GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA
DEFICIENCIA
NULIDADE
CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL
CONVENÇÃO CMR
RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
LIMITES DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I- Não tendo sido invocada em 1.ª instância a nulidade atinente à deficiente gravação/inaudibilidade de depoimentos, nos termos do art.155.º n.º4 do CPC, encontra-se sanado o vício, não sendo o recurso da decisão final o meio processual para a parte o invocar.
II- Em decorrência não há que anular, por tal vício, nem o julgamento nem a subsequente sentença.
III- Tendo sido impugnada a matéria de facto e verificando-se que, relativamente a concretos pontos de facto, não está acessível toda a prova relevante para a decisão, por estar inaudível certo depoimento em que o tribunal a quo se fundou, nesse segmento da impugnação, por impossibilidade de aceder a toda a prova relevante para a decisão, não pode ser apreciada a impugnação, o que é imputável à parte.
IV- No contrato de transporte impende sobre o transportador uma obrigação de resultado – a efetiva deslocação da coisa/mercadoria e sua entrega no destino, incólume (sem perda nem avaria).
V- No contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, a que se aplica a Convenção CMR, ocorrido o dano, cuja prova cabe ao interessado/credor, o transportador só vê arredada a sua responsabilidade para com a mercadoria, se provar que o dano (perda, avaria ou demora) resulta de uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar (art.18.º n.º1 e 17.º n.º2), podendo, ainda, o transportador afastar a sua responsabilidade fazendo prova de qualquer das circunstâncias particulares previstas no n.º4 do art.17.º (factos liberatórios da responsabilidade - “o transportador fica isento da responsabilidade, nos dizeres da convenção), presumindo-se, feita tal prova, que o dano resulta dessa circunstância, nos termos do n.º2 do art.18.º da Convenção CRM.
VI- O n.º3 do art.23 da CMR consagra uma limitação ao valor da indemnização a pagar pelo transportador, limitação que é afastada se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que segundo a lei da jurisdição que julga a causa seja considerada equivalente ao dolo. (art.29.º n.º1 da CMR)
VII- Á luz da lei portuguesa a negligência e o dolo apenas se devem ter por equivalentes para efeitos de afastamento da limitação de responsabilidade nos termos do art.29.º n.º1 da CMR, nos casos em que a violação do dever de cuidado (negligência), falta imputável ao transportador, se apresente de tal forma intensa e grosseira que revela, nas circunstâncias concretas, um grau de culpa grave.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I-Relatório
1- RL., Lda., intentou contra D. Lda. (D. Freigth Division), ação declarativa de condenação pedindo a condenação da ré a pagar-lhe: i) a quantia de €4.505,70 acrescida de juros de mora desde a data da receção da mercadoria; ii) a quantia de €2.477,24 acrescida de juros de mora desde 17.6.2022; iii) a quantia que se venha a liquidar, quer por despesas quer por lucro cessante, desde a data da instauração da ação até ao integral pagamento pela R. à A. dos montantes devidos a título de indemnização pelos danos. Alegou, em síntese, que comprou à empresa comercial belga A. NV, materiais, pelo preço global de €19.344,16; em 26.10.2021 contratou com a R. o serviço de transporte internacional por via rodoviária desses materiais, desde a Bélgica até São Julião do Tojal; os materiais foram carregados e foi emitida a Declaração de Expedição Internacional nº….; a R. subcontratou outra empresa, a F., Lda., que, por sua vez, terá contratado a T., Lda., verificando-se, desta forma, uma situação de transportadores sucessivos, tendo sido esta última empresa, a T., a fazer a entrega da mercadoria na sede da A., em 04.11.2021; a mercadoria foi rececionada sob reserva; sucede que treze peças de truss das transportadas chegaram ao destino danificadas e inutilizadas e os danos impedem o seu uso normal; essas peças têm o peso total de 72,40kg e o custo de €4.505,70; a. denunciou os vícios à R. em 05.11.2021 e enviou-lhe todos os documentos solicitados pela mesma para avaliação da reclamação apresentada; a R. respondeu em 25 de Fevereiro de 2022 declinando responsabilidade; no camião TIR que transportou a mercadoria da A., foram transportadas outras mercadorias e resulta da observação das peças danificadas, que os danos são consequência de fricção do material com a restante carga, designadamente, com uma retroescavadora que  aí vinha transportada; a embalagem utilizada na mercadoria da A. foi a embalagem adequada e normal para o tipo de mercadoria em questão e a arrumação da carga no camião, efetuada pelo expedidor, foi feita em conformidade com as regras exigidas para o tipo de carga e de transporte, pelo que, os danos ocorreram por culpa grave e exclusiva da R., que não tomou todas as medidas de precaução que lhe competiam e, assim, colocou em risco toda a carga transportada, com as consequências que se vieram a verificar. Alega, ainda, que a mercadoria foi comprada pela A. para utilizar em eventos para os quais é contratada e, por não ter todo o equipamento necessário que havia comprado, viu-se obrigada a alugar material idêntico ao danificado, tendo despendido o montante de €2.477,24, em 17.06.2022; o equipamento, também, foi adquirido para alugar a terceiros no âmbito da sua atividade profissional, com o objetivo de obter o lucro correspondente, pelo que, deve a R. ser, ainda, condenada no prejuízo que vier a ser liquidado.
2- A ré contestou dizendo que de acordo com a alínea b) do nº 4 do artigo 17º da Convenção CMR, o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a falta ou defeito de embalagem quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não são embaladas ou são mal embaladas e foi o que se passou no caso dos autos uma vez que a expedidora apenas colocou a envolver as peças transportadas um plástico preto, mais conhecido por filme, não sendo utilizado qualquer tipo de embalagem ou proteção que permitisse o transporte das mercadorias em boas condições de segurança; a única forma de segurar as mercadorias dentro do camião passa pela utilização de cintas que não evitam o roçar das mercadorias durante o transporte; os danos em causa têm origem na falta de embalagem das peças transportadas. Mesmo que assim não fosse, a responsabilidade do transportador terá de ser calculada de acordo com o disposto nos artigos 23º e 25º da Convenção CMR e a indemnização a pagar pela Ré estaria limitada ao valor correspondente a 8,33 direitos de saque especial, cuja cotação no dia 28 de Outubro de 2021, data do carregamento das mercadorias na origem, era de 1,219 face ao euro, pelo que, o valor máximo da indemnização a pagar pela Ré à Autora não poderia ser superior a €735,17 (72,40 kg + 8,33 x 1,219);
Deduziu incidente de intervenção acessória da transportadora “F., Lda.”
3- A. respondeu às exceções refutando quer a origem dos danos no deficiente embalamento das mercadorias, quer a limitação da responsabilidade à luz da convenção CMR.
4- Por despacho de 31.1.2023 foi admitida a intervenção acessória da F., Lda..
5-Citada esta veio contestar, por impugnação, e alegando que, depois de contratada pela R. para assegurar o transporte da mercadoria da A., subcontratou a empresa de transportes T. – Transportes Lda., que, contudo, não foi quem fez o transporte sendo este efetuado pela empresa LL. Lda.. Diz, ainda, que adere por completo à contestação apresentada pela R., e que o transporte contratado pela A. não foi um transporte exclusivo, mas um transporte em grupagem e no momento da descarga nem sequer é evidenciado que o filme plástico que cobria a mercadoria estivesse danificado o que indicia a pré-existência dos danos.
Deduziu incidente de intervenção acessória da transportadora LL. Lda.
6- Por despacho de 12.6.2023 foi admitida a intervenção acessória da sociedade LL., Lda..
7-Citada esta, veio contestar, para dizer que não teve qualquer contacto com a mercadoria, sendo apenas proprietária do  trator matrícula 61… e não do semi‐reboque matrícula ON…, o qual já vem carregado com a mercadoria do cliente; foi contratada pela F. Lda. para fazer um transporte a partir de um armazém de logística desta F. situado na Holanda – a SE B.V.. Alega, ainda, que o transporte foi executado no dia 28.10.2021 e não no dia 26.10.2021, pela T. Lda. que transportou o material da Bélgica para o armazém na Holanda e a chamada apenas foi contratada para ir buscar o trator já carregado ao armazém da F. e trazê-lo até Leiria.
8- Realizou-se audiência prévia. 
9-Após julgamento foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente por provada apenas em parte e, em consequência, condeno a Ré, D. L.da (D. Freight Division)» no pagamento à Autora «RL., L.da» da importância de €6.982,94 (seis mil, novecentos e oitenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), acrescida de juros comerciais contabilizados desde 06 de outubro de 2022 até integral pagamento.
Mais condeno a Chamada «F., L.da» no pagamento, condicional ao pagamento da Ré à Autora, nos moldes acima exarados, à Ré «D. L.da» da importância de € 6.982,94 (seis mil, novecentos e oitenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), acrescida de juros comerciais contabilizados desde o pagamento efetivo e integral da Ré à Autora até integral pagamento. No mais, absolvo a Ré e as Chamadas dos pedidos. 
Custas pela Ré e pela Chamada «F. » (solidariamente) e pela Autora, em razão do respetivo decaimento.”
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10-Desta sentença interpôs a Ré D. recurso, que termina com as seguintes conclusões:
i) Impugnação decisão de facto
· Alínea EE) dos FP 
1. O tribunal a quo partiu de dois factos para proferir a decisão vertida na alínea EE) dos factos provados: 1º as peças de truss foram carregadas na origem em bom estado; 2º as peças de truss foram transportadas com outras mercadorias, nomeadamente uma retroescavadora, que se encontrava junta às mesmas (sendo que durante o transporte não ocorreu qualquer incidente susceptível de explicar os danos).
2. Verifica-se, porém, que a. não logrou provar o facto sobre o qual recaiu a primeira premissa, sendo que lhe pertencia o respectivo ónus da prova, considerando o alegado no art.60º da p.i. (e que, nos arts.18º e 20º do mesmo articulado, deu a entender, por remissão para a correspondência aí junta sob docs. 25 e 27 a 30, que adquirira as peças de truss em estado de novo), bem como a reserva formulada pelo transportador no campo nº 18 da declaração de expedição mencionada na alínea S) dos factos provados, da qual resulta que o mesmo não verificou o estado da mercadoria aquando do seu carregamento (reserva esta que afasta a presunção – de bom estado aparente da mercadoria no momento em que o transportador a tomou a seu cargo – prevista no art.9º/2 da Convenção CMR).
3. Mais do que não ter feito essa prova, a. não fez qualquer esforço válido nesse sentido.
4. Da factura de venda junta à p.i. sob doc. 1 (cuja tradução a. juntou ao seu requerimento de 14.3.2024, com a referência 48290557) resulta que todas as peças de truss nela descritas eram em “2ª mão”.
5. A. não incluiu entre as testemunhas arroladas quaisquer trabalhadores ou colaboradores da vendedora e expedidora “A. Rent, NV”, que eram os únicos que tinham intervindo na operação de carregamento na origem e estavam em condições de depor sobre o estado das peças nesse momento (a. limitou-se a arrolar três seus trabalhadores, que se encontravam no seu armazém aquando da descarga, mas, naturalmente, não a viram aquando do seu carregamento na origem e, por isso, não puderam esclarecer qual o seu estado nessa data).
6. Para colmatar a insuficiência do seu rol de testemunhos, a. juntou (por requerimento de 4.3.2014, com a referência 48168777) uma declaração de uma empresa belga denominada “A. Distribution NV” (cuja tradução juntou com o seu requerimento de 14.3.2024, com a referência 48290557), tendo por objecto o estado das peças descritas na factura de venda junta à p.i. sob doc. 1.
7. Foi com base nessa declaração que o tribunal a quo considerou que as peças de truss tinham sido carregadas na origem em bom estado e, com esta premissa, proferiu a decisão vertida na alínea EE) dos factos provados.
8. Ao valorar a referida declaração, que encerra um testemunho escrito, emitido por pessoa não identificada, o tribunal a quo incorreu numa violação grosseira do art.518º do CPC.
9. Acresce que a declaração nem sequer foi emitida pela vendedora e expedidora da mercadoria (a empresa belga “A. Rent NV”, com o número fiscal BE …343), mas sim pela empresa belga “A. Distribution NV”, com o número fiscal BE …156, sendo que se trata de duas pessoas jurídicas distintas.
10. Ainda que a declaração observasse os requisitos do art.518º do CPC e pudesse ser valorada, o que apenas se admite por mera necessidade de raciocínio, a mesma, por ter sido emitida por entidade distinta da expedidora e vendedora das peças e cuja relação com esta se desconhece, nunca encerraria força probatória para esclarecer a questão do estado da mercadoria aquando do seu carregamento na origem e para suportar a decisão vertida na alínea EE) dos factos provados.
11. Não tendo sido produzida prova processualmente válida, e muito menos forte, sobre a alegada boa condição da mercadoria aquando do seu carregamento na origem, e sendo este facto (cujo ónus probatório pertencia à A.) uma das premissas da decisão vertida na alínea EE) dos factos provados, esta decisão não pode subsistir, devendo ser revogada, com a consequente transição da matéria nela contida para os factos não provados.
· Alínea GG) dos FP
12. Para fundamentar a decisão vertida na alínea GG) dos factos provados, o tribunal a quo invocou a factura junta à p.i. sob doc. 38 e, da prova testemunhal, o depoimento da testemunha RS.
13. Dessa factura extrai-se, apenas, que, em 18.5.2022, a. alugou à empresa “IP” equipamento de truss inespecífico, pelo valor de €2.477,24, tendo o equipamento sido recebido nessa mesma data, do que resulta que esse documento, por omitir a descrição e o número de peças alugadas, não permite concluir pela identidade entre os equipamentos alugados e as peças danificadas.
14. Não é verosímil que a., para substituir 13 peças de truss danificadas, que recebera em 4.11.2021, tivesse alugado equipamentos substitutos quase 6 meses e meio depois, tanto mais que a testemunha RS declarou que as 482 peças expedidas da Bélgica, incluindo as 13 danificadas, se destinavam a um trabalho específico e que a. adquiriu novas peças substitutas na própria semana em que as peças danificadas lhe foram entregues ou nos dias subsequentes (ficheiro 2024-03-05 100844, passagens da gravação: 00:19:47 – 00:20:16 e 00:24:12 – 00:29:20), podendo-se concluir, com suficiente segurança, pela inexistência de qualquer nexo de causalidade entre a danificação das 13 peças e o aluguer dos equipamentos a que se refere a factura junta à p.i. sob doc. 38, que se insere, tudo o indica, nas regulares “aquisições” de material de truss feitas pela A., a que a testemunha RS. aludiu no indicado segmento do seu depoimento.
15. No mínimo, será forçoso considerar que a. não produziu prova concludente sobre o facto alegado no art.44º da p.i. e que, finda a produção e prova, subsiste uma dúvida razoável sobre o alegado prejuízo da A. (relacionado com o aluguer a que se refere a factura aí junta sob doc. 38), o que obriga a decidir a referida questão de facto controvertida contra o titular do ónus da prova, ou seja, a., nos termos do art.346º do CC.
16. Impõe-se, pois, a eliminação da alínea GG) dos factos provados, porque desprovida de suporte probatório minimamente sólido, e a transição da matéria nela contemplada para os factos não provados.
ii) Do Direito
17. A esperada procedência da impugnação da decisão vertida na alínea EE) dos factos provados imporá, automaticamente, a revogação da condenação da R., pois a ausência de prova de que as 482 peças de truss foram carregadas na origem em estado de novo ou em bom estado e que os danos nas 13 peças ocorreram durante o transporte impedirá o funcionamento da presunção de culpa do transportador prevista no art.17º/1 da Convenção CMR, do que resultará a impossibilidade de responsabilização da R. pelos danos descritos nas alíneas V) a Y) dos factos provados.
18. Em caso de improcedência dessa impugnação, que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, sempre a esperada procedência da impugnação da decisão vertida na alínea GG) dos factos provados, com a consequente eliminação desta, desproveria a condenação, na parte incidente sobre o valor de € 2.477,24, do seu suporte fáctico, obrigando à sua revogação.
19. Ainda que improcedesse a impugnação da decisão de facto in totum, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, o valor da condenação da R. jamais poderia ser fixado, como foi, em €6.982,94.
20. Esse valor de condenação, fruto do afastamento da aplicação da limitação de responsabilidade prevista no art.23º/3 e 4 da Convenção CMR, assenta num grosseiro erro de interpretação do art.29º/1 dessa Convenção, originado por um total alheamento do pensamento do legislador internacional ou, dizendo de outro modo, das razões justificativas da parte final dessa disposição (em que se estende as consequências do dolo à “falta equivalente ao dolo”).
21. A parte final do nº1 do art.29º da Convenção destina-se a jurisdições, como a francesa, que tratam determinadas faltas culposas, pela sua extrema gravidade, como equivalentes ao dolo (entendido como intenção de causar o dano), por reunirem as mesmas características de consciência e malícia, ou a jurisdições que não conhecem o conceito de dolo; com efeito, o propósito do legislador internacional, ao introduzir na parte final do nº1 do art.29º da Convenção, a figura da “falta equivalente ao dolo”, não foi o de diminuir a protecção conferida ao transportador pela Convenção, alargando o leque de comportamentos que o impedem de se aproveitar das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade, mas sim o de possibilitar àquelas jurisdições a aplicação do nº 1 do art.29º nas situações em que o dano provém de faltas culposas do transportador com as mesmas características do dolo.
22. A jurisdição portuguesa não é, claramente, uma dessas jurisdições cuja lei prevê modalidades de culpa (ou faltas) equivalentes ao dolo ou não conhecem o conceito de dolo.
23. Apenas uma reflexão desatenta poderá conduzir à conclusão de que a lei portuguesa equipara, para efeitos da responsabilidade contratual, o dolo e a negligência (mesmo que grosseira).
24. Essa distinção é feita, claramente, no DL nº239/2003, de 4.10, que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, e por meio do qual o legislador pretendeu harmonizar este regime com o da Convenção CMR.
25. Com efeito, nesse diploma, concretamente no seu art.21º, destinado a acolher a solução do art.29º/1 da Convenção CMR, o legislador definiu uma fronteira clara entre o dolo e a negligência, estabelecendo que o transportador só não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade se tiver causado dolosamente a perda, avaria ou demora da mercadoria.
26. Ao anunciar o propósito de harmonizar o regime do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias com o regime da Convenção CMR, e ao consagrar a referida solução no art.21º do DL nº 239/2003, o legislador nacional deixou clara a sua interpretação do nº 1 do art.29º da Convenção CMR e a inaplicabilidade no direito português da “falta equivalente ao dolo”, a que se alude na parte final dessa disposição (por inexistência dessa equivalência), pois caso contrário a pretendida harmonização de regimes jurídicos levá-lo-ia a excluir do DL nº239/2004 uma disposição limitadora da responsabilidade do transportador, como o art.20º (já que, se considerasse que a negligência era equiparável ao dolo no plano da responsabilidade contratual, o transportador estaria sempre obrigado a reparar integralmente o dano) ou, pelo menos (se entendesse que essa equivalência se restringia à negligência grosseira), a estender a consequência prevista no art.21º aos casos em que o transportador actua com aquele grau de negligência.
27. Inexiste no Código Civil português qualquer equiparação da negligência (grosseira ou não) ao dolo, incluindo na responsabilidade contratual, sendo exemplo disso, entre outros, os arts.814º/1 e 815º/1, os arts.892º, 898º, 899º, 903º/1 e 908º e o art.1033º b). Independentemente disso, certo é que o DL nº239/2003, que regula, internamente, o contrato de transporte rodoviário de mercadorias, não deixa margem para dúvidas sobre a inexistência da equiparação da negligência ao dolo, ao associar, no art.21º, a esta última modalidade de culpa consequências ao nível da medida da responsabilidade do transportador não previstas na primeira modalidade, sendo que, aparentemente, a jurisprudência que conclui pela referida equiparação, na qual se integra o acórdão recorrido, não se deu conta disso.
28. Ainda que improcedesse a impugnação da alínea EE) dos factos provados, não parece que a matéria aí contida fosse suficiente para se poder concluir pela culpa da R. (na modalidade de dolo ou mesmo na de negligência, grosseira ou não), pelo que a haver responsabilidade desta seria ao abrigo da presunção de culpa do transportador prevista no art.17º/1 da Convenção CMR.
29. Não se tendo provado dolo da R. (ou da F.), a indemnização a pagar à A. nunca poderia ultrapassar o valor de € 732,76 (8,33 DSE x € 1,215 x 72,40 Kg), nos termos do art.23º/3 e 7 da Convenção CMR (assim seria mesmo que se entendesse que as alíneas EE) e GG) dos factos provados deixavam transparecer negligência da R. ou daquela IA.).
30. Acresce que, mesmo que improcedesse a impugnação da alínea GG) dos factos provados, jamais poderia ser confirmada a condenação da R. no valor indicado nessa alínea (€2.477,24), alegadamente despendido com o aluguer de material substituto das 13 peças de truss avariadas, pois este custo não se enquadra nas despesas passíveis de reembolso nos termos do nº 4 do art.23º da Convenção CMR.
