vítima o protagonismo dos eventos, como se a vítima o quisesse atacar, quando foi o arguido AA quem primeiro lhe desferiu um soco, do nada, e depois, aproveitando-se de uma situação de indefesa, pois a vítima caiu e ficou de costas para si, espeta uma faca nas costas, à traição, na zona do coração.

O que é revelador de uma personalidade altamente disforme com as regras básicas de convivência societária.

O arguido AA primeiro agride a vítima com um soco por motivo nenhum e depois, quando a vítima está caída no chão e sem defesa, enfia-lhe uma faca nas costas.

A aplicar-se o regime especial mais favorável perante este tipo de actuação seria premiar um comportamento que, apesar do arguido ter apenas 18 anos ao tempo, já é de si revelador de uma personalidade instável, sendo preocupante que um jovem de 18 anos tenha entretido a ideia de alvejar uma vítima pelas costas.

Não é, assim, possível operar-se neste caso uma “prognose” favorável ao arguido, sendo que a gravidade do crime e o alarme social que o mesmo soa não permite, no caso em apreço, que se beneficie o agressor.

O crime de homicídio é dos crimes mais graves que a sociedade não pode tolerar porque atinge o bem mais precioso: a vida humana.

O mesmo vale mutatis mutandis para o arguido BB cuja comportamento licita ainda mais preocupação por parte da sociedade.

Vejamos.

A nível de factores de ressocialização o acórdão recorrido fixou a seguinte factualidade, a mais significativa para o que ora discutimos, encontra-se por nós sublinhada:

1.78. O arguido BB não tem registadas quaisquer condenações criminais.
1.79. À data dos factos, o arguido BB residia com os seus pais, com dois irmãos menores e com a sua companheira FF. O arguido tem ainda três irmãos mais velhos, autonomizados, com quem o seu agregado mantém convívio regular.
BB e a sua companheira mantinham alguma itinerância entre ..., lugar de residência dos pais da companheira e ....
1.80. A família de BB habita em casa que cedida pelo proprietário do imóvel, já falecido.
A casa apresenta-se degradada, sem luz elétrica, nem água da rede pública, estando o agregado inscrito para acesso a habitação social.
1.81. À data dos factos BB estava inscrito no ensino regular, no 9.º ano de escolaridade no Agrupamento de Escolas ..., onde apresentava problemas de absentismo e não demonstrava motivação para a sua escolarização.
Ajudava os sogros na venda de peças de vestuário em feiras, ajuda que presta desde que iniciou relação de namoro com FF.
Como perspetiva de emprego, BB refere ter gosto pela atividade de comércio em feiras e pretende retomar essas funções aquando do seu regresso à liberdade. Pela família é equacionada a hipótese de jovem emigrar, com o apoio de familiares que residem na ... e no ....
1.82. BB desde que se encontra em prisão preventiva, tem mantido um comportamento ausente de reparos, realizou funções de faxina e no presente frequenta uma formação de cozinha. Beneficia do apoio pessoal, emocional e financeiro da sua família de origem e companheira, que o visitam regularmente e provêm o sustento necessário para a cantina.
Até à data da reclusão do arguido, o rendimento do agregado resultava da atribuição do Rendimento Social de Inserção, com uma prestação mensal no valor de 640,58€ e de abono de família atribuído aos irmãos do arguido, no valor de 344€. Estes rendimentos eram complementados com a recolha de sucata que pais do arguido realizavam e pela retribuição financeira que o pai da companheira do arguido lhe atribuía pela ajuda nas feiras.
A dinâmica social de BB era realizada junto do seu agregado familiar e da sua companheira, e extensivo a outros familiares.

Se o arguido BB se mostra mais inclinado para trabalhar e recebe apoio dos pais e companheira, a testemunha FF, não pode ser descurado os outros dois factores a considerar: a personalidade do arguido e a gravidade do crime.

Veja-se que, ao contrário do arguido AA, o arguido BB conseguiu efectivamente matar a respectiva vítima.

Por outro lado, enquanto o arguido AA agiu com dolo eventual, o arguido  BB actuou com dolo directo, sendo a sua situação agravada pelo facto de ter negado a prática dos factos, quando todas as evidências para si apontavam, revelando, assim, uma incapacidade de assumir a sua culpa e de interiorizar a gravidade da sua actuação.
           
Por fim, este tipo de criminalidade levanta elevadas preocupações sociais, não sendo tolerada pela comunidade de pares uma afronta tão violenta à vida humana.

Nem se nos afigura viável considerar que o arguido BB agiu apenas de forma imatura porquanto, a maneira como matou o DD é aterradora, sendo que o golpeou, removeu a faca parcialmente, mudou a trajectória e investiu uma segunda vez lacerando ambos os ventrículos do coração.

Não há, assim, possibilidade séria de formar uma convicção que leve a uma prognose favorável para estes dois arguidos, não devendo, consequentemente, ser-lhes aplicado o regime penal aplicável a jovens delinquentes.

Procede, assim, esta parte do recurso do MºPº.
           
III. d) Das Penas:
- recurso do MºPº

Na sequência dos considerandos por si explanados no seu recurso acerca da não aplicação do regime penal para jovens delinquentes, avança o MºPº com um pedido de aumento das penas aplicadas ao arguido AA.

Por outro lado, tendo-se concluído pela culpa do arguido BB no homicídio do DD, há que aqui determinar a respectiva pena.

Mas, primeiro, recapitulemos o que disse o Tribunal a quo quando fixou as penas parcelares, e em cúmulo, ao arguido AA:

