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ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CRIME DE HOMICÍDIO
DOLO EVENTUAL
PRESUNÇÃO JUDICIAL
Sumário
1. O arguido que, de forma voluntária e consciente, dirige um veículo automóvel (carrinha) contra pessoas que se encontravam num passeio destinado à circulação de peões, desprevenidas, conhecedor das dimensões, potência e capacidade de impacto daquele, não poderia deixar de saber, como qualquer pessoa comum sabe, que esse veículo, nessas circunstâncias, utilizado como instrumento de agressão, é dotado de uma grande capacidade de impacto e letalidade. 2. Ao assim proceder, propositadamente e sem diminuir a marcha desse veículo, numa atitude revanchista relativamente a uma altercação ocorrida anteriormente, e indiferente ao resultado da sua conduta, com que se conformou, incorre na prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, previsto e punível pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2 h), 14º, nº 3, 22º, 23º e 73º, nº 1, als. a) e b) do CP). 3. Os factos alcançados por prova direta, impõem a presunção sobre os demais constantes da acusação, concretamente os relativos à componente subjetiva que presidiu à sua atuação.
Texto Integral
Acordam, em deliberação tomada após audiência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO
1. No processo comum, com intervenção de tribunal coletivo, com o NUIPC 718/22...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Juízo Central Criminal de Vila Real - Juiz ..., em que é arguido AA, realizado o julgamento, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
«5. DISPOSITIVO
Pelo exposto, julgando a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, com a convolação jurídica efectuada, acordam os juízes que constituem este Tribunal Colectivo:
I – ABSOLVER o arguido AA da prática, como autor material, em concurso real e efetivo de 05 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22º, 23º e 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), i) e j), do Código Penal, de que vinha acusado.
II - Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, em concurso real e na forma consumada de:
- um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida BB);
- um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa do ofendido CC);
- um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa do ofendido DD);
- um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida EE);
- um crime de ofensa à integridade física qualificada grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida FF).
III - Em CÚMULO JURÍDICO, condenar o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.
IV - Condenar o arguido AA, com fundamento no art.º 69.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos a motor, pelo período de 2 (dois) anos.
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PEDIDOS CÍVEIS:
I - Do pedido cível deduzido por FF contra o arguido AA:
Julgar verificada a exceção dilatória da ilegitimidade passiva e, consequentemente, nos termos dos artigos art.º 15.º, n.º 2, e 64.º, n.º1, al. a) do DL n.º 291/2007, de 21.08, e artigos 577.º, al. e), 578.º, 278.º, n.º1, al. d), todos do CPC, aplicáveis pelo art.º 4.º do Cód. de Proc. Penal e 71.º e ss.º do mesmo diploma legal, julgar o arguido/demandado AA parte ilegítima e em consequência, absolvê-lo da instância.
Custas pela demandante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia
II - Do pedido cível deduzido pelo Centro Hospitalar ... contra EMP01... PLC – ..., com sede na Rua ..., Lisboa
Julgar totalmente procedente o pedido do Centro Hospitalar ..., E.P.E. e condenar EMP01... PLC – ... a pagar-lhe a quantia de €3.618,69 euros (três mil seiscentos e dezoito euros e sessenta e nove cêntimos) relativa à assistência prestada a BB, CC, FF, DD e EE, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Custas pela demandada seguradora atento o seu integral decaimento.
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Custas crime pelo arguido AA fixando-se em 5 (cinco) UC’s a taxa de justiça devida e os legais acréscimos devidos nos termos do actual regulamento das custas processuais, sem prejuízo de apoio judiciário concedido.»
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2. Não se conformando com essa condenação, o Ministério Público recorreu do acórdão, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: “(…) «CONCLUSÕES: 1- Recorre o MINISTÉRIO PÚBLICO do acórdão proferido a 09 setembro de 2024 que, para além do mais, julgando parcialmente improcedente por não provada a acusação pública deduzida decidiu absolver arguido AA da prática, como autor material, em concurso real e efetivo de 05 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22º, 23º e 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), i) e j), do Código Penal, de que vinha acusado e condena-lo, outrossim, pela prática de quatro crimes de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física qualificada grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal. 2- Constitui objeto do presente recurso o vicio de erro notório na apreciação de prova em que incorre o acórdão recorrido, previsto no artigo 410º n.º2alínea c)do Código de Processo Penal e a incorreta decisão proferida sobre a matéria de facto [impugnação ampla da matéria de facto e do erro de julgamento] e decorrente absolvição do arguido AA da prática dos sobreditos crimes de homicidio qualificado , na forma tentada. Na verdade, 3- Ao dar como provado o circunstancialismo, o modo de agir do arguido, aquela noção e consciência das caraterísticas do veículo que conduziu e da sua capacidade agressiva constantes da factualidade dada como provada nos pontos 1 a 9, não podia o Tribunal a quo, a nosso ver, dar como não provado, que o arguido previu a possibilidade de matar aquelas cinco pessoas e se conformou com aquele resultado ao persistir na sua atuação pelo que ao tê-lo feito efetuou um racicionio ilogico, não aceitável, contraditório e claramente violador das regras da experiência comum, incorrendo assim, de forma clara, no vicio de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal, claramente decorrente do texto da decisão recorrida, vicio esse que agora expressamente se invoca. 4- OTribunal a quo decidiu erradamente sobre a matéria de facto pois que a correta e conjugada análise e valoração da prova pré-constituída (documental e pericial) e de toda a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento da qual se salienta as declarações do arguido prestadas em sede de 1º interrogatório judicial (integralmente reproduzidas), as declarações da assistente FF e os depoimentos das testemunhas BB, EE, GG e HH que se revelaram sérios, credíveis e coerentes só permitia dar como provado que a)ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, o arguido AA sabia que podia provocar-lhes a morte, propósito com o qual se conformou e o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, que b) atuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia tirar a vida a BB, CC, FF, DD e EE, com o que se conformou, e o que apenas não sucedeu porque aqueles foram projetados com o embate e que c) agiu com total insensibilidade pelo valor da vida humana, que sabia dever respeitar; 5- De toda aquela prova, escalpelizada no presente recurso, resulta à saciedade que o arguido pretendeu dirigir o veículo de marca ...”, matrícula ..-CM-.., de cor ... que conduzia apenas e tão só na direção dos ofendidos CC, DD e EE apesar de estar ciente que junto dos mesmos se encontravam também mais duas pessoas, a assistente FF e a ofendida BB e que conhecendo, como conhecia, o potencial lesivo e até letal que qualquer veículo automóvel encerra bem sabia que, ao empreender assim a sua marcha, em cima do passeio e em aceleração os podia atingir, como atingiu e provocar-lhes a morte; 6- Caso apenas tivesse escolhido, como o podia ter feito, abordar os ofendidos e a assistente com um qualquer instrumento de natureza ou capacidade agressiva inferior à de um veículo automóvel e que fosse mais apto a atingir a integridade fisica dos ofendidos e não a sua vida então podíamos cogitar como possível que tivesse ponderado que com a sua atuação apenas os atingiria no seu corpo. 7- Contudo, o arguido optou por se afastar dos ofendidos, munir-se de um instrumento – o carro que conduzia – que é considerado precisamente um instrumento/meio ‘particularmente perigoso’ para efeitos da integração na alínea h) do n.º2 do artigo 132º do Código Penal que, quando utilizado na ação de transpor e subir um passeio e ao ser dirigido a um aglomerado de pessoas, garante ou tende a assegurar, direta e especialmente, a morte das vítimas, resultado que o arguido não podia ignorar, como não ignoraria um homem médio colocado na sua posição. 8- É para nós evidente que o arguido ao munir-se conscientemente de um veículo automóvel com o peso de 2 toneladas, ao utiliza-lo do modo particularmente perigoso como o fez (sobre um passeio, em aceleração/sem abrandar) estava ciente do resultado que poderia atingir, que assim previu–ceifar a vida daquelas 5 pessoas–bem sabendo que a sua atuação exponenciava de forma evidente a violação do bem jurídico vital. 9- Entendemos, assim, que o arguido AA deverá ser condenado pela prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real de 5 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, p. e p. nos artigos 131º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), 22º, 23º e 73º, do Código Penal, afigurando-se, de acordo com os critérios legais da determinação da medida concreta das penas, a aplicação ao arguido das seguintes penas: a) por cada um dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual previsto pelos artigos 131º, 132º n.º 1, 132º n.º 2alínea h) do Código Penal dos quais foram vitimas BB, CC, DD e EE uma pena não inferior a 3 anos de prisão; b) pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual previsto pelos artigos 131º, 132º n.º 1, 132º n.º 2 alínea h) do Código Penal do qual foi vitima FF uma pena não inferior a 5 anos de prisão; c) em cúmulo jurídico, uma pena única não inferior a 10 anos de prisão. Termos em que deve o douto acórdão ser revogado, e substituído por outro que dê acolhimento ao teor das conclusões supra e que condenando o arguido AA pela prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real de 5 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, p. e p. nos artigos 131º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), 22º, 23º e 73º, do Código Penal, lhe aplique as seguintes penas: - por cada um dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual previsto pelos artigos 131º, 132º n.º 1, 132º n.º 2 alínea h) do Código Penal dos quais foram vitimas BB, CC, DD e EE uma pena não inferior a 3 anos de prisão; -pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual previsto pelos artigos 131º, 132º n.º 1, 132º n.º 2 alínea h) do Código Penal do qual foi vitima FF uma pena não inferior a 5 anos de prisão; -em cúmulo jurídico, uma pena única não inferior a 10 anos de prisão. fazendo, assim, Vossas Excelências, Venerando Juízes Desembargadores JUSTIÇA!»