31. A sentença condenatória interpretou incorrectamente e/ou violou os arts.518º/1 do CPC, os arts.346º, 798º e 799º do Cód. Civil e os arts.9º/2, 23º/3, 4 e 6 e 29º/1 e 2 da Convenção CMR.
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11-E interpôs, também, recurso a chamada F. Lda., concluindo da seguinte forma:
A) A Recorrente não pode concordar com a sentença agora recorrida
B) Vem a sentença sub judice condenar a Recorrente ao pagamento da quantia, condicional ao pagamento da Ré à Autora, de 6.982,94 (seis mil novecentos e oitenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), acrescida de juros comerciais contabilizados desde o pagamento efetivo e integral da Ré à Autora até integral pagamento.
C) Deste modo, entendeu o Tribunal a quo condenar a Recorrente por ter dado como provado que o embalamento/acondicionamento negligente do material no veículo transportador lhe é imputável.
D) Considerou o Tribunal a quo, tendo por base o consagrado no artigo 524º do Código Civil, que a “D., Lda. (D. Freight Division), ali Ré, tem um direito de regresso contra a Recorrente, em virtude do contrato de subcontratação entre elas celebrado, tendo a Recorrente, enquanto subcontratada, a obrigação de responder perante a contratada, pelo incumprimento contratual da sua responsabilidade.
E) No entanto, face à impercetibilidade da gravação de parte significativa da prova testemunhal produzida, relativa aos depoimentos de SF a (este na totalidade), RS e AB, facto que obsta à boa decisão da causa e à impossibilidade objetiva de realizar alegações de recurso, deverá ser declarada a nulidade da sentença de que ora se recorre ou, caso esse entendimento não seja acolhido, pelo menos, a realização de audição das testemunhas referidas.
F) Deste modo, deverá ser determinada, oficiosamente, a repetição dos depoimentos das testemunhas supramencionadas, visando-se suprir a impercetibilidade dos mesmos.
G) Quanto à matéria de facto, os factos dados como provados nos pontos V), W), X) e Y) deverão ser dados como não provados, dado que os danos aí invocados pela Autora não são por si comprovados, quer através de prova testemunhal, quer através de prova documental.
H) Aliás, não foi feita qualquer peritagem aos danos, tendo estes sido somente vistos por dois funcionários da Autora.
I) Acresce que no CMR não foi assinalada qualquer não conformidade da mercadoria no momento da descarga, nem qualquer observação sobre a presença de máquinas que a pudessem danificar.
J) Deste modo, é inadmissível que estes mesmos danos sejam dados como provados, sem ter sido realizada uma peritagem, e que seja, assim, determinada a perda total dos equipamentos e a sua consequente total inutilidade.
K) Não se compreende que a Recorrente seja condenada ao pagamento de uma indemnização à Autora pela perda total do equipamento, mas a Autora não seja condenada à devolução dos equipamentos que estaria a receber por inteiro, portanto fica numa situação de enriquecimento sem causa com esta decisão.
L) Por outro lado, alguns dos equipamentos apresentam alegadamente riscos na pintura e o Tribunal a quo entende (mal) que tal determina a sua inutilidade.
M) A indemnização a que o Tribunal a quo condenou a Recorrente foi calculada tendo como referência o montante de um aluguer de material, não tendo tido em conta apenas o material alegadamente danificado, pois o aluguer não corresponde aos equipamentos danificados.
N) A sentença recorrida não se pronunciou sobre a questão dos equipamentos adquiridos se tratarem de equipamentos usados, que foram desvalorizados pelo vendedor em 50%.
O) A falta de pronúncia do Tribunal sobre este facto obsta a uma boa decisão da causa, uma vez que os danos alegados pela Autora podem, na realidade, tratar-se de danos já pré-existentes à compra.
P) Por outro lado, deveria ter sido dado como provado que os equipamentos deveriam ser transportados em caixas de cartão, o que não aconteceu, pois, pelo menos duas testemunhas referiram tal facto de forma objetiva.
Q) Consequentemente, o facto dado como provado na alínea FF), na qual se estabelece que o material foi embalado da forma habitual para este tipo de mercadoria, tem de ser dado como não provado.
R) Nesta senda, também tem de ser dado como não provado o facto provado em II), pois, efetivamente, se prova que a chamada LL, empresa subcontratada pela Recorrente, ao realizar o transporte rodoviário da mercadoria, teve contacto com esta, não podendo ser a sua responsabilidade totalmente afastada, tendo, pelo menos, de responder solidariamente com a Recorrente.
S) Nenhuma dúvida resta que o transporte foi realizado pela LL, logo, obrigatoriamente teve contacto com a mercadoria
T) O transporte realizado foi rodoviário e ficou provado que os danos ocorreram durante o transporte, logo a transportadora não pode ter a sua responsabilidade excluída.
U) Sendo a responsabilidade do embalamento da mercadoria do expedidor, de acordo com as regras do contrato e da própria Convenção CMR, e tendo ficado provado que a embalamento dos equipamentos não era o adequado, a responsabilidade por danos só pode ser imputada ao expedidor, mas já não à Ré ou às Chamadas.
V) Tal como reconhece a sentença sub judice, o montante da indemnização é limitado ao peso da mercadoria, fixando-se, neste caso, em 503,70€.
W) Não é aplicável à Recorrente a exceção à limitação da indemnização, prevista no art.29º da CMR, uma vez que os factos que lhe são imputados na sentença recorrida, são-lhe somente imputados a título de mera negligência, não sendo dados como provados factos que comprovem uma conduta dolosa da Recorrente, ainda que a mero título de dolo eventual.
X) Nenhum facto foi evidenciado na sentença proferida e aqui recorrida, apenas meras conclusões não fundamentadas sobre a existência de dolo eventual.
Y) Os equipamentos transportados tratavam-se de equipamentos em segunda mão, sendo que, face à presunção consagrada no art.799º do CC e não ilidida pela Autora, se presume que os mesmos não se encontravam sem qualquer defeito.”
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12- Contra alegou a Autora no recurso da Ré, terminando com as seguintes conclusões:
A.
No que toca à suposta inaplicabilidade do n.º2 do art.9.º da CMR, não se pode subscrever o entendimento da Recorrente.
B.
Exigindo-se, conforme decorre do normativo em apreço, que as reservas a indicar pelo transportador incidam especificamente sobre a mercadoria a transportar e respectiva embalagem, e se não fique por uma declaração vaga e genérica do legalmente previsto,
C.
deve ter-se por aplicável o disposto no n.º2 do art.9.º da CMR ao presente caso, presumindo-se que a mercadoria e embalagem estavam em bom estado.
D.
Conforme resulta do documento junto com o requerimento apresentado aos 04 de Março de 2024, juntamente com a respectiva tradução que sobreveio em 14 de Março de 2024, o que resultou reforçado por todas as testemunhas arroladas pela Recorrida, sem excepção ou divergência, dúvidas não podem restar quanto ao estado ou condição em que o material foi adquirido.
E.
Donde, nunca tendo os bens sido usados anteriormente, de acordo com o amplo material probatório carreado para o efeito, deve manter-se a al. EE) no conjunto da factualidade dada como provada, concluindo-se, em conformidade com o constante da Douta Sentença, que os mesmos foram expedidos sob a condição de “novo” ou equivalente.
F.
Juntou-se aos autos, legítima e tempestivamente, nos termos do art.423.º do CPC, documento assinado pelo Director-geral da A. Distribution NV, aos 4 de Março de 2024, em inglês, tendo a respectiva tradução sido junta aos 14 de Março de 2024.
G.
Pelo que, ao contrário do propugnado pela Recorrente, o documento é genuíno e susceptível de apreciação processual, impondo-se, de acordo com o previsto nos n.os 4 e 5 do art.607.º do CPC, o resultado probatório seguido pelo Tribunal a quo.
H.
Partindo-se da admissibilidade e subsequente valoração do referido documento, nos termos que nos reportámos supra, importa sublinhar que tanto a empresa encarregada da expedição como a signatária do mesmo pertencem ao mesmo grupo empresarial,
I.
razão por que, tendo ambas participado no negócio que importou a expedição, os factos relatados no referido documento são vinculativos para ambas as empresas,
J.
não havendo, nessa medida, qualquer obstáculo à sua apreciação em juízo, nem ao resultado probatório subscrito, tendo o alegado pelo Recorrente de improceder.
K.
Relativamente ao aluguer do equipamento, resultou demonstrado, tanto documental como testemunhalmente, que, em função da impossibilidade de utilização das peças, se viu a Recorrida forçada a alugar material de substituição.
L.
E isto independentemente de quaisquer aquisições e/ou perdas de equipamentos ocorridas durante o lapso temporal em causa, visto que não teria sido necessário recorrer ao aluguer constante da factura, junta aos autos, acaso as peças tivessem chegado à Recorrida em condições para respectiva utilização.
M.
Tanto a factura respeitante aos bens alugados como o depoimento da testemunha RS., que a enquadrou no âmbito da factualidade relevante, concorrem, de forma inequívoca, para o facto dado como provado pelo Tribunal a quo sob a alínea GG), conclusão que deve ser mantida pelo Tribunal ad quem.
N.
A impugnação das alíneas EE) e GG) dos factos provados, em concordância ao alegado pela Recorrente e determinado na Douta Sentença recorrida, deve ter-se por manifestamente improcedente, ficando, assim, prejudicada a apreciação dos fundamentos e consequências de Direito a que a Recorrente associa à referida impugnação.
O.
Resultou provado que os danos foram causados por mau acondicionamento do material dentro do veículo de transporte, tendo os mesmos ocorrido durante a referida prestação do serviço e, portanto, após o carregamento da mercadoria, pelo que, em conformidade com o previsto no n.º1 do art.17.º da Convenção CMR, não se tendo verificado o preenchimento do condicionalismo legal constante dos n.os 2 a 4 do citado preceito – excepções cuja verificação não logrou demonstrar –, é a Recorrida, na qualidade de transportadora, responsável pelos danos identificados e devidamente provados.
P.
Insurge-se a Recorrente contra o entendimento jurisprudencial praticamente unânime dos nossos Tribunais superiores quanto à interpretação correcta da parte final do art.29.º da Convenção CMR.
Q.
Nos termos da referida disposição legal, inexiste qualquer limite à indemnização a arbitrar nos casos em que “(…) provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”.
R.
No presente caso, além da letra da lei ser clara, o seu espírito, delineado com base nos vários elementos interpretativos, coincide com o que daquela é lícito retirar.
S.
A falta ou inobservância dos mais elementares deveres de cuidado a que se encontrava adstrita, conforme determinado pelo Tribunal a quo, poderá, sem conceder, consubstanciar uma conduta negligente (grave ou grosseira) por parte da transportadora, que, nos termos da lei portuguesa a respeito da responsabilidade contratual, é considerada equivalente ao dolo.
T.
Tal entendimento forma uma corrente jurisprudencial largamente maioritária e dominante no horizonte pátrio, conforme decorre dos múltiplos arestos referenciados supra, não sendo perscrutáveis quaisquer decisões judiciais recentes de sinal contrário
U.
Embora irrelevante para efeitos de decisão do presente pleito, e não obstante reflectirem um entendimento cristalizado num ordenamento jurídico necessariamente distinto do nosso, sempre se dirá que essas considerações doutrinais devem ser desconsideradas, na medida em que foram juntas sem o devido acompanhamento de qualquer forma de tradução fidedigna ou certificada.
V.
Pelo exposto, em atenção à culpa grave em que incorre a Recorrente nos termos dos factos dados como provados, impõe-se, à imagem da decisão judicial recorrida, a sua condenação na indemnização da globalidade dos prejuízos causados com a sua conduta, sem dependência da sua qualificação como dolosa (dolo eventual) ou como negligente.”
*
13- Contra alegou a Autora no recurso da chamada, terminando com as seguintes conclusões:
A.
Não se mostra imperceptível a gravação respeitante à inquirição das testemunhas SF, RS e AB.
B.
Foi possível, assim, à Recorrente apreciar todo o material fáctico e probatório carreado para o processo, sindicando – ou tendo oportunidade para o fazer – todos os meios de prova em que o Tribunal a quo se baseou para proferir a sua douta sentença, ora subscrita pela Recorrida.
C.
Logo não enferma de qualquer vício a sentença recorrida e deve improceder a pretensão da Recorrente no sentido da realização de nova audiência final.
D.
Conforme resulta dos autos, em virtude dos danos sofridos durante o transporte, as treze peças de truss, adquiridas como novas, resultaram inutilizáveis.
E.
Os danos ocasionados por não ter sido transportada devidamente cintada – embatendo, nessa medida, na retroescavadora e demais carga transportada –, foram funcionais e não meramente estéticos.
F.
Tal resultou concludentemente provado dos documentos juntos com a petição inicial e das esclarecedoras declarações prestadas pelas testemunhas, profissionais com décadas de experiência na área da iluminação, sendo outrossim necessário compreender-se, como feito pelo Tribunal a quo, a natureza delicada das funções a que se destinam estes equipamentos e a perigosidade associada à sua utilização sem condições para o efeito.
G.
Daí que deva improceder a alegação de que os danos não resultam provados e, a existirem, não importam a inutilização da totalidade dos equipamentos.
H.
Resultou demonstrado, tanto documental como testemunhalmente, que, em função da impossibilidade de utilização das peças, se viu a Recorrida forçada a alugar material de substituição.
I.
A Recorrida detém várias relações contratuais com diversos clientes, possuindo várias centenas de truss que vai alocando em razão das solicitações que vão surgindo, e o material foi adquirido precisamente por fazer falta e ser necessário ao seu cumprimento.
J.
Independentemente da correspondência ou não entre o material danificado e o material alugado, faz-se claro que o aluguer foi concretizado para fazer face à falta que os equipamentos danificados não se mostraram aptos a suprir.
K.
Conforme resulta da declaração junta com o requerimento apresentado aos 04 de Março de 2024, juntamente com a respectiva tradução que sobreveio em 14 de Março de 2024, o que resultou reforçado por todas as testemunhas arroladas pela Recorrida, sem excepção ou divergência, dúvidas não podem restar quanto ao estado ou condição em que o material foi adquirido.
L.
Nunca tendo os bens sido usados anteriormente, de acordo com o amplo material probatório carreado para o efeito, deve concluir-se que os mesmos foram expedidos sob a condição de “novo” ou equivalente.
M.
Independentemente da sua condição, os truss são transportados nas dolly, embrulhadas em plástico (celofane ou filme, pois, para o efeito pretendido, não se vislumbra diferença).
N.
A suposta embalagem de cartão de nada valeria, em termos de protecção, perante os constantes embates dos truss com a máquina concomitantemente transportada, pelo que a sua existência (a da tal caixa de cartão) jamais obstaria à causação dos danos e subsequente responsabilização da Recorrente.
O.
Devendo concluir-se pela suficiente embalagem da mercadoria transportada, aquando da sua entrega para efeitos de transportação, em consonância ao comummente observado no sector.
P.
Como claro resulta do alegado e devidamente provado, os bens danificados, material novo e devidamente embalado, não se encontravam devidamente dispostos e acondicionados no seio do meio de transporte, não estando cintados, nem, nessa medida, absolutamente imobilizados, conforme se impunha, o que levou a choques entre os mesmos e a retroescavadora transportada em concomitância e se revelou causa idónea à produção dos prejuízos referidos e judicialmente fixados.
Q.
A embalagem foi a adequada e corresponde à usualmente empregada no transporte dos equipamentos em causa, pelo que, nessa medida, não é assacável qualquer responsabilidade ao expedidor.
R.
Corroborando a jurisprudência unânime dos tribunais pátrios, bem como o que ficou assente na douta sentença recorrida, existe equiparação entre dolo e negligência no âmbito do regime da responsabilidade contratual, consagrado no Código Civil.
S.
Admite a Recorrente a possibilidade de existência de negligência no cumprimento das suas obrigações, como excogitável das suas alegações de recurso, não sendo aplicáveis os limites da indemnização previstos no n.º 1 do art.29.º da CMR.
T.
Impõe-se, nessa medida, a sua condenação na indemnização da globalidade dos prejuízos causados com a sua conduta, sem dependência da sua qualificação como dolosa (dolo eventual) ou como negligente.
U.
Ao invés do alegado pela Recorrente, se não vislumbra qualquer presunção de culpa imputável à Recorrida e enquadrável nos termos do art.799.º do Código Civil.
V.
Não se divisa qualquer pertinência, para efeitos de dirimência do presente caso, no acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça invocado pela Recorrente.
W.
Pois, para lá de não existir uma qualquer presunção legal quanto ao carácter “usado” ou “em segunda mão” dos bens transportados, do referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, se interpretado correctamente, apenas se poderá concluir que impendia sobre a Recorrente o ónus de provar que o vício já existia antes do serviço prestado, facto que, por não corresponder à verdade, não logrou concludentemente provar.
*
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
*
       Objecto do recurso/questões a decidir:
       Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões apresentadas, nos termos conjugados dos arts.635.º n.º4 e 639.º n.º1 do CPC, sem prejuízo das questões de que o tribunal possa conhecer oficiosamente (art.608.º, n.º 2, in fine, em conjugação com o art. 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC), prefiguram-se no presente caso as seguintes questões a decidir:
· recurso interposto pela Ré:
- impugnação da matéria de facto; 
-erro de julgamento quanto à verificação dos pressupostos de que depende o pagamento do total da indemnização pedida  pela perda/avaria da mercadoria à luz da Convenção sobre o Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (Convenção CMR) e erro de julgamento quanto à condenação no valor de €2.477,24, por não se enquadrar este custo nas despesas passíveis de reembolso nos termos do nº 4 do art.23º daquela convenção.
· recurso interposto pela chamada Forwartrans:
-nulidade da audiência/repetição de depoimentos por impercetibilidade da gravação; 
-impugnação da matéria de facto; 
-erro de julgamento quanto à verificação dos pressupostos de que depende o pagamento do total da indemnização pedida à luz da Convenção sobre o Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (Convenção CMR).
**
II- Fundamentação
2.1- Fundamentação de facto:
2.1.1- Na sentença objeto de recurso constam como provados os seguintes factos:
A) A Autora é uma sociedade comercial por quotas, que tem como atividade, com escopo lucrativo, a prestação de serviços na área da produção de espetáculos e aluguer de equipamento e efeitos de iluminação, produção e realização de eventos, venda de equipamento ligado direta ou indiretamente a prestação e produção de espetáculos.
B) A Ré é uma sociedade que se dedica à atividade de transportes, designadamente transportes terrestres.
C) No âmbito da sua atividade, a Autora comprou à empresa comercial Belga «A. Rent, NV», com sede em B..de V…, 2830 Willebroek, Bélgica, os seguintes materiais de dolly truss: 16 peças de «Prolyte – PC- VER-H30V-L300- RAL9005 Verto Square H30 Length 300 CM Blak».
D) (…) 30 peças «Prolyte – PC - VER-H30V-L200-RAL9005 Verto Square H30 Length 200 CM Blak».
E) (…) 24 peças «Prolyte – PC - VER-H30V-L100-RAL9005 Verto Square H30 Length 100 CM Blak».
F) (…) 12 peças «Prolyte – PC - VER-H30V-L050-RAL9005 Verto Square H30 Length 050 CM Blak».
G) (…) 328 peças «Prolyte – PC - VER6-600 Conical Coupler 600 Series, AED Rent Dolly for Triangle and Square 30 Trusses».
H) (…) 12 peças Narviflex – KST-0208-00 Gemonteerde Dolly UIT HMPE500R Zwart Voor H30V».
I) (…) 60 peças Narviflex – KST-0208-04 Separation Stacker Dor AED Rent 130- H30 Truss».
J) (…) Pelo preço global de € 19.344,16.
K) (…) Tendo sido discriminado na lista de embalagem (paking list), da seguinte forma: Dolly 1: 200x60x119, com o peso de 137,00 Kg;
L) (…) Dolly 2: 200x60x180, com o peso de 255,00 Kg;
M) (…) Dolly 3: 200x60x210, com o peso de 228,00 Kg;
N) (…) Dolly 4: 200x60x210, com o peso de 228,00 Kg;
O) (…) Dolly 5: 300x60x210, com o peso de 267,00 Kg;
P) (…) Dolly 6: 300x60x180, com o peso de 263,00 Kg.
Q) Em 26 de outubro de 2021, a Autora contratou com a Ré «D. » o serviço de transporte internacional por via rodoviária, dos materiais referidos de C) a P), desde a Bélgica até Portugal, para entrega nas instalações da Autora, em Loures, B…, São Julião do Tojal.
R) Os materiais foram carregados em Willebroek, Bélgica, pela «A. Rent, NV».
S) Foi emitida a Declaração de Expedição Internacional n.º 2…, Guia CMR n.º 1...
T) A Ré subcontratou a Chamada «F. », que por sua vez contratou a Chamada «LL » para realizar o transporte enunciado em Q).
U) A Chamada «LL» entregou a mercadoria nas instalações da Autora em 04 de novembro de 2021, pelas 12 horas.