2. Penas a aplicar ao arguido AA:
No caso dos autos, atento o circunstancialismo que rodeou a prática dos factos, as exigências de prevenção especial e geral que se «fazem sentir, entende-se optar, no que ao crime de ofensa à integridade física concerne pela pena de prisão, uma vez que a pena de multa não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - art.º 70º do Código penal.
*
Importa considerar que o arguido à data da prática dos factos, tinha 18 anos de idade.
Nos termos do artº 4º do Dec-Lei 401/82, de 23 de Setembro, se for aplicável pena de prisão a jovem adulto, que á data da prática dos factos tiver completado 16 anos sem ter atingido os 21 anos, deve a pena ser especialmente atenuada, nos termos dos artºs 73º e 74º do Código Penal, se existirem sérias razões para crer que da atenuação resultam sérias vantagens para a sua reinserção social.
A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos, constante do citado diploma legal constituiu o regime-regra do sancionamento penal aplicável a esta categoria etária, cuja aplicação se impõe, sempre que verificados os respectivos pressupostos, posto que, como é sabido, a sua aplicação não é automática.
O juízo de avaliação da vantagem da atenuação especial centra-se fundamentalmente na importância que a diminuição da pena poderá ter no processo de socialização.
No caso, tendo em conta o apoio familiar de que o arguido beneficia e sua inserção social, entende-se que a atenuação especial trará vantagem para ar ressocialização do arguido, pelo será aplicado este regime especial.
Por força da atenuação especial, decorrente da aplicação deste Dec-Lei, a moldura penal dos crimes praticados pelo arguido AA é a seguinte:
- quanto ao crime de ofensa à integridade física simples, pena de prisão até 2 anos ou pena de multa;
- quanto ao crime de homicídio na forma tentada, a pena de um mês a seis anos e três dias de prisão.
Dentro das molduras penais referidas, a determinação da medida concreta das penas de prisão, far-se-á em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização), nos termos do disposto no nº 1 do artº. 71º do C. Penal, tendo em conta designadamente as circunstâncias enumeradas no nº 2 do citado normativo.
A aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artº 40º do Código Penal.
Neste normativo se condensam as três proposições fundamentais quanto à função e aos fins das penas: protecção dos bens jurídicos, reinserção social do agente do crime, a culpa como limite da pena.
A pena deve, assim, ser encontrada numa moldura penal de prevenção geral positiva – com o que se dá satisfação à necessidade comunitariamente sentida de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada - definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida concreta da culpa, que estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção.
Passemos, então, à ponderação dos factores relevantes para a determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido AA, à luz dos normativos citados.
Assim, importa considerar:
A intensidade do dolo com que o arguido agiu, directo, relativamente ao crime de ofensa à integridade física e eventual no que respeita ao crime de homicídio tentado.
A ilicitude das suas condutas revela-se muito elevada, considerando as circunstâncias em que os factos ocorreram, num estabelecimento de diversão e nas suas imediações, na sequência de desacatos entre o seu grupo e outro, a gratuitidade da sua acção, quer no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, quer no que respeita ao crime de homicídio qualificado, fazendo-se o arguido acompanhar para local de diversão de um instrumento cujo perigosidade conhecia, apta a causar lesões e inclusive a tirar a vida.
O modo de execução dos factos, desferindo o soco na face ao ofendido CC por trás, de repente e sem que nada o fizesse supor e posteriormente desferindo o golpe com faca na região dorso/lombar na altura em que o ofendido se encontra de costas, caído de joelhos, preparando-se para retroceder, já não constituindo qualquer perigo para o arguido, inexistindo qualquer razão defensiva que justifique o seu comportamento.
São especialmente intensas as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, tendo em conta a natureza dos bens jurídicos colocados em crise, a integridade física e a vida, cuja violação é fortemente repudiada pela comunidade, em particular no que respeita ao crime de homicídio.
E, por isso, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada do direito.
As necessidades de prevenção especial assumem de igual modo significado, posto que não tendo antecedentes criminais - o que atento a sua idade é circunstância não particularmente valorável - já teve contacto com o sistema judicial, tendo-lhe sido aplicada a suspensão provisória num processo. Embora se encontra familiarmente inserido, não tem projecto de vida profissional consistente, estando dependente economicamente de seus pais.
A favor do arguido, milita a sua inserção familiar e social, a conduta adequada que tem adoptado em meio institucional, bem como a admissão parcial dos factos, muito embora tenha adoptado uma atitude minimizadora e desculpabilizadora da sua responsabilidade, que não consubstancia arrependimento sincero, não obstante o pedido de desculpas que apresentou ao ofendido
Tudo ponderado, tem-se por ajustado a aplicação ao arguido AA das seguintes penas:
- pela prática de crime de ofensa á integridade física, a pena de oito meses de prisão;
- pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, a pena de quatro anos de prisão
3. Pena única:
Nos termos do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única”.
À punição do concurso procede-se através de uma operação de cúmulo jurídico, partindo de todas as condenações singulares (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 285), daí prosseguindo para a determinação de uma moldura penal do concurso, dentro dos limites da qual se encontrará, finalmente, em função das exigências gerais da culpa e de prevenção e tendo em consideração os factos e a personalidade do agente globalmente apreciados, a medida da pena conjunta concretamente aplicável.
Para a determinação da medida da pena importa considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (cfr. artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal), factores a que já se fez referência a propósito da determinação da medida concreta da pena, mas agora vistos a outra luz. Determinante é uma ponderação global dos referidos factos, pesados à luz dos critérios gerais enunciados no artigo 71.º, do Código Penal (aos quais se recorreu já para determinação das penas singulares), sem que tal importe uma violação do princípio da proibição da dupla valoração no momento da determinação da medida concreta no concurso de crimes, pois, voltando a Figueiredo Dias, “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo facto concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: neste medida não haverá que invocar a proibição da dupla incriminação” e “na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, entretanto, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante da moldura penal conjunta” (ob. cit., pág. 291). Este entendimento encontra ecos na jurisprudência, que tem entendido que “o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido” (cfr. acórdão de 03.10.2007, proferido no processo n.º 07P2576, na base de dados da DGSI).
A moldura da pena única do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, num máximo de 25 anos tratando-se de pena de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), pelo que, no caso em apreço, a pena única concreta a aplicar terá como limite máximo 4 anos e 8 meses de prisão e como limite mínimo 4 anos.
Numa visão global dos comportamentos, a actuação do arguido revela, no seu conjunto, uma intensidade de ânimo contrário ao direito que pode qualificar de persistente. Note-se que o arguido, após ter agredido o ofendido com um soco na cara, atentou contra a sua vida, com recurso a uma faca, tudo num espaço de breves segundos, o que é revelador de uma elevada energia criminosa por parte do arguido.
A imagem global carrega, assim, traços significativamente mais negativos do que aqueles que atrás se mencionaram, o que se reflectirá no grau de compressão inerente ao concurso.
Tudo visto e ponderado, entende-se adequada uma pena única que se fixa em 4 anos e 4 meses de prisão, em cúmulo jurídico das penas parcelares supra referidas.
4. Não Suspensão da Execução da Pena Única de Prisão:
Dispõe o artigo 50º, nº1, do Código Penal que «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Trata-se, como vem sendo comummente assinalado na doutrina e jurisprudência, de um poder-dever do julgador, relativamente a penas não superiores a cinco anos, verificados que sejam os pressupostos no citado normativo previsto, ou seja, que a “simples censura do facto e a ameaça da pena realizem de forma adequada e suficientes as finalidades da punição”
Como se assinala no Acórdão do STJ de 13.12.2007 (processo 07P3049), relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, intervêm nesta sede unicamente critérios de prevenção (especial e geral), intervindo a consideração da culpa no momento que precede o da escolha pela aplicação ou não de uma pena de substituição, isto é, no momento da determinação da medida concreta da pena. No caso, e conforme do acima referido, as necessidades de prevenção geral são muito elevaras e as necessidades de prevenção especial são também significativas.
O quadro que emerge da factualidade provada, em ternos de personalidade e condições de vida, não permite concluir, ainda que em termos de expectativa fundada, que exista a possibilidade de o arguido se reintegrar na sociedade e não cometer novos ilícitos em liberdade, beneficiando da suspensão.
Ademais, no circunstancialismo concreto em apreciação, não se revelaria também a suspensão da execução da pena compatível com as exigências de prevenção geral, por não consentânea com o seu efeito essencial de manutenção das expectativas comunitárias na tutela do ordenamento jurídico.
Por todo o exposto, não se suspenderá na sua execução a pena aplicada, por se considerar não verificado o pressuposto de que mesma depende - que a simples censura do facto e ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
           
Olhemos, agora o que determinam as normas aplicáveis bem como a jurisprudência e doutrina.

O artº 40º do Código Penal (CP), cuja epígrafe é "finalidades das penas e das medidas de segurança" dispõe o seguinte:
"1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente."

O artº 70º do CP, cuja epígrafe é "critério de escolha da pena" dispõe o seguinte:
"Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."

E o artº 71º CP, subordinado à epígrafe "determinação da medida da pena" diz o seguinte:
"1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de criem, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena."
           
Em termos doutrinais, ensina-se nos Figueiredo Dias[10] que "as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução da medida da pena."

Como se afirma no Acórdão do STJ de  08-01-2014[11], cujo relator é o Exmº Sr. Juiz Conselheiro Souto Moura:
“Assim, a partir da moldura legal do crime, haverá que formar uma submoldura para o caso concreto, limitada, no máximo, pelo ponto ótimo da satisfação das necessidades de prevenção geral positiva, e, no mínimo, pela medida ainda ajustável àquelas necessidades. As exigências de prevenção especial ditarão a pena concreta, tudo, evidentemente, sem ultrapassar o grau de censura que o agente pode suportar, ou seja a sua culpa.”

Comecemos pelo AA:

Ao mesmo é imputada a prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada e um crime de ofensa à integridade física simples, na forma consumada.

O crime de homicídio vem p. e p. pelo artº 131º do Código Penal que prevê uma moldura penal de 8 a 16 anos de prisão.

O crime de ofensa à integridade física simples vem p. e p. pelo artº 143º do Código Penal o qual prevê pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.

Uma vez que o crime de homicídio ocorre na forma tentada há que aplicar, nos termos do artº 23º nº 2 do Código Penal, a moldura especialmente atenuada nos termos do artº 73º do Código Penal que determina o seguinte:
           
“1 - Sempre que houver lugar à atenuação especial da pena, observa-se o seguinte relativamente aos limites da pena aplicável:
a) O limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço;
b) O limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a 3 anos e ao mínimo legal se for inferior;
c) O limite máximo da pena de multa é reduzido de um terço e o limite mínimo reduzido ao mínimo legal;
d) Se o limite máximo da pena de prisão não for superior a 3 anos pode a mesma ser substituída por multa, dentro dos limites gerais.
2 - A pena especialmente atenuada que tiver sido em concreto fixada é passível de substituição, nos termos gerais.”
           
Assim, a moldura penal do crime de homicídio na forma tentada passa a ser de 5 anos e 4 meses a 10 anos e 8 meses.
           
Considerando os seguintes factores constantes do acórdão recorrido com os quais se concorda:
           
A intensidade do dolo com que o arguido agiu, directo, relativamente ao crime de ofensa à integridade física e eventual no que respeita ao crime de homicídio tentado.
A ilicitude das suas condutas revela-se muito elevada, considerando as circunstâncias em que os factos ocorreram, num estabelecimento de diversão e nas suas imediações, na sequência de desacatos entre o seu grupo e outro, a gratuitidade da sua acção, quer no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, quer no que respeita ao crime de homicídio qualificado, fazendo-se o arguido acompanhar para local de diversão de um instrumento cujo perigosidade conhecia, apta a causar lesões e inclusive a tirar a vida.
O modo de execução dos factos, desferindo o soco na face ao ofendido CC por trás, de repente e sem que nada o fizesse supor e posteriormente desferindo o golpe com faca na região dorso/lombar na altura em que o ofendido se encontra de costas, caído de joelhos, preparando-se para retroceder, já não constituindo qualquer perigo para o arguido, inexistindo qualquer razão defensiva que justifique o seu comportamento.
São especialmente intensas as exigências de prevenção geral que se fazem sentir, tendo em conta a natureza dos bens jurídicos colocados em crise, a integridade física e a vida, cuja violação é fortemente repudiada pela comunidade, em particular no que respeita ao crime de homicídio.
E, por isso, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada do direito.
As necessidades de prevenção especial assumem de igual modo significado, posto que não tendo antecedentes criminais - o que atento a sua idade é circunstância não particularmente valorável - já teve contacto com o sistema judicial, tendo-lhe sido aplicada a suspensão provisória num processo. Embora se encontra familiarmente inserido, não tem projecto de vida profissional consistente, estando dependente economicamente de seus pais.
A favor do arguido, milita a sua inserção familiar e social, a conduta adequada que tem adoptado em meio institucional, bem como a admissão parcial dos factos, muito embora tenha adoptado uma atitude minimizadora e desculpabilizadora da sua responsabilidade, que não consubstancia arrependimento sincero, não obstante o pedido de desculpas que apresentou ao ofendido.

Afigura-se-nos que, pelo crime de homicídio na forma tentada deve ser fixada uma pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Quanto ao crime de ofensa à integridade física, afigura-se-nos que deve ser aplicada ao arguido uma pena de prisão, não acautelando a pena de multa as necessidades nem de prevenção especial, nem de prevenção geral, a qual deve ser fixada em 12 (doze) meses de prisão.