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3. Também o arguido não se conformou com o acórdão proferido e apresentou recurso, que culminou com as seguintes conclusões: «CONCLUSÕES:
1. Num contexto de esturdia, onde a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso foi lei, num conspecto em que o discernimento do recorrente estava perfeitamente condicionado, com uma única resolução criminosa e uma única actuação da mesma natureza, o arguido praticou naquele inditoso instante, cinco ilícitos. 2. Decorridos mais de 673 dias sobre o sucedido, o tribunal a quo condena o arguido em penas parcelares flagrantemente excessivas no que ao seu quantum diz respeito. 3. O mesmo sucedendo em relação à pena única em que o arguido foi condenado a final. 4. Nem a circunstancia de no decurso de tão longo lapso temporal, o recorrente ter abdicado de sair de casa no período nocturno desses largos dias, nem o mais importante – o arguido no lapso temporal referido ter adoptado um estilo de vida normativo, não praticando qualquer ilícito, tendo em suma correspondido as expectativas dos diversos JIC que acompanharam os autos – deixaram de ser consideradas despiciendas para a escolha das medidas quer das penas parcelares, quer da pena única. 5. Na realidade, aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, concordaram os sujeitos processuais ali presentes, que ínsito ao estatuto coactivo devia estar como que um cheque em branco que caberia ao arguido preencher correctamente. 6. O decurso do tempo veio a revelar que o arguido esteve à altura desse voto de confiança, vide os cometimentos deste que se consubstanciaram num trajecto de vida eminentemente normativo e numa opção pelo trabalho e pela família em detrimento das tentações noturnas e das perversas etilizações. 7. Ao actuar como actuou, aproximando o quantum das penas parcelares do limite médio atentas as molduras penais e o disposto no art.º 77º n.º 2 do Cód. Penal, o tribunal a quo não cuidou de não prejudicar ou não comprimir os direitos do arguido mais do que o estritamente necessário. 8. Por outro lado, face à idade do arguido impunha-se com uma cristalina evidencia que fosse aplicada a atenuação especial resultante do disposto no art.º 4º do decreto lei dos jovens adultos, cuja aplicação aqui e agora se reclama face às não menos evidentes vantagens que dai advirão para a pessoa, situação jurídica e até personalidade do aqui recorrente.
Normas violadas: - art.º 72º e 73º do Cód. Penal - art.º 50º e 53º do Cód. Penal - art.º 4º do Dec. Lei n.º 401/82 Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exc. suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, assim sendo feita Justiça.»
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4. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo pela improcedência daquele.
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5. Neste Tribunal da Relação, a Digniss.ª Sr.ª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, perfilhando integralmente a posição defendida pelo Ministério Público na instância recorrida, pugnando pela procedência desse recurso, e pela improcedência do interposto pelo arguido, concluindo: (transcrição) “(…) «Recurso do arguido: Uma vez que, como referido, foi requerida a realização de audiência pelo recorrente/arguido, o Ministério Público proferirá alegações nessa sede, por força do art.º 416.º, n.º 2, do mesmo diploma. Sendo indeferido o pedido de audiência, aqui fica, desde já, a nossa posição: Caso este Tribunal ad quem não atenda às pretensões recursivas do Ministério Público e confirme o enquadramento fáctico juridico efetuado pelo Tribunal a quo, deverão manter-se, quer as penas parcelares, quer a pena única aplicadas ao arguido, tal como sustenta o M. P. na sua resposta, cujos argumentos aqui replicamos. Dentro das molduras abstractas das penas aplicáveis e previstas nos art.ºs 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal, o Tribunal recorrido, ao abrigo do disposto nos art.ºs 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal, ponderou, de forma adequada, todas as circunstâncias que militam a favor e contra o arguido, relevando as exigências de prevenção geral e especial a salvaguardar, sendo as penas decretadas ( parcelar e única) perfeitamente equilibradas e justas. De acordo com o art.º 4 do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23 de Setembro “ se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos do art. 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação especial resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado”. Por seu turno, o art. 6.º, n.º 1 de tal diploma prevê que “quando as circunstâncias do caso e considerada a personalidade do jovem maior de 18 anos e menor de vinte e um anos resulte que a pena de prisão até dois anos não é necessária nem conveniente à sua reinserção social,poderá o juiz impor-lhe medidas de correcção”, que são a admoestação, a imposição de determinadas obrigações, a multa ou o internamento em centros de detenção (cfr. n.º 2 do mesmo normativo). Como é sabido, o S.T.J. tem vindo considerar a aplicação do regime penal relativo a jovens um «regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária - não constitui uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos» (Ac. do S.T.J. de 11.06.2003, recurso 1657/03-3). Assim, «se for aplicável pena de prisão [ao «agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos»: art. 1.1 do DL 401/82], deve o juiz atenuar especialmente a pena (...) quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado» (art. 4.º) – cfr. Ac. do S.T.J. 07P1423 de 14.06.2007, publicado na bdjur.almedina.net/júris. Como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 09.04.2018, relator Jorge Bispo, in www.dgsi.pt/jtrg, «Como é sabido, essa reinserção pode ser injustificadamente dificultada ou mesmo comprometida por uma pena de reclusão em ambiente prisional que importe um período de afastamento da vida individual e social em liberdade desproporcionado relativamente às exigências de reintegração do jovem. Isso mesmo deve ser avaliado em cada caso, aquando da ponderação das finalidades da pena, por forma a que, quando for de concluir que aquele excesso resulta da determinação da pena concreta no quadro da moldura penal abstrata, se opte pela sua atenuação especial, em obediência ao espírito do citado artigo 4º. (…). Para realizar tal juízo de prognose sobre o desempenho futuro da personalidade do jovem, impõe-se então ponderar, numa avaliação global dos factos apurados em cada caso concreto, a natureza e modo de execução do crime, a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao facto, bem como as suas condições de vida, tudo de forma a averiguar se a moldura penal do crime em questão (concretamente a moldura da pena de prisão) é ou não excessiva tendo em vista os fins de socialização do jovem condenado. É através da ponderação das circunstâncias concretas de cada caso, que se pode chegar ou não à conclusão de que se está perante um desvio transitório e ocasional, próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, caso em que se poderá mostrar justificada a formulação de um juízo de prognose favorável à atenuação especial. (…) Assim, só se justifica a referida atenuação especial se houver vantagens de reinserção, mas, importa não o esquecer, sem prejuízo da defesa do ordenamento jurídico, ou seja, salvaguardadas que sejam, naturalmente, as exigências de prevenção geral ligadas à proteção de bens jurídicos, que, sendo acentuadas, poderão obstar a essa atenuação especial da pena. No caso de absoluta incompatibilidade entre exigências de prevenção geral e especial, as exigências (mínimas) de prevenção geral funcionam como limite ao que, numa perspetiva de prevenção especial, podia ser aconselhável. De facto, nenhum ordenamento jurídico suporta pôr-se a si próprio em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral, nomeadamente conformando-se com a aplicação do regime de jovens, mas, quando essa aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a aplicação do regime penal especial para jovens cedem, devendo aplicar-se a pena de prisão». Ora, na situação sub judice, o Tribunal fundamentou de forma irrepreensível a razão porque afastou a aplicação deste regime especial desde logo porque o arguido não assumiu o desvalor da sua conduta, não ressarciu as vítimas por qualquer forma, tão pouco se penitenciando junto destas pelos sofrimentos que lhes causou ou sequer procedendo ao pagamento das despesas hospitalares referentes aos tratamentos clínicos realizados. Além disso, como bem assinalou o Tribunal Colectivo, o arguido, com a sua grave e violenta actuação, revela uma personalidade fortemente desconforme com a norma o que implica uma vigorosa necessidade da pena com vista à sua reinserção social, premente, pese embora a sua idade, tendo praticado os factos destes autos, passado pouco tempo do trânsito em julgado de um acórdão deste mesmo Tribunal que o condenou numa pena de prisão de 3 anos e 6 meses pela prática de um crime de roubo… Como doutamente decidido, atentas as exigências de prevenção especial que se fazem sentir e a personalidade do arguido, mostram-se afastados os pressupostos de aplicação da atenuação especial decorrente do referido diploma. Não deverá, assim, o recurso do arguido obter provimento.