V) 13 peças de Truss das transportadas chegaram à Autora com falhas na tinta, empenadas, com o ferro desgastado e torcido, o que impede o seu uso normal, dado não oferecerem as condições de segurança que se exigem em qualquer espetáculo ou evento em que devessem ser utilizadas, designadamente uma peça de três metros, com o peso de 10 kg, no montante de € 512,88.
W)(…) Quatro peças de dois metros, com o peso de 8 kg cada uma, no valor total de € 1.545,12.
X) (…) Seis peças de um metro cada, com o peso de 4 kg cada uma, na importância total € 1.944,00.
Y) (…) Duas peças de 0,5 metros, com o peso de 3,2 kg cada uma, no valor total de € 503,70.
Z) A Autora comunicou o descrito de V) a Y) à Ré «D.», via email remetido em 05 de novembro de 2021, pelas 12 horas e 57 minutos.
 AA)(…) Tendo a reclamação sido registada pela Ré com o n.º PRC…-0211, e reencaminhada para o departamento de Insurance Risk Management, processo com a referência PT20….
BB) A Autora enviou à Ré «D. » todos os documentos solicitados pela mesma, para avaliação da reclamação apresentada, designadamente a fatura comercial, a packing list, o valor e peso da mercadoria inutilizada, as fotografias da embalagem utilizada e as fotografias tiradas à descarga.
CC) A Ré «D.» respondeu por email, em 25 de fevereiro de 2022, declinando responsabilidade no que tange o descrito de V) a Y), com fundamento na «falta ou defeito da embalagem» da mercadoria em questão.
DD)No veículo que transportou a mercadoria descrita de C) a P) foram transportadas outras mercadorias de clientes distintos, designadamente uma retroescavadora, acondicionada e colocada no veículo pela Chamada «F. », que se encontrava junta à mercadoria da Autora.
EE) Os danos descritos de V) a Y) resultam do embate desse material com a retroescavadora mencionada em DD).
FF)O material foi embalado da forma habitual para este tipo de mercadoria, tendo os truss sido colocados em dolly.
GG)Para substituição do equipamento desenhado de V) a Y), a Autora alugou, em 17 de junho de 2022, material similar ao aí descrito, tendo despendido o montante de €2.477,24.
HH) No momento do transporte, a envolver as peças transportadas foi colocado um plástico preto, mais conhecido por filme, sendo as Truss acondicionadas e transportadas em dolly.
II) A Chamada «LL» não teve qualquer contacto com a mercadoria, sendo apenas proprietária do trator (61…) e não do semirreboque (ON…), o qual vem carregado com a respetiva mercadoria do cliente.
*
2.1.2- Na sentença objeto de recurso foram considerados não provados os seguintes factos:
I) O equipamento também foi adquirido pela Autora para alugar a terceiros (para ser utilizado em eventos realizados por estes), no âmbito da sua atividade profissional, com o objetivo de obter o lucro correspondente.
II) A mercadoria da Autora, transportada, deveria ser embalada com caixas de cartão.
 III) A arrumação da carga no veículo de transporte foi efetuada pelo expedidor / vendedor.
IV) As peças foram cintadas de forma correta dentro do veículo transportador.
*
2.2-Fundamentação de direito:
2.2.1- Nulidade da audiência de julgamento e decorrente nulidade da sentença por deficiente gravação de depoimentos
Invoca a recorrente F. Lda. que parte das gravações dos depoimentos das testemunhas que indica estão impercetíveis, nomeadamente, o de uma testemunha que diz ser central – SF.. - o que impede a elaboração do seu recurso de forma esclarecida e impede este tribunal de recurso de avaliar o apuramento da matéria de facto, pelo que, entende que deve ser declarada nula e de nenhum efeito a sentença proferida ou, caso assim não se entenda, proceder-se a nova audiência de julgamento onde sejam ouvidas as ditas testemunhas, entendendo, ainda, face à citação de acórdão que convoca, que a tal não impede o facto de ter já decorrido o prazo para a arguição do vício no tribunal recorrido.
Opõe-se a recorrida/autora defendendo que não se verifica aquela impercetibilidade.
Como a recorrente reconhece na sua alegação, eventual vício atinente à gravação da prova, havia de ter sido arguido no tribunal a quo. De facto, não estamos, por tal concreta razão, em face de nulidade da sentença que convoque qualquer das alíneas do art.615.º do CPC, mas em sede de vício prévio, processual, ocorrido em sede de julgamento no âmbito do qual se verificou a deficiente gravação de parte dos depoimentos que, por imposição legal, deviam ter sido gravados. Em conformidade, o vício agora invocado no recurso reconduz-se a irregularidade que, concede-se, tendo influência no exame e decisão da causa determinará nulidade processual, a integrar no art.195.º do CPC.  
Nos termos do art.155.º n.º3 do CPC, a disponibilização da gravação pela secretaria do tribunal deve ser efetuada no prazo de dois dias após o acto e, o n.º4 do mesmo artigo, estabelece que a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.
Ora não vem alegado que a secretaria não tenha feito aquela disponibilização, constando, aliás, do processo que foi feita tal disponibilização em seguida às sessões de julgamento, pelo que, cabia às partes atuar de forma diligente, devendo verificar as gravações por forma a poderem reclamar se existisse alguma omissão ou deficiência na gravação, donde, decorrentemente, resulta da lei o ónus da parte verificar se as gravações lhe estão acessíveis e em boas condições e requerer em conformidade, não deixando tal verificação para a fase do recurso. E assim é porque a lei visa obstar, contrariamente ao que sucedia no regime pretérito, a que as questões relativas à gravação da prova se venham a colocar na fase do recurso e acarretem (como antes sucedia amiúde) significativo retrocesso processual. A lei consagra agora um regime específico atinente à arguição dos vícios da gravação, que têm que ser invocados em primeira instância e no prazo legalmente previsto, o que, aliás, se justifica, porquanto, a ter ocorrido deficiência na gravação e/ou inaudibilidade de algum depoimento a partir dessa gravação, é aquele tribunal que está em melhores condições de suprir o vício e, se for o caso, determinar a repetição do acto, em momento próximo da realização do julgamento, por forma a que se reponha o iter processual afetado, e se venha a proferir sentença que não seja, também, afetada por vícios processuais pretéritos.
Quer isto dizer que está há muito esgotado o prazo para suscitar qualquer questão atinente a eventual deficiência da gravação que, por isso e enquanto tal, não pode ser invocada na fase de recurso não assumido nesta fase autonomia suscetível quer de inquinar o julgamento quer a subsequente sentença. De facto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado, Almedina, 2.º edição, vol. I, pag.201, em cometário ao art.155.º, “O n.º4, com a virtude de clarificar, um aspeto que vinha sendo controverso na prática forense, estabelece o prazo de 10 dias para a arguição de qualquer falta ou deficiência da gravação, contado a partir do momento em que a gravação é disponibilizada. Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso (cf. Abrantes Geraldes, Recursos no NCPC, 5.ª ed., p.178)”. Na jurisprudência, tal questão tem sido tratada, maioritariamente, em sentido coincidente, como dão conta os acórdãos que se passam a citar: Ac. TRL de 30.5.2017 (rel. Luís Pires de Sousa) em cujo sumário se exarou, na parte que aqui releva: “I-A deficiência da gravação de inquirição de testemunha tem de ser arguida pela parte no tribunal a quo, no prazo de dez dias a partir do momento em que a gravação é disponibilizada (Artigo 155º, nº4, do Código de Processo Civil). II-Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso. III-Sendo a inquirição (parcialmente impercetível) essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, fica o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante porquanto a reapreciação da prova tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.”; Ac. STJ de 12.10.2022 (rel. Ramalho Pinto), que se debruçou sobre se a nulidade processual decorrente da deficiente gravação da audiência pode ser arguida dentro do prazo para interposição de recurso e nas próprias alegações de recurso, única questão colocada nesse recurso, e em cujo sumário se sintetizou: “As deficiências na gravação da prova que inviabilizem o cumprimento da sua razão de existir – o duplo grau de jurisdição em matéria de facto - devem ser arguidas, em 1.ª instância, no prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo, não constituindo as alegações de recurso o meio processualmente idóneo para esse efeito.”, acórdão do qual, por relevante se colhe, ainda, o seguinte “Apenas acrescentaremos, na linha do decidido no acórdão do STJ de 23-02-2016, Revista n.º 350398/09YIPRT.G1.S1, o seguinte: O CPC vigente veio pôr cobro às divergências jurisprudenciais existentes acerca do prazo e do meio próprio para as partes arguirem a falta ou deficiência da gravação realizada, designadamente na audiência final, ao estatuir no artº155º que “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato” (nº 3) e que “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (nº4). Ficou agora claro que as partes dispõem apenas do prazo de dez dias, subsequente à disponibilização da gravação, para invocar no processo qualquer falha que, porventura, detectem e que seja susceptível de impedir o cumprimento cabal da sua razão da sua existência, nomeadamente, assegurar o duplo grau de jurisdição relativamente ao julgamento da matéria de facto. O estabelecimento desse prazo, que é manifestamente inferior ao prazo previsto na lei processual para a interposição do recurso (cfr. artigo 683º do citado código) revela também, sem margem para dúvidas, que a arguição de eventual imperceptibilidade ou inaudibilidade da prova gravada deve ser suscitada perante a 1ª instância, não constituindo a arguição feita na alegação de recurso de apelação meio processual idóneo para esse efeito. E compreende-se a razoabilidade desta solução legal. Na verdade, a arguição perante o tribunal onde terá, eventualmente, ocorrido a falta ou deficiência da gravação possibilitará o seu imediato suprimento, com repetição do depoimento ou depoimentos necessários, antes de o processo subir ao Tribunal da Relação. Logo, deveria a Recorrente ter suscitado directamente a questão da alegada imperceptibilidade/inaudibilidade da gravação dos depoimentos das indicadas testemunhas inquiridas perante o Tribunal de 1ª instância, o que não fez. Por sua vez, no Ac. deste Supremo Tribunal 08-09-2021, Revista n.º 122900/17.2YIPRT-C.E1.S1 decidiu-se, citando acórdão da Relação: “Em suma, como resulta destes arestos, a cuja fundamentação aderimos, com a reforma de 2013, o legislador processual civil pretendeu esclarecer a controvérsia existente à luz do regime processual pretérito no que concerne ao prazo para arguir a nulidade decorrente da omissão ou deficiência da gravação, afastando o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final). O estabelecimento na lei de que a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto, não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram. O prazo previsto no n.º4 do artigo 155º do Código de Processo Civil, a contar da referida disponibilização, faz recair sobre as partes um dever de diligência que as onera com o encargo de diligenciarem pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos, que são disponibilizados no prazo máximo de 2 dias, a contar do acto em causa, e, num prazo curto (10 dias), averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância. 9. Assim, verificando-se que, no caso, estão em causa as gravações da audiência de 23/05/2019, que foram gravadas, como consta indicado na respectiva acta, e ficaram disponíveis na mesma data, como se consignou no despacho recorrido, o prazo de 10 dias para arguir a nulidade decorrente da “deficiência das gravações” iniciou-se naquela data, pelo que tendo a dita nulidade sido apenas invocada em 13/08/2019 (cf. fls. 386-389), após se ter solicitado cópia das gravações 06/08/2019, a mesma foi invocada após o decurso do prazo legal, estando, por conseguinte, sanada, como se decidiu.”; Ac. STJ de 25.1.2024 (rel. Nuno Ataíde das Neves), com o seguinte sumário, na parte relevante:  “II - Com a entrada em vigor do art.155º nº 4 do NCPC, que impõe que a arguição da nulidade por falta ou deficiência da gravação seja invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, tendo tal prazo natureza peremptória, foi tacitamente revogado o disposto no art.9º do Decreto-lei nº 39/95, de 15 de fevereiro, que permitia aquela arguição “em qualquer momento” em que se verificasse ser a gravação “imperceptível” ou inaudível. III – Não sendo aquela nulidade arguida dentro daquele prazo, precludiu o direito de a parte a arguir. IV - Contudo, pode o tribunal conhecer oficiosamente de tal nulidade no caso de anulação da decisão de facto por contradição sobre pontos determinados da matéria de facto (art. 662º nº 2 alínea c) do CPC, quando haja necessidade de recorrer à prova gravada para sanação de tal vício.”; Ac. TRP de 28.6.2024 (rel. Germana Ferreira Lopes), tendo concluído que “II - A falta ou deficiência na gravação da prova, tratando-se de uma nulidade processual, como regra, deve ser arguida, em 1ª instância, no prazo de 10 dias, a contar da disponibilização do registo.”, com desenvolvida argumentação sobre a questão, de que nos socorremos na seguinte passagem: “Em consonância com a posição sufragada, e como se sublinha no citado Acórdão de 5-06-2023 (não publicado) «impõe-se que as partes interessadas acedam à gravação da audiência de julgamento com brevidade de modo a invocar a falta ou deficiência da gravação se for o caso, tendo o legislador criado as condições para um regime eficaz e célere de suprimento de eventuais vícios que se verifiquem na documentação das declaração orais. Caso a parte não faça o controlo da gravação nos prazos estabelecidos, adota um procedimento negligente que não é merecedor de qualquer proteção legal, sanando-se eventual nulidade». (acórdãos acessíveis em www.dgsi.pt).
Perfilhando-se entendimento em sintonia com a jurisprudência acima indicada, impõe-se concluir que tendo a recorrente deixado passar o prazo em que devia ter suscitado a questão atinente à deficiência das gravações, embora se constate pela respetiva tentativa de audição a que procedemos que o depoimento da testemunha SF, na primeira sessão do julgamento (já não na segunda), está inaudível e se verifiquem dificuldades de perceção relativamente a outros depoimentos gravados naquela primeira sessão, encontra-se sanado o vício, não sendo este recurso da decisão final o meio processual para a parte o invocar, posto que a esta data está totalmente decorrido o prazo legal para a respetiva arguição. Aliás, se assim não fosse, permitindo-se à parte suscitar em recurso tal nulidade, far-se-ia “tábua rasa” do n.º4 do art.155.º do CPC, já que bastaria à parte recorrer da decisão invocando tal vício, para que, a verificar-se o mesmo, se invertesse a solução plasmada na lei, quando tal solução visou justamente prevenir retrocessos na marcha do processo, ou seja, inviabilizar que a questão e suas consequências fosse suscitada apenas em sede de recurso. Ademais, abrir-se-ia a porta a eventuais procedimentos desviantes, pois que, estendendo-se o prazo para arguição daquele vício ao prazo de recurso por se admitir a invocação do vício nesta sede, bem pode suceder que a parte, embora conhecedora da irregularidade/deficiência da gravação, avalie o resultado da produção de prova e opte por apenas a invocar em sede de recurso por a repetição da inquirição/depoimento o mais tarde possível se lhe afigurar benéfico aos seus interesses. Por conseguinte, na senda do ac. do STJ de 21.1.2024, apenas em casos excecionais, decorrentes da imposição de conhecimento oficioso de vício que requeira na sua apreciação o acesso à prova deficientemente gravada, por verificação v.g. de contradição sobre certos pontos da matéria de facto, (al. c) do n.º2 do art.662.º do CPC), se poderá admitir que, também oficiosamente, se anulem actos processuais, com eventual repetição do julgamento e/ou determinados depoimentos. E neste enfoque não se identifica na decisão sobre a matéria de facto proferida pela primeira instância, qualquer contradição ou obscuridade/vício de conhecimento oficioso – nem o mesmo vem invocado pelas partes - a justificar a anulação da decisão, nos termos da admissibilidade restrita dessa possibilidade, como antes assinalado.
Em conformidade, não há que anular o julgamento, nem nessa decorrência a sentença, posto que o vício que o poderia determinar se considera sanado, improcedendo nesta parte o recurso.
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2.2.2- Impugnação da matéria de facto/erro na apreciação da prova:
Em ambos os recursos, as recorrentes impugnaram a decisão sobre a matéria de facto.
Vejamos:
Nos termos do art.639.º n.º1 do CPC o recorrente deve apresentar a sua alegação na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Por seu turno, nos termos do art.640.º do CPC que estabelece o “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Resulta evidente do artigo transcrito que pretendendo a parte recorrer na parte atinente à decisão de facto, impugnando-a, tem que cumprir diversos ónus, sob pena do recurso quanto à matéria de facto ser rejeitado e, por isso, não chegar a ser apreciado pelo Tribunal da Relação. Por conseguinte, numa primeira linha de exigências (n.º1 do art.640.º), deve obrigatoriamente especificar a) os concretos pontos de facto incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa; c) a decisão (diversa) que deve ser proferida. E numa segunda linha de exigência, se os meios indicados como fundamento do erro na apreciação das provas tiverem sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso, tem o recorrente que indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda.
A jurisprudência é pacífica quando à necessidade de cumprimento de tais ónus. Assim, v.g. Acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência, de 17.10.2023 onde se diz “Com efeito, no art.º 640, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, consta do n.º1, Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgado; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida; e quanto ao ora em análise, c) A decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Apontados como ónus primários, pois têm como função delimitar o objeto do recurso, fundando os termos da impugnação, daí a sua falta traduzir-se na imediata rejeição do recurso, em contraposição aos ónus secundários, previstos no n.º2 do art.º640 relativos à alínea b) do n.º1, enquanto instrumentais do disposto no art.º 662, que regula a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto pelos Tribunais da Relação, permitindo assim, um efetivo segundo grau de jurisdição no conhecimento das questões de facto, na procura da sua melhor realização, em termos relevantes, isto é, na busca da verdade material com a decorrente justa composição dos litígios.”; ou nos dizeres do sumário do Ac. TRG de 12.10.2023 (relatora Maria João Matos), “I. O ónus de impugnação da matéria de facto julgada exige que, cumulativamente, o recorrente indique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os meios probatórios e as exactas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira instância - para cada um dos factos que pretende impugnar -, e a decisão que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art.º 640.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).”, ou ainda no Ac. TRP de 12.7.2023 (Paula Leal de Carvalho) “A impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada quando o Recorrente: não deu cumprimento, nas conclusões, aos requisitos previstos nas als. a) e c) do nº 1 do art. 640º, do CPC pois que não indicou os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda e as respostas que, em seu entender, deveriam ter sido dadas, sendo que são estas que delimitam o objeto do recurso; não deu igualmente cumprimento a tais requisitos no corpo das alegações, pois que, aí, limita-se a transcrever os factos provados e não provados e a dizer que o juiz “não poderia ter dado todos os factos acima identificados como não provados” sem concreta indicação das respostas que, em seu entender, deveriam ter sido dadas; não cumpriu o disposto na al. b) do nº 1 do citado art. 640º, mais não fazendo do que uma impugnação em bloco, não conexionando cada facto individualizadamente (ou, pelo menos, grupos de factos que estejam em intimamente relacionados) com os concretos meios de prova que aduz; e não cumpriu o disposto no art. 640º, nº 2, al. a), não localizando, na gravação, o momento temporal (minutos) correspondente aos depoimentos que transcreve.”, ou Ac. TRL de 11.7.2024 (Paulo Fernandes da Silva) “II.–Sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna.”, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Haverá ainda de ter em conta que, relativamente à forma/modo de cumprimento do ónus previsto na al. c) do n.º1 do art.640.º, questão que vinha gerando controvérsia, o já mencionado Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º12/2023, de 17.10.2023, com a retificação operada pela declaração de retificação n.º25/23 (DR de 28.11.2023) uniformizou a jurisprudência da forma seguinte: «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».  
Já quanto ao cumprimento do ónus previsto na al. a) do n.º1 do art.640.º do CPC, como ressalta também desse mesmo acórdão uniformizador, a indicação dos concretos pontos de facto terá, sob pena de rejeição, que constar das conclusões do recurso.
Quanto à indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (al. b) do n.º1 do art.640.º), vem sendo entendido que tal ónus se cumpre se for possível extrair com segurança das alegações de recurso a indicação dos concretos meios probatórios em que o recorrente se funda para defender que se impõe decisão diferente sobre cada um dos pontos de facto concretamente impugnados.
Por outro lado, ainda, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento, tendo em vista o cabal cumprimento dos ónus impostos ao recorrente quando impugna a decisão sobre a matéria de facto (Ac. STJ de 25.11.2020 (Paula Sá Fernandes) “II. Omitindo a Recorrente o cumprimento dos ónus processuais a que se refere o artigo 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo aplicável o convite ao aperfeiçoamento das conclusões a que se refere o n.º1, b) do artigo 652.º do CPC.”; Ac. STJ de 14.2.2023 (Jorge Dias), “III - No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640.º, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada. IV - Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640.º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.”, - acessíveis em www.dgsi.pt.