Assim, nos termos do disposto no artº 77º nº 1 do Código Penal, subordinado à epígrafe “regras de punição do concurso”:
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”

Pelo que a moldura concursal é de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses a 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Ponderados todos os factores, afigura-se-nos ser de aplicar ao arguido AA a pena única de 7 (sete) anos de prisão.

Uma vez que o arguido AA não tinha ainda 30 anos à data da prática dos factos, à pena ora fixada deve ser aplicada a Lei nº 38-A/2023 de 02-08 nos seguintes termos:
- ao abrigo do artº 3º da Lei nº 38-A/2023 é perdoado um ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos;
- ao abrigo do artº 7º nº 1, al. ai) da Lei nº 38-A/2023 o perdão não abrange crimes de homicídio previstos nos artºs 131º a 133º e 136º do Código Penal;
- ao abrigo do artº 7º nº 3 da Lei nº 38-A/2023, a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos;

Ou seja, deve ser aplicado o perdão apenas relativamente à pena fixada pelo crime de ofensa à integridade física, contudo não pode o perdão atingir a integridade da pena parcelar fixada pelo crime mais grave e que dele não beneficia.

Assim, apenas poderão ser perdoados os 6 (seis) meses da pena única, mantendo-se os 6 (seis) anos e 6 (seis) meses pelo crime de homicídio na forma tentada.

O perdão em apreço ainda se mostra condicionado nos termos do artº 8º da Lei nº 38-A/2023 que impõe o seguinte:

“1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.
2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado.
3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.
4 - Considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado.
5 - Quando o titular do direito de indemnização ou da reparação for desconhecido, não for encontrado ou ocorrer outro motivo justificado, considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 se a reparação consistir no pagamento de quantia determinada e o respetivo montante for depositado à ordem do tribunal.”
                       
Procede, assim, em parte esta parte do recurso do MºPº.

Vejamos agora o arguido BB que, tendo sido condenado nesta instância recursiva, quando foi absolvido na 1ª instância, tem de ser agora sujeito à determinação da pena.

Como já referido, ao arguido BB é imputado um crime de homicídio simples na forma consumada, p. e p. pelo artº 131º do Código Penal, pelo que a moldura penal é de 8 a 16 anos de prisão.

Tendo tal crime sido consumado o arguido BB não beneficia de qualquer atenuação especial como ocorre com o arguido AA.

Por outro lado, não beneficiando também do regime penal para jovens delinquentes, não há lugar a qualquer outro tipo de atenuação especial da pena.

Tratando-se de crime constante do cardápio de excepções ao regime de amnistia e perdão estabelecido na Lei nº 38-A/2023 de 02-08, previsto no artº 7º deste regime, também não é aplicável ao arguido BB qualquer tipo de perdão.

Assim e considerando que:
- a intensidade do dolo com que o arguido agiu, sendo o mais elevado por ser directo revela uma elevada culpa na prática dos factos;
- a ilicitude é elevada considerando as circunstâncias em que os factos ocorreram, fazendo-se o arguido acompanhar para local de diversão de um instrumento cuja perigosidade conhecia, apta a causar lesões graves, inclusive a morte;
- o modo de execução dos factos, tendo o arguido desferido um primeiro golpe que retira parcialmente cravando de seguida em nova trajectória que se provou fatal para a vítima;
- são particularmente intensas as exigências de prevenção geral, dada a natureza do bem jurídico atingido – a vida – o bem mais precioso, cuja violação é fortemente repudiada pela comunidade;
- pese embora o arguido não tenha antecedentes criminais, as exigências de prevenção especial não deixam de se revelar elevadas atenta a falta de tomada de consciência por parte do arguido que imputou a prática do crime ao primo, não tendo revelado qualquer tipo de arrependimento;
- não tem a escolaridade completada, estando inscrito no 9º ano, e não mostra motivação para a sua escolarização;
- a favor do arguido milita a sua relativa inserção social, vivendo com os pais que não detêm condições de habitação adequadas, e ainda com uma companheira;

Ao arguido BB deve, assim, ser fixada uma pena de 12 (doze) anos de prisão.

III. e) Da Indemnização devida pela morte de DD:
- recurso dos assistentes DD e EE

Por fim, porque se condenou o arguido BB como autor material de um crime de homicídio na forma consumada e, porque os pais da falecida vítima, DD, se apresentaram a formular pedido de indemnização, tendo reiterado esse pedido no seu recurso há que analisar esta última questão.

Vejamos, primeiro, os factos de que dispomos:

1.18-b) O arguido BB envolveu-se, nessa ocasião, em agressões físicas com o ofendido DD.
1.19. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, o ofendido DD, quando se encontrava junto da passadeira que atravessa a Rua ..., situada ao lado ecoponto, sofreu dois golpes, desferidos com um instrumento corto-perfurante, de forma consecutiva e rápida, através do mesmo orifício, tendo caído inanimado no chão, após percorrer, a cambalear, alguns metros junto à parede que ladeia a Alameda ..., pelo lado esquerdo (tendo em conta o sentido EMP01... - Rua ...).
1.19-a) O arguido BB desferiu (os) dois golpes no ofendido DD, usando uma navalha com cabo de madeira que trazia consigo, descrita no auto de exame directo de fls. 796 a 797.
1.19-b) O ofendido DD sofreu as lesões descritas em 1.22., que causaram a sua morte, em consequência de golpes de navalha perpetrados pelo arguido BB.
(…)
1.22. Em consequência dos golpes de navalha que o atingiram, o ofendido DD sofreu um traumatismo de natureza corto-perfurante na região torácica (região sub-mamária esquerda), com um orifício em forma de cauda de andorinha, com o comprimento aproximado de 2,3cm, por 0,4 cm de largura, cuja extremidade medial dista 25 cm da cicatriz umbilical e 5,5 cm do mamilo esquerdo; tendo ainda provocado a laceração dos ventrículos do coração, lesões essas que foram causa directa e necessária da morte do ofendido, declarada no Hospital ..., pelas 00h40m do dia 13 de Fevereiro de 2023.
1.23. As lesões torácicas descritas resultaram de traumatismo de natureza cortoperfurante, devido a acção de instrumento de gume afiado, ou como tal actuando, compatível com o uso de “arma branca”, harmonizando-se com um diagnóstico diferencial médico-legal homicida.
1.36. DD faleceu no estado de solteiro, sem descendentes, testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como seus únicos e universais herdeiros seus pais, DD e EE.
1.37. Em consequência dos golpes de navalha que sofreu na zona torácica resultou a morte de DD.
1.38 DD contava 32 anos de idade, à data dos factos, gozando de boa saúde e estando na posse das suas faculdades de trabalho.
1.39. Os demandantes despenderam com a realização do funeral a quantia de 1 390,00 €.
1.40. O infeliz DD não teve morte imediata e enquanto sobrevivei teve dores graves que com cessaram com aquela.
1.41. Sofreu enorme angústia com a antevisão da própria morte.
1.42. Os demandantes sofreram e continuarão a sofrer no futuro pela morte e pela falta do seu único filho, com quem tinham uma relação afectiva, constituindo com este uma família feliz e unida.
1.43. Não podendo contar com o seu apoio na velhice.
1.44. A demandante mulher desde a morte do DD encontra-se incapacitada para o trabalho, situação que subsiste.
1.45. A demandante entrou em depressão logo após a morte de seu filho DD, apresentando insónias, cefaleias frequentes, grande intolerância aos ruídos e uma necessidade de isolamento que a perturba e que ainda não conseguiu vencer.
1.46. Sendo seguida em psiquiatria privada, encontrando-se medicada com fluoxetina, lexotan 3, morfex 15, triticum, lorazepan e magnesium.

A sede legal do regime da responsabilidade civil extra-contratual encontra-se no artº 483º do Código Civil que diz o seguinte:

“1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”

São requisitos integradores do direito indemnizatório:
- existência de ocorrência no mundo material, ou seja um facto (positivo ou negativo) praticado pelo agente;
- a existência de dano;
- o nexo causal entre o facto e a produção do dano;
- o elemento volitivo do agente, isto é, a culpa do agente na produção do dano;
- a ilicitude da actuação (por comissão ou por omissão) do agente.

Versando a indemnização o ressarcimento de danos não patrimoniais, e, portanto, não quantificáveis, determina o artº 496º do Código Civil que:
           
“1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”

São doutrina e jurisprudência assentes que a morte de determinada pessoa dá lugar às seguintes indemnizações:

- pelo dano correspondente à perda da vida sofrido pela vítima;
- pelo dano correspondente ao sofrimento percebido pela vítima antes do seu falecimento;
- pelo dano próprio dos assistentes correspondente ao sofrimento dos mesmos com a perda do filho;
-  pelo dano patrimonial correspondente a despesas de funeral.

Ora, tendo o arguido BB morto a vítima DD com uma faca através da qual lhe lacerou os dois ventrículos do coração, dúvidas não podem restar de que o mesmo passou a ser civilmente responsável pelos respectivos danos causados.

Assim, e no que tange aos danos patrimoniais está provado que os assistentes despenderam  € 1.390,00 com a realização do funeral do seu falecido filho.