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Recurso do Ministério Público:
II- O nosso parecer:
As questões concretas a decidir vêm, a nosso ver, adequada e assertivamente equacionadas na motivação e conclusões do recurso, sufragando-se in totum as considerações de facto e de direito aí expendidas. Resumindo-se o objecto do recurso a saber se o douto acórdão recorrido enferma de vicio de erro notório de apreciação da prova e/ou se o Tribunal Colectivo incorreu em erro de julgamento ao considerar os impugnados factos não provados e, nessa decorrência, absolveu indevidamente o arguido dos crimes que lhe foram imputados, condenando-o por crimes diversos. Como é sabido, ocorre o vicio decisório de erro notório na apreciação da prova “ quando se depara ter sido usado um processo racional e lógico mas, retirando-se, contudo, de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irrazoável, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido de decisão e/ou das regras de experiencia comum, bem como das regras que impõem prova tarifada para determinados factos...” – cfr. Acordão do STJ de 18 de março de 2004, Proc.03P3566, Rel. Simas Santos. www.DGSI.pt Ora, cremos que no recurso do Ministério Público se evidenciou o antagonismo entre alguns dos factos provados e as conclusões a que chegou no douto acórdão recorrido. Assim é que, como sublinhou a ilustre Colega, face à factualidade provada sob os pontos 1 a 6, 8 e 12 e ao dar como não provados os factos da acusação considerados não provados, o Tribunal Colectivo extraiu dessa matéria de facto provada uma ilação, relativamente ao elemento subjetivo dos crimes constantes da acusação, logicamente não aceitável e que contraria as regras da experiência comum, sendo patente da decisão a existência desse vicio decisório. Qualquer cidadão comum sabe que dirigir intencionalmente um veículo automóvel contra uma pessoa, e atingindo-a, lhe pode causar a morte, decorrente da potencialidade desse meio para lhe provocar ferimentos graves e subsequentemente esse desfecho, seja pelo atropelamento e possível esmagamento, seja pela sua eventual projecção e posterior queda. Sabendo-se que, mesmo em situações de negligência, esse resultado ocorre num elevadíssimo número de vezes, como o comprovam as elevadas cifras de sinistralidade rodoviária registadas nas estatísticas dos Relatórios Anuais de Segurança Interna da AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA ( v.g., em 2023, no Continente e nas Regiões Autónomas, foram registados acidentes com 479 vítimas mortais). Como todos sabemos, a prova da intenção na prática de qualquer comportamento criminoso, porque se trata da esfera psicológica e interior do agente, na ausência de confissão, deverá fazer-se através das regras da experiência comum, a partir da objectividade do seu comportamento e do seu significado em circunstâncias normais, tudo valorado à luz do senso do cidadão comum e dos concretos conhecimentos do agente, sem nunca olvidar que, agindo de forma consciente, este sabe, ou tem obrigação de saber, que os factos que pratica têm consequências. Refere Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, vol. L 1981, pág. 292) e este respeito que “existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são suscetíveis de prova indireta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indireta (presunções naturais não jurídicas), a extrair de factos materiais comuns e objetivos dados como provados…” Como também o faz Vaz Serra (Direito Probatório Material, BMJ nº 112, p. 190) quando afirma “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência…” Na situação em apreço, o Tribunal Colectivo deu nota que a actuação do arguido não resultou de um acto irreflectido e repentino, e que a sua explicação não convenceu ( “ não tinha a intenção de machucar ninguém !!!!!), tendo sido, como se escreve no douto acórdão, “ uma atuação pensada, ponderada, com algum ardil, engano, efeito surpresa, e que de facto a todos surpreendeu, porque ninguém estava à espera de uma atuação daquelas; aliás, ninguém encontrou e relatou ao tribunal qualquer justificação para uma atuação daquelas naquele concreto circunstancialismo. E tanto assim (surpresa) que foram atropeladas cinco pessoas, uma delas com especial gravidade (a ofendida FF) que não tiveram tempo de fugir…” Pelo que, tendo considerado provado que, após a contenda com alguns dos ofendidos no contexto dos factos provados n.º 1 a 5, o arguido se dirigiu ao veículo onde se fazia transportar, de marca ...”, matrícula ..-CM-.., assumiu a sua direcção, arrancou no sentido ascendente da rua, inverteu a marcha, iniciando de seguida a marcha descendente e, como referido, de forma deliberada e pensada, conduziu o veículo automóvel, sem abrandar, em direcção ao grupo onde se inseriam os ofendidos, que se encontravam no passeio, subiu esse passeio e direcionou o veículo às pessoas que aí se encontravam, ciente das características do veículo automóvel que utilizou (cujas dimensões, potência e força de impacto o dotam de grande capacidade agressiva), o Tribunal só podia concluir que, ao agir assim, o arguido admitiu, ao menos como possível que viesse a causar a morte às 5 pessoas que estavam na sua trajetória, resultado que lhe era indiferente e que ignorou, não deixando de prosseguir a mesma actuação. Analisando as explicações explanadas na douta decisão recorrida para apenas concluir pela intenção do arguido de causar ofensas à integridade física dos ofendidos, não se avistam fundamentos convincentes ou com suficiente relevância para a concreta situação, desde logo porque, ora se reportam a eventuais e supostas opções do Ministério Público ( “ de não acusar o arguido pela prática de 20/25 crimes de homicídio qualificado tentado, tantos crimes quantas as vítimas considerando que estamos perante bens jurídicos eminentemente pessoais e que a atuação do arguido é dolosa “ ), ora pela comparação com exemplos de outras situações que em nada se assemelham, designadamente, a de apontar uma pistola/revólver em direção ao tronco / coração de 20 ou 25 pessoas ( !!!! ), acerta em 5 e por azar, má pontaria, ou porque alguma daquelas pessoas se mexeu, não acertou nas restantes… Outrossim, os pressupostos de que socorreu o Tribunal Colectivo para afastar o dolo quanto à intenção de matar ( ainda que eventual), do mesmo modo, não são suficientes nem adequados a desviar a real actuação do arguido e o que a ela esteve subjacente, atento todo o contexto dos acontecimentos. Cremos que as ponderadas circunstâncias de o arguido, anteriormente, não ter proferido qualquer ameaça, nomeadamente de morte em direcção a qualquer dos indivíduos de origem africana, de não se ter provado que se conhecessem e se tenham agredido mutuamente ( arguido e ofendidos), de não ter sido visto antes, durante e posteriormente à sua conduta criminosa de atropelar pessoas na posse de qualquer arma ou objeto corto/contundente/perfurante, ou de disparo (v.g. pistola ou revólver) compatível com a intenção de matar, de ter actuado num local público, à vista de toda a gente, sabendo que poderia ser identificado, ficando na “posse” do veículo, permitindo facilmente a sua identificação, localização e exame pelas autoridades policiais, assim como de, na sequência do seu interrogatório, não ter ficado privado da liberdade, não representam, qualquer uma delas, justificação ponderosa e atendível para abalar a constatação, objectiva, de que a actuação do arguido era adequada e idónea à produção de consequências fatais para os ofendidos, como o demonstram os factos provados : o arguido agiu motivado pela contenda anterior e ciente das características do veículo automóvel que usava, avançou sobre os ofendidos que se encontravam no passeio com o propósito de os atingir assim como a quem se apresentasse na trajectória do veículo, surpreendendo-os com tal actuação e atingindo-os nas circunstâncias do facto provado 5, sendo os ofendidos projectados, acabando por embater no solo e no poste de iluminação que ali se encontrava, sendo evidente que a morte destes ofendidos não ocorreu por razões totalmente alheias à sua vontade. Assim, o Tribunal menosprezou aspectos fundamentais e do senso comum na apreciação do caso, nomeadamente, que o veículo automóvel, enquanto meio particularmente perigoso, numa situação como a dos autos em que é direccionado e investido sobre os ofendidos, de forma inesperada, esbatendo a sua possibilidade de defesa, pode efectivamente causar a morte, resultado este previsível e do conhecimento do arguido. Pelo que, ante factualidade provada, a conclusão extraída na douta decisão recorrida ao considerar afastado o elemento subjetivo dos crimes de homicídio, representa, a nosso ver, um erro notório na apreciação da prova ao abrigo do art.º 410.º 2 c) do CPP, na medida em que contém uma conclusão violadora das regras da experiência comum.
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Assim não se entendendo: Acompanhamos, do mesmo modo, os argumentos apresentados no recurso do M. P. no que tange à impugnação ampla da matéria de facto, ao abrigo do art.º 412.º 3 e 4 do CPP, relativamente aos factos da acusação considerados não provados, e que devem ser considerados provados, devendo concluir-se pela condenação do arguido pela prática dos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, p. e p. nos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), 22º, 23º e 73º, do Código Penal. De facto, o próprio arguido assumiu que um veículo pesa mais de uma tonelada, o que é demonstrativo de que conhecia a perigosidade do meio que usou para atingir os ofendidos, alguns dos quais, como decorre das declarações transcritas no recurso, nem se aperceberam da aproximação do veículo, tal foi o efeito surpresa da sua actuação ( cfr, declarações de FF e EE). Segundo a ofendida BB, o arguido chegou mesmo a acelerar o veículo quando o direcionou em relação às vítimas, vendo-as aquela “ a voar por cima do carro”. Por outro lado, as fotografias juntas aos autos ( cfr. fls 240, 243, 246, 252, 253 e 255) evidenciam a força do impacto do veículo, pelo menos numa das vítimas, FF, a qual caiu sobre o vidro da frente, estilhaçando-o e voou para cima de um poste… O arguido, como sublinhado pelo Tribunal Colectivo, agiu de forma pensada, ponderada, com ardil, engano, efeito surpresa sobre os ofendidos, que não tiveram tempo de fugir… Após embater nos ofendidos, o arguido desceu o passeio e seguiu a marcha para a via pública, abandonando o local, indiferente ao estado em que os deixou. Considerando, assim, todos os elementos probatórios explanados no recurso e as regras da experiência e normal acontecer, impunha-se concluir que o arguido pretendeu dirigir o veículo na direção dos ofendidos CC, DD e EE para os atingir, apercebendo-se que junto destes se encontravam as ofendidas FF e BB, conhecendo perfeitamente o potencial letal do veículo que conduzia e que, ao atingi-los, como atingiu, podia provocar-lhes a morte, conformando-se com esta possibilidade, resultado este que não aconteceu por motivos alheios à sua vontade - designadamente, porque alguns deles, apercebendo-se da sua presença e da aceleração empreendida, conseguiram desviar-se, logrando não ser atingidos em partes do corpo onde poderiam sofrer lesões fatais. Como bem refere a recorrente, o arguido muniu-se de um instrumento com tão forte aptidão para violentar – sobretudo, como foi o caso, quando colocado em aceleração em cima de um passeio - imediata e irreversivelmente, a vida, bem jurídico protegido pela incriminação dos artigos 131º e 132º n.º 1 e 2 alínea h) do Código Penal, que a possibilidade de sobrevivência da vítima é normalmente escassa, tal é a letalidade que comporta, sobrevivência essa que ocorreu apenas porque bafejados pela sorte os ofendidos conseguiram de forma agil afastar-se do direto trajeto do veículo… Num caso similar, escreveu-se no Ac. do STJ de 25/11/2020, no Processo n.º 790/18.4GAMTA.L1.S1, “…Como decidiram as instâncias, um automóvel, conduzido contra uma pessoa para a matar – no caso uma dúzia de pessoas -, por atropelamento e esmagamento, é instrumento especialmente perigoso, tornando praticamente certa a morte da vítima, potenciando a certeza do resultado visado. É, pois, um instrumento conscientemente utilizado que, do modo como foi acionado, é particularmente perigoso, assegurar ao agente o resultado, no caso, previsto e aceite, e que exponencia particularmente a violação do bem jurídico vital… Como se sublinha no acórdão recorrido, acções como a que o arguido empreendeu têm-se multiplicado e sido qualificadas como actos de terrorismo em vários países da Europa, particularmente, em ..., ... e ... …”
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Tudo ponderado, deve, assim, concluir-se pela condenação do arguido pela prática de 5 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, p. e p. nos artigos 131º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), 22º, 23º e 73º, do Código Penal. Sopesando todos os critérios seguidos pelo Tribunal a quo, com os quais também se concorda, incluindo a sua opção pela não aplicação do regime especial para jovens, deverão ser aplicadas ao arguido a pretendidas penas parcelares de 3 anos de prisão por cada um dos crimes cometidos relativamente às vítimas BB, CC, DD e EE e uma pena não inferior a 5 anos de prisão pelo qual foi vitima FF. É de salientar que, nos crimes de homicídio ( ainda que, no caso, sob a forma de tentativa e com dolo eventual), as exigências de prevenção geral positiva são sempre especialmente intensas, porque a violação do bem jurídico fundamental – a vida – é, como sabemos, unânime e fortemente rejeitada pela comunidade. E, por isso, torna-se necessária uma reação forte do sistema de administração da justiça, ou seja, a aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência das normas penais. Ademais, a reclamada pena única resultante do cúmulo jurídico de 10 anos de prisão, será, em nosso entender, uma pena equilibrada e justa, tendo em conta a culpa do arguido, todas as circunstâncias do caso e as intensas exigências de prevenção geral positiva, assim como de prevenção especial.