Acresce, que o conhecimento da impugnação da matéria de facto, pelo Tribunal da Relação, haverá de se revelar necessário e relevante para a apreciação das questões objeto do recurso, donde, evidenciando-se que a alteração dos factos pretendida não tem a virtualidade de se repercutir, alterando ou modificando os termos da questão a apreciar no recurso, o tribunal superior não tem que conhecer do recurso sobre a impugnação da matéria de facto, ou conhecê-lo na sua totalidade, podendo a apreciação cingir-se aqueles concretos pontos de factos relevantes e cuja alteração, supressão ou aditamento, tenham a virtualidade de se puderem repercutir na decisão final do recurso, em face das demais questões objecto do mesmo. Neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 3.11.2023 (Mário Belo Morgado), em cujo sumário se exarou: “I- O julgamento da matéria de facto está limitado aos factos articulados pelas partes, nos termos do art. 5º, nº 2, do CPC [sem prejuízo das circunstâncias particulares contempladas nas alíneas a) a c) deste mesmo nº 2]. II- Se determinados pontos não foram alegados pelas partes, nem constam do elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença da primeira instância, eles são insuscetíveis de constituir o objeto de impugnação da decisão de facto dirigida a aditá-los à factualidade provada. III- Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto. IV- De acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte. V- Deste modo, o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio. VI- Na parte em que na revista se visa (em última análise) que a Relação adite à matéria de facto determinados pontos que são insuscetíveis de influir na decisão da causa (à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito), o recurso é inútil, o que obsta ao conhecimento do respetivo objeto.”; Ac. TRL de 26.9.2019 (Carlos Castelo Branco) – “I)– Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).”; Ac. TRC de 25.10.2022 (João Moreira do Carmo) - “I - Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância, importância ou suficiência jurídica para a solução de direito e mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente; Ac. TRG de 22.10.2020 (Maria João Matos) -” V. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.” (acessíveis em www.dgsi.pt)
Em face do que fica dito, vejamos o caso dos autos, desde logo no sentido de verificar se as partes cumpriram convenientemente os citados ónus.
· Pretende a recorrente/ré a alteração dos factos provados vertidos sob os pontos EE) – “Os danos descritos de V) a Y) resultam do embate desse material com a retroescavadora mencionada em DD).” e GG) – “Para substituição do equipamento desenhado de V) a Y), a Autora alugou, em 17 de junho de 2022, material similar ao aí descrito, tendo despendido o montante de €2.477,24.”, como expressamente fez constar nas conclusões do recurso.
Quanto à diferente decisão a proferir, a mesma traduz-se na consideração de tais factos como não provados (conclusão 11.ª e 16.ª do recurso).
Relativamente à argumentação aduzida para sustentar decisão diferente, e meios de prova invocados, estriba-se a recorrente no seguinte:
Quanto à alínea EE), diz que o tribunal recorrido se fundou na prova de dois outros factos dos quais retirou a prova dos factos constantes daquela alínea EE), factos aqueles que entende não terem sido demostrados. Mais precisamente, a recorrente insurge-se relativamente ao facto do tribunal a quo ter valorado a declaração junta pelo requerimento de 4 de março de 2024 e, com isso, ter violado a lei processual, porquanto, tal declaração encerraria um depoimento escrito, emitido por pessoa desconhecida, não se encontrando preenchidos os requisitos do art.518.º do CPC, e, mesmo que pudesse ser valorada tal declaração, a mesma “nunca encerraria força probatória para esclarecer a questão do estado da mercadoria aquando do seu carregamento na origem”.
Quanto ao facto vertido em EE) o tribunal recorrido exarou na motivação “a declaração junta com o requerimento recebido nos autos em 04 de março de 2024 (com a tradução junta em 14 de março de 2024), que atesta que o material em questão foi vendido «como novo», «sem quaisquer defeitos», uma vez «que nunca foi efetivamente utilizado», o que serviu, conjugado com os restantes elementos probatórios colhidos nesta sede, para a resposta dada à factualidade mencionada em EE), porquanto se atesta que os danos ocorreram durante o transporte da mercadoria; Tudo conjugado com o teor das declarações de parte da representante legal da Chamada «L.L. », SL, Gerente da Chamada «LL», a qual prestou as suas declarações de modo convicto e sério. Atestou que a Chamada «LL » foi contratada pela Chamada «F. » para fazer o transporte de mercadoria da Holanda para Portugal. Refere não saber o que era a mercadoria, que foi carregada por outra empresa. Afirmou que o transporte ocorreu sem incidências / acidentes, o que contribuiu, em conjugação com os demais elementos probatórios colhidos nesta sede, para a resposta dada aos factos mencionadas em EE), considerando que não existe outra explicação, de harmonia com as regras da experiência comum, que não seja o atrito entre a retroescavadora e o material, que se encontravam acondicionados juntos, face à inexistência de qualquer evento (acidente ou similar) no transporte da mercadoria. Confrontada com os documentos 6 junto à petição inicial e com a contestação de 31 de outubro de 2022, confirmou a sua veracidade. Por fim, asseverou que a mercadoria em apreço foi transportada com mais sete cargas. Contribuiu, assim, para a resposta positiva dada aos factos elencados em T), DD), EE) e II).”
Uma conclusão se impõe, embora o tribunal recorrido tenha valorado a dita declaração, a prova da factualidade vertida em EE) não se funda exclusivamente nesse documento, mas da conjugação do mesmo com os depoimentos mencionados. E, embora se afigure que a recorrente quanto a esta impugnação concreta, não a funda no depoimento das testemunhas convocado pelo tribunal a quo,(v.g. dando-lhe relevância e sentido diferente), referindo-se a tais depoimentos apenas para contextualizar a sua discordância que funda essencialmente noutras razões, o certo é que, mesmo que assim se não fosse e se entendesse que a impugnação feita pela recorrente se estende à valorização de tais depoimentos, pondo-a em crise, a mesma recorrente nesse concreto segmento não deu cumprimento, aos ónus previstos na al. b) do n.º1 e alínea a) do n.º2 do art.640.º do CPC, não identificando cabalmente os depoimentos concretos que imporiam decisão diferente, nem indicando as passagens da gravação em que funda o recurso, pelo que, neste enfoque e perspetiva, sempre se imporia a rejeição da impugnação com esse concreto âmbito. 
Não obstante, extrai-se com segurança que a recorrente se insurge essencialmente quanto à prova desse facto, porquanto, entende que não ficou provada a factualidade que constitui a “premissa” em que o tribunal a quo se baseou – que efetivamente se pode colher da motivação constante da sentença e acima transcrita –, ou seja, por ter considerado que o material foi vendido como novo, com base na declaração escrita que a recorrente entende não poder ter sido considerada pelo tribunal, ou seja, ter o tribunal usado um meio de prova inadmissível.
Importa pois verificar apenas se o tribunal podia ou não valorar a dita declaração, o que se reconduz mais propriamente à admissibilidade legal desse meio de prova.
Em primeiro lugar há que dizer que tal declaração não constitui um depoimento escrito no sentido previsto no art.518.º do CPC. Este artigo é a concretização do que se dispõe no art.500.º do CPC, ambos incluídos na secção II atinente à produção de prova testemunhal; assim, prevendo-se no art.500.º que as testemunhas depõem presencialmente ou através de videoconferência, exceto nas situações aí referidas, entre as quais, na al. f), se prevê o depoimento escrito nos termos do art.518.º, impõe-se concluir que o depoimento escrito se refere ao depoimento de testemunha que tenha sido arrolada como tal no processo, por isso, fazendo parte do rol de testemunhas a ser ouvidas; o depoimento escrito a que respeita o art.518.º é o depoimento de pessoa arrolada no processo como testemunha a ser ouvida em audiência e que, se verificados os demais condicionalismos, pode ser autorizada a depor por escrito. Não é manifestamente o caso reportado à declaração que foi junta, pois que não se descortina do rol da autora (nem consta dos autos nada a tal respeito), a indicação de qualquer testemunha que possa corresponder à alegada emitente da declaração. E tanto assim é que, como bem sabe a recorrente, sobre tal assunto se pronunciou em sede de julgamento; a dita declaração foi tratada nos autos como documento cuja junção foi requerida e, como documento, foi deferida, conforme despacho que consta da acta de julgamento de 5.3.2024, com o seguinte teor “Relativamente ao momento de apresentação do documento, o mesmo é datado de 04 de março de 2024, e consequentemente, não podia ser apresentado em momento anterior, não se olvidando que a sua junção foi tornada necessária em virtude da matéria factual aqui discutida. Pelo exposto admito a junção do documento em apreço, ao abrigo do vertido no 423.º/3 do Código de Processo Civil.”. A recorrente pronunciou-se sobre a requerida junção nos seguintes termos, constantes da acta “Pelo Ilustre Mandatário da Ré "D… " em súmula foi dito que quanto ao pedido de tradução dos documentos nada tem a opor, opondo-se porém á junção do documento, uma vez que os documentos devem ser juntos com o respetivo articulado ou até 20 dias, antes da audiência de julgamento entendendo que teve mais de um ano e meio para a referida junção atento a data de entrada da petição inicial, entendendo que a motivação apresentada não é suficiente, para a sua apresentação tardia, mais referindo que a Autora não reconhece ou alega na PI de que se tratava de material usado adquirido em segunda mão, pelo que requer que seja indeferida a sua junção.”, ou seja, apesar de se ter oposto à junção do documento, o tribunal admitiu tal junção e esse despacho transitou em julgado já que não foi impugnado, pelo que, no que releva, o tribunal baseou-se num documento admitido nos autos e, por isso, tratando-se de documento particular, a ser valorado de acordo com a livre convicção do tribunal, não estando em causa qualquer depoimento escrito, não assistindo razão à recorrente quando invoca ter sido violado o art.518.º do CPC, para, por tal via, pretender inquinar a decisão quanto à matéria de facto. Donde, tal documento podia ser valorado pelo tribunal, não sendo exato que dele se não extraia qualquer relação entre a emitente dessa declaração e a vendedora do material, pois que a declaração é emitida por A. Distribution nv, e a venda foi feita por A. Rent, NV, constando da declaração o mesmo logotipo que consta da fatura de venda, e desta mesma fatura consta em rodapé, relativamente aos contactos da vendedora Info.be@...group.com | www….group.com, o que permite inferir que se trata de entidades ligadas entre si, do mesmo grupo, não se concedendo, por isso, na argumentação da recorrente no sentido de que tal declaração não tinha virtualidade probatória. Ao invés, tendo a autora alegado que o material comprado era novo, o que veio a ser posto em causa subsequentemente nos autos, como da sua análise se retira, e veio a justificar a necessidade da autora vir juntar essa declaração, a qual como se viu, podia ser valorada pelo tribunal enquanto prova documental, não se descortina nem vem invocada razão bastante para que o tribunal a quo não se tivesse prevalecido da mesma. Desta feita, o facto base que sustentou a prova do facto ora colocado em crise – alínea EE – tem suporte na dita declaração, o que, tendo em conta o 2.º facto base mencionado pela recorrente e não posto em crise pela mesma – ter a mercadoria sido transportada com outras – permite considerar que, do ponto de vista da consideração desse documento, a convicção adquirida pelo tribunal a quo se afigura razoável e sustentada, congruente e, por isso, não se encontram razões para o seu afastamento, mantendo-se assim, nos factos provados, a factualidade constante da alínea EE). É que também não colhe a argumentação da recorrente de que não podia funcionar a presunção do art.9.º n.º2 da CMR, por entender que a transportadora fez reservas na guia de transporte, por um lado, porque não se deslinda que o tribunal se tenha sustentado, de alguma forma, nessa presunção, ao invés, o tribunal a quo parte do facto de se demonstrar que o material era novo; e, por outro lado, - como melhor se verá infra – o conceito de “reserva” para efeitos da mesma convenção não se reconduz a indicações genéricas tal como a que vem invocada e que, vista a guia de transporte mencionada nos factos provados, se reconduz a uma generalização pré-impressa, e, por isso, sem nenhuma especificidade concreta quanto à embalagem ou defeitos dela ou à concreta mercadoria transportada, não se prefigurando por isso, contrariamente ao que vem dito, a existência de qualquer reserva que houvesse, nesta sede, de ser considerada para, daí (no que nem sequer se concede) fazer decorrer qualquer presunção.
Vejamos agora quanto aos factos constantes da alínea GG) - Para substituição do equipamento desenhado de V) a Y), a Autora alugou, em 17 de junho de 2022, material similar ao aí descrito, tendo despendido o montante de € 2.477,24. - , que a recorrente pretende que transitem para os factos não provados.
Neste domínio a recorrente indica os meios de prova que imporiam decisão diferente, depoimento da testemunha RS, e indica, nas alegações, as passagens da gravação relevantes, tendo dado cumprimento aos ónus relativos à impugnação da decisão e facto. 
Vista a motivação do tribunal a quo relativamente a esta alínea, evidencia-se que se estribou na fatura junta pela autora, relativa ao aluguer do material, documento 38 junto com a p.i., como consta da seguinte passagem da motivação “a fatura correspondente ao documento 38, junta com a petição inicial, que assevera dos factos ilustrados em GG), assim servindo a sua prova;” e no depoimento da testemunha RS, como bem realça a recorrente. E, tal como, também, admite a recorrente nas alegações de recurso, embora não conste da decisão sobre a matéria de facto, expressamente, que a prova do facto em causa se alicerçou no depoimento da testemunha AB, contrariamente ao que sucede com o depoimento da testemunha RS aí expressamente refrenciado, o tribunal a quo ainda menciona na decisão que aquela testemunha “Confirmou que tiveram que alugar outros truss, para poderem trabalhar (uma vez que as peças indicadas como danificadas não podiam ser utilizadas)”.
Entende a recorrente que a dita fatura não permite concluir pela identidade entre os equipamentos alugados e as peças danificadas, não sendo verosímil que para substituir 13 peças danificadas  que recebeu em 4.11.2021, tivesse alugado equipamentos 6 meses depois; alicerça-se, também, no depoimento da dita testemunha RS, nas passagens que indica, de onde retira que a testemunha declarou que a autora adquiriu peças para substituição na própria semana em que as peças lhe foram entregues, inexistindo nexo de causalidade entre o dano das peças e o aluguer da fatura. A recorrida/autora sobre esta alínea, sustentou a sua manutenção com base nos mesmos meios de prova, ou seja, a fatura e aquele depoimento, tal como evidencia a conclusão M) das contra-alegações ao recurso da ré, sem destacar nem indicar com exatidão as passagens em que se funda para defender a manutenção desse facto entre os provados (cfr. art.640.º n.º2 b) do CPC). Quer isto dizer que ambas as partes (recorrente e recorrida) quanto ao facto ora em crise apelam aos meios de prova que o tribunal recorrido convoca para sustentar a prova do facto, entendendo a recorrente que tais meios probatórios não são capazes de sustentar a prova do facto, permanecendo a dúvida, e a recorrida defendendo a sua manutenção, pelo que, a divergência reside na virtualidade probatória desses meios de prova que estão acessíveis a este tribunal (embora no que concerne ao depoimento da testemunha AB a gravação se aporte de difícil percetibilidade, ainda assim, na parte que temos por relevante para a questão que nos ocupa, suficientemente ultrapassadas com recurso a auscultadores e sucessivas tentativas de regulação do som, o que permitiu a apreensão do essencial do sentido dessas declarações no que ora importa). Vejamos: a invocada fatura (junta com a p.i.), data efetivamente de maio de 2022, cerca de seis meses depois da entrega do material danificado e dela não se extrai nenhuma espécie de correspondência com os truss mencionados nos factos provados como tendo sido danificados no transporte, porque apenas contém a seguinte singela referência “aluguer/prestação de serviços”, e nos detalhes diz “equipamento de truss”, não referindo quantidades, nem medidas nem outros elementos distintivos, pelo que, dela não se sabe o que foi alugado (foram 13 peças ou 40 peças? são semelhantes às estragadas ou completamente distintas, em comprimento, peso, etc.?). Nem se diga como parece ser a posição da autora que estes elementos não seriam relevantes, pois que se os truss alugados forem completamente distintos dos danificados (v.g. aqueles medem 0,50cm e estes 2 m), parece-nos que dificilmente se poderia afirmar que uns tinham sido alugados para fazer as vezes dos danificados. Em conformidade, afigura-se-nos a nós manifesto que esse documento, por si só, não demonstra que o aluguer seja determinado pela avaria dos truss transportados e tenha a sua necessidade reportada aquela avaria. Mas o estabelecimento dessa causal ligação pode, naturalmente, sobressair do testemunho que todos, tribunal e partes convocam como relevante. Trata-se do depoimento da testemunha RS, e, ouvido o mesmo integral e repetidamente, sobressai do declarado que as peças danificadas não foram usadas, acrescentando tivemos que alugar, tiveram que ir buscar mais material a outras empresas, estão sempre a comprar material.. foi logo nessa semana (ou nos dias a seguir, completa posteriormente), evidenciando-se, também, como relatou, que não “sabe nada de faturas/faturação”, e acaba por concluir na decorrência das várias questões colocadas que não sabe se foi alugado ou comprado material de substituição; ou seja, do depoimento da citada testemunha não resulta sustentada qualquer relação entre a fatura do aluguer de 18.5.22 e respetivo valor com a impossibilidade de ser usado o material danificado; é certo que a testemunha relata que tiveram que alugar que ir buscar material a outras empresas mas situa esse facto nas proximidades da entrega do material em parte danificado, e, ademais, ao declarar que estão sempre a comprar ou alugar material, não permite sequer que se reconheça no aluguer da fatura apresentada, situação pontual que permita considerar que não podia deixar de ter na sua causa a avaria das 13 peças de truss, resultando ao invés do depoimento a prática corrente da A. no aluguer e compra de material, pelo que, sempre se exigiria que se estabelecesse em termos probatórios - posto que é o valor da citada fatura que vem pedido – uma relação entre aquele concreto aluguer e o facto que o determinaria – o dano de parte dos truss transportados. Note-se que a autora pede uma quantia concreta reportada a um aluguer específico, ocorrido meio ano depois da verificação do dano (quanto se retira do depoimento da testemunha que os truss importados tinham em vista trabalhos específicos naquela proximidade temporal), pelo que, lhe cabia provar a relação causal dessa despesa com a impossibilidade de usar as 13 peças de truss danificadas no transporte. Essa relação não resulta do depoimento da testemunha, que acaba por declarar que não sabe se foi comprado ou alugado o material para substituir, compra e aluguer estes que situa nos dias (semana) imediatos e não 6 meses depois. Nada no depoimento permite concluir que o aluguer concreto a que respeita a fatura foi para substituir o material danificado. E relativamente o depoimento da testemunha AB não supre as evidenciadas insuficiências probatórias, posto que a mesma se limita a afirmar, sem cabal contextualização e concretização que tiveram que alugar, razão pela qual se não estranha que na motivação do tribunal recorrido esse testemunho tenha sido referenciado com a indicação genérica já acima mencionada, e, que a alínea GG), não tenha sido incluída na conclusão final tirada da apreciação do depoimento respetivo, qual seja “Serviu, portanto, a prova quanto aos factos elencados em A), C) a S) e V) a CC)”. A alteração da matéria de facto só deve efetuar-se quando o tribunal ad quem adquira a sua própria convicção (como é suposto) em termos de não permitir, mesmo com apelo aos princípios da imediação e oralidade naturalmente mais atuantes em 1.ª instancia, considerar ainda viável, razoável, e, por isso, sustentada a convicção firmada pela 1.ª instância, ou seja, não se trata tão somente de substituir uma convicção por outra, mas sim de avaliar se à luz dos meios probatórios que devem ser convocados se mostra sustentada a convicção do tribunal a quo, porque igualmente passível de ser extraída desses meios probatórios. No caso, contudo, afigura-se-nos assistir razão à recorrente quando pugna pela inexistência de prova bastante que estabeleça a relação causal entre o dispêndio da dita quantia no aluguer invocado e os estragos no material, não sendo suficientes as declarações das testemunhas nos termos acima relatados e que, por isso, não permitem, ultrapassar a dúvida séria e evidente que já resultava da análise da fatura tal como se deixou sinalizado.
Assim, na procedência dessa concreta impugnação, deve o facto em causa ser considerado não provado, o que se decide, excluindo-se da matéria de facto provada a alínea GG), cujo teor transita para os factos não provados.
· Impugnação da matéria de facto no recurso da chamada F.:
Resulta das conclusões do recurso (irrelevando outras referências a factos que nestas não sejam concretamente identificados, a conclusão L) já está contida na conclusão G) e a conclusão N) só relevaria se dela decorresse a identificação do facto concreto a provar e essa concreta pretensão, o que não ocorre, pelo que, a “questão” mencionada irreleva, posto que da sentença decorre, como se viu aquando da apreciação da impugnação da matéria de facto no recurso da ré, que se considerou o material como novo) que estão em causa, por terem sido nas conclusões concretamente identificados:
1- alíneas V, W, X, Y dos factos provados, pretendendo a recorrente que tais factos sejam considerados não provados (conclusão G). 
2-deve ser dado como provado que os equipamentos deveriam ser transportados em caixas de cartão;
3- alíneas FF) e II) dos factos provados devem ser consideradas não provadas;
Vejamos cada um desses pontos, desde logo para aferir se foram cumpridos os ónus acima analisados.