Quanto a este valor não há dúvida que o arguido é responsável pelo respectivo pagamento.
Quanto aos restantes danos, todos eles não patrimoniais e, portanto, fixáveis por meio de equidade, há a referir o seguinte:

No PIC por si apresentado em 04-09-2023 com a refª ...19, fls. 1051 e ss dos autos, os assistentes dividem os danos e o valor do seu ressarcimento da seguinte maneira:

- pelo dano sofrido pelo filho entre o momento em que foi esfaqueado e o momento em que morreu peticionam € 10.000,00;
- pela dano sofrido pelo filho com a supressão da sua vida peticionam € 100.000,00;
- pelo dano próprio que sofrem com a perda do filho peticionam € 30.000,00 cada, num total de € 60.000,00.

Tudo totalizando € 170.000,00 a que acrescem os danos patrimoniais no valor de € 1.390,00.

Vejamos.

A propósito da valoração dos danos não patrimoniais, defendendo-se que a compensação deve ser digna, veja-se o Acórdão do STJ de 09/05/2023:[12]

“Embora sem rigor sistemático, é patente uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento.
Na doutrina e jurisprudência italianas começou a emergir na década de setenta a noção de “dano pessoal”, incorporando todos os danos que lesam a estrutura psicossomática do ser humano, e mais recentemente com a definição conceitual de “dano existencial”, visando abarcar os danos que não sendo estritamente morais originam consequências não patrimoniais (…).
Pretende-se, assim, erigir um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua liberdade, correspondendo a duas únicas categorias de danos: o “dano psicossomático” e o “dano ao projecto de vida”, com consequências extrapatrimoniais.
Na verdade, esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral”.
Partindo desta concepção e como critério de determinação equitativa para o equivalente económico do dano não patrimonial (arts.496 nº3 e 494 do CC), há que atender à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado e do responsável, sendo certo que o seguro de responsabilidade civil é também um elemento a ter em conta, bem como ao valor actual da moeda e aos padrões jurisprudenciais.
Desde alguns anos que a jurisprudência vem afirmando que os padrões de indemnização têm de evoluir, acompanhando os tempos modernos, chegando-se a enfatizar que não se poderia manter uma tradição miserabilista, sob pena dos tribunais não estarem a acompanhar a evolução da vida, causando prejuízos irreparáveis aos lesados em acidentes de viação.
Neste contexto, entre outros tópicos, apela-se, por exemplo, aos critérios da convergência real das economias no seio da União Europeia, aos montantes mínimos do seguro automóvel obrigatório fixados em aplicação da Directiva do Conselho, 84/5 de 30/12/83 (Segunda Directiva-Seguros), aos seus constantes aumentos e dos respectivos prémios, como índices emergentes da preocupação legal de protecção dos lesados em matéria de acidentes de viação”.

Sendo de realçar o que se afirma no Acórdão do STJ de 15-09-2022[13] que “a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto”.

Ou, ainda, no acórdão do STJ de 31-01-2012 (proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt):
“os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição». Exigência plasmada também no art. 8.º, n.º 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

Assim, tendo por base as premissas supra expostas, e no que tange ao dano sofrido pela própria vítima no tempo que medeia entre a acção lesiva e a sua morte temos de considerar os seguintes factos:

1.22. Em consequência dos golpes de navalha que o atingiram, o ofendido DD sofreu um traumatismo de natureza corto-perfurante na região torácica (região sub-mamária esquerda), com um orifício em forma de cauda de andorinha, com o comprimento aproximado de 2,3cm, por 0,4 cm de largura, cuja extremidade medial dista 25 cm da cicatriz umbilical e 5,5 cm do mamilo esquerdo; tendo ainda provocado a laceração dos ventrículos do coração, lesões essas que foram causa directa e necessária da morte do ofendido, declarada no Hospital ..., pelas 00h40m do dia 13 de Fevereiro de 2023.
1.40. O infeliz DD não teve morte imediata e enquanto sobreviveu teve dores graves que com cessaram com aquela.
1.41. Sofreu enorme angústia com a antevisão da própria morte.

Sabemos, ainda, pelos factos vertidos em 1.7 e 1.22, em conjugação com o tempo marcado nas imagens retiradas das câmaras de videovigilância do estabelecimento EMP03... – fls. 213 e ss, em particular fls. 220 – que a vítima DD foi esfaqueada sensivelmente entre as 23:37:36 e as 23.37.56, uma vez que pelas 23:37:56 a vítima CC já estava de regresso ao EMP01... tendo tudo durado cerca de 18 segundos –  cfr. fls. 220, tendo a sua morte sido declarada pelas 00:40m já do dia 13-02-2023.

Ou seja, a vítima DD não só não morreu logo, como ainda se manteve vivo cerca de uma hora.

E, se se admite que durante uma boa parte dessa hora a vítima estivesse inconsciente, há seguramente os primeiros momentos em que, sentindo uma dor lacerante no coração (a faca lacerou os dois ventrículos do coração e ainda picou o fígado), toma consciência de que vai morrer, tendo caído uma primeira vez, conseguido se levantar voltando a cair uma segunda vez enquanto cambaleava pela rua.

Trata-se de um autêntico filme de terror sendo inimaginável tudo quanto esta vítima sofreu, sentiu e pensou.

Por isso, e considerando os valores normalmente aceites pela nossa jurisprudência no que tange a este dano dúvidas não podem restar que os € 10.000,00 peticionados não só se enquadram dentro dos parâmetros jurisprudências como, a nosso ver, até se mostra frugal.

Aliás, já em 2009, o próprio STJ aceitava fixar uma indemnização no valor de € 20.000,00 pelo sofrimento ocorrido na vítima entre o acidente e o seu falecimento, cfr. Ac. Do STJ de 12-03-2009[14]:

“E, tendo em conta que, como vem provado, do acidente resultaram para a passageira NS os ferimentos descritos no relatório de autópsia, nomeadamente enfarte cerebral consecutivo a dissecação traumática da artéria carótida primitiva esquerda, que lhe causou, directa e necessariamente, a morte, ocorrida no dia 22-02-2005, que a NS sofreu dores físicas imediatamente após o acidente, resultantes dos ferimentos de que foi vítima, que só se extinguiram com a morte, e sofreu a angústia da morte, justifica-se a quantia arbitrada, de € 20 000, pelos danos morais sofridos pela NS em consequência do sofrimento padecido entre o momento do acidente e o seu falecimento.”

E mais recentemente, no Acórdão do STJ de 25-02-2021, proc. 4086/18.3T8FAR.E1.S1 (in www.dgsi.pt).

Sendo de notar que “o dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima estava consciente ou em coma, se teve dores ou não e qual a sua intensidade, se teve ou não consciência de que ia morrer”. – cfr. Ac. do STJ de 15-04-2009[15]

Por isso, fixa-se uma indemnização pelo dano sofrido pela vítima com a antecipação da sua morte nos peticionados €10.000,00.

No que tange ao dano morte também é jurisprudência assente a fixação de valores na ordem dos € 80.000,00 a € 100.000,00, podendo, em casos excepcionais, ser fixados valores mais elevados do que os € 100.000,00.

Ora, sabemos que no momento da sua morte DD contava 32 anos de idade, gozando de boa saúde e estando na posse das suas faculdades de trabalho - facto vertido em 1.38.

Foi, assim, ceifado na flor da vida, com um futuro pela frente.

Nada podia fazer supor que naquela fatídica noite fosse perder a vida e todas as suas expectativas e sonhos.
Por outro lado, não podemos ignorar que a vítima DD foi assassinada, e de uma forma brutal o que a distingue da maioria das vítimas que morrem em acidentes de viação – onde praticamente estão em causa actuações meramente negligentes – e onde este tipo de indemnização é arbitrada.

Não podemos nem devemos olvidar o facto da morte de DD ter sido o trágico resultado de uma acção voluntária por parte do arguido BB que agiu com dolo directo, pelo que a morte de DD, além de não ter sido consequência de algum acidente imprevisto, era totalmente evitável e absolutamente sem sentido.
 
Assim, tendo por base o motivo da sua morte – um homicídio voluntário e violento – e considerando o número de anos de vida ainda expectável que vivesse, dúvidas não podem restar que os peticionados € 100.000,00 se enquadram perfeitamente na bitola aceite pela comunidade jurídica indo ao encontro do dano concretamente sofrido pela vítima DD.

Pelo que se fixa uma indemnização de € 100.000,00 pela morte do falecido DD.

Por fim, há que analisar o dano próprio que cada assistente, na qualidade de pais do falecido DD, sofreu e ainda sofre com a perda do seu único filho.

1.42. Os demandantes sofreram e continuarão a sofrer no futuro pela morte e pela falta do seu único filho, com quem tinham uma relação afectiva, constituindo com este uma família feliz e unida.
1.43. Não podendo contar com o seu apoio na velhice.
1.44. A demandante mulher desde a morte do DD encontra-se incapacitada para o trabalho, situação que subsiste.
1.45. A demandante entrou em depressão logo após a morte de seu filho DD, apresentando insónias, cefaleias frequentes, grande intolerância aos ruídos e uma necessidade de isolamento que a perturba e que ainda não conseguiu vencer.
1.46. Sendo seguida em psiquiatria privada, encontrando-se medicada com fluoxetina, lexotan 3, morfex 15, triticum, lorazepan e magnesium.

É universal a compreensão do sofrimento dos pais quando perdem um filho, em especial o seu único filho.

Ditam as leis da vida que os pais vão à frente dos seus filhos.