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Pelo exposto, o nosso parecer é no sentido do recurso do Ministério Público obter provimento.»
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5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu a esse parecer.
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6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Questões a decidir
Dispondo o art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido", são, pois, as conclusões que constituem o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. (Arts. 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal e do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).
Assim, balizadas pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:
Recurso do MºPº
- Da ocorrência do vício de erro notório na apreciação da prova;
- A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento;
- Qualificação jurídica;
- Medida da pena.
Do arguido
- Medida da pena
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2. Acórdão recorrido
É do seguinte teor a motivação de facto e de direito constante da sentença recorrida (transcrição): “(…) «2 - FUNDAMENTAÇÃO: A- Factos provados: Em sede de audiência de discussão e julgamento, provaram-se os seguintes factos: 1) No dia ../../2022, pelas 05h00, o arguido AA, também conhecido pelo apelido “II”, encontrava-se no interior do estabelecimento de divertimento nocturno denominado “...”, sito na Rua ... – ... e envolveu- se, em conjunto com um grupo de amigos, no qual se fazia integrar, numa contenda, de contornos não totalmente definidos, com outros indivíduos, de origem africana, da qual resultaram insultos de teor racista e agressões físicas para estes últimos. 2) Após, o arguido AA deslocou-se para o exterior de tal estabelecimento, em seguimento do seu encerramento, dirigiu-se ao veículo onde se fazia transportar, de marca ...”, matrícula ..-CM-.., de cor ..., que se encontrava estacionado nas imediações de tal estabelecimento de diversão nocturna, 3) Uma vez aí chegado, entrou no mesmo, assumiu a sua direcção, arrancou no sentido ascendente da rua, inverteu a marcha, iniciando de seguida a marcha descendente, na Rua ..., em ..., 4) e no trajecto, sem abrandar, subiu o passeio e direccionou o veículo às pessoas que aí se encontravam no passeio de tal rua, cerca de 20 a 25 indivíduos, entre os quais aqueles que momentos antes se envolveram em contenda com o arguido no interior do estabelecimento nocturno; 5) Assim, da referida ação, veio a embater com o veículo por si conduzido e colher/atropelar os ofendidos: BB, CC, FF, DD e EE, que se encontravam apeados no passeio da Rua ..., em .... 6) Os quais foram projectados e embateram no solo e no poste de iluminação que ali se encontrava. 7) Tais ofendidos, face às lesões sofridas, deram entrada no Centro Hospitalar ..., cfr. fls 7, 7v, 8, 8v e 9, episódios de urgência nº ...06 // ...07 // ...08 // ...09 // ...10, respectivamente, onde foram medicamente assistidos. 8) De seguida, o arguido abandonou o local, dirigindo a sua viatura na direcção da Segurança Social, de .... 9) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido AA, os ofendidos, sofreram, para além de dores, as seguintes lesões: – BB: no membro inferior direito: edema moderado do tornozelo e dorso do pé, equimose na face anterior do tornozelo, dorso e face lateral do pé, esverdeada, de limites mal definidos, com 16 cm por 14 cm de maiores dimensões; escoriação na face anterior do tornozelo, com crosta desidratada, irregular, com 8 cm por 5,5 cm de maiores dimensões (cfr. fls. 424 e ss.); – CC: no membro superior direito: duas cicatrizes na região supraciliar / escoriações em adiantado de evolução na face posterior do antebraço / escoriações no membro superior esquerdo / na face anterior do joelho apresenta uma escoriação com crosta desidratada, oval, com 4,5 cm por 4 cm, de maiores dimensões; no membro inferior esquerdo, sobre o maléolo lateral, apresenta uma escoriação com crosta desidatrada, arredondada, com 1,5 cm de maior eixo, cfr. fls 28v e 428 e ss.; – FF: perda momentânea de conhecimento, internamento entre 05 e 10 NOV 22 na sequência da fratura fechada dos ossos da perna direita. Membro inferior direito: cicatriz aderente de 1 x 1,2 cm de tamanho na face antero-interna do terço inferior da perna, cicatriz quelóide de 7 x 0,4 cm a nível da face anterior do joelho e terço superior da perna e infra patelar interna, duas cicatrizes de 1 cm cada, paralelas à cicatriz anterior, cicatriz de 1 cm de tamanho a nível da face anterior do terço inferior da perna sem défice de mobilidade do joelho, tornozelo e dedos do pé. Atrofia da coxa e região gemelar de 1 cm, que demandaram 206 dias para a consolidação médico-legal (30/05/2023), com afectação da capacidade de trabalho geral (5 dias) e com afectação de trabalho profissional (186 dias), bem como resultaram as consequências permanentes inerentes à fractura dos ossos da perna direita – cfr. fls. 592 e ss.; – DD: crânio: escoriações em fase crostosa numa área 3 x 2 cm de tamanho na região parietal à direita, escoriações em fase de crosta numa área de 2 x 2 cm de tamanho na região frontal direita, vestígios de escoriação na região temporo-occipital à direita; membro superior direito: área de escoriações de 5 x 3 cm de tamanho na face postero-lateral do terço inferior do antebraço escoriação de 1 cm de diâmetro na face lateral do punho; no membro inferior direito: área de escoriações de 5 x 3 cm de tamanho na região nadegueira superior, que demandaram 14 dias para a cura (19/11/2022), com afectação da capacidade de trabalho geral (4 dias) e com afectação de trabalho profissional (14 dias) – cfr. fls. 35 e ss. – EE: perda momentânea de consciência. Face: duas cicatrizes de 1 cm cada a nível da região supraciliar direita; membro superior direito: escoriações ao longo da face posterior do antebraço, numa área de 16 x 2 cm de tamanho; membro superior esquerdo: escoriações punctiformes na face dorsal das MF do 2º, 3º, 4º e 5º dedos da mão; membro inferior esquerdo: penso na região nadegueira de 16 x 16 cm de tamanho – cfr. fls. 27 e ss. 10) Ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, o arguido AA sabia que podia causar-lhes lesões. 11) O arguido AA atuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia atingir com violência a BB, CC, FF, DD e EE, lesando órgãos destes. 12) O arguido AA conhecia perfeitamente o tipo e as características do veículo automóvel que utilizou, bem sabendo que tal instrumento, dadas as suas dimensões, potência e força de impacto, era possuidor de grande capacidade de agressão dos tecidos humanos, sendo apto a causar lesões graves e profundas se utilizado contra a integridade física de um ser humano, o qual perante o mesmo não possui qualquer possibilidade de defesa, e apesar disso não se absteve de praticar os factos acima descritos. 13) O arguido AA agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal. Mais resultou provado do CRC do arguido: 14) No proc. n.º 112/21.... do Juízo Central Criminal de Vila Real, J..., pela prática em 25/06/2021, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º1, do C. Penal, por acórdão datado de 30/05/2022, transitado em julgado em 29/06/2022, foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova. Do relatório social para determinação da sanção: 15) AA, à data dos factos provados, integrava o agregado dos pais, com o cônjuge, JJ, na morada acima identificada. 16) A companheira e o arguido viveram em união de facto antes da cerimónia do seu casamento, realizada em outubro de 2022, e aguardam para breve o nascimento da primeira filha de ambos. É referida uma dinâmica familiar afetiva e apoiante entre todos os elementos que compõem a família, sendo o arguido o mais velho dos quatro filhos que os pais têm em comum, o mais novo com quatro anos de idade. 17) O agregado, num total de sete elementos, vive em apartamento de tipologia 3, com condições de habitabilidade, cuja renda é no valor de 10,90€ mensais, inserido em bairro conotado com problemáticas sociais relevantes, na cidade .... Referem como despesas fixas habitacionais (água, eletricidade e telecomunicações) de cerca de 150,00€ mensais. 18) A situação económica da família é assegurada através de apoios pecuniários estatais, designadamente do Rendimento Social de Inserção (RSI), sendo o pai do arguido o titular da medida. 19) Acrescem os abonos dos quatro descendentes e, ainda, do abono de família pré-natal, no valor aproximado de 2.060,00€ mensais. São obtidos, ainda, alguns rendimentos da atividade dos pais em feiras na área de residência. 20) Não regista no seu percurso de vida uma atividade laboral regular e apresenta um quotidiano sem ocupação formativa e/ou estruturada. 21) À data do relatório social o seu quotidiano estava centrado no apoio ao cônjuge, grávida e que se encontra no final de gestação. 22) O percurso escolar de AA foi marcado por insucessos, motivados pela desmotivação das atividades letivas e por reduzida assiduidade, que culminou no abandono escolar sem conclusão do 5º ano, não obstante, a intervenção junto da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) do .... 23) Presentemente, o enquadramento habitacional e familiar do arguido é idêntico ao descrito à data dos factos, beneficiando dos familiares de apoio nas suas vivências diárias. 