 Quanto ao ponto 1), estão identificados os concretos pontos de facto em causa e a decisão que devia ter sido proferida. Quanto à identificação dos meios probatórios que impunham decisão diversa, diz a recorrente nas alegações de recurso que não foi feita nenhuma peritagem e não existe qualquer prova da existência dos danos, nem os funcionários da autora sabem descrever os danos, referindo-se, ainda, globalmente, às testemunhas da autora – que não identifica - e sem transcrever ou identificar as passagens da gravação pertinentes. Ora, tinha a recorrente que indicar os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo de gravação, que impunham decisão diferente (al. b) do n.º1 do art.640.º) e, se tais meios probatórios tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, podendo proceder à transcrição (al. c) do n.º2 do art.640.º). A recorrente, manifestamente, não cumpriu tais ónus, posto que não identifica quais os meios probatórios existentes no processo que impunham decisão diferente relativamente a esses factos, sendo irrelevante a referência que faz à inexistente perícia justamente porque não foi efetuada, não constando dos autos, na certeza de que não há aqui prova vinculada que exigisse a perícia, como parece sugerir-se. E, como já se disse, embora haja uma referência global, nas alegações, às testemunhas da A., não há uma identificação delas nem dos respetivos depoimentos em suporte da pretendida alteração, pelo que, também não identifica as passagens das gravações em que se basearia nem efetua transcrição dessas passagens.
Por conseguinte, quanto a esta matéria rejeita-se o recurso da impugnação da decisão de facto.
No que concerne ao ponto 2) supra verifica-se que o facto em causa – embora isso não venha dito claramente - consta do ponto II dos factos não provados -II) A mercadoria da Autora, transportada, deveria ser embalada com caixas de cartão. Assim, sendo apreensível tal correspondência, a pretensão da recorrente é que seja considerado provado o facto não provado sob o ponto II. Este facto, a provar-se, estaria em oposição com o facto provado vertido na alínea FF), o que a recorrente admite, como resulta evidente da conjugação das conclusões P e Q do recurso. Efetivamente, tendo o tribunal considerado provado na alínea FF - O material foi embalado da forma habitual para este tipo de mercadoria, tendo os truss sido colocados em dolly – não poderia dar como provado, sob pena de evidente contradição, que os equipamentos deviam ser transportados em caixa de cartão. Por conseguinte, a pretensão da recorrente de ver provado este facto, tem  que ter sustentação na impugnação eficaz da matéria constante da alínea FF). Ou seja, é pressuposto da sua pretensão de ver provado que o material devia ser transportado em caixas de cartão, o afastamento do facto vertido em FF), posto que não podem coexistir. Por isso se compreende que a alínea Q das conclusões do recurso se inicie “Consequentemente (…)”. Para tanto, frise-se, tinha que impugnar a matéria constante da dita alínea FF), em termos de refutar a prova da mesma, por não ter sido produzida prova que a sustente, de modo a que pudesse virtualizar diferente convicção quanto ao facto em sentido oposto. Ora a recorrente, limita-se a indicar o depoimento de duas testemunhas, sem fazer qualquer análise crítica da prova que resulta ter sido considerada pelo tribunal recorrido para dar como provado o facto de sentido oposto, tudo por forma a evidenciar a relevância e maior sustentação daqueles que atestariam o facto que pretende ver provado em comparação com os meios probatórios de que o tribunal se serviu para dar como provado o facto de sentido inverso. Mas, admitindo que ao invocar apenas tais dois depoimentos, em que se sustenta, tendo transcrito as partes que tem por relevantes (o que não poderia deixar de relevar em termos da maior ou menor sustentação da própria impugnação, posto que o desfecho desta não é imune à argumentação consistente (ou inconsistente) do impugnante), teria ainda cumprido, no limite, o ónus de indicação dos meios probatórios que impõem decisão diversa e, por isso, não é de rejeitar a impugnação, coloca-se, não obstante, questão que impede a apreciação desta impugnação, inviabilizando-a. É que o tribunal recorrido convocou nesta matéria outros depoimentos, desde logo o depoimento das testemunhas RS, SF, dizendo relativamente a este último depoimento que serviu também de contra prova do facto não provado constante de II). Ora como a recorrente admite tendo em conta a questão que trazia ao recurso e já acima decidida, o depoimento da testemunha SF, prestado na 1.ª sessão de julgamento, está inaudível e impercetível (mesmo com recurso aos remédios usados para apreender o testemunho de AB, como antes se disse, não se logra, com suficiência compreender o declarado por SF nessa sessão), impedindo a perceção e compreensão daquilo que declarou nessa sessão de julgamento, pelo que, não é possível a este tribunal avaliar do que foi declarado no confronto com o depoimento das testemunhas que a recorrente convoca por forma a afastar a factualidade provada em causa em prol daquela pretendida. Tal vício, não obstante, como se viu, tem que se considerar sanado e a sua sanação ainda que com os efeitos ora patenteados é imputável à recorrente. Por conseguinte, neste segmento da impugnação, por impossibilidade de aceder a toda a prova gravada relevante para a decisão, não se aprecia a impugnação. Nesse sentido, Ac. TRL de 30.5.2017 (rel. Luís Filipe Pires de Sousa), com o segmento, no respetivo sumário, no que ora importa: “II-Sendo a inquirição (parcialmente impercetível) essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, fica o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante porquanto a reapreciação da prova tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.”; Ac. TRL de 2024-10-22, proferido no Processo n.º 53/17.2T8SCG-A.L1 (rel. Micaela Sousa), constando do respetivo sumário: “I – A deficiência da gravação que revele, no todo ou em parte, a imperceptibilidade ou inaudibilidade dos depoimentos objecto de registo constitui uma irregularidade que se traduz em nulidade secundária, a arguir mediante reclamação da parte interessada no seu reconhecimento. II – Arguido o referido vício e tendo sido julgada improcedente tal arguição, por extemporânea, resulta aquele sanado. III – Estando em causa depoimento totalmente imperceptível, essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, o Tribunal da Relação encontra-se impossibilitado de efectuar a reapreciação da prova, pois que esta tem de ser efectuada com base nos mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.” (sumário acessível em https://trl.mj.pt/ - jurisprudência).
  E finalmente quanto ao ponto 3 remanesce a questão relativa ao facto provado em II), “A Chamada «LL » não teve qualquer contacto com a mercadoria, sendo apenas proprietária do trator (61…) e não do semirreboque (ON…), o qual vem carregado com a respetiva mercadoria do cliente.”, que a recorrente pretende que seja dado como não provado, (conclusão R)), dizendo, nas alegações de recurso, “Apesar de a chamada LL não ser a proprietária do reboque é óbvio que teve contacto com a mercadoria porque comprovadamente assegurou o transporte da mercadoria, portanto era impossível não ter contacto com a mercadoria, aliás no entendimento seguido pela sentença, os danos aconteceram durante o transporte e esse foi assegurado por essa chamada. É um facto assente que se tratou de um transporte rodoviário e não de um teletransporte e ainda que os danos ocorreram durante o transporte (que é um dos factos dado como provado) pelo que a chamada andou com a mercadoria e foi com ela no reboque que não é seu durante milhares de quilómetros, consequentemente a sua responsabilidade não pode ser afastada e, no mínimo, será solidária com a chamada aqui recorrente.”. Mas, como já se viu, a recorrente tinha que indicar os concretos meios de prova que impunham decisão diferente, o que não fez, nem resulta da dita alegação. E é patente que, contrariamente ao que vem dito neste aspeto pela recorrente, o sentido que resulta do facto provado é que a chamada LL., não interagiu fisicamente com a mercadoria, não a manuseou, pelo que, também não colhe eventual contradição que impusesse qualquer intervenção oficiosa deste tribunal à margem da impugnação sobre a matéria de facto feita pela recorrente. Assim, a recorrente não cumpriu os ónus que o art.640.º do CPC lhe impunha, concretamente, os mencionados no n.º1 b) e n.º2 c) do citado normativo. Por conseguinte, nesta parte, impõe-se a rejeição do recurso.
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2.2.3- Mérito da decisão
Tendo em conta os factos definitivamente fixados, cumpre decidir se deve ser mantida a sentença recorrida relativamente à qual ambas as recorrentes se insurgem, essencialmente, por entenderem que a indemnização não podia ter sido fixada no valor arbitrado à luz da regulação que resulta da Convenção CMR relativa ao transporte internacional de mercadorias por estrada.
Precedentemente, dir-se-á desde já, que tendo sido considerada  não provada a factualidade constante da alínea GG) dos factos provados, por via da procedência da impugnação da ré, a condenação constante da sentença que tinha em seu suporte esse facto, não pode manter-se, havendo que revogar a sentença nessa parte, quanto à condenação no valor respetivo de € 2.477,24. E, por outro lado, com isso está prejudicada a questão suscitada na conclusão 30) do recurso da ré DHL.
Em face dos factos provados, os danos que a autora pretende ver ressarcidos - valor dos bens transportados e que apresentavam avaria -verificaram-se no transporte a cargo da ré.
Entre a A. e a Ré foi celebrado um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, conforme resulta da alínea Q) dos factos provados, já que a autora acordou com a ré o transporte por esta – que se dedica à atividade de transportes (alínea B dos factos provados - , das mercadorias desde a Bélgica até Portugal, tendo os bens como local de destino um país diferente do local de expedição. As partes não põem em causa nem a celebração nem a qualificação do contrato celebrado como contrato de transporte, no caso, internacional.
O contrato de transporte pode ser definido como “o contrato pelo qual uma das partes (transportador) se obriga perante a outra (passageiro ou carregador), mediante retribuição, a deslocar determinadas pessoas ou coisas e a colocar aquelas ou entregar estas pontualmente, ao próprio ou a terceiro (destinatário), no local de destino.” (José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, pag.725). Trata-se de um contrato típico e nominado, previsto e regulado nos arts.366.º a 393.º do Código Comercial (que, contudo, quanto ao transporte rodoviário nacional de mercadorias, são inaplicáveis por via da revogação operada pelo DL 239/2003 de 4 de outubro que regulou essa matéria), sendo, nessa medida, um contrato comercial quanto à sua natureza jurídica, e é um contrato sinalagmático e oneroso; pode tratar-se de contrato em que intervém apenas um transportador (contrato simples) ou em que intervêm vários transportadores sucessivos (contrato complexo), e, naturalmente, o transporte pode revestir a modalidade de transporte por terra (estrada ou via férrea), por água (mar ou rio) ou por ar e pode o mesmo contrato combinar essas vias de transporte, o chamado transporte multimodal. Como já se adiantou o contrato pode situar-se geograficamente nas fronteiras de um só país (transporte nacional), ou exigir a sua travessia (transporte internacional).
 É a deslocação que constitui o cerne, a principal prestação, da obrigação a cargo do transportador, tendo como reverso a obrigação do passageiro ou carregador (expressão constante da definição supra) pagar o respetivo preço. Contudo, é ainda elemento fundamental do contrato que as pessoas ou coisas objeto da deslocação, sejam colocadas no local de destino acordado incólumes e nas condições acordadas (Engrácia Antunes, ob. cit. pag.726). Se assim é, já se antevê, que o transportador não tem apenas a obrigação de fazer a deslocação, mas sobre si impedem outros deveres relacionados, posto que tem um dever de custódia relativamente às mercadorias e um dever de vigilância/dever de segurança relativamente às pessoas transportadas. Em decorrência, como melhor se verá infra, a violação de tais deveres pode importar o incumprimento do contrato de transporte, porque o resultado contratual não se verificou total ou parcialmente, seja por ter havido perda total ou parcial da mercadoria cuja entrega no destino constituía obrigação do transportador, seja porque a mercadoria embora entregue no destino na sua totalidade o foi com avaria, o que equivale a dizer que a deslocação se não fez nas condições acordadas. É que sobre o transportador impede uma obrigação não de meios mas de resultado – a efetiva deslocação da coisa ou pessoa e sua entrega no destino, incólume (sem perda nem avaria).
Resulta, também, da definição acima que os sujeitos do contrato são o transportador – aquele que se obriga a efetuar a deslocação -, o carregador ou expedidor (no transporte de coisas) e o passageiro (no transporte de pessoas) que é a contraparte que se obriga a pagar o preço (“frete”), sendo indiferente se este é ou não o proprietário das coisas a transportar ou se foi quem materialmente efetuou a entrega ao transportador da coisa a transportar; e, como terceiro sujeito, o destinatário ou seja aquele a quem a coisa deve ser entregue e que pode ser o próprio expedidor. Cada um desses sujeitos tem direitos e deveres cuja densificação e caracterização melhor se fará em face do regime legal aplicável ao concreto contrato de transporte.
Traçadas as linhas gerais do contrato de transporte, atentemos no caso dos autos.
Tratando-se de contrato de transporte internacional por terra/estrada, aplica-se a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias Por Estrada, vulgarmente conhecida por Convenção CMR, assinada em Genebra no dia 19 de Maio de 1965, transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei nº46.235, de 18 de Março de 1965, alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado pelo Decreto nº28/88, de 6 de Setembro, e desenvolvida pelo Protocolo Adicional à Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), sobre a declaração de expedição eletrónica, de 20 de fevereiro de 2008 (aprovado pelo Decreto n.º20/2019, de 30 de julho).
Nos termos do seu art.1.º n.º1, a Convenção aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar de carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, independentemente do domicílio e da nacionalidade das partes. Esclarecendo o n.º2 do mesmo artigo que “Para a aplicação da presente Convenção devem entender-se por "veículos" os automóveis, os veículos articulados, os reboques e semi-reboques, tais como estão definidos pelo art.º 4º da Convenção Rodoviária de 19 de Setembro de 1949.”.
Por outro lado, diz-nos o art.4.º que “O contrato de transporte estabelece-se por meio de uma declaração de expedição. A falta, irregularidade ou perda da declaração de expedição não prejudicam nem a existência nem a validade do contrato de transporte que continua sujeito às disposições da presente Convenção.”.
E nos termos do art.5.º “1. A declaração de expedição estabelece-se em três exemplares originais assinados pelo expedidor e pelo transportador, podendo estas assinaturas ser impressas ou substituídas pelas chancelas do expedidor e do transportador, se a legislação do país onde se preenche a declaração de expedição o permite. O primeiro exemplar entregue ao expedidor, o segundo acompanha a mercadoria e o terceiro fica em poder do transportador.”
Importa, ainda, atentar que o art.8.º estabelece:
“1. Ao tomar conta da mercadoria, o transportador tem o dever de verificar:
a) A exactidão das indicações da declaração de expedição acerca do número de volumes, marcas e números;
b) O estado aparente da mercadoria e da sua embalagem.
2. Se o transportador não tiver meios razoáveis de verificar a exactidão das indicações mencionadas no parágrafo 1, a), do presente artigo, inscreverá na declaração de expedição reservas que devem ser fundamentadas. Do mesmo modo, deverá fundamentar todas as reservas que fizer acerca do estado aparente da mercadoria e da sua embalagem. Estas reservas não obrigam o expedidor se este as não tiver aceitado expressamente na declaração de expedição.
3. O expedidor tem direito de exigir que o transportador verifique o peso bruto da mercadoria ou sua quantidade expressa de outro modo. Pode também exigir a verificação do conteúdo dos volumes.
O transportador pode reclamar o pagamento das despesas de verificação. O resultado das verificações será mencionado na declaração de expedição.”
Deste artigo 8.º, pertinentemente, resulta que o transportador tem primeiramente o direito a que lhe sejam entregues as mercadorias, e na decorrência o dever de proceder à sua verificação, certificando-se que as coisas entregues correspondem às declaradas na declaração de expedição e o dever de verificar o estado aparente da mercadoria e da sua embalagem. Deixe-se devidamente notado que o art.6.º n.º1 al. f), impõe que a declaração de expedição contenha a indicação da “ Denominação corrente da natureza da mercadoria e modo de embalagem e, quando se trate de mercadorias perigosas, sua denominação geralmente aceite;”, pelo que, o transportador face a essa indicação e demais que constem da declaração de expedição, tem facilitada a possibilidade de verificar a correspondência da mercadoria e sua aparência com aquelas indicações e constatar qualquer desconformidade, sobretudo quanto à embalagem (ou falta dela) que é  aquilo que de imediato se exterioriza. Uma vez que esta verificação é sobre o estado aparente da mercadoria e da embalagem, não se exige nem se pressupõe uma verificação além desse estado exterior e de acordo com os meios razoáveis que o transportador disponha (n.º2 do art.8.º), mas daí não resulta que a verificação não deva ser rigorosa e cuidadosa quanto à quantidade e identidade da mercadoria a transportar (al. a) e quanto à sua qualidade exterior (al. b), e essa verificação da aparência deve ser efetuada de acordo com a diligência média do “bónus pater familiae”. (nesse sentido, José Luís Saragoça, “O Contrato de Transporte Internacional Rodoviário de Mercadorias- A Convenção CMR”, Almedina, pag.286). Além da verificação obrigatória (em cumprimento do respetivo dever), pode o transportador proceder a outras verificações como decorre do mesmo artigo 8.º. Da dita verificação “obrigatória” ou da impossibilidade de melhor verificação por falta de meios (n.º2) decorre, em face dela, o direito do transportador apresentar reservas que a lei manda que sejam fundamentadas, pelo que, não se pode reconduzir ao conceito de reserva qualquer indicação genérica, que não contemple a sua razão de ser, não cumprindo, via de regra, tal exigência, indicações generalizadas e/ou pré-impressas em formulários. De todo o modo, resulta da parte final do n.º2 do art.8.º que as reservas não obrigam o expedidor se o mesmo não as aceitar.  
 Decorre do art.9.º que “1. A declaração de expedição, até prova em contrário, faz fé das condições do contrato e da recepção da mercadoria pelo transportador. 2. Na falta de indicação de reservas motivadas do transportador na declaração de expedição, presume-se que a mercadoria e embalagem estavam em bom estado aparente no momento em que o transportador as tomou a seu cargo, e que o número de volumes, as marcas e os números estavam em conformidade com as indicações da declaração de expedição.”, donde, não tendo o transportador feito a verificação prevista no art.8.º ou, tendo-a realizado, não apresentou reservas motivadas, presume-se, via de lei, que a mercadoria e embalagem estavam em bom estado, discutindo-se se tal presunção é ou não ilidível, no que não nos deteremos por não relevar aos autos.
No que concerne à responsabilidade do transportador, encontra-se a mesma regulada nos arts.17.º a 29.º da CMR, estabelecendo o art.17.º que:
 “1. O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega.
2. O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.
3. O transportador não pode alegar, para se desobrigar da sua responsabilidade, nem defeitos do veículo de que se serve para efectuar o transporte, nem faltas da pessoa a quem alugou o veículo ou dos agentes desta.
4. Tendo em conta o artigo 18.º, parágrafos 2 a 5, o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos seguintes:
a) Uso de veículos abertos e não cobertos com encerado, quando este uso for ajustado de maneira expressa e mencionada na declaração de expedição;~
b) Falta ou defeito da embalagem quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas;
c) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário;
d) Natureza de certas mercadorias, sujeitas, por causas inerentes a essa própria natureza, quer a perda total ou parcial, quer a avaria, especialmente por fractura, ferrugem, deterioração interna e espontânea, secagem, derramamento, quebra normal ou acção de bicharia e dos roedores;
e) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos números dos volumes;
f) Transporte de animais vivos.
5. Se o transportador, por virtude do presente artigo, não responder por alguns factores que causaram o estrago, a sua responsabilidade só fica envolvida na proporção em que tiverem contribuído para o estrago os factores pelos quais responde em virtude do presente artigo.
 E nos termos do art.18.º n.º1 “Compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no artigo 17º., parágrafo 2º.”.