Por isso, a inversão desta ordem natural das coisas, aliada ao facto do filho dos assistentes ter sido morto por circunstâncias completamente evitáveis e fruto da vontade de um terceiro – tivesse o filho morrido de uma doença a dor da perda, embora permanecendo, seria seguramente diferente – permite-nos concluir com segurança, atendendo também à bitola jurisprudencial que é norma neste tipo de dano, que os peticionados € 30.000,00 por cada progenitor é não só razoável mas, devido.

Veja-se, a título meramente exemplificativo o Acórdão do STJ de 15-09-2016[16] que, referindo-se a morte por acidente, o que é uma situação menos grave que aquela que ora nos ocupa, com uma vítima com a mesma idade e com a mesma relação com os pais afirma:

“Não é exagerado o montante de € 30 000 arbitrado a título de indemnização por danos não patrimoniais a cada um dos pais da vítima mortal de acidente de viação, verificando-se, entre o mais, que: (i) a vítima era filho único daqueles, saudável, com 32 anos de idade e intensa e profunda ligação aos pais (e vice-versa); (ii) estes viam nele o depositário de todos os seus sonhos, ceifado no auge da vida, no local de trabalho (não nas trágicas vicissitudes da diversão noturna…) por que ansiou e que “via” como garante da respetiva subsistência e não ensejo para a morte, ocorrida na manhã dum domingo que para os pais deveria ser normal, em consequência do comportamento grosseiramente leviano dum mau utente da estrada; e (iii) uma intensíssima e inapagável dor acompanhará os pais por todo o sempre.”

Pelo que em face do acima exposto afigura-se-nos que, fixando-se a indemnização em € 30.000,00 por cada um dos assistentes pela perda do seu único filho, tem de proceder in totum o respectivo PIC.

Só uma nota final que se prende com a capacidade económica do arguido em pagar os valores aqui fixados.

Afigura-se-nos de elementar bom senso que o arguido BB, não tendo emprego certo, vivendo com os pais em condições habitacionais fracas e com o auxílio por parte do Estado Português que lhes faculta rendimento social de inserção e abonos de família, que o mesmo não terá seguramente possibilidade de pagar a indemnização ora arbitrada.

Contudo, não só isso não deve ser relevado para efeitos de artificialmente baixar valores indemnizatórios que estão perfeitamente dentro da bitola jurisprudencial e aceite pela comunidade como o mínimo para ressarcir danos que, por natureza, não têm ressarcimento possível, como, a analisar apenas o quadro económico do arguido nunca se fixaria uma indemnização porquanto este, objectivamente, não tem como a pagar.

A indemnização no caso em apreço, e que surge por força da prática de um crime doloso (e não como consequência de um acidente de viação em que a responsabilidade é transferida para uma seguradora que não tem “culpa” assumida), tem de ser vista também pelo prisma da responsabilização do arguido, integrando um aspecto da sua ressocialização pois o mesmo tem de assumir todas as consequências dos seus actos.

Assim, há que manter os valores aqui fixados apesar de, pelo menos neste momento, não ser previsível que o arguido consiga pagá-los, podendo, contudo e no futuro, vir a ter melhor fortuna e aí ser fundamental aos assistentes terem forma de verem ressarcidos os tremendos danos que a perda do seu único filho lhes traz.

Tendo os assistentes pedido a condenação também nos juros de mora desde a notificação, afigura-se-nos que os juros só devem começar a vencer-se a partir da data desta decisão pois só com a mesma é que o arguido BB se constitui único responsável pelo pagamento dos respectivos valores indemnizatórios, aliás, como consta já do acórdão recorrido no que tange à indemnização devida pelo arguido AA à vítima CC
           
Decisão:

Em face do acima exposto, e por maioria, decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal da Relação de Guimarães em:

I. Julgar totalmente improcedentes os recursos interpostos pelo assistente CC e pelo arguido AA.
II. Julgar parcialmente procedentes os recursos interpostos pelo MºPº e pelos assistentes DD e EE e, em consequência:
A) Alteram a matéria de facto nos termos que constam do item III. a) do corpo desta decisão;
B) Condenam o arguido BB como autor material de um crime de homicídio simples na forma consumada, p. e p. pelo artº 131º do Código Penal numa pena de 12 (doze) anos de prisão;
C) Condenam o arguido BB a pagar aos assistentes DD e EE a quantia total de € 171.390,00 (cento e setenta e um mil, trezentos e noventa euros) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais pela morte do filho destes, a vítima DD, acrescido de juros de mora  devidos à taxa legal, desde a data desta decisão até efectivo pagamento.
D) Mantendo a condenação do arguido AA como autor de um crime de homicídio simples, na forma tentada, e de um crime de ofensa à integridade física simples, na forma consumada, alteram as penas parcelares bem como a pena única fixada ao mesmo, as quais passam a ser:
i) De 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de homicídio na forma tentada;
ii) De 12 (doze) meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física simples;
iii) Em cúmulo jurídico na pena única de 7 (sete) anos de prisão;
iv) Declaram, nos termos do disposto nos artºs 2º, nº 1, 3º, nº 1 e 4. 7º, nº 1, al. a) e 8º da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, o perdão de 6 (seis) meses à pena única acima aplicada ao arguido AA, sob a condição resolutiva de o mesmo arguido não praticar infração dolosa até ../../2024, inclusive, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da parte da pena perdoada, e, ainda, sob a condição de proceder ao pagamento, no prazo de noventa dias, da indemnização a que nestes autos é condenado a pagar ao ofendido CC.
 E) Em todo o mais, confirmam o acórdão recorrido.

Custas a cargo do arguido AA e do assistente CC fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC's cada: (artºs 513º nº 1 CPP e 8º e 9º do Regulamento das Custas Processuais conjugando este com a Tabela III anexa a tal Regulamento), sem prejuízo de eventual apoio judiciário de que estes recorrentes possam beneficiar.
Sem custas para o MºPº.
Sem custas para os assistentes DD e EE.
Uma vez que o arguido AA está em prisão preventiva desde ../../2023, atento o disposto no artº 215º nº 6 do CPP, determina-se a imediata comunicação à 1ª instância do teor deste acórdão, com cópia do mesmo, ainda sem trânsito.
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2025.

Florbela Sebastião e Silva
(Relatora por vencimento)
Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro
(2ª Adjunta)
Pedro Miguel Cunha Lopes
(Relator vencido com declaração de voto)

Voto de Vencido

O signatário era o inicial Relator deste Acórdão em projeto que, porém, não fez vencimento, resultando antes vencido pelo que a Exm.ª Colega antes 1ª Adjunta passou a ser relatora do Acórdão.
Desde já devo dizer que, se antes redigi o projeto e projetei decisão nos termos que julgava corretos, essa convicção mais se tornou firme depois da leitura do projeto de Acórdão que fez vencimento e subscrito pelas minhas duas Exmas. Colegas.
E faço-o, com a plena consciência de que a minha declaração de voto pode gerar perplexidades, mas por apelo ao meu imperativo ético de fazer justiça nos termos que considero corretos, quer em função da apreciação da prova produzida, quer em função da análise da fundamentação de direito aplicada aos factos que, efetivamente, resultaram provados.
É assim óbvio que manterei, nesta declaração, o que constava do meu projeto de Acórdão, mas com uma fundamentação muito mais reduzida, sem citações de doutrina e jurisprudência e de uma forma tópica ou seja através de uma forma de argumentação que tentarei ser direta e precisa.
Com efeito, os votos de vencido não se destinam a construir quaisquer teses jurídicas, mas apenas  a dar a conhecer, sumariamente, as razões porque não se concorda com a tese que fez vencimento.
Necessariamente não podem confundir-se com Acórdãos, devendo a sua fundamentação ser muito mais sumária que a constante do Acórdão, bem como a respetiva dimensão também muito inferior ao mesmo – não obstante a complexidade dos factos quanto ao crime de homicídio simples consumado por que o arguido BB vai ser condenado e respetivo pedido cível, me obriguem a seu um pouco mais extenso, do que desejaria.
O que não se reconduz porém, a uma menor convicção de que outra seria a decisão correta, justa e adequada ao(s) caso(s) em julgamento.
Também não costuma o signatário fazer votos de vencido por questões menores ou duvidosas, sendo que no caso as divergências são manifestas e relevantes.
Assim e passado este necessário introito, o signatário desde já declara que concorda absolutamente com a total improcedência dos recursos interpostos pelo assistente/demandante CC e pelo arguido AA, o que constava aliás e também, do seu projeto.