24) AA é referenciado na comunidade local a grupo de pares associado a práticas ilícitas. 25) AA regista anteriores contactos com o sistema judicial, tendo estado em acompanhamento neste serviço da DGRSP, no âmbito da suspensão de um processo tutelar educativo, por factos susceptíveis de integrar a prática de crime de ofensa à integridade física, com acções dirigidas à promoção de competências pessoais e sociais e de um papel proactivo no desempenho de uma atividade ocupacional. 26) Nessa sequência e em articulação com a CPCJ ..., foi estabelecida programação mensal de acções, tendo o arguido cumprido os respetivos objetivos. 27) Atualmente, o arguido é supervisionado, pela DGRSP, no âmbito da pena de prisão suspensa, que foi condenando no processo 112/21...., cujo transitado em julgado, ocorreu a 29/06/2022 e o termo está previsto para 29/12/2025. 28) A sua constituição como arguido no presente processo não teve repercussões negativas na sua esfera familiar, que lhe mantem apoio no seu processo vivencial. 29) Foi obtida informação junto da OPC territorialmente competente, de ser suspeito no processo 214/23...., datado de 06/08/2023, pelo crime de resistência e coação sobre funcionário. Do pedido de indemnização civil do Centro Hospitalar ...: 30) Como consequência direta e necessária da conduta ilícita e culposa do arguido acima provada a ofendida BB foi admitida no Serviço de Urgência da Demandante no dia 5/11/2022. 31) A assistência que foi prestada à ofendida BB – episódio de urgência e meios complementares de diagnóstico orçou na quantia global de €102,07 euros. 32) Como consequência direta e necessária da conduta ilícita e culposa do arguido acima provada o ofendido CC foi admitido no serviço de Urgência da Demandante no dia 5/11/2022 e 22/11/2022. 33) A assistência que foi prestada ao ofendido CC – episódios de urgência e meios complementares de diagnóstico – orçou na quantia global de €306,44 euros. 34) Como consequência direta e necessária da conduta ilícita e culposa do arguido acima provada a ofendida FF foi admitida no Serviço de Urgência da demandante no dia 5/11/2022, tendo permanecido internada até ../../2022 e nas consultas externas nos dias 6/12/2022, 23/01/2023, 15/03/2023 e 30/05/2023. 35) A assistência que foi prestada à ofendida FF – episódio de urgência, internamento, consultas externas e meios complementares de diagnóstico – orçou na quantia global de €2.418,65 euros. 36) Como consequência direta e necessária da conduta ilícita e culposa do arguido acima provada o ofendido DD foi admitido no Serviço de Urgência da Demandante no dia 5/11/2022 e 6/11/2022. 37) A assistência que foi prestada ao ofendido DD – episódios de urgência e meios complementares de diagnóstico – orçou na quantia global de 440,01 euros. 38) Como consequência direta e necessária da conduta ilícita e culposa do arguido acima provada o ofendido KK foi admitido no Serviço de Urgência da demandante no dia 5/11/2022 e 6/11/2022. 39) A assistência que foi prestada ao ofendido KK – episódios de urgência e meios complementares de diganóstico – orçou na quantia global de €333,52 euros. 40) À data da ocorrência do acidente de viação (isto é, em 5/11/2022) o veículo de matrícula ..-CM-.. era conduzido pelo arguido nas circunstâncias julgadas provadas. 41) O veículo conduzido pelo arguido estava segurado na EMP02... Plc – ... através da apólice n.º ...67 válida e eficaz.
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B) Factos não provados:
Da acusação não se provou que: - ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, o arguido AA sabia que podia provocar-lhes a morte, propósito que visava alcançar e o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade. - o arguido AA actuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia tirar a vida a BB, CC, FF, DD e EE, com o que se conformou, e o que apenas não sucedeu porque aqueles foram projetados com o embate. - o arguido AA agiu com total insensibilidade pelo valor da vida humana, que sabia dever respeitar.
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3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
O tribunal formou a sua convicção positiva e negativa nos termos que “infra” se explicitarão, analisando as declarações do arguido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, sendo que em audiência exerceu o direito ao silêncio e após a reprodução das anteriores declarações limitou-se a confirmar as mesmas sem quaisquer outros esclarecimentos. Ponderaram-se os depoimentos prestados em audiência de julgamento, na sua coerência intrínseca, e no confronto entre si, e conjugando-os com a prova documental e pericial existente nos autos, ponderando-se, a razão de ciência revelada por declarante e depoentes (conhecimento direto dos factos), as suas relações familiares, de amizade ou inimizade com os intervenientes nos factos, bem como o interesse, ou ausência dele, no desfecho do processo, tudo para aferir da sua objetividade e credibilidade. Tudo analisado ao abrigo da livre apreciação da prova e de harmonia com as regras da experiência como previsto no art.º 127.º do CPP. Inicialmente elencam-se e sumariam-se todos os meios de prova; depois faz-se ao seu exame crítico para fundamentar a convicção do tribunal (art.º 374.º, n.º 2, do CPP). Declarações do arguido: No âmbito do interrogatório judicial no dia 01.03.2023, gravadas no sistema Habilus, com reprodução integral e efetiva em audiência de julgamento nos termos e para os efeitos dos artigos 357.º, n.º 1, alínea b), e 141.º, n.º 4, alínea b), ambos do Código de Processo Penal. O arguido não quis prestar declarações em audiência de julgamento, exercendo o direito ao silêncio, de que foi previamente informado, sendo que a pós reprodução das suas declarações em primeiro interrogatório declarou confirmar as mesmas. Declarações do arguido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido em 1/03/2023: Confrontado com os factos, nomeadamente de “avançar com o carro para cima destas pessoas” respondeu que “é verdade, mas não foi com a intenção de machucar ninguém”. Perguntado quanto pesa um carro, respondeu cerca de uma tonelada; mas que não foi com intenção de atropelar ninguém, era para fugir dali; queria esquivar-se das outras pessoas que estavam na estrada, estavam ali muitas pessoas e queriam faze-lhe mal, e ele estava com a mulher dele, que estava grávida e o que queria era fugir dali porque estava com medo e pânico; não sabe quem são as pessoas que atropelou e está muito arrependido de estar ali naquela hora, nem sabe quem são as pessoas; apenas tentou fugir. Sobre o que aconteceu antes no ... disse que houve uma “troca de palavras” entre ele e uns amigos dele, e também estava a mulher dele; e estavam lá também os de “origem africana”, e houve uma troca de empurrões e depois vieram muitos; ele veio embora e pegou na carrinha marca ... e fugiu e não foi sua intenção de fazer mal a ninguém. O arguido tinha bebido álcool, estava bêbado. Não sabe ao certo quem começou a discussão porque quando lá chegou já estavam todos a discutir e vieram para o pé dele; quem estava a discutir eram uns rapazinhos e mais os da outra etnia; os seus amigos estavam a discutir com os de etnia africana; e ele estava também metido no grupo, era o aniversário de um rapaz; houve uns empurrões e uns “soquinhos”; o arguido levou um empurrão e respondeu de igual modo; depois veio para a rua com a mulher e estavam muitos mais de origem africana na rua; disse não ser racista; não sabe porque é que foi a discussão. Não fez comentários racistas contra ninguém, porque nunca foi racista. Subiu para cima do passeio onde sabe que estavam pessoas porque do outro lado estavam ainda mais, mas era para fugir porque “estavam a vir para cima dele”. Está arrependido de ter atropelado as pessoas que atropelou, mas que não era sua intenção de fazer mal a ninguém. Esclareceu ainda ao M.P.: Quando entrou no carro com a esposa era para ir embora; durante o trajeto não fez qualquer inversão de marcha para voltar ao local onde atropelou as pessoas; o carro estava na parte de cima, ele apenas desceu; sabe que desceu uma rampa; não se lembra onde estava o carro; queria ir para a ... e queria ir pela A...4; não sabe onde o carro estava estacionado, mas acha que era no ...; não sabe o caminho para ir para casa, precisava de ir ter com alguém para o ajudar. Não sabia ir para a ..., precisava de GPS, mas naquele momento não tinha bateria. Ia a descer a rua para ver se apanhava algum dos amigos para ir embora. Vieram a correr direito a ele, estava com medo, a mulher estava a gritar, então virou para o lado para fugir, até partiu a carrinha toda. À Defesa: falou sobre as suas condições pessoais, nomeadamente quanto ao trabalho que faz; na sequência do sucedido a mulher que estava grávida perdeu o bebé. A confusão no interior do ... foi só entre pessoas do sexo masculino, não envolvendo pessoas do sexo feminino. Nada o move contra as pessoas de etnia africana e aprecia música moderna de origem africana .... Declarou que pretendia pagar as contas dos hospitais e queria pedir desculpas às pessoas que atropelou e ficaram magoadas. De seguida faz-se a súmula das declarações da assistente e dos depoimentos das testemunhas consignando-se que estes foram prestados por referência a imagens do Google maps