Discute-se a natureza jurídica da responsabilidade do transportador prevista n.º1 do art.17.º. Como dá conta José Luís Saragoça, ob. cit., pag.359 “Tradicionalmente aquela responsabilidade tem sido caracterizada como subjectiva, assente na culpa do transportador, embora com uma presunção de culpa. Para tanto aduz-se o argumento de, como norma, no ordenamento jurídico português a responsabilidade objectiva, pelo risco, existir no domínio da responsabilidade aquiliana e não ser conhecida na responsabilidade contratual. Em verdade, a responsabilidade contratual, em regra é subjectiva (art.798.º do CC) e, nos termos do art.799.º do Código Civil, a culpa do devedor contratual é presumida.”, salientando o mesmo autor uma corrente na doutrina e jurisprudência alemãs que entende que o art.17.º n.º1 consagra uma responsabilidade objectiva do transportador, independentemente de culpa. Na doutrina nacional, é apontada a posição de Manuel Januário da Costa Gomes, e Nuno M. Castello-Branco Bastos, no sentido de que a referida norma consagra uma presunção de responsabilidade (cfr. ob. cit. pag.362 e 363). Disso se dá conta também no Ac. STJ de 2.11.2023 (rel. Graça Amaral) na seguinte nota de rodapé “8. Presunção de responsabilidade que impende sobre o transportador (cfr. Adriano Marteleto Godinho, obra supra citada, p.95; Januário da Costa Gomes, “O acórdão de 12.10.2017 ou o persistente alheamento do STJ relativamente ao regime específico da CMR”, Revista de Direito das Sociedades, 2018, 3, p. 612; Nuno Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes, Série de Cadernos do IDET, Coimbra, Almedina, 2004, p.94; na Jurisprudência, acórdão do STJ de 09-02-2010 (Processo n.º 892/03.1TCGMR.G1.S1) e 05-06-2012 (Processo n.º 3303/05.4TBVIS.C2.S1) ou apenas presunção de culpa (cfr. António Menezes Cordeiro, “Introdução ao Direito dos Transportes”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, n.º 1(Jan.2008) – pp. 139-172; na Jurisprudência, acórdão do STJ de 14-06-2011 (Processo n.º 437/05.9TBANG.C1.S1), 15-05-2013 (Processo n.º 9268/07.0TBMAI.P1.S1).” (acessível em www.dgsi.pt). Já José Luís Saragoça, ob. cit., conclui que “a presunção de responsabilidade contida no art.17.º n.º1 da CRM tem como corolário a responsabilidade objectiva do transportador, porquanto o pressuposto da culpa deixa de relevar para a imputação do dever de indemnizar por perdas, avarias, ou atrasos na entrega”, posto que entende o mesmo autor que, à luz do n.º1 do art.17.º, o transportador não é obrigado a provar que agiu sem culpa uma vez que o afastamento da presunção de responsabilidade – que integra a presunção de vários pressupostos da responsabilidade civil, prescindindo da prova da culpa do transportador, excepção feita aos danos produzidos cuja prova compete ao interessado na mercadoria - não é feito desse modo. No sentido de que a prova do dano cabe ao credor, Ac. STJ de 2.11.2023, já antes citado, onde se sumaria: “Na responsabilização do transportador rodoviário de mercadorias pela não entrega da mercadoria, impende sobre o credor da indemnização o ónus de provar a perda/avaria da mercadoria, por se tratar de elemento constitutivo do seu direito (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).” .
Desta feita, salvo o caso de transporte de mercadorias perecíveis e animais, com adicionais particularidades, conclui-se que, seja por via de uma mera presunção de culpa (posição que se crê vir mais gradualmente a ser abandonada em prol da consideração de que se trata mais do que uma presunção de culpa, de uma presunção de responsabilidade ) ou por se presumir a responsabilidade do transportador (n.º1 do art.17.º), ocorrido o dano, cuja prova cabe ao interessado/credor, o transportador só vê arredada a sua responsabilidade para com a mercadoria, se provar que o dano (perda, avaria ou demora) resulta de uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar (art.18.º n.º1 e 17.º n.º2). Neste caso haverá de provar quer o facto excludente da responsabilidade quer o nexo causal entre esse facto e o dano. Pode ainda o transportador afastar a sua responsabilidade fazendo prova de qualquer das circunstâncias particulares previstas no n.º4 do art.17.º (factos liberatórios da responsabilidade - “o transportador fica isento da responsabilidade, nos dizeres da convenção), presumindo-se, feita tal prova, que o dano resulta dessa circunstância, nos termos do n.º2 do art.18.º - Quando o transportador provar que a perda ou a avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais dos riscos particulares previstos no artigo 17º., parágrafo 4, haverá presunção de que aquela resultou destes. O interessado poderá, no entanto, provar que o prejuízo não teve por causa total ou parcial um desses riscos. – mas esta presunção não é aplicável no caso previsto no artigo 17.º, parágrafo 4, a), se houver falta de uma importância anormal ou perda de volume (art.18.º n.º3).
Em síntese, a CMR consagra no art.17.º n.º1 a regra geral de responsabilidade do transportador, prevendo, em seguida, nos n.º2 e 4 do mesmo artigo, causas de exclusão da dita responsabilidade, ditas gerais (n.º2) ou particulares (n.º4), presumindo-se nestas últimas o nexo causal entre o facto excludente e o dano, salvo a prova adicional a cargo do transportador exigida nos n.º3 e 4 do art.18.º, quanto estejam em causa, respetivamente, circunstâncias que reconduzam ao parágrafo 4, d) e paragrafo 4.º f) do art.17.º. Funcionando a presunção, cabe ao interessado provar que o prejuízo não teve por causa total ou parcial um desses riscos.
No caso de ser afirmada a responsabilidade do transportador por perda da mercadoria  - (o que ocorre se o mesmo não provar nenhum facto excludente e, nessa medida, a nosso ver, melhor colhe efetivamente configurar-se no n.º1 do art.17.º uma presunção de responsabilidade e não só uma presunção de culpa posto que se afirmará tal responsabilidade sem ter que analisar fatores tendentes à afirmação da culpa) -, o art.23.º, na redação resultante do protocolo de 1978, estabelece, quanto ao valor da indemnização, que: 
1. Quando for debitado ao transportador uma indemnização por perda total ou parcial da mercadoria, em virtude das disposições da presente Convenção, essa indemnização será calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que for aceite para transporte.
2. O valor da mercadoria será determinado pela cotação na bolsa, ou, na falta desta, pelo preço corrente no mercado, ou, na falta de ambas, pelo valor usual das mercadorias da mesma natureza e qualidade.
3.A indemnização não poderá, porém, ultrapassar 8.33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta.
4. Além disso, serão reembolsados o preço do transporte, os direitos aduaneiros e as outras despesas provenientes do transporte da mercadoria, na totalidade no caso de perda total e em proporção no caso de perda parcial; não serão devidas outras indemnizações de perdas e danos.
(…)
7- A unidade de conta referida na presente Convenção é o direito de saque especial, tal como definido pelo Fundo Monetário Internacional. O montante a que se refere o nº 3 do presente artigo é convertido na moeda nacional do Estado onde se situe o tribunal encarregado da resolução do litígio com base no valor dessa moeda à data do julgamento ou numa data adoptada de comum acordo pelas partes. O valor, em direito de saque especial, da moeda nacional de um Estado que seja membro do Fundo Monetário Internacional é calculado segundo o método de avaliação que o Fundo Monetário Internacional esteja à data a aplicar nas suas próprias operações e transacções. O valor, em direito de saque especial, da moeda nacional do Estado que não seja membro do Fundo Monetário Internacional é calculado da forma determinada por esse mesmo Estado.
(…).”
Este artigo, no seu n.º3, consagra uma limitação ao valor da indemnização a pagar pelo transportador, afastando-se, assim, da regra geral do direito interno que determina a reparação integral do dano, constante do art.562.º do Código Civil, sendo a indemnização fixada em 8.33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta, ainda que o valor real da mercadoria perdida seja superior. A tal limitação está subjacente a intenção de não onerar em demasia o transportador pelo risco da atividade, tornando-a pouco atrativa ou rentável.
Em caso de avaria a indemnização é calculada nos termos do art.25.º que no seu n.º2 estabelece, também, limites à indemnização.
Sucede que o art.29.º da CMR vem estabelecer que:
“1-O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo. (sublinhados nossos)
2- Sucede o mesmo se o dolo ou a falta for acto dos agentes do transportador ou de quaisquer outras pessoas a cujos serviços aquele recorre para a execução do transporte, quando esses agentes ou essas outras actuarem no exercício das suas funções. Neste caso esses agentes ou essas outras pessoas também não têm o direito de aproveitar-se, quanto à sua responsabilidade pessoal, das disposições do presnete capítulo indicadas no paragráfo1.”
Esta norma afasta quer as causa de exclusão da responsabilidade (1.ª parte do n.º1) quer os limites da responsabilidade do transportador (ou dos agentes, n.º2) a que acima nos reportamos, se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que segundo a lei da jurisdição que julga a causa seja considerada equivalente ao dolo. Caso haja de considerar aplicável tal normativo, sem limitação da responsabilidade do transportador, responde o mesmo pela totalidade do dano, ou seja, nos termos do art.562.º do CPC – Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação -, norma que estabelece o princípio geral da obrigação de indemnização. Antevê-se a substancial diferença, em termos quantitativos, que pode resultar da aplicação das normas da CMR atinentes aos limites da indemnização e da norma por via da qual não opera tal limitação.
A principal questão que o art.29.º da CMR coloca ao remeter para a lei da jurisdição que julga o caso, no presente, a lei portuguesa, é a de saber se a nossa lei, e, na positiva, em que termos, permite equiparar ao dolo certas faltas imputáveis ao transportador, faltas essa, naturalmente, que estejam no origem da produção do dano. E, como sucede não raro, a jurisprudência está divida nesta matéria, perfilando-se duas correntes (ou três correntes se se autonomizar uma terceira via que decorre, a nosso ver, da limitação e da abrangência de uma dessas correntes principais) que, no essencial, apontam em sentidos opostos e disso se dá nota no geral nos diversos acórdãos sobre a matéria. Esta questão é trazida ao presente recurso, por ambas as recorrentes, pelo que exige detalhe adicional.
Sobre a questão, uma corrente jurisprudencial, refuta que se possa considerar que a lei portuguesa, mais concretamente no âmbito da responsabilidade contratual, equipare o dolo à negligência, pelo que, não há fundamento para, em casos em que não está afirmada uma conduta dolosa (em qualquer das modalidades que o dolo reveste), mas apenas uma conduta negligente imputável ao transportador, deva esta conduta/falta – equivaler ao dolo.
Em tal se integram:
-Ac. STJ de 29.4.2010 (rel. Fonseca Ramos), de cuja leitura integral se percebe que, na senda do acórdão que era objeto de recurso e que havia refutado a equivalência entre dolo e negligência, essa falta de equivalência não é refutada pelo STJ, que acaba por considerar, no caso, que a conduta deve ser qualificada como dolosa, e daí o seguinte sumário: IV) - Na Convenção CMR, sobre o transportador e seus auxiliares, quando os houver, impende uma presunção de culpa que, se não for ilidida, implica em caso de demora na entrega – provando o interessado a existência de prejuízo – uma indemnização que não excede o preço do transporte; estamos perante uma indemnização forfetária. Já assim não é, se o dano emergente da demora ou da perda da mercadoria resultarem de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que, segundo a jurisdição do país julgador, seja considerada equivalente ao dolo. V) - Sendo a culpa um juízo de censura ético-jurídico, em função da actuação efectiva do agente, nas concretas circunstâncias em que agiu, e aquela que teria alguém razoavelmente prudente, avisado e cumpridor nesse mesmo quadro factual – o padrão do bonus pater famílias – desde logo, não pode abstrair-se das obrigações emergentes do tipo contratual, dos direitos e deveres implicados nas prestações recíprocas, das regras da boa-fé, bem como do padrão de conduta postulado por uma actuação que respeite os interesses da contraparte, visando a não frustração das expectativas do credor (princípio da confiança), para aferir se uma certa actuação culposa exprime negligência consciente ou dolo, ainda que indirecto ou eventual. VI) – Próxima da figura do dolo, a negligência consciente consiste no facto do agente ter previsto a falta de cumprimento como efeito provável da sua conduta, mas, ainda aí, se demitir, voluntariamente, de adoptar uma actuação que evitaria o dano, ficando indiferente ou desconsiderando os efeitos dessa actuação, que representou como consequência do modo como, in concreto, agiu. VII) – A negligência consciente coabita, paredes meias, com o dolo indirecto, razão pela qual se nos afigura de distintiva relevância convocar o tipo de contrato em causa, os deveres implicados na prestação do devedor, o padrão da sua actuação como profissional no contexto de uma actividade de maior ou menor relevância social e económica, tudo de par com a expectativa do credor na prestação e focados na maior ou menor complexidade da relação obrigacional. VIII) – Se for de considerar que a concreta relação contratual exige uma actuação mais prudente e diligente do devedor que não cumpre, podendo cumprir, sobretudo num quadro factual que não dirime a sua culpa, ao ponto de não se poder afirmar que não previu, nem podia prever que a sua actuação iria causar danos, então deve considerar-se que a sua actuação se elevou do patamar mais benigno da negligência consciente, para considerar que agiu com dolo indirecto ou necessário.(…)”, (acessível em www.dgsi.pt).
- Ac STJ de 25.11.1998 – proc.98A566 (rel. Armando Lourenço); Ac. TRG de 29.10.2009 (proc.982/07), e Ac. TRG de 25.10.2012  proc.9268/07, citados por José Luís Saragoça, ob. cit. pag.459;
 - Ac. STJ de 18.9.2018, proc. 4051/10.9TBPTM.E1.S1 (rel. António Piçarra), o qual embora não versando diretamente questão relativa à norma da CMR ora em causa, exara no respetivo sumário: III - Tal normativo não abrange a negligência grosseira ou culpa grave. Aliás, nada justifica que se estabeleça uma equiparação geral do ilícito negligente com culpa grave ou lata ao ilícito doloso, uma vez que o brocardo latino “culpa lata dolo aequiparatur” não se mantém vigente no direito actual.” (acessível em https://juris.stj.pt/);
Na doutrina, refutando tal equivalência e com posição crítica relativamente à jurisprudência que a acolhe, José Luís Saragoça, ob. cit. pag.459, e 519 e segs., com desenvolvida argumentação, apelando, também ao regime legal relativo ao transporte nacional de mercadorias por estrada, constante do DL 239/2003 de 4.10, em cujo artigo 21.º se consagra expressa e exclusivamente a previsão de conduta dolosa para excluir a limitação de responsabilidade do transportador; concluindo, além do mais que “Com efeito, o contexto literal do art.29.º da CMR não permite, nos termos do art.31.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que a negligência seja considerada equivalente ao dolo, ao intercalar a conjunção “ou” entre os dois termos, uma vez que, o dolo e a negligência, embora sejam modalidades da “culpa latu sensu”, são completamente distintos na lei portuguesa, quer em termos conceituais, quer do regime substantivo.” (ob. cit. pag.526).
Também o Professor Manuel Januário da Costa Gomes, no artigo/comentário ao Ac. STJ de 12.10.2017, intitulado “O Acórdão de 12.10.2017 ou o persistente alheamento do STJ relativamente ao regime específico da CMR”, publicado na Revista de Direito das sociedades, 2018, vol.3, acessível em https://www.revistadedireitodassociedades.pt/, escreve “Há, na verdade, aquilo que nos parece ser um equívoco de base no juízo feito pelo STJ, também presente no acórdão recorrido: o de que sobre o transportador recai uma presunção de culpa e que a não ilisão de tal presunção tem o efeito de o transportador responder pela totalidade dos prejuízos, sem poder invocar qualquer limitação de responsabilidade. Ora, para além de não ser possível transpor para a CMR, sem mais, a presunção de culpa do devedor consagrada no artigo 799.º/1 do Código Civil, parece-nos que a presunção que ressalta do regime do artigo 17.º da CMR não é de simples culpa, mas, mais amplamente, de responsabilidade, (…). Ora, no sistema da CMR, o facto de não ser ilidida a presunção resultante do artigo 17.º/1 não significa que o transportador seja culpado: significa, antes, que é responsável, não se podendo retirar daí, ipso facto, como faz o STJ, num salto lógico, a conclusão de que o transportador não pode limitar a sua responsabilidade, nos termos do artigo 23.º/3 da CMR. (…)  Na verdade, tendo o STJ concluído que o transportador teve um “comportamento meramente negligente”, não podia considerar tal comportamento equivalente ao dolo – grosso modo correspondente à wilful misconduct do sistema de commonlaw – para efeitos de preclusão da limitação de responsabilidade ou perda do direito à limitação, já que, manifestamente, estamos perante um grau de culpa não equivalente. (…) O artigo 29.º não abre mão da nevrálgica definição das situações em que o transportador “perde o direito de aproveitar-se” da limitação e não as remete para a lex fori, (…) essa perda só acontece no caso de dolo ou, então, de uma “falta” que, no direito interno, esteja ao nível do dolo em termos de gravidade – uma falta que, como refere Rolf Herber, conquanto com referência ao § 435 do HGB, constitua uma “culpa especialmente qualificada” (…).”, mas não exclui de todo que possa haver uma falta de no direito interno possa ser equiparada ao dolo, como se retira do seguinte “(…)a hipótese que poderia ter sido, eventualmente, discutida e assumida pelo STJ teria sido a de saber se, no direito interno, um comportamento qualificável como de “culpa grave” deve ou pode ser equiparável ao dolo para efeitos do artigo 29.º da CMR, sendo a mesma questão suscitável relativamente ao artigo 21.º do DL 239/2003. É um caminho que tem sido trilhado, por exemplo, na Alemanha, (…). Neste particular, o facto de o artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, equiparar, em sede de certas cláusulas contratuais gerais absolutamente proibidas, o dolo à culpa grave pode constituir um apoio de peso, podendo também retirar-se relevantes consequências, designadamente, do regime do artigo 809.º do Código Civil30. Admitir-se-ia mesmo que, em função de a culpa dever ser entendida em termos éticos e não psicológicos, pudesse ser colocada a mesma dúvida relativamente a uma situação qualificada como de “negligência grosseira” (…) A interpretação que circunscreve a perda do direito de limitação à identificação de situações especialmente graves – grosso modo, à identificação de uma faute inexcusable – é, de resto, conforme às soluções que, com claros propósitos de evitar disparidades interpretativas e aplicativas, encontramos noutras convenções internacionais em matéria de transportes, nas quais tende a ser adotada mesma “fórmula”: o transportador perde o direito à limitação quando se prove que o prejuízo tenha resultado de facto ou omissão próprios, cometidos com a intenção de causar tal prejuízo ou temerariamente e com a consciência de que esse prejuízo provavelmente se produziria. (…)”
Uma segunda corrente entende, ao invés, que a nossa lei, no domínio da responsabilidade contratual, não distingue as condutas dolosas das negligentes, ambas do âmbito da culpa, responsabilizando em idênticos termos o devedor que agiu com culpa, como decorre do art.798.º do C.C., pelo que, a falta negligente imputável ao transportador deve considerar-se, à luz da jurisdição portuguesa que julga o caso, equivalente ao dolo.
Neste sentido:
-Ac. STJ de 14.6.2011 (rel. Hélder Roque), de cujo sumário consta: “IX - A presunção de culpa que, por força da Convenção CMR, incide sobre o transportador, desse que não seja ilidida, implica, em caso de perda da mercadoria, provando-se a existência de prejuízo, o pagamento de uma indemnização forfetária, que deve ser equivalente ao preço do transporte, ao passo que se o dano emergente da perda resultou de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que segundo a jurisdição do país julgador seja considerada equivalente ao dolo, a indemnização deve, então, reparar, integralmente, os danos verificados, de acordo com a teoria da diferença. X - Estabelecendo-se, no art. 799.º, n.º 1, do CC, a presunção de culpa do devedor no âmbito da responsabilidade civil contratual, é despicienda a modalidade de culpa, lato sensu, para efeitos de imputação de responsabilidade ao agente. XI - Uma “falta…que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”, como acontece com a legislação nacional, não pode de deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu.”; (acessível em https://juris.stj.pt/);
-Ac. TRC de 27.5.2024 (rel. Carlos Moreira) com o seguinte sumário: 4 - A falta imputável ao transportador equivalente ao dolo, que, nos termos do artº 29º, exclui tal limite indemnizatório, é qualquer uma que lhe permita a imputação de um juízo de culpa, lato sensu, o que se verifica, vg. se a mercadoria se perdeu por incêndio provocado pelo sistema de travagem do veículo.”, e de cujo texto consta: “«A presunção de culpa que…incide sobre o transportador, desde que não seja ilidida, implica, em caso de perda da mercadoria…o pagamento de uma indemnização forfetária, que deve ser equivalente ao preço do transporte, ao passo que se o dano emergente da perda resultou de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que segundo a jurisdição do país julgador seja considerada equivalente ao dolo, a indemnização deve, então, reparar, integralmente, os danos verificados, de acordo com a teoria da diferença» – Ac. do STJ de 14.06.2011, p. 437/05.9TBANG.C1.S1 E sendo certo que: «…uma falta que segundo a lei da jurisdição que julgar o caso seja considerada equivalente ao dolo, como acontece com a jurisdição nacional, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu”. Na verdade, trata-se de duas modalidades de culpa lato sensu, sendo certo que tal equivalência a nível contratual flui logo do artigo 798º do Código Civil, em que para existir responsabilidade contratual é indiferente uma conduta dolosa ou negligente, apenas se exigindo como pressuposto a culpa lato sensu. Deste modo…a indemnização a ser paga …não deverá ser submetida ao limite imposto pelo n.º 3 do artigo 23º, sendo antes determinada pelo n.º 1 do artigo 23º da CMR» - Ac. do STJ de 15.04.2013 cit, com citação de outros, vg. o supra referido de 14.06.2011 e o proferido em 5/06/2012. (sublinhado nosso) Por outro lado urge atentar que constitui jurisprudência pacífica do nosso mais Alto Tribunal no sentido de que a nossa lei consagrou a teoria da causalidade adequada na formulação negativa de Enneccerus – Lehman, nos termos da qual: « …para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - a «formulação negativa de Enneccerus-Lehman», acolhida no artigo 563.º do Código Civil segundo a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça - o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto» Ademais: «Esta doutrina … não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado». « …nem exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata, pelo que admite:- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não; - como ainda a causalidade indireta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano». - Cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 06.11.2002, 29.06.04, 20.10.2005, 07.04.2005, 13-03-2008 e 20.01.2010, ps. 02B1750, 03B4474, 05B2286, 05B294, 08A369 e 670/04.0TCGMR.S1 in dgsi.pt, e A. Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª ed. ps. 746/756. (sublinhado nosso).”;
-Ac. TRP de 20.6.2014 (rel. Araújo de Barros), em que sumaria: “I - A responsabilidade do transportador prevista no nº 1 do artigo 17º da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), pela perda ou avaria da mercadoria transportada, só pode ser afastada pela prova das circunstâncias enumeradas no nº 2 do mesmo preceito II - Está limitada, nos termos do artigo 23º, nº 3, dessa Convenção, não podendo a indemnização ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto da mercadoria em causa III - Por força do preceituado no artigo 29º, nº 1, da mesma, essa limitação não operará “se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo” IV - Atentas as disposições conjugadas dos artigos 483º, nº 1, 487º, nº 2, 798º e 799º, nº 2, do Código Civil, na ordem jurídica portuguesa, a equiparação entre o dolo e a mera culpa estende-se à responsabilidade contratual. V - Pelo que a mera culpa do transportador estará abrangida pela previsão excludente do referido nº 1 do artigo. (…);
-Ac. TRC de 12.7.2020 (rel. Teresa Albuquerque), de cujo sumário consta: “VI - A CMR contém um regime especial de indemnização para o transportador, admitindo a limitação do seu valor, mas esse regime, como decorre do art.29º, apenas se aplica nas situações em que o dano não tenha provindo de atuação dolosa do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, não seja considerada equivalente ao dolo. VII – Porque na lei portuguesa o legislador na responsabilidade civil contratual faz equivaler ao dolo a negligência, não se verifica entre nós a referida limitação de responsabilidade.”