Discorda porém e frontalmente:
- da procedência dos recursos interpostos pelo M.P. e pelos assistentes DD e EE, que levaram à condenação do arguido BB, pela prática de um crime de homicídio simples na forma consumada (art.º 131º C.P.) e que determinaram a respetiva condenação na pena de 12 (doze) anos de prisão, já que, nesta parte os julgaria totalmente improcedentes, mantendo a absolvição do arguido como decidido em 1ª instância;
- julgaria, por via disso, também totalmente improcedente o recurso em matéria cível  dos assistentes/demandantes DD e EE, mantendo também aqui a absolvição do pedido do arguido BB, decidida em 1ª instância;
- julgaria parcialmente procedente o recurso do M.P. quanto à pena aplicada ao arguido AA, mantendo a condenação pelo crime de homicídio simples tentado, mas mantendo também a atenuação especial prevista no art.º 4º D.L. n.º 401/82, 23/9, aplicada em 1ª instância, aumentando contudo a pena única aplicada para 5 (cinco) anos e 7 (sete) meses de prisão e não, como decidido, para 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
      
Concretizando.
Quanto à condenação do arguido BB pelo crime de homicídio simples, manteria como não provados os factos que o colocam como autor do crime de homicídio, do que resultaria a respetiva absolvição.
E não, como o fez a 1ª instância, com base no princípio “in dubio pro reo”, mas por ausência de prova segura dos factos.
O arguido AA confirmou, em 1º interrogatório judicial, ter dado uma facada no ofendido CC, mas em julgamento optou pelo silêncio, tendo, porém, sido ouvidas as suas declarações em 1º interrogatório judicial.
O arguido BB negou a prática da agressão mortal a EEE, imputando-a ao coarguido AA que, segundo a sua versão terá assim dado uma facada no ofendido CC e outra ao ofendido DD, praticando assim quer o homicídio tentado na pessoa do primeiro, quer o consumado na pessoa do segundo.
Estes factos dão-se no exterior do “EMP01...” (saindo, virando à esquerda e percorrendo-se cerca de 30 (trinta) metros) e após uma altercação entre os dois arguidos que ali foram em conjunto com as suas namoradas e um grupo de .... O arguido BB é posto na rua pelo ofendido CC, que depois é agredido a pontapé pelo arguido AA. Nesta altura, os arguidos fogem por uma artéria pedonal, o AA ao meio e o BB mais à esquerda, sendo ambos respetivamente perseguidos pelo ofendido CC e pela vítima EEE.
Estes factos são seguros, tal como o é que foi o arguido AA quem deu a facada nas costas de CC.
Também é seguro que, naquele momento, ninguém exceto os arguidos que foram perseguidos e alcançados teria qualquer móbil criminoso contra a vítima EEE. Por isso, quem matou com uma facada, com posterior insistência, esta vítima só poderia ser um ou outro daqueles arguidos.
Como se decidiu em Instrução o caráter repentino e não premeditado dos homicídios – consumado e tentado – retiram a possibilidade de imputação de ambos os crimes a ambos os arguidos, através da figura da coautoria (art.º 26º C.P.).
O assistente/demandante CC prestou declarações por quatro vezes nos autos – primeiro perante a P.J., depois confirmadas perante o M.P., para memória futura e depois, em julgamento.
É verdade que, perante a P.J. referiu não ter dúvidas, de que terá sido o arguido BB (o “moreno”) a atingir o seu colega EEE. Mas nunca diz que o viu fazer isso, fazendo essa dedução do facto de o arguido AA ter estado consigo e de ser a vítima EEE quem seguia no encalce do arguido BB.
Essa ausência de dúvidas vai, porém, desaparecendo, ao longo das sucessivas declarações que presta. Isto a ponto de facilmente se alcançar que, o que referiu perante a P.J. terá sido uma dedução sua, decorrente da dinâmica dos factos e posições dos arguidos e vítimas. Dedução que terá sido feita a “quente” e depois de, ele próprio ter sido atingido nas costas com uma violente facada.
Isto a ponto de, em julgamento e de forma que pareceu sincera referir, quanto à pessoa que terá agredido a vítima mortal, não sei…,não vi… eu quero ajudar mas não consigo mais…
Também as testemunhas DDD e HH, que estavam a mais de 10 (dez) metros dos locais onde se passaram as agressões, quer perante a P.J., o M.P., ou em  julgamento – sendo que aqui foram também confrontados com os seus anteriores depoimentos, que podem assim ser valorados - nunca referiram ter visto quem deu a insistente facada mortal na vítima EEE.
Ora, a verdade é que não há prova direta da autoria do homicídio da vítima EEE, pelo arguido BB. Restará então a prova indireta ou por presunção, que deve, porém, decorrer de indícios seguros, contemporâneos e que se corroborem entre si, admitindo cada um apenas uma leitura.
Vejamos então, se eles existem, permitindo a prova por inferência.
O que não podem é fazer-se deduções de deduções ou inferências de inferências feitas pelos sujeitos processuais e testemunhas.
É este pois, o “pano de fundo” da prova no presente processo que de seguida se aprofundará – sempre tendo-se em conta que se está perante um voto de vencido e não perante uma decisão, que assim será sempre diferente do projeto que apresentámos.
Concretizando um pouco mais as declarações do assistente CC para memória futura – já que às mesmas se dá um especial ênfase no Acórdão que fez vencimento - este logo aí referiu que o local era mal iluminado. Foi tudo muito rápido. Tem dúvidas, quanto ao que se passou com o HH. Durante uns tempos, nem conseguia dormir.
Não sabe se o “loiro” – o arguido AA – esteve ao pé do HH. Depois de sair da beira dele, é tudo muito rápido.
Não sabe se a facada dada ao HH foi anterior ou posterior à que lhe foi dada a si.
O HH seguia cerca de meio metro atrás de si e a uma distância de cerca de 5 (cinco) metros, falando mais tarde também em 3 (três)/4 (quatro) metros  – quanto às imagens, fala-se em 3 (três)/4 (quatro) metros.
Quando leva a facada vê o HH “embrulhado” com alguém, sem contudo dizer que era o BB – e o que não garante a exata contemporaneidade dos dois factos. Para mais, tendo sido vítima da referida agressão e estando, naturalmente, em momento de grande “stress”.
Aliás, refere expressamente que quando olha para o HH, já não está ninguém consigo. Vê-o “embrulhado com alguém”, mas não sabe quem.
O “loiro” (AA) depois de sair de ao pé de si, seguiu em direção à rota do HH.
Instado se quando perdeu o AA de vista este poderia ter chegado junto do amigo HH, afirmou não saber.
Salvo o devido respeito, não se vê como estas declarações podem ser altamente incriminatórias do arguido BB.
Perante a P.J., o assistente terá feito uma dedução.
Porém, logo nas declarações para memória futura recua, perante uma inquirição mais circunstanciada.
Assim é, que:
- não vê o BB dar a facada em DD;
- não sabe se a facada que lhe foi dada a si é exatamente contemporânea da desferida na vítima mortal;
- não conseguiu ver com quem, estava o BB “embrulhado”;
- o arguido AA, depois de sair de ao pé de si, após a facada, dirige-se na direção de DD, não sabendo este ofendido se chegou junto dele;
- entre todos, havia uma distância de 3 (três) a  5 (cinco) metros, percorrível assim em 2 (dois)/3 (três) segundos.
Será que se pode excluir, com a necessária segurança, que o arguido AA tenha desferido a facada no ofendido CC e se tenha depois rapidamente dirigido na direção da vítima DD, dando-lhe outra facada?
Recordemos que estamos perante prova indireta e que, todos os indícios que decorrem deste depoimento, tão valorizado na tese que fez vencimento, não conduzem a uma única inferência. Pelo contrário, parecem-me compatíveis com ambas as teses em confronto, sendo que uma delas desresponsabiliza o arguido BB pela autoria do homicídio consumado.
Melhor concretizando: deste depoimento em declarações para memória futura não resulta, de forma inequívoca, que não tenha sido o arguido AA quem desferiu a facada mortal, na vítima DD.
Dizer também que terá sido o arguido BB o autor da facada mortal porque era ele que era perseguido pela vítima DD, enquanto o arguido AA era perseguido pelo ofendido CC também nos parece ser uma afirmação arrojada e simplista.
Com efeito, pode dizer-se que havia alguma divisão de tarefas? E, logo após ter desferido a facada nas costas do ofendido CC, não se dirigiu o arguido AA na direção da vítima e do arguido BB, que estariam a escassos 3 (três)/5 (cinco) metros, distância percorrível em poucos segundos?
E como se pode dizer que, atenta a compleição física do arguido AA e da vítima, este para lhe dar a facada teria de o segurar? Com efeito, uma facada, mesmo com segunda insistência (ferida em forma da “cauda de andorinha”) não pode também ser desferida em 2 (dois)/3 (três) segundos? Para quê agarrar?
A verdade é que passado o desnorte pessoal decorrente dos factos e as declarações do assistente perante a P.J., o mesmo recuou logo nas declarações para memória futura – embora não se contradizendo, já que nunca disse ter visto o arguido BB a dar a facada em DD. Como então dizer que o cenário percecionado por CC nestas é o mais lógico?
As declarações deste assistente em julgamento mantêm o registo das declarações para memória futura, apenas com alusões feitas a questões de memória, pelo decorrer do tempo e trauma sofrido. Vêm pois, quanto a mim, em completa concordância com as declarações para memória futura feitas. De mais, apenas refere que o arguido AA estava “mais elétrico” que o arguido BB, estando este mais “calmo”.
Também a testemunha DDD disse não ter visto quem deu as facadas, em qualquer dos seus depoimentos. Confirmou apenas as posições e trajetos do ofendido, da vítima e dos dois arguidos, nos termos já referidos.
Aliás e em 3/3/2 023, em depoimento perante o M.P. refere que “Embora não tenha visto os esfaqueamentos, assegura que o suspeito de cabelo loiro esteve sempre mais próximo de CC; enquanto que o DD correu atrás do suspeito de cabelo escuro.”
É verdade que, confrontado com fls. 101/104 e 455 terá referido que ofendido e vítima mortal terão caído, “quase em simultâneo.” Mas isso não consente o referido intervalo de poucos segundos, para que o arguido AA se tivesse aproximado da vítima DD? E, o facto de terem caído “quase em simultâneo” não equivale a dizer-se que foram atingidos “quase em simultâneo”, já que algum deles pode ter demorado mais tempo a sucumbir. Por outro lado, com todo este clima de terror e agitação pode exigir-se às testemunhas que acertem os seus depoimentos aos segundos?
Mais uma vez, este outro argumento utilizado no acórdão que fez vencimento me parece demasiado fraco, para suportar uma condenação ou mesmo, para que simplesmente daí se infira que se os arguidos caíram “quase em simultâneo” é porque foram atingidos “quase em simultâneo”, pelo que cada um dos crimes só pode ter sido praticado por cada um dos arguidos.
Parece-me também demasiado que, deste pequeno pormenor se infira também aquela grande e grave conclusão.
Também a testemunha HH, Segurança no “EMP01...” prestou um depoimento semelhante à anterior e no sentido das declarações do assistente CC. Com efeito, também ela não viu qualquer das agressões, só vindo a ver depois, o HH a cair.
“Ficou com a ideia de que o indivíduo de “cabelo oxigenado” – o AA – “esteve sempre mais perto do CC, junto da passadeira.” Trata-se apenas de uma ideia, que aliás não corresponde ao facto referido pelo próprio assistente CC, pois o mesmo referiu que o arguido AA, após lhe dar a facada, infletiu a sua deslocação para a esquerda, no sentido onde estavam a vítima e o arguido BB.
Usou, como consta da decisão que fez vencimento, a expressão “vê-os engalhados”. Mas di-lo, logo a seguir a referir que o “loiro” deu um soco ao CC. Salvo melhor opinião e o devido respeito, não se vê como possa argumentar-se, no presente Acórdão, que se admite como possível que se tenha enganado, quando fala no CC “engalhado” e se quisesse referir ao BB. Mas como, com base em quê? A convicção do tribunal deve ser objetivamente fundamentada e, na minha opinião, o que aqui está em causa é um mero palpite do tribunal, por isso não fundamentado, nem justificável em termos objetivos.