projetadas no ecrã da videoconferência da sala de audiências, para melhor compreensão do local dos factos e das perguntas e respostas sobre o mesmo. Assistente FF, não conhece o arguido, estava no ... no dia dos factos, não fazendo parte de qualquer grupo. Estava com um grupo de amigos a divertir-se no ... composto pela própria, uma amiga de trabalho de nome BB, o LL e outro rapaz de cujo nome não se lembra; não estava em nenhum dos dois grupos que estiveram em confronto; apercebeu-se de uma altercação dentro da discoteca entre dois grupos, conhecendo dois dos elementos de um desses grupos: o ... e o irmão deste que é o AA; do outro grupo não conhecia ninguém; não se recorda de ver o arguido dentro da discoteca; dentro da discoteca não se apercebeu de troca de palavras ou agressões entre os dois grupos; o ..., patrão da depoente, disse-lhe para chamar o ... porque estava a haver uma confusão, para o ... estar junto dela; a depoente ficou dentro da discoteca até às 5.00 horas; houve discussão e depois foi posto cá fora um grupo que era composto por cidadãos de origem africana; saiu da discoteca para se ir embora na companhia dos amigos que estavam com ela mais o ... que também os acompanhava. Subiram as escadas e seguiram pela Rua ..., no sentido do mercado, aqui começou a confusão; do que se recorda, porque tinha bebido, apercebe-se que estava a haver confusão entre os dois grupos, frente a uma loja, vem um rapaz de nome MM, de alcunha “NN” que começa ao murro a um rapaz que já lá estava. O MM não estava na anterior confusão, veio de cima, não sabendo de onde e não o viu a sair de qualquer carro. E nesta altura que se apercebe que vai haver confusão. E depois chegou muita gente e começa a confusão. A depoente não se apercebeu do carro; não teve noção do que iria acontecer; a depoente estava perto da passadeira, e recorda-se de o carro lhe bater se segurar no parquímetro. Não viu de onde vinha o carro, nem o viu a subir ao passeio. Quando se apercebe do carro este já estava em cima de si (depoente); depois do embate não viu o trajeto de saída do carro daquele local; não viu o carro a atropelar. O embate do carro foi na parte de trás da perna e caiu e depois não se lembra do que aconteceu, e depois agarrou-se ao paquímetro e nesta altura apercebeu-se que tinha a perna partida e não se apercebeu do que se passava à sua volta. Sobre as consequências esclareceu que foi operada, tem um ferro e parafusos no joelho, tem cicatrizes. Fez fisioterapia durante alguns meses. Derivado a esta situação esteve sem trabalhar cerca de meio ano. Em consequência do acidente ainda hoje tem dores, e às vezes manca; e ressente-se desta situação. Esclareceu ainda que o embate não era para ela, não havia motivo nenhum para o arguido lhe embater com o carro; não o conhecia anteriormente a esta situação. Sabe que estavam pessoas de etnia cigana e pessoas de etnia africana no interior da discoteca, mas não sabe quantas estavam em cada um dos grupos. Não ouviu nenhuma discussão de teor racista; e cá fora não viu qualquer confusão entre pessoas de etnia cigana e de pessoas de cor. O embate é com a frente da viatura, estando a depoente de costas. Não se apercebeu se naquele momento circulavam veículos na estrada; não se apercebeu de estarem pessoas na estrada; não sabe quantas pessoas estavam no passeio, mas admite que estariam cerca de 20/25 pessoas. Depois dos factos o arguido nunca falou com a declarante. Testemunhal: - OO, 21 anos, militar há 3 anos no regimento de infantaria .., em ..., não conhece o arguido; estava no ... no dia dos factos com uns amigos, cerca de 5 pessoas, todos de cor; não sabe quantas pessoas estavam na discoteca e estava na conversa com uma rapariga; o seu grupo de 5 pessoas era composto pelo próprio, CC, EE, PP, DD. Ele estava no bar a beber e a falar com uma rapariga, e os restantes colegas estavam um pouco atrás dele; não se apercebeu da discussão, e quando deu conta um segurança estava a empurrá-lo para fora da discoteca. Saíram os cinco ao mesmo tempo da discoteca; saiu da discoteca e disse aos amigos para esperarem por ele naquele local porque ele ia à procura do EE que tinha ido comprar pão com chouriço à padaria ...; subiu sozinho em direção à padaria ..., atravessou para o passeio do lado contrário; quando regressou com o EE, já viu a confusão no passeio do lado contrário; o objetivo era irem todos para casa. Atravessou a passadeira e juntou-se ao grupo, estavam exaltados, um indivíduo do grupo dos agressores lançou o primeiro soco ao DD; o EE olha para trás, vê o carro a vir por cima do passeio e empurra-o para ele não levar com o carro; não se lembra da cara das pessoas porque já foi há dois anos atrás e porque estava bêbado; o grupo dos agressores fugiu para baixo, no sentido descendente. Só depois do MM, alcunha “NN”, fugir, é que aparece o carro; sabe que o carro veio de cima, mas não sabe qual o ponto do passeio em que ele entrou no passeio. E não percebe de que sentido vinha o carro quando entrou no passeio porque na altura estava de costas. No momento em que o carro aparece já não havia confusão; depois do embate acha que o carro voltou à estrada. Não conseguiu ver quem ia no interior do carro, nomeadamente quantas pessoas e se eram homens ou mulheres. O pessoal que estava com ele ali não queria confusão nenhuma, só queriam ir para casa. Durante os acontecimentos seja no interior ou no exterior da discoteca nunca ouviu qualquer discussão ou conversa de teor racista dirigido por quem quer que seja, nomeadamente pelas pessoas do grupo de etnia cigana contra as pessoas do seu grupo. Não sabe se as pessoas de cor ... do grupo agressor eram, ou não, de etnia cigana. - QQ, 29 anos, gerente de uma loja de telecomunicações; não conhece o arguido. No dia dos factos, não esteve no interior do bar; apenas passou no local, tinha ido à passaria ...; vinha de cima, a descer o passeio e estava em frente à Banco 1...; quando chegou ao local com o seu grupo de amigos, estavam na conversa e viu um grupo de 10 jovens africanos, e estes começaram a “desconversar” com o depoente e seus colegas que eram ao todo 4; e estavam alterados, estavam todos alcoolizados; um dos jovens africanos estava muito agressivo, presume que se tenha passado alguma coisa dentro do bar; entretanto, vieram uns jovens do interior do ..., e ouve dizer “não vás lá”; alguém que queria ir ter com os africanos. E ele e os colegas ficaram a ver; entretanto, pegaram-se um grupo de jovens, 3 ou 4, sendo alguns do grupo africano; quando estava para ir embora e do nada ouve uma gritaria imensa, quando olhou para trás viu pessoas caídas no chão. Um dos “africanos” que veio ter com ele, pensando que o depoente tinha estado lá dentro na confusão, confrontou-o que no interior da discoteca ele tinha dito “pretos de merda, ide para a vossa terra”, “vou-te matar”, e o amigo dele disse que não tinha sido o grupo do depoente. Não sabe a proveniência do carro que atropelou as pessoas que viu caídas no chão. O depoente tinha vindo com o seu grupo de um outro bar. Não sabe quantas pessoas estavam no passeio quando o carro fez o atropelamento; na altura, cerca das 5.00 horas, existia algum trânsito, é a hora das pessoas que saírem da discoteca; vão comer. Não se apercebe de qualquer confronto entre pessoas de etnia cigana com outro grupo de etnia africana, tanto mais que os de etnia africana se dirigiram ao grupo do depoente a tirar satisfações, pensando que tinham sido estes que no interior da discoteca os tinham insultado, não sendo o grupo do depoente de etnia cigana. - ..., gerente do ..., estava no ... no dia dos factos e no interior do estabelecimento não se passou nada; conhecia os clientes de vista; não ouviu palavras racistas, nem viu qualquer agressão; recorda-se de ver o arguido no interior do ... e falou com ele, dizendo que o arguido falou “normalmente”; afastou as pessoas em conflito, o grupo “africano” saiu, o outro grupo (de etnia cigana) continuou no interior do estabelecimento; pensa que chamou a PSP; não deixou que houvesse confrontos fora do estabelecimento, nas suas imediações. Conhece o MM, este não se encontrava no interior do ... no momento em que saíram todos cá para fora, por volta das 5.00 horas; o MM tinha estado no ... anteriormente e já tinha ido embora anteriormente às 5.00 horas. Durante a conversa que teve com o arguido perguntou-lhe se este precisava que o levasse ao carro, tendo ele respondido negativamente; não sabe onde o arguido tinha o carro estacionado. Não se lembra do arguido AA sair do ...; depôs sobre a situação da ofendida FF que era sua funcionária, dizendo em resumo que aquela esteve de baixa; quando regressou a assistente andava a fazer fisioterapia; não notou grandes alterações de comportamento porque a assistente não é pessoa de se queixar. PP, 26 anos de idade, caixeiro 1.º ano da loja de fatos “...”