-Ac. TRG de 10.3.2022 (rel. Joaquim Boavida), com o seguinte sumário: “1-O artigo 17º, nº 1, da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR) estabelece uma presunção de responsabilidade do transportador pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega. 2 – Se o transportador não lograr ilidir a presunção que sobre ele recai, ainda assim, em princípio, beneficia de um regime próprio de limitação da sua responsabilidade. 3 – Tal regime de limitação da responsabilidade, nos termos do artigo 29º, nº 1, da CMR, é afastado se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo. 4 – A CMR endossou à ordem jurídica nacional a definição do nexo de imputação ao transportador da responsabilidade efectivamente apurada; como para o nosso ordenamento o nexo de imputação é estabelecido tanto no caso de comportamento doloso como no de comportamento negligente, a falta em que este se traduz é equivalente àquele no quadro do artigo 29º da CMR. 5 – Para efeitos de definição da responsabilidade contratual, é indiferente que a falta de cumprimento ou a execução defeituosa da prestação se fique a dever a dolo ou a negligência do obrigado. O direito nacional lei equipara a negligência ao dolo no âmbito da responsabilidade contratual, enquanto pressuposto desta.
6 – A culpa em sentido lato abrange tanto o dolo como a negligência, pelo que, uma vez definida a culpa do transportador, este responde pela totalidade do prejuízo.”
(acessíveis em www.dgsi.pt)
-Ac. STJ de 06.07.2006 (Oliveira Barros), proferido no processo 06B1679; Ac. STJ de 15.05.2013 (Granja da Fonseca - 9268/07.0TBMAI.P1.S1), onde se entendeu que tanto o dolo como a negligência são «duas modalidades de culpa lato sensu, sendo certo que tal equivalência a nível contratual flui logo do artigo 798º do Código Civil, em que para existir responsabilidade contratual é indiferente uma conduta dolosa ou negligente, apenas se exigindo como pressuposto a culpa lato sensu»; Ac. STJ de 12.10.2017 (Olindo Geraldes - 4858/12.2TBMAI.P1.S1), assim sumariado: «Face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)», assim citados no Ac. TRG de 10.3.2022 (rel. Joaquim Boavida), antes mencionado.
Crê-se, contudo, poder identificar nesta segunda corrente um entendimento mais restritivo, (ou, talvez, já uma terceira corrente), que não faz uma equiparação geral entre o dolo e a negligência, para efeitos da equivalência prevista no art.29.º da CMR, e  não, por isso, em quaisquer circunstâncias, mas fá-lo quando se possa afirmar que se tratou de negligência grave/grosseira, cuja configuração e gravidade, no caso deve equivaler ao dolo.
É deste caso exemplo o Ac. STJ de 30.4.2019 (rel. Maria dos Prazeres Beleza), acessível em https://juris.stj.pt, e que discorre nos seguintes termos, na parte relevante: São aplicáveis eventuais limites, legais ou convencionais, que valham para a responsabilidade do transportador que materialmente tenha executado o transporte – no caso, relevaria o que vem fixado no nº 3 do artigo 23º CMR. (…) – a obrigação assumida pelo transportador é uma obrigação de resultado, não apenas de meios, incluindo portanto a chegada e entrega da mercadoria ao destino que estiver convencionado – (…). Não tendo as mercadorias chegado ao destino – mais concretamente, ao importador a que se destinavam, na Polónia (facto 12) –, o transportador HH PP não cumpriu a obrigação assumida perante a ré BB, Lda., pois que, como veremos e vem decidido, o transportador responde pelos actos e omissões dos terceiros “a cujos serviços recorre para a execução do transporte, quando esses agentes ou essas pessoas actuam no exercício das suas funções” (artigo 3º da CMR e 800º do Código Civil).  Neste âmbito, é objectiva a responsabilidade do transportador. (…) A divergência da autora em relação ao acórdão recorrido encontra-se antes na medida da indemnização devida; ou, mais concretamente, em saber se, apesar da regra de que o transportador responde pelo valor da mercadoria perdida (nº 1 do artigo 17º e nº 1 do artigo 23º da CMR), ocorre alguma das excepções definidas no nº 2 do artigo 17º ou se encontra preenchida a previsão do nº 3 do artigo 23º, de modo a que o transportador possa beneficiar da exclusão ou da limitação ali previstas para a obrigação de indemnizar e para o montante indemnizatório. Nada na prova permite concluir pela ocorrência de alguma das excepções do nº 2 do artigo 17º; (…). O acórdão recorrido considera que esta actuação do motorista/transportador configura “uma conduta grosseiramente negligente ou temerária”, mas que não deve ser equiparada a dolo, para efeitos de exclusão da limitação da responsabilidade (nº 3 do artigo 23º e nº 1 do artigo 29º da CMR). Na verdade, nada na prova permite concluir pela existência de dolo. Seguindo o critério explicado por Antunes Varela, Das Obrigações em Geral. Vol. II, 7ª ed., pág.97, no caso de dolo (incumprimento doloso) “há uma adesão da vontade ao comportamento ilícito, que é a falta de cumprimento da obrigação. O devedor tem conhecimento do efeito da sua conduta, da falta de cumprimento da obrigação, sabe que ela é ilícita, e, apesar disso, quer ou aceita esse resultado” (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Janeiro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 982/07.1TVPRT.P1.S1). O facto mais forte encontra-se no ponto 30 (“O motorista da 2ª Ré sabia que por razões de segurança devia procurar para descanso parques em sítios iluminados e frequentados por outras pessoas”); mas não é suficiente para se poder concluir que o motorista aceitou que, com a sua conduta, a mercadoria fosse roubada e não a pudesse entregar no destino, estando vedado ao Supremo Tribunal de Justiça, como se tem afirmado consistentemente, retirar presunções dos factos que vêm provados – no caso, presumir tal aceitação (Cfr., apenas a título de exemplo, o acórdão de 30/9/2010, www.dgsi.pt, proc. nº 414/06.2TBPBL.C1.S1). O nº 1 do artigo 29º da CMR dispõe que o transportador não pode beneficiar das limitações de responsabilidade “se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”. De forma expressa e genérica – artigo 494º do Código Civil –, a lei portuguesa apenas prevê no âmbito da responsabilidade extra-contratual que o julgador possa fixar uma indemnização em montante inferior aos danos causados, segundo a equidade e atendendo a certos critérios que enumera – entre os quais se encontra o grau de culpabilidade do lesante –, quando a responsabilidade se fundar em mera culpa; mas não se pode ignorar que o mesmo Código Civil considera relevante a distinção entre dolo e negligência em outros casos de responsabilidade contratual (cfr. os exemplos indicados por Antunes Varela, op. e vol. cits., pág. 99: “artigos 814º e 815º (mora do credor); 835º, 1, al. a) (exclusão da compensação); 956º e 957º (responsabilidade do doador); 1134º (responsabilidade do comodante); 1151º (responsabilidade do mutuante), sendo naturalmente de responsabilidade contratual que estamos a falar, no caso; nem que o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado por diversas vezes que a possibilidade de redução da indemnização, prevista no artigo 494º do Código Civil, é também aplicável no domínio da responsabilidade contratual. No entanto, e a propósito do nº 1 do artigo 29º da CMR, escreveu-se, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Junho de 2011, www.dsgi.pt, proc. nº 437/05.9TBANG.C1.S1, que “uma falta que segundo a lei da jurisdição que julgar o caso seja considerada equivalente ao dolo, como acontece com a jurisdição nacional, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu”. No mesmo sentido, decidiu-se nos acórdãos de 5 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3303/05.4TBVIS,C2.S1, ou nos acórdãos desta secção de 15 de Maio de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 9268/07.0TBMAI.P1.S1 e de 12/10/2017, www.dgsi.pt, proc. nº 4858/12.2TBMAI.P1.S1 e Mónica Alexandra Soares Pereira, O Contrato de Transporte de Mercadorias Rodoviário, A Responsabilidade do Transportador,http://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/63916/2/TESE2020MESTRADO% 20EM%20DIREITO). Entende-se que, no caso, é inaplicável a limitação de responsabilidade constante do nº 3 do artigo 23º da CMR. E chega-se a esta conclusão, quer seguindo a doutrina dos acórdãos acabados de citar, quer analisando os factos que vêm provados e que configuram da parte do motorista/transportador “uma conduta grosseiramente negligente ou temerária” (acórdão recorrido). Concorda-se assim com o acórdão recorrido na apreciação da culpa; mas discorda-se da possibilidade de, com esta apreciação, se reduzir a indemnização, uma vez que o seu carácter “grosseiramente (…) temerário” sempre impediria a sua distinção do dolo, mesmo aplicando o disposto no artigo 494º do Código Civil; ou seja, mesmo considerando que a lei portuguesa não equipara necessariamente o dolo e a negligência para efeitos de cálculo da indemnização, em caso de responsabilidade contratual. Assim, concede-se provimento ao recurso da autora, julgando que a ré transitária responde pelo valor pago pela autora à sua segurada, € 250.000,00, (…). Esta decisão não significa que se tenha concluído ter sido dolosa a actuação do motorista e, consequentemente, que a responsabilidade da Transportadora HH assente em dolo; antes quer dizer que, mesmo que se entenda que a lei portuguesa permite distinguir o dolo e a negligência para efeitos de cálculo da indemnização, também na responsabilidade contratual, o grau de culpabilidade, no caso, exclui essa possibilidade. 7. Chegando a esta equiparação entre dolo e negligência, da mesma forma se deve interpretar o nº 1 do artigo 32º da CMR (…).”;
-em sentido que se afigura na mesma linha, face à consideração de culpa grave, Ac. TRL de 10.9.2020 (rel. Isoleta Costa), como se extrai da seguinte passagem: “Discorda ainda da imputação da responsabilidade a titulo de culpa grave, para efeitos de afastamento dos limites indemnizatórios constantes do artigo 23º nº3 e 29º nº1 da Convenção, como feito na sentença. Diz que alegou factos que afastam essa previsão. Não diz quais os factos alegados. Por outro lado a sentença fundamenta, no que secundamos, o afastamento dos limites indemnizatórios, como vai citado: Ora, encontra-se demonstrado nos autos, nomeadamente da conjugação de 3. e 5. do julgamento de facto, que, pese embora por si recolhido, o volume a transportar pela R. desapareceu in itinere. Quais as concretas circunstâncias em que tal extravio ocorreu são integralmente desconhecidas; mas a verdade é que é de custódia o primeiro dever de qualquer transportador, razão pela qual afigura-se a este Tribunal que a circunstância apurada de que o extravio revela um elevado grau de incúria no cumprimento desse dever que se inscreve na esfera jurídica de entidades que se dispõem profissionalmente a realizar a deslocação geográfica de bens. Na verdade, não se consegue perceber não só como tal extravio aconteceu, e muito menos que não logre a própria R. aventar uma explicação para o sucedido; ou que não se tenha rodeado das medidas necessárias a que, salvo motivo de força maior e imponderável, tal não se verificasse. E apesar de não poder ser a falta considerada dolosa por ausência nos autos factualidade na qual se possa respaldar a intencionalidade que inere a este título de imputação, não se pode deixar de qualificar como grave. (…)A culpa grave, sabemo-lo, é, em princípio, equiparável ao dolo ou má-fé. É-o no sentido de que, se a lei na sua letra só der relevância ao dolo ou à má-fé, a sua estatuição deverá considerar-se extensiva à culpa grave, salvo sem em relação a determinado preceito legal houver razões ponderosas para entendimento contrário. Portanto, também aqui, carece de razão a apelante.”;
-em sentido concordante, também, Ac. TRP de 21.2.2018 (rel. Freitas Vieira), em cujo texto, mais elucidativo do que o respetivo sumário no que à questão em apreço respeita, se escreve “No caso dos autos, consideradas as circunstâncias em que ocorreu a subtração da mercadoria e não estando provado que o motorista conhecesse qual o tipo de mercadoria transportada, temos como afastada a possibilidade dolo, mesmo que na modalidade de dolo eventual. Já no que concerne ao conceito de conduta equiparável ao dolo, deverá a mesma entender-se, por referência ao previsto no ordenamento jurídico nacional, à culpa grave ou negligência grosseira. E a este propósito concluiu-se que a transportadora não tomou efetivamente todas as medidas que poderia ter tomado para evitar eventos do género daquele que veio a ocorrer, e por isso não poderia beneficiar da exclusão de responsabilidade prevista no artº 17º, nº 2, da Convenção CRM. Mas não vemos que os factos apurados sejam suficientes para ter como configurada uma conduta grosseiramente negligente ou temerária da parte da transportadora ou do seu motorista, que justifique a sua equiparação ao dolo para efeitos do artº 29º, nº 1 da mesma Convenção.”,
-e, também, Ac. TRP de 22.2.2022 (rel. Anabela Dias da Silva), na medida em que apela ao grau de culpa, e do qual é o seguinte sumário:   I - Dispõe no art.º 3.º da Convenção CMR que “O transportador responde, como se fossem cometidos por ele próprio, pelos actos e omissões dos seus agentes e de todas as outras pessoas a cujos serviços recorre para a execução do transporte, quando esse agente ou essas pessoas actuam no exercício das suas funções”. II - A conduta levada a efeito por parte do motorista da ré foi grosseiramente negligente ou temerária, pois que não “tomou efectivamente todas as medidas que poderia ter tomado para evitar o furto que veio a ocorrer, tendo abandonado o veículo com a sua carga no interior cerca de 17 horas, em parque que não era vedado, era acessível a qualquer pessoa que circulasse na auto-estrada e que não tinha guarda, nem Videovigilância”. III – Atento o grau de culpabilidade do motorista da ré e tendo por assente que no nosso ordenamento jurídico faz-se, em regra, uma equiparação entre dolo e negligência para efeitos de responsabilidade civil contratual, é dessa forma se deve interpretar e aplicar ao caso em apreço o preceituado no art.º 29.º da CMR, ou seja, não pode a ré prevalecer-se das disposições previstas na CMR que limitam a sua responsabilidade, pelo que deve ser condenada na totalidade dos danos provocados e não só no valor da mercadoria furtada, cfr. n.º4 do art.º 23.º da CMR.”;
-Ac. TRG de 14.11.2019 (rel. Alcides Rodrigues), em cuja fundamentação se apela à negligência grosseira, e de cujo sumário consta no que aqui importa: “X – O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega. XI – O incumprimento do contrato de transporte consubstancia um facto ilícito. XII – No caso de perda parcial da mercadoria transportada, o transportador, com comportamento revestido de negligência consciente e de culpa grave, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR). XIII – A indemnização compreende o valor da perda da mercadoria desaparecida.”
-Ac. TRL de 21.3.2024 (rel. Rute Sobral), como resulta da seguinte passagem: “Assim, no que se refere à equivalência entre dolo e culpa grave, refere-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 27-10-2022 Proferido no processo nº5366/21.6T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt: “Para efeitos do artigo 29.º da CMR (afastamento da limitação da responsabilidade do transportador) a negligência grosseira/culpa grave é equivalente a dolo. Tendo em conta os últimos desenvolvimentos, o mais que se pode defender atualmente é que essa culpa tem de ser uma culpa grave consciente (uma falta indesculpável).” Aceitando-se tal equiparação da culpa grosseira ao dolo, (…).”, com um voto de vencido mas cuja discordância não passa pelo entendimento acabado de transcrever na dita passagem do acórdão, mas pela consideração de que no caso estava demostrada a culpa grave, contrariamente à posição que obteve vencimento. (acessível em www.dgsi.pt)
E já remotamente, o STJ no Ac. 25.11.1998, se bem compreendemos, apelava ao conceito de negligência grosseira para efeitos de equivalência ao dolo, como resulta do respetivo sumário: “I - Segundo a actual redacção do artigo 23, ns. 3 e 7, da Convenção CMR, o transportador é responsável por comportamento negligente do seu motorista, e que esteve na base do furto da mercadoria transportada. II - A indemnização respectiva será regulada, se não se verificar a excepção do artigo 29 da mesma Convenção, pela versão do Protocolo publicado em 1988. III - Esta redacção é a aplicável nos contratos de transporte internacional de mercadorias por estrada celebrados após o início da sua vigência. IV - É culposo, mas não integra culpa grosseira equiparável ao dolo, o comportamento do motorista que, depois de carregado o veículo, o deixa estacionado em local onde os furtos são frequentes com o duplicado da chave de ignição no exterior da cabina.” (acessível em www.dgsi.pt).
- Ac. TRL de 27.10.2022 (rel. Pedro Martins), que contém análise profunda, com apelo a jurisprudência e doutrina estrangeira quanto à interpretação e aplicação do art.29.º da CMR, sintetizada no sumário nestes termos: “I. Para efeitos do artigo 29.º da CMR (afastamento da limitação da responsabilidade do transportador) a negligência grosseira/culpa grave é equivalente a dolo. Tendo em conta os últimos desenvolvimentos, o mais que se pode defender actualmente é que essa culpa tem de ser uma culpa grave consciente (uma falta indesculpável).”, cuja posição, como se verá, antecipando-o, seguiremos de perto.
Na doutrina, na mesma linha, Mónica Alexandra Soares Pereira- O Contrato de Transporte de Mercadorias Rodoviário - A Responsabilidade do Transportador, conclui “Pelo exposto, somos do entendimento que perante circunstâncias que evidenciem um comportamento de tal forma grave e temerário do transportador, um comportamento revestido de negligência consciente e de culpa grave deverá ser aplicado o brocardo culpa lata dolo aequiparatur, e consequentemente quer o transportador quer os seus empregados, agentes, representantes e outras pessoas a quem recorra para a execução do contrato vejam afastadas as causas que excluem ou limitam a sua responsabilidade.” (https://sigarra.up.pt/fdup/pt/pub_geral.pub_view?pi_pub_base_id=24881)
Da resenha jurisprudencial que se deixa feita, resulta evidente a predominância do entendimento de que, face à nossa lei, a falta do transportador equivalente ao dolo abrange condutas negligentes; contudo,  mais recentemente, tem vindo a firmar-se mais sustentadamente e que se crê já maioritária, uma  subcorrente, ou terceira concorrente derivada,  que limita tais faltas, para efeitos da dita equivalência, àquelas que sejam integradas por uma conduta que se deva qualificar como grosseiramente negligente ou com culpa grave. Quanto a nós afigura-se-nos, na senda desta última corrente, não poder ser perfilhado o entendimento de que na lei portuguesa há uma “equiparação geral” entre o dolo e a negligência, de molde a considerar que tendo o transportador agido com culpa (em qualquer das modalidades que esta pode revestir, dolo ou negligencia), funcionaria o afastamento do limite da indemnização previsto no art.23.º da CMR, por a falta equivalente ao dolo prevista no art.29.º da mesma convenção pode ser integrada por qualquer conduta negligente. Cremos inexistir, mesmo na responsabilidade contratual e independentemente de se considerar ou não aplicável a esse tipo de responsabilidade o disposto no art.494.º do C.C., uma completa e generalizada equivalência, como se retira de inúmeros preceitos que pressupõem na sua aplicação apenas a conduta dolosa como se dá nota no Ac. STJ de 30.4.2019, acima referido e de cuja parte transcrita se identificam tais normativos. Ademais, como é recorrentemente apontado, essa equivalência lata, determinaria uma exclusão praticamente total da aplicação dos limites indemnizatórios da convenção, posto que qualquer conduta imputável ao transportador e culposa (em sentido lato, naturalmente), equivalendo ao dolo, determinaria a sua responsabilização pelo dano efetivo, o que não temos por conforme com a interpretação que deve ser feita do art.29.º n.º1 da CMR, uma vez que a falta equivalente ao dolo, não pode corresponder a uma conduta que se afasta daquela modalidade de imputação subjetiva e como tal não é desconhecida na lei portuguesa, como sucede nos casos de mera culpa, negligência leve. Mas, de outra perspetiva, não se perfilhando também a interpretação segundo a qual a dita “falta equivalente ao dolo” teria sido prevista na CMR para as jurisdições que não conhecem a figura do dolo, o que determinaria, então, que apenas as condutas dolosas (nalguma modalidade de dolo, direto, necessário ou eventual) estariam pressupostas em toda a extensão da norma, afastamo-nos da primeira corrente acima referida.