Perdoe-se-nos a expressão, mas o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º C.P.P.), não pode dar lugar à sua apreciação arbitrária e não fundamentada.
Mais uma vez, o depoimento desta testemunha não traz prova direta quanto à questão em causa nos autos e a prova indireta que traz, é muito débil.
A prova por declarações e testemunhal não permite assim que se conclua, mesmo em termos de prova indireta e por inferência ou presunção, que foi o arguido BB quem desferiu a facada mortal na vítima DD.
Passemos então das declarações/depoimentos, à questão da faca entregue nos autos pelo Il. mandatário do arguido BB e que este referiu ter sido atirada para um monte pelo seu coarguido AA, num momento de desespero e quando se encontrava em pânico, por poder ter morto duas pessoas.
A faca foi entregue nos autos pelo sr. Dr. KK, Il. mandatário do arguido BB, em 12/6/2 023 (cfr. fls. 751 e 754), logo cerca de quatro meses depois da ocorrência dos factos e com o mesmo já preso há cerca de três meses. Na versão deste arguido, o mesmo terá referido aos seus familiares do local onde a faca foi lançada, tendo depois e a seu pedido, vindo a ser encontrada pelo seu irmão FFF e por seu Pai, AAA, que em julgamento confirmaram esta versão. Entregou-a primeiro à sua anterior Advogada, sr.ª Dr.ª GGG que não quis entregá-la nos autos e depois, ao Sr. Dr. KK, Advogado que passou a representá-lo e que como tal se mantém.
No cabo, não foram encontrados vestígios lofoscópicos de valor identificativo – relatório de exame pericial de lofoscopia, a fls. 793/795 dos autos.
Já a lâmina da navalha apreendida contém vestígios de sangue, cujo A.D.N. se mostrou idêntico ao da vítima DD – cfr. relatórios de perícia de Biologia Forense, constantes de fls. 916/918V.º e de fls, 938/939.
Referiu-se ainda, na decisão que fez vencimento, que para ser comprovada a tese do arguido BB, a faca deveria ter as impressões digitais do arguido AA, o que não acontece.
Ora, a faca que foi junta aos autos não tem quaisquer impressões digitais.
Contudo, porque se não põe também a hipótese de as mesmas terem desaparecido dado ter a faca estado, na versão do arguido BB, cerca de quatro meses exposta às condições naturais, numa mata? Este facto constitui argumento seguro, no sentido de que não foi utilizada pelo arguido AA? É aquela, a única explicação possível? Parece-nos que não e que deve admitir-se também o respetivo desaparecimento, pela exposição da mesma ao clima e meio natural.
Refere-se ainda que não é credível que o arguido AA deixasse assim a arma do crime, à “mão de semear”. Porém, não eram os arguidos BB e AA amigos e até primos, tendo os crimes ocorrido de forma não prevista? Tudo não decorreu da confusão com os ... no interior da Discoteca, expulsão dos arguidos do Bar, respetiva fuga com agressão do arguido AA e posterior perseguição, pela vítima e ofendido CC? Tudo não decorreu em momentos de exaltação e não é possível que o arguido AA tenha espetado a mesma faca em duas pessoas, entrando após em momento de pânico? Porquê excluir que então, se teria visto livre da arma, mesmo na presença do seu amigo e primo BB?
Que a arma será a do crime parece seguro, já que na sua lâmina é encontrado um perfil de A.D.N. semelhante ao da vítima EEE, só possível pelo contacto com o sangue dele. Não é credível versão conspiratória de que a mesma poderia ter sido molhada em qualquer poça de sangue ou local que tivesse sangue da vítima.
Diz-se ainda depois, que caso a faca tivesse sido utilizada pelo arguido AA e o mesmo tivesse espetado a mesma primeiro no assistente CC e depois na vítima DD, ela deveria conter sempre uma mistura de vestígios. Refere-se ainda que “um A.D.N. não apaga outro, pois o A.D.N. não desaparece da faca. E que a faca tinha “um perfil limpinho”.
Porém, esta afirmação vai contra o que a Senhora Perita LL, que fez o exame de A.D.N. dos autos, disse em esclarecimentos prestados em julgamento.
No seu depoimento, começou por esclarecer que a questão de, mesmo numa facada, se deixarem vestígios hemáticos é muito complexa, dependendo do tipo de contacto, de a arma ter estado exposta ao Sol, chuva e bactérias sendo que também é perfeitamente possível que, caso existam vestígios biológicos de várias pessoas no mesmo local, que os mesmos prevaleçam os dois na íntegra ou que um deles prevaleça sobre o outro, fazendo-o desaparecer.
Aliás e expressamente, referiu a Senhora Perita que o facto de a navalha apreendida ter apenas vestígios de A.D.N. de uma pessoa – do falecido DD – não exclui que possa ter atingido outra. É que, como referiu, estes vestígios podem desaparecer, havendo sobreposição de outros ou seja, tomando a lâmina da navalha contacto com outro perfil genético.
Ou seja: que apesar de a dita navalha conter apenas vestígios biológicos do falecido DD, isso não exclui, por si só, que a mesma possa ter sido utilizada na facada dada a CC, porque o perfil de A.D.N. deste entrou em contacto com o de DD.
Por isso, referiu expressamente que o resultado de A.D.N. obtido não exclui que a arma apreendida possa ter sido utilizada nas duas facadas analisadas nos autos – a ... e a DD.
Por outras palavras, referiu que cientificamente é possível que esta arma tenha sido a utilizada nos dois homicídios, apesar de só apresentar um perfil de A.D.N.
Tratam-se de esclarecimentos prestados depois de uma perícia por si realizada e, por isso, o seu conteúdo tem o valor probatório reforçado nos termos do disposto no art.º 163º/1 e 2), C.P.P.
Presume-se subtraído à livre apreciação do julgador que, para dele divergir tem de fundamentar cientificamente a divergência.
Ora, no acórdão proferido diverge-se deste juízo científico, mas sem qualquer fundamentação, muito menos científica.
A afirmação feita colide pois e salvo o devido respeito, com o disposto no art.º 163º/1 e 2), C.P.P.
Assim e em termos científicos não pode dizer-se que, por a lâmina da referida navalha conter apenas perfil de A.D.N. idêntico ao do falecido HHH, não possa a mesma ter sido antes utilizada na facada dada a CC, admitindo-se assim também aqui a possibilidade de este ter sido o autor dos dois crimes – versão do arguido BB.
Pelo que e na minha opinião, também este argumento não serve para afastar a tese do arguido BB.
Tal como julgamos que as declarações de CC, em Declarações para Memória Futura, no sentido de que o arguido AA terá aberto a navalha rapidamente quando era perseguido por si, só sejam compatíveis com a utilização de uma “navalha de ponta e mola” ou automática, o que de facto excluiria que pudesse ser esta a arma utilizada por AA, na facada que deu a III – conforme auto de exame direto de fls. 796, a navalha apreendida é uma “navalha de abertura manual, com lâmina de 9 (nove) cms”.
É que e se estiver bem afinada, também uma navalha de abertura manual pode ser aberta rapidamente.
Mais uma vez temos um indício ou prova indiciária, mas que não comporta uma única e exclusiva leitura.
Em minha opinião, também este argumento é insuficiente para que se diga que esta navalha só foi utilizada na agressão à vítima DD, bem podendo acontecer, apesar de não ser de “ponta e mola”, que tenha sido a arma das duas agressões.
Não se está a dizer que o foi, porque efetivamente disso não há prova. Mas basta poder ter sido, para que se não possa afirmar que esta navalha só atingiu a vítima mortal – como acontece aliás e também, quanto à questão pericial suscitada, quanto à existência de apenas um perfil de A.D.N.
Diz-se ainda, no Acórdão proferido, que se esta arma tivesse estado exposta no exterior, ao Sol e à chuva durante cerca de quatro meses, certamente teria “sinais de ferrugem na lâmina e vestígios de terra ou pó.
Só que, mais uma vez não se fundamenta cientificamente tal afirmação. Poderia a lâmina ser de metal não oxidável? E quatro meses serão tempo suficiente para que apareça a dita ferrugem? E o pó ou terra não poderiam eles também desaparecer ou nem sequer existir, mesmo em tais condições?
Francamente, acho que não sabemos – aí divergindo eu também, da tese que fez vencimento.
De tudo isto retiramos que as provas produzidas eventualmente contra o arguido BB não são sustentadas e além de indiretas, não permitem concluir por inferência e sem margem para dúvidas, que foi ele o autor da facada mortal na vítima DD.
Cada um dos indícios apresentados admite sempre outras leituras e assim, não estão cumpridos os requisitos de certeza que são necessários para a prova de factos, através de prova indireta.
É certo que também não se pode dizer que há prova suficiente, de que tenha sido o arguido AA a dar as duas facadas. Mas, ficará sempre a dúvida sobre se quem desferiu a facada mortal em DD foi o arguido BB ou o arguido AA.
E, nestes termos, não se pode dizer que haja prova suficiente de que foi o arguido BB, quem desferiu tal facada.
Assim, entendemos que os factos alterados que levam à condenação do arguido BB não deveriam ter sido considerados como tal, mas manterem-se como não provados. E não com base no princípio “in dubio pro reo” como se afirmou em 1ª instância, mas por ausência de provas seguras e concretas, para tal decisão.
Duas últimas reflexões ainda sobre esta questão – que este voto de vencido já vai longo, o que porém se justifica pela complexidade dos factos e sua gravidade.
Achou-se estranha a versão do arguido BB quanto à forma como apareceu a faca, mas não se acha estranho que seja o arguido agora condenado – autor do crime, na tese que fez vencimento – quem afinal, faz aparecer a arma do crime. É que os autores dos crimes, especialmente de homicídio, costumam ser os primeiros a querer desfazer-se das armas utilizadas, por nas mesmas poderem aparecer alguns indícios da prática por si, do crime. Teriam o arguido BB ou mesmo o seu Advogado tantos conhecimentos periciais que lhes permitissem entregar a arma do crime, por si utilizada e desvanecer todos os vestígios de utilização pelo arguido? E isto, numa altura em que a prova pericial, nomeadamente a feita pela “Polícia Científica” cada vez mais avança, detetando os mais ínfimos pormenores, mesmo invisíveis a olho nu?
Sinceramente, não me parece e isso sim, é que seria estranho – o arguido que cometeu o crime, proporcionar a entrega no processo crime, da arma por si utilizada.
Tal como não deixa de ser “estranha” a informação que consta da cota de fls. 224 – tantas vezes referida pelo mandatário do arguido AA e a que não se faz qualquer referência na decisão que fez vencimento – no sentido de que o Advogado que defendia e defende o arguido AA, Sr. Dr. JJJ ou alguém que se apresentou como tal, terá telefonado para a “P.J.” após o período inicial de ausência de ambos os arguidos e referido que este arguido queria entregar-se, por ser o “autor das agressões mortais”. Poderá ter havido uma má troca de informação entre o arguido e o seu Mandatário ou depois entre este e o Inspetor da P.J. que recebeu o telefonema ou até uma má perceção do referido por tal Inspetor e é certo que o mesmo arguido nunca confessou este crime e que os Advogados não têm também procuração para confessar os ilícitos criminais dos seus clientes. Mas, não deixa este facto de ser também muito estranho, o que é ampliado pela incerteza de prova que existe nos autos. E, no Acórdão que fez vencimento, nem uma referência a este facto? Com certeza não se terá achado o mesmo relevante ou importante, mas, na minha opinião também ele deve ser objeto de reflexão por todos, quantos intervieram neste processo.