. Estava no ... num convívio a divertir-se; já tinha ido ali anteriores vezes. estava acompanhado por amigos que eram o CC, EE, RR e o próprio. O conflito começou no interior da discoteca, estavam a sair da casa de banho, tinha grupo junto ao balcão e houve uns desencontros, com empurrões de um lado e outro; foi um empurrão entre o irmão dele e um elemento do outro grupo; as pessoas estavam alteradas; não ouviu comentários racistas dentro da discoteca, até porque a música alta não o permitia; depois os seguranças vieram para separar e pediram para sair, e saíram “aos empurrões”. Não sabe se as pessoas do outro grupo eram de etnia cigana; não se recorda de o arguido estar na altercação no interior do estabelecimento; só saiu o grupo do depoente, os outros ficaram na parte de dentro; entretanto, chegou a polícia e acalmaram as coisas; e nunca viu o arguido nem dentro, nem fora do estabelecimento. O grupo do depoente teria mais de cinco, do outro lado tinha cerca de cinco, mas também tinha meninas no outro grupo. O grupo do depoente saiu e ficou algum tempo na parte de baixo, com os polícias; depois fizeram o percurso por dentro, por umas escadinhas; entretanto, chegaram carros que largaram outras pessoas; lembra-se dos veículos parar, deixaram sair pessoas e começou a agressão, os seguranças saíram para acalmar a agressão. Um desses veículos era um marca ... preto, o que mais tarde veio a atropelar as pessoas. Não se lembra do outro; e esta carrinha vinha no sentido do terminal para o mercado. Depois de parar a marca ... saiu alguém do carro que não se lembra quem seja, porque não conhecia; o “NN” é conhecido do seu irmão mais velho que foi uma das pessoas que saiu de um dos carros, e dirigiu-se para o grupo das pessoas em conflito; o MM agrediu o cunhado do CC. O marca ... subiu pela passadeira e entrou no passeio. Não viu o marca ... a subir na direção do mercado. Só vê o marca ... quando entra no passeio; mas considerando como ele parou no sentido ascendente, teve de subir em direção ao mercado e voltar a descer para subir ao passeio. Quando estava no passeio ouviu duas, três pessoas a gritar, olhou para trás e o carro estava lá, desceu o passeio como se estivesse na via pública e levou as pessoas de arrasto; não se recorda se naquela altura o MM estava lá; depois das pessoas serem atropeladas não sabe como é que a carrinha saiu daquele local, a preocupação era com as pessoas que estavam feridas. O carro marca ... para num local e crê que o outro carro para em linha, atrás do marca .... Quando vê o carro, este já tinha atropelado uma pessoa. O cunhado do CC foi agredido pela pessoa com a alcunha “NN”. O grupo do depoente não constituía perigo porque estava na defensiva, porque acabou e porque a polícia já lá tinha estado e os acalmou e mandou ir para casa; depois quando eles estão a ir para casa, aparecem os (dois) carros, e desce a tal pessoa e que agride o cunhado do CC e volta a haver a confusão. Na altura em que ocorre a agressão do MM já estava tudo apaziguado. E por isso não compreende a necessidade do carro subir ao passeio e atropelar as pessoas. Conhece a FF porque trabalhou com o irmão. Depois do acidente foi uma vez a casa da FF e houve um sentimento de culpa do próprio por causa daquilo, porque se não tivesse ocorrido aquela confusão ela não teria sido atropelada; ela estava com dificuldades por causa da perna partida. - CC, lembra-se da cara do arguido do dia dos acontecimentos na discoteca; estava no ...; também foi ofendido na situação por ter sido atropelado; o cunhado DD foi agredido com um murro. No dia dos factos o depoente estava acompanhado com o cunhado de nome DD, o PP, o EE e o próprio; e na discoteca encontram outros rapazes conhecidos. O depoente estava no balcão a beber com o cunhado DD, estavam a meio do balcão; vê um aglomerado de pessoas, ignorou; depois vê o PP, amigo dele, no meio da confusão; o AA estava exaltado, dizia que tinham dado uma bofetada no seu irmão mais velho de nome SS; ele disse para ele se acalmar; não se recorda de ouvir comentários racistas; o dono do ... conhecia o AA e acalmou o AA; ele e o AA saíram da discoteca. O AA estava exaltado com pessoas do outro grupo, entre os quais se encontravam pessoas de etnia cigana, nomeadamente o arguido. Lembra-se que o arguido estar vestido de branco e a “bater bocas” na parte de fora. Na parte de fora havia uma viatura da polícia, com um agente e estavam dois seguranças da discoteca para manter a separação dos grupos. Acalmaram-se e foram-se embora, subindo as escadas e vieram ter à frente do estabelecimento agrícola; estavam as pessoas do grupo do depoente, mais os outros rapazes que encontram na discoteca na altura. Depois de subirem as escadas, houve um tempo que estiveram só eles, separaram-se e estiveram a falar uns com os outros; de repente vê chegar uma viatura, que lhe disseram que era um carro (não carrinha) marca ..., que viu ser de cor ..., desta viatura saiu um jovem que lhe disseram ter a alcunha de “NN”. O “NN” saiu do lado do pendura; a viatura vinha da direção do mercado; o tal jovem de alcunha “NN” dirigiu-se ao grupo do depoente a abrir os braços e a insultá-los, de um momento para o outro o depoente vê-se rodeado de pessoas que não conhecia; neste momento não viu o arguido, nem nunca mais o voltou a ver. O NN estava a dizer coisas, a chamar pela cor, “preto” e quê…neste momento está rodeado de pessoas que não conhecia, mas acha que não eram pessoas que vieram com tal “NN”. Naquele momento o cunhado vem buscar o depoente, e vinha para apaziguar e nessa altura o MM dá-lhe um murro com uma soqueira e o cunhado cai de costas e ficou a sangrar muito; e o DD disse para irem para casa; e nesse momento vê um farol, uma luz a vir de trás, e depois o depoente “apagou” e não se lembra de mais nada. O marca ... vinha de cima, mas em contra-mão, a circular na hemi faixa dos veículos que seguem em sentido contrário. Não acompanhou o trajeto do marca ... desde que parou da primeira vez quando saiu o MM alcunha “NN” do lugar do pendura até ao momento em que o vê junto à passadeira, tem ideia que o carro subiu na zona da passadeira para cima do passeio. O depoente foi atingido pelo carro, que lhe bateu na parte de trás da perna, porque o depoente estava de costas. O carro bateu no depoente, DD, EE, na FF e na BB. Decorreu pouco tempo desde a agressão do MM ao DD até ao atropelamento. Sublinha que no momento que surge o MM estava tudo calmo e apaziguado. Em circunstância alguma as pessoas que estavam dentro do carro estiveram em perigo; não houve qualquer tipo de ameaça para as pessoas que estavam dentro do carro; que o atropelamento foi um ato de cobardia, não havia nada que justificasse o atropelamento, não houve ninguém sequer que se tenha aproximado na viatura. Não se apercebeu quem estava dentro do marca ... e se eram homens ou mulheres. Não viu o “NN” anteriormente dentro da discoteca, parece que o chamaram ou algo assim. Foi assistido no hospital fez RX no pulso, e teve alta no mesmo dia; de todos os atropelados foi o menos lesado, apenas no pulso e na perna. Foi confrontado com a fotografia de fls. 240, com a foto de uma carrinha marca ... preta. Lembra-se de ser um carro com estas dimensões, mas não sabe dizer se era um marca .... Do que se lembra é dos faróis do carro. Não sabe quem estava dentro do carro; estava de costas quando a viatura se está a aproximar dele. Sobre a velocidade a que a viatura seguia até o atropelar, não sabe, mas teria alguma velocidade. Quando acordou viu o cunhado deitado no chão, ouvir pessoas a dizer para não se mexer porque a ambulância estava a chegar. No momento do atropelamento estavam muitas pessoas em cima do passeio, admitindo como possível 20 ou 25 indivíduos como referido no ponto 4.º da acusação; na faixa de rodagem não havia viaturas, apenas se lembra de ver aquela de onde saiu o MM. O grupo do depoente eram todos “pretos”. Ao todo o seu grupo, o grupo das pessoas de cor ... seriam 8 ou 9 pessoas todos de cor (somando os que iam com ele e os que encontraram na discoteca); no momento do embate estariam menos pessoas de cor precisamente pelo que já disse, que a determinado momento se separaram e que estava rodeado de pessoas que não conhecia, nomeadamente as duas senhoras que também foram atropeladas. - BB, não conhece o arguido, viu-o no dia dos factos em julgamento, estava no ... porque foi receber o pagamento ao ..., é funcionária do ... e Companhia; depois ficou lá na “noite”, chegou pelas 2.15 horas e saiu pelas 5 horas e tal; estava com a FF (que é a sua gerente), com o seu irmão LL, o seu sobrinho TT e o SS. Não viu a discussão que se passou dentro do .... Viu uma “briga” dentro do ... de um menino, baixinho, discutindo e chegou para a FF “eu pego minha arma e mato vocês”, mas não era o arguido, era um “baixinho”. Começou a puxar a FF para sair de lá; acredita que tudo isto deve ter sido por racismo, porque estava um grupo de negros e o outro era um grupo de brancos. O grupo da depoente saiu para fora da discoteca; tinha uma briga acontecendo fora do ..., mas entretanto a polícia foi-se embora. Não sabe se o grupo dos brancos era de etnia cigana, porque não sabe diferenciar. Subiram por dentro, pelas escadas e ficaram em frente da loja o cantinho; continuando o seu depoimento em evidente estado de emocionada disse que ficaram ali o irmão e sobrinho na frente, no banco; de lado tinha um rapaz negro, magro e alto que começou a apanhar, “começaram a bater-lhe muito”; o SS estava tentando separar. O rapaz que estava a bater era moreno, não era branco, nem negro; viu o moço apanhando, e ele tentando apaziguar a situação e apanhando direto; E nessa altura viu o carro subindo no passeio, não lembra que tipo de carro, subiu no passeio pouco depois na passadeira, ele passou…pensou que ele ia entrar para um caminho de acesso