No Ac. TRL de 27.10.2022 já acima mencionado se dá extensa nota de que a questão que nos ocupa não é exclusiva da jurisdição portuguesa, colocando-se em diversas outras, e também José Luís Saragoça, ob. cit., pag.538 e segs., analisa criticamente o tratamento e posicionamento da alguma doutrina e jurisprudência estrangeiras sobre a questão, recolhendo-se daí que há equiparação de outras condutas ao dolo, não compreendendo o art.29.º n.º1 tão só as condutas dolosas, como ressalta, entre o mais, das seguinte passagens “Em França no domínio do direito dos transportes e das faltas do transportador, a doutrina e jurisprudência desse há décadas que tem vindo a equiparar o dolo à falta grave.”, “Em Itália, Silvio Busti é de opinião contrária, defendendo que, além do dolo, o n.º1 do artigo 29.º da CMR contempla, como causa da perda do benefício da limitação da responsabilidade do transportador, igualmente uma culpa qualificada como equivalente ao dolo, segundo o direito interno do País do tribunal competente para julgar a causa.”.
Assim, escreve-se no citado acórdão de TRL de 27.10.2022, com tratamento exaustivo desta problemática “Tudo o que antecede tem já como pressuposto (a jurisprudência italiana e alemã inequivocamente apontam no sentido de que há uma conduta do transportador que, apesar de não ser dolosa, deve ser equiparada a ela e que afasta a limitação da responsabilidade) que a única posição aceitável é a da jurisprudência da terceira corrente descrita acima. O que se passa a demonstrar: O art.º 29/1 da CMR diz que: “O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.” A expressão discutida acima não é a expressão legal relevante, mas apenas uma tentativa de tradução, pelo legislador português, de apenas uma das versões (a francesa) da CMR: Ora, o que consta das duas versões é o seguinte (sendo que ambas versões são igualmente autênticas): Na versão inglesa: Article 29/1: The carrier shall not be entitled to avail himself of the provisions of this chapter which exclude or limit his liability or which shift the burden of proof if the damage was caused by his wilful misconduct or by such default on his part as, in accordance with the law of the court or tribunal seized of the case, is considered as equivalent to wilful misconduct. Na versão francesa: Article 29/1: Le transporteur n'a pas le droit de se prévaloir des dispositions du présent chapitre qui excluent ou limitent sa responsabilité ou qui renversent le fardeau de la preuve, si le dommage provient de son dol ou d'une faute qui lui est imputable et qui, d'après la loi de la juridiction saisie, est considérée comme equivalente au dol. Segundo o art.º 33 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, assinada em 23 de Maio de 1969, aprovada, para adesão, pela Resolução da Assembleia da República n.º 67/2003, artigo esse dedicado à Interpretação de tratados autenticados em duas ou mais línguas: 1 - Quando um tratado for autenticado em duas ou mais línguas, o seu texto faz fé em cada uma dessas línguas, salvo se o tratado dispuser ou as Partes acordarem que, em caso de divergência, prevalecerá um determinado texto. 2 - Uma versão do tratado numa língua diferente daquelas em que o texto foi autenticado só será considerada como texto autêntico se o tratado o previr ou as Partes o tiverem acordado. 3 - Presume-se que os termos de um tratado têm o mesmo sentido nos diversos textos autênticos. 4 - Salvo o caso em que um determinado texto prevalece, nos termos do n.º 1, quando a comparação dos textos autênticos evidencie uma diferença de sentido que a aplicação dos artigos 31.º e 32.º não permita superar, adoptar-se-á o sentido que melhor concilie esses textos, tendo em conta o objecto e o fim do tratado.
Temos assim que não é o dolo/dol, sem mais, que está em causa, mas a conduta que também está subjacente ao wilful misconduct. Ora, wilful miscondut, que corresponde a uma falha em que a vontade tem participação [a definição utilizada vem do artigo de João Ricardo Branco], abrange aquilo que nos sistemas continentais são condutas com dolo directo ou necessário, ficando de fora o dolo eventual, mas abrange também condutas levadas a cabo com culpa grave consciente, que não é dolo por não implicar a aceitação do dano (neste sentido, com desenvolvimento, João Ricardo Branco, estudo citado, páginas 338 a 341, e Nuno Manuel Castello-Branco Bastos, Direito dos transportes, IDET, cadernos, n.º2, 2004, Almedina, páginas 107 a 116). Assim, se se interpretar o art.º 29/1 da CMR como querendo apenas abranger o dolo – como faz a ré e a sentença recorrida – está-se a deixar de fora as condutas incluídas na wilful miscondut que têm a ver com a culpa grave consciente, ou seja, deixa-se de fora uma das formas de comportamento do transportador que, inequivocamente, a vontade das partes contratantes da CMR quiseram incluir. E não se dando utilização à frase ‘falta […] equiparada a dolo’ está-se a afastar todas as condutas negligentes graves que, nos sistemas continentais, são normalmente equiparadas a dolo ao menos no âmbito das regras gerais da limitação da responsabilidade. Daí que, nas posições já citadas da Alemanha e da Itália, a consideração da culpa grave seja um pressuposto não discutido, por ser evidente. Ora, isto é suficiente para afastar quer a primeira corrente – porque só inclui o dolo esquecendo a culpa grave – quer a segunda corrente –porque inclui a culpa leve.”.
e conclui “Tudo isto tido em conta, não existe um só país dos vistos acima que não inclua nas condutas que impedem a limitação da responsabilidade do transportador condutas que não são dolo, mas sim negligência. O máximo que se pode dizer é que tem havido uma evolução no sentido de, se antes se admitia como equivalente ao dolo a negligência grosseira ou culpa grave, agora, nalguns países, faz-se uma qualificação desta, e tem-se exigido uma culpa grave consciente. Mas isto nem em todos os países e alguns deles não fazem esta qualificação em relação ao art.29 da CMR, como por exemplo a Itália. Para além disso, só os Países Baixos têm feito uma aplicação das regras da limitação de forma a tornar excepcional a perda da limitação. Ora, entende-se que sem alteração da CMR, nem do regime jurídico dos transportes em Portugal, a evolução da culpa grave para a culpa grave consciente, na aplicação da CMR, não tem base legal suficiente. Não é pelo facto de outras convenções internacionais do direito do transporte terem evoluído para o regime da culpa grave consciente que, sem mais, a CMR deve ser entendida do mesmo modo. Por outro lado, ao contrário dos outros países, Portugal não tem um regime interno que genericamente tenha evoluído nesse sentido e o regime do DL 239/2003 é inaproveitável pelo que já foi dito sobre ele acima (outras páginas de Castello-Branco Bastos, no mesmo sentido: 97-98 do estudo citado): no máximo ter-se-á que admitir que pressupõe a equiparação entre a culpa grave e o dolo.”
Não vemos, pois, razão para considerar que o art.29.º da CMR contempla apenas condutas dolosas, nem para nos afastarmos do entendimento acima exposto da terceira corrente identificada, aderindo-se ao mesmo, pelo que, se impõe concluir que nos termos do art.29.º n.º1 da CMR, o transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo ou falta que lhe seja imputável e que, à luz do direito interno, deva qualificar-se como cometida com negligência grosseira/culpa grave.
Tendo em conta quanto acima se analisou relativamente ao regime jurídico decorrente da CMR e posicionamento adotado no que concerne ao conceito de falta grave equivalente ao dolo (art.29.º n.º1), baixando ao caso concreto, face aos factos provados, concluímos que a ré, por via do contrato de transporte que celebrou com a., mesmo que para tal transporte tenha subcontratado as chamadas, como também se evidencia daqueles factos, obrigou-se a deslocar a mercadoria da Bélgica para Portugal, o que foi feito, mas a mercadoria apresenta, em parte, avaria que foi originada durante o transporte. A obrigação de resultado a que se vinculou a ré, na sua dupla vertente, de efetuar a deslocação e entrega da mercadoria incólume, não foi cumprida integralmente. Logrou a autora provar o dano e, além disso, prova-se diretamente que o mesmo ocorreu no transporte, pelo que, a ré é responsável pela avaria (art.17.º n.º1 da CMR), responsabilidade que só seria excluída se a ré provasse que a avaria teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar (art.17.º n.º2 e 18.º da CMR) ou se ficou a dever a alguma das circunstancias previstas no n.º4 do art.17.º. Não resulta feita qualquer prova a esse nível. De facto, pese embora ressalte dos autos que ambas as recorrentes intentaram atribuir a verificação dos danos à falta de embalagem - cuja prova lhes competia, ao invés do que parece ser entendimento das mesmas – não o conseguiram, ficando provado que o material foi embalado da forma habitual para este tipo de mercadoria, tendo os truss sido colocados em dolly. Afirmada a responsabilidade da transportadora e provado o dano recai sobre esta a obrigação de indemnizar, no caso, nos termos do art.25.º n.º1 da CMR - Em caso de avaria, o transportador paga o valor da depreciação calculada segundo o valor da mercadoria determinado em conformidade com o artigo 23º., parágrafos 1,2 e 4. -  e com os limites previsto no n.º2 desse artigo. E ter-se-á por afastada a limitação da responsabilidade em caso de conduta dolosa, grosseiramente negligente ou com culpa grave.
A sentença recorrida não se debruçou em pormenor na qualificação da conduta que deu origem ao dano, na medida em que enveredando pelo entendimento de que à luz da lei portuguesa a negligência e o dolo devem ter-se por equivalentes para efeitos de afastamento da limitação de responsabilidade nos termos do art.29.º n.º1 da CMR, afirmando apenas a negligencia, nos seguintes termos: “Repare-se que se provou que os danos foram causados por mau acondicionamento do material dentro do veículo transportador, na medida em que as truss, encaixadas nas dolly, foram colocadas perto de uma retroescavadora, mas permitindo-se que se deslocassem, mediante a velocidade do veículo, de encontro à mesma, o que, atentas as regras da experiência comum (e da física) faz com que, face à diferença de densidade e de consistência (dureza), as truss ficassem estragadas com o embate na retroescavadora (mais dura e pesada face às truss). (…) no caso em exame, é inequívoca a negligência do transportador, aqui Ré, ao não cuidar, como era seu dever nos termos do contrato de transporte que celebrou, que a mercadoria vinha bem-acondicionada dentro do veículo transportador, de molde a não tocar e a não sofrer toques noutros materiais (ou, no caso, um veículo) que pudessem originar – como originaram – danos.”. A. já na petição inicial (art.31.º), imputava à ré culpa grave determinante da verificação dos danos, voltando no recurso a defender a existência de culpa grave/negligência grosseira, ao passo que as recorrentes a refutam. A qualificação da conduta ativa ou omissiva que deu origem ao dano, em termos de certo grau de culpa, impõe-se posto que só a culpa grave/negligencia grosseira é de molde a afastar os limites da indemnização, como se viu. A culpa em sentido lato, abrange o dolo e a negligência, caraterizando-se aquele, nas suas diferentes modalidades, como a vontade/intenção do agente praticar o facto/acção visando a produção do resultado (dolo direto), aceitando como decorrência necessária da conduta a verificação do resultado (dolo necessário) ou aceitando como possível a verificação do resultado em virtude da sua conduta e conformando-se com isso (dolo eventual); ao invés, a conduta negligente tem na sua base a violação de deveres de cuidado que se impõem ao agente e aos quais este está vinculado e cuja inobservância determina a verificação do resultado danoso, de tudo decorrendo a censura/reprovabilidade da ordem jurídica relativamente ao comportamento adotado/omissão do comportamento que se impunha como devido. Por conseguinte, é mister que se afirme que o agente tinha (por via da lei ou do contrato) certos deveres de cuidado que devia observar, não os observou, e o resultado produzido decorre dessa violação (para nos atermos apenas às situações mais simples). O grau de negligência da conduta haverá de resultar quer da natureza dos deveres de cuidado violados, quer da intensidade/gravidade dessa violação, suas consequências e previsibilidade delas, o que tudo depende da análise e circunstâncias do caso. A negligência grosseira corresponde à violação grave, porque particularmente censurável do dever de cuidado imposto em face do cuidado adotado ou omitido em comparação com aquele que seria exigível ao agente naquelas circunstâncias. Patenteia-se nos casos em que a observância das cautelas devidas, a atenção e prudência exigidas para evitar o dano (ou risco de dano), teriam sido observadas pela generalidade das pessoas colocadas naquela situação, e só um agente muito descuidado, incauto ou temerário as não observou, sendo por isso particularmente grave a sua violação. Distancia-se, assim, do mero desleixo, simples descuido, próprios da mera culpa, sabido que, como já se disse, a negligência pode assumir-se como leve, ou até levíssima (casos em que a generalidade das pessoas, naquela situação não teriam adotado tamanhos cuidados). Ou como se escreve no Ac. TRP de 18.4.2023 (João ramos Lopes) “III - A negligência grosseira ocorre quando o grau de reprovação ultrapassar a mera censura que merece a simples imprudência, irreflexão ou o impulso leviano, quando seja alcançado um mais alto grau de desleixo e incúria – decorre da inobservância das mais elementares regras de prudência e da não adopção do esforço e diligência minimamente exigíveis, nas circunstâncias concretas, correspondendo ao erro imperdoável, à desatenção inexplicável e à incúria indesculpável, vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas pouco diligentes.” (acessível em ww.dgsi.pt)
 No caso dos autos o que sobressai dos factos com relevância é que no transporte foram acomodados na carga diferentes tipos de mercadoria, sendo a mercadoria da autora transportada juntamente com uma retroescavadora, resultando os danos do embate da mercadoria nessa retroescavadora, pelo que, como faz a sentença recorrida, pode inferir-se desses factos um mau acondicionamento do material dentro do veículo transportador, na medida em que as truss, encaixadas nas dolly, foram colocadas perto de uma retroescavadora, mas permitindo-se que se deslocassem, mediante a velocidade do veículo, de encontro à mesma, donde, também, se infere que a mercadoria não foi devidamente protegida ou presa para evitar o embate na retroescavadora, permitindo-se, já que se tratava de transporte por estrada, que pela natural movimentação do veículo e necessidade de curvar, travar, mudar de direção etc., a carga chocasse entre si. Acresce que a retroescavadora transportada pelas suas características próprias, de peso e rigidez do material (integrando o que comummente se designa por maquinaria pesada) (e para tal concluir não é preciso mais que os conhecimentos normais) não permite, o que nos parece evidente, conformar-se, adaptar-se e moldar-se ao choque com outro material sem o risco de dano, contrariamente ao que poderia suceder com materiais de outra natureza (v.g. sacos de cereais) ou diferentemente embalados. Daqui deriva que o transportador não podia deixar de saber, face ao conteúdo da carga, que teria de observar particulares e maiores deveres de cuidado na sua arrumação, fixação ou acondicionamento (como tem sempre, mas no caso se assumem prementes, necessários e exigentes), por forma a evitar embates e danos deles derivados; por outro lado, antevê-se, sem dificuldade, quais as medidas que teriam que ser tomadas para cumprir aqueles deveres de cuidado e evitar o risco de produção do dano, tais como uma eficaz amarração do material, e/ou distanciamento da mercadoria que acomodasse as oscilações que não fosse possível evitar, colocação de traves; colocação de material entre a mercadoria e a retroescavadora (não embalada) que absorvesse/amortecesse eventual impacto, etc.. A observância desses particulares deveres de cuidado impostos, no caso, por virtude da natureza da carga e diversidade de mercadorias transportadas no mesmo veículo, era imposta e exigível ao transportador que, como já se viu, tem sobre si a obrigação de deslocar a mercadoria incólume, com um dever de custódia relativamente à mesma após lhe ter sido entregue; e de tudo decorre que o transportador, conhecendo tais circunstâncias, tinha que conformar a sua conduta ao cumprimento de tais deveres, e enquanto profissional da atividade de transporte era-lhe exigido que possuísse organização e meios materiais e humanos que lhe permitissem cumprir as obrigações que sobre si impendem. Havia um especial dever acrescido de cuidado na operação de arrumação e fixação por estar a ser transportada a retroescavadora, sendo imperativo tomar todas as medidas necessárias a evitar o dano ou acidente derivados da deficiente arrumação, travamento ou fixação dos materiais transportados junto à mesma. Na situação em apreço qualquer agente medianamente capaz teria previsto a necessidade de cumprimento de tais deveres acrescidos e tomaria as medidas adequadas, posto que não podia desconhecer as consequências que dessa omissão podiam derivar. Tendo os danos ocorrido nas circunstancias provadas afigura-se evidente que tais deveres e cautelas não foram observados, o que denota elevado grau de culpa, sendo temerária, dada a elevada exponenciação do risco, a colocação do material junto da retroescavadora sem ter assegurado as medidas necessárias a evitar o embate, deslocação ou oscilação da carga, relevando negligência grosseira e, a nosso ver, consciente, pois não pode o agente transportador (que haverá de ter conhecimentos nessa matéria) ter deixado de prever que a deficiente arrumação, fixação, travamento da mercadoria, junto da retroescavadora, permitindo o contacto com ela, seria apta a causar dano, mesmo que se conformasse que tal resultado não se iria verificar. Note-se que, embora esteja provado que os materiais foram carregados em Willebroek, Bélgica, pela «A. Rent, NV», ou seja, pela vendedora, está, também, provado que a retroescavadora foi  acondicionada e colocada no veículo pela Chamada «F. », e que se encontrava junta à mercadoria da Autora, pelo que, estamos já no domínio da arrumação da mercadoria a que a transportadora procedeu, colhendo tudo quanto se disse relativamente aos deveres acrescidos de cuidado a cargo do transportador. Como se escreve no sumário do Ac. TRL de 16.3.2022 (rel. Carlos Castelo Branco), na parte pertinente e que para a este caso pode ser transposta: “VIII) O dever de verificação da carga e de acondicionamento ou de arrumação da mesma constitui, salvo estipulação em contrário, uma obrigação elementar a cargo do transportador (dever que, por exemplo, é reforçado pelas prescrições contidas no artigo 56.º do Código da Estrada), que deverá zelar pelo adequado acondicionamento ou arrumação da carga que vai transportar. IX) Tal dever mantém-se, ainda que, na operação de carga tenham que ser utilizados meios do expedidor, não ficando o transportador dispensado do dever de verificar a mercadoria, de confirmar e de fazer o reconhecimento da carga e de a dispôr da forma que entenda por mais adequada ao transporte que vai realizar. (…) XII) Tendo o sinistro derivado da deficiente arrumação ou travamento da mercadoria, não se mostra exonerada a responsabilidade do transportador pelas suas consequências.” (acessível em www.dgsi.pt).
Em conformidade com o que fica dito, não pode a ré/recorrente aproveitar-se das disposições da convenção que limitam a sua responsabilidade, por ter cometida falta que deve ser equiparada ao dolo (art.29.º n.º1 da CMR), pelo que a indemnização devida deve reparar integralmente o dano, no caso o valor da mercadoria avariada, como decidido na sentença recorrida, que nessa parte deve ser mantida.
A recorrente F. invoca na conclusão K do recurso que não se compreende que possa ser condenada no pagamento de indemnização pela perda do equipamento e a autora não seja condenada na devolução dos equipamentos, ficando numa situação de enriquecimento sem causa, embora se não descortine, por não vir invocada, qual a consequência jurídica que pretende fazer derivar de tal alegação. De todo o modo, dir-se-á apenas que se trata de uma “não questão”, porquanto, a mesma não foi suscitada nos autos, mormente na vertente do alegado “enriquecimento sem causa”, e no recurso não podem ser suscitadas questões novas (salvo questões de conhecimento oficioso que revestem particularidades), pelo que, nada mais se impõe dizer a respeito, não se divisando que a recorrente haja formulado qualquer pedido que acomodasse a eventual consequência contra a qual ora se insurge, ainda que se concedesse poder ter algum fundamento.

III- Decisão:
Pelo exposto, acordam as juízas da 8.ª Secção Cível, em julgar parcialmente procedentes os recursos e, em consequência:
- Revogam a sentença recorrida na parte em que condenou a ré e, condicionalmente ao pagamento por esta à A., condenou a chamada, no pagamento à Ré, do valor de €2.477,24 e respetivos juros.
- No mais confirmam a sentença recorrida.
Custas pelas recorrentes e recorrida, na proporção, respetivamente, de 65% e 35%.

Lisboa, 13.2.2025
Fátima Viegas
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Teresa Lopes Catrola