Nestes termos e sintetizando:
- não consideraria como provados, os factos que geraram a condenação do arguido BB;
- absolvê-lo-ia, do crime de homicídio imputado, como em 1ª instância – mas por ausência de prova e não com base no princípio “in dubio pro reo”;
- por ausência da prática de ato ilícito, também ele pressuposto da condenação no pagamento de indemnização por responsabilidade civil extracontratual (art.º 483º C.C.), manteria também a absolvição do mesmo arguido/demandado quanto ao pedido cível formulado pelos assistentes/demandantes EE e DD,
Julgando totalmente improcedentes os recursos do M.P. e dos referidos assistentes/demandantes, mantendo assim, nesta parte, a decisão constante do acórdão proferido em 1ª instância.
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No que se refere ao recurso do M.P. quanto à decisão proferida contra o outro arguido, AA.
Manteria, como no Acórdão que fez vencimento, os factos provados, o homicídio tentado como simples  e subiria também a pena aplicada, mas também não nos termos da tese que fez vencimento.
As razões da minha divergência prendem-se com a aplicação da atenuação especial prevista no Regime Penal dos Jovens Delinquentes – art.º 4º D.L. n.º 401/82, 23/9.
Constitui hoje entendimento pacífico que pode haver dupla atenuação especial da pena, por aplicação do regime penal da tentativa e do Regime Penal Especial para Jovens.
Também eu reconheço a gravidade dos factos (crime de homicídio tentado, que só não se consumou por a facada desferida ter atingido um arco costal da vítima o que, pelo atrito causado, impediu a faca de continuar o seu trajeto, o que poderia ser mortal e revelada também no facto de o arguido ter dado a facada no ofendido, quando ele já estava de costas), revelada ainda em anterior crime de ofensa à integridade física simples praticado logo à saída do Bar (em que também foi ofendido CC – agressão a murro.
É certo que a aplicação do referido normativo não é automática, entendendo-se hoje que a respetiva aplicação não deve ter apenas em conta a gravidade dos factos, mas também a personalidade do arguido e demais circunstâncias do caso concreto.
Tal atenuação especial deve ser aplicada, quando se julgue benéfica para a reinserção social do delinquente (referido art.º 4º).
Ora, pese a elevada gravidade dos factos, a verdade é que o arguido AA tinha, à data dos factos 18 (dezoito) anos de idade, não tinha antecedentes criminais e estava inserido familiarmente.
Todos os factos ocorreram de forma abrupta, rápida e não premeditada.
Assim, sucederam-se o conflito com o grupo de ... no interior do “EMP05...”, a expulsão do Bar dos do arguido BB e não também dos ... e depois, a perseguição dos ofendido e vítima a ambos os arguidos, que se tinham posto em fuga.
É certo que o crime de homicídio tentado é muito grave e que ocorreu até reiteração de ilícitos.
Mas também o é que o ilícito não foi premeditado e resultou fortuitamente, de circunstâncias emocionais fortes e de impulsos que o arguido, talvez pela sua imaturidade e por razões sociais, não soube controlar.
Nestes termos, considero que seria benéfico à sua reinserção social aplicar-lhe a dita atenuação especial (art.º 4º D.L. n.º 401/82, 23/9), sendo insuficiente para a sua não aplicação a gravidade dos factos quanto ao crime de homicídio tentado e a reiteração de ilícitos.
Assim e como constava do meu projeto inicial, condená-lo-ia, nestes termos, nas seguintes penas:
- de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, pelo crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º C.P.;
- de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de homicídio simples tentado, p. e p. pelos arts. 22º/2, b), 23º e 131º C.P.;
 - aplicaria 1 (um) ano de perdão ao crime de ofensa à integridade física simples, sob a condição resolutiva prevista na Lei da Amnistia Papal e não no cúmulo jurídico, por o crime de homicídio estar excluído da sua aplicação (arts.º 2º/1, 3º/1, 7º/1, a) e 8º L. n.º 38-A/ 2 023, 2/8), remanescendo assim para cumprir por este crime 2 (dois) meses de prisão;
- cumulando este remanescente com a pena aplicada pelo crime de homicídio simples tentado, condenaria o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 7 (sete) meses de prisão e não na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão em que vai efetivamente condenado,
assim dando também parcial provimento ao recurso do M.P. nesta parte, mas divergindo também da tese que fez vencimento.
Com este voto de vencido, apenas pretendo manter o meu imperativo ético na escolha da profissão de Juiz – julgar segundo a minha convicção e nos termos que acho corretos e em termos fundamentados, de forma que julgo lógica e coerente.
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2025

(Pedro Cunha Lopes)


[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] Ac. Rel. Évora de 28-05-2013 no procº nº 166/11.4IDFAR.E1 in dgsi.pt.
[3] In www.dgsi.pt.
[4] In “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, reimpressa na Universidade Católica em 2018, página 1144.
[5] In Código de Processo Penal Anotado, Vol. 2, Editora Rei dos Livros, p. 514 e 515.
[6] Acórdão do STJ de 27-04-2017, procº nº 452/15.4JAPDL.L1.S1, in “Diário da República Electrónico”.
[7] Consultável em:
https://jurisprudencia.pt/acordao/54351/
[8] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/440d4f41e0079e1480257aa0004ca3b1?OpenDocument
[9] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b129c0154db3f8ce8025869a005e74e0?OpenDocument
[10] In Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, p. 227 e ss.
[11] Localizável em:
https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/221-2014-90006375
[12] Citado no acórdão do STJ de 10-04-2024, consultável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/66d0cdc88e112c5b80258afc00485801?OpenDocument
[13] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/721097d0f5d474bc802588bf0047b4b4?OpenDocument
[14] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/62e4aaaae8d46a4980257599004a6def
[15] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c03e29f0f882edde802575ba0046e50e
[16] Consultável em:
https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/08/danomorte.pdf