a uma garagem perto do Banco 1.... Só que ele contornou a árvore; o carro não estava em aceleração, dava a sensação que ia parar; e quando ele acelerou viu que a intenção não era de parar. Ele acelera logo depois, o carro “começou a vir mais rápido para cima da gente”; a depoente olhou e viu uma pessoa careca, barbuda, um pouco menos forte, que reconheceu ser o ora arguido. Quando o carro passou, ela estava de frente para o carro, tentando puxar a FF, que bateu na perna dela e girou e bateu no poste; a FF voou para um poste que tinha ali em frente, girou e caiu no chão; a depoente pensou que ela tivesse quebrado a coluna na maneira como ela bateu. Identificou o poste onde a FF bateu e girou. Na altura do atropelamento a agressão ao outro senhor já tinha terminado; quando o carro veio, a depoente só conseguia focar-se na FF, e foi correndo para lá; também viu outros voando; o carro continuava indo e as pessoas voando por cima; o carro não parou, seguiu sempre, a depoente ainda gritou para as pessoas fugir; não se lembra da cor do carro. Nem sabe a marca. Nem viu a matrícula; só viu a pessoa que seguia dentro do carro. Antes de começar a agressão ao jovem negro a situação estava calma; naquela altura tinha bastante gente em cima do passeio. O carro que apanhou só viu mais tarde no hospital. O carro foi até ao final do passeio e depois desceu do passeio para a rua e foi para baixo. A depoente foi a primeira a ser atingida pelo carro que lhe bateu na perna. A depoente foi para o hospital, fez Raio X, a médica passou as muletas, que ficou alguns dias em casa, é emigrante tem que trabalhar; ainda corria o risco de ser deportada. Ainda hoje se sente traumatizada com a situação; e em choro disse que ainda hoje consegue “ver tudo”; a depoente só pensa porquê, nunca imaginou que isso fosse acontecer, não entendia o motivo da pessoa fazer aquilo. Sobre a agressão, disse que eram dois jovens morenos a bater no tal jovem “negro”, não vendo se foi usada alguma soqueira, mas viu que o agredido estava todo ensanguentado. A FF era a sua gerente, era uma pessoa trabalhadora e sempre bem-disposta; mas depois desta situação a FF fica como se nada tivesse acontecido, mas ficou muito limitada, não podendo carregar pesos e tem muitas dores, só que ela não fala, não reclama. Por vezes manca, não consegue fazer exercícios no ginásio. Descreveu outas consequências do embate na pessoa da FF que a limitam no seu dia-a-dia. Admite que estariam em cima do passeio 15 a 20 pessoas, porque tinha muita gente caída no chão. O irmão e o sobrinho não caíram. Tinha pessoas arrastando para a parede e outras pessoas a ajudar outras. Viu que tinha outras pessoas dentro do carro, tinha uma ao lado e uma atrás do carro, não podendo confirmar se tinha mais alguém atrás do carro. - EE, 21 anos, estudante na ...; apenas viu o arguido uma vez, no dia da confusão. Confirmou que no dia e hora dos factos estava no ...; estava na companhia do CC, PP, OO, o tio DD e o irmão do UU de nome VV; não viu como começou a confusão, do nada o pessoal que estava com ele, estava em confusões… a confusão era entre o grupo do arguido e o grupo do depoente; o depoente não estava sóbrio; os seguranças foram acalmar a situação e foram todos postos fora; que foram ditas expressões de do tipo “pretos e tal”. O depoente saiu sempre na companhia de uma “rapariga” de nome WW e foi à padaria ... comprar pão com chouriço; atravessou para o outro lado da rua e sobe até à rotunda ao lado do mercado; depois voltou para trás, encontrou a confusão de novo; quando estava a regressar encontrou o amigo que foi ter com ele; no regresso já não vinha a rapariga; os dois voltaram para trás, quando chegou ao Banco 1... e chegou o carro, apanhou com o carro e ficou logo desmaiado, por isso não se lembra de quase nada; mas ainda viu o MM a dar o murro no DD e segundos depois aparece o carro que o atinge. A pessoa que deu o soco saiu de lá e depois dá-se o acidente. Recorda-se de ver o carro preto na rua, mas não se recorda onde estava parado; mas lembra-se de ver o marca ... preto em cima do passeio; não viu o carro, só ouviu, e empurra o OO e leva a primeira pancada; não viu a frente do carro; não sabe a velocidade, mas ouviu o roncar do motor. Quando o carro vem, não teve tempo de chegar ao pé do DD. Afirma que já não se lembra de muitas coisas. Não se lembra de ver o sujeito de alcunha “NN” dentro da discoteca. Não viu quem estava dentro do marca .... Depois do embate do veículo na sua pessoa o depoente ficou no chão, de seguida foi para o hospital, fez Raio X e ficou dois dias internado no hospital. - LL, 32 anos, funcionário de limpeza; irmão da assistente FF, estava no ... no dia e hora dos factos; conhece o arguido do dia dos factos (nunca o tinha visto o arguido antes ou depois); conhece o local dos factos; de nacionalidade ... e está há cerca de 5 anos em ...; estava o depoente, a sua irmã BB, o sobrinho TT, e outros amigos da FF e irmã cujos nomes não sabe; numa certa hora, pelas 4.30 horas, houve uma discussão, e foi tudo embora para fora. A discussão foi entre o grupo do arguido e o grupo dos africanos, cada grupo teria uma quatro ou cinco pessoas. E viu o AA num dos grupos, parecia calmo e não aparentava estar embriagado ao ponto de cair. Não percebeu as palavras que foram ditas, nem a origem da discussão. Saíram da discoteca e depois viu a violência; a FF conhece os africanos; deu as 5.00 horas e vieram para fora e o ... fechou. Viu a agressão da pessoa de alcunha “NN” no jovem de cor (o DD). De um dos lados da rua estava o grupo dos africanos do outro lado estaria o grupo do arguido; naquele momento não se apercebeu de qualquer movimentação ou briga entre os grupos. E de repente se juntaram no meio da rua, começou a discussão, vem alguém de fora “o NN” fazer a agressão. Não sabe de onde veio o MM, alcunha “NN” e fala 5 segundos e desfere um soco no africano mais magrinho, caiu ao chão e estava cheio de sangue, (era o que tinha tentado parar a briga) e depois ainda foi atropelado. Depois da agressão tudo se separou, a briga terminou e vieram para cima do passeio para frente do Banco 1... e continuaram a conversar normalmente; o depoente estava na parte de baixo do passeio e a irmã e a FF estava na parte de cima; o carro subiu pela passadeira, não percebendo de onde vinha o carro, sendo que depois de confrontado com as hipóteses afirmou que tinha a certeza que o carro vinha de cima; faz a curva da passadeira, passa pela árvore e já fica reto, fez a curva devagar para não bater na árvore e depois de ficar reto ele acelera; ele pegou a irmã do depoente e à FF; esta voou e bateu numa placa de lado e caiu desamparada no chão. O depoente apercebeu-se visualmente da aceleração. A velocidade a que seguiu no passeio foi a 30, 40 ou 50 quilómetros há hora e não deu tempo de as pessoas se desviar; o carro depois sai na esquina do passeio com o ..., acha que o carro não fez o passeio todo. Não percebeu quem e quantas pessoas iam no carro. Quando o carro apareceu já não havia discussão nenhuma, nada de que o condutor do carro se tivesse de defender; na altura pensou que o condutor era “maluco”; a forma como a FF voou foi chocante. Falou sobre as consequências que o atropelamento teve na FF que é amiga da sua irmã BB. Esclareceu ainda que o grupo em confronto com o grupo africano era composto por cinco pessoas do sexo masculino; e lá dentro também havia uma senhora no referido grupo. - XX, trabalha em ... na apanha de morangos; conhece o arguido; a situação ocorreu no dia em que estava a festejar o seu aniversário; não se lembra de nada, estava muito alcoolizado; o depoente não fazia parte de qualquer um dos grupos em confronto. Foi festejar o seu aniversário com um grupo de amigos cuja identidade não se lembra bem. Não foi com o arguido para o ..., calhou de ver o AA no .... Não se lembra de qualquer confusão dentro da discoteca, nem se lembra de qualquer confusão cá fora. E não se lembra se foi trazido para fora da discoteca. - YY, trabalha no ...; não conhece o arguido; no dia dos factos estava de folga, estava no ... no dia e hora dos factos na companhia de um colega de trabalho, que é DJ de nome ZZ. Apercebeu-se de uma discussão entre dois grupos; cada grupo tinha cerca de 5 pessoas; um dos grupos era composto por pessoas de origem africana; não sabe como é que a discussão começou, não ouviu palavras; os grupos saíram separados. Os africanos saíram primeiro, o outro saiu passados alguns minutos; a depoente ficou até ao fecho porque a depoente ia com o DJ. Saíram do ..., desceram para ir buscar o carro, e depois fazem o sentido ascendente para a Rua ... e viram para o sentido do mercado, quando o colega parou no STOP, só vêm o carro – marca ... – passar para baixo; pelas luzes vê-se que circula em cima do passeio e depois sai do passeio, volta para a faixa de rodagem, passa pela depoente e colega e passa para baixo; não consegue ver quem seguia dentro do marca ...; quando o carro passou a reação é olhar para cima porque se via confusão de pessoas caídas no chão; iam buscar a FF que estava com um grupo no ...; o colega parou ao lado da entrada do centro comercial. Não sabe se o marca ... vinha de repente ou devagar, sabe que ele passou, sempre em andamento, foi uma coisa muito rápida. Auxiliaram a FF, esperaram que chegasse a ambulância e depois foram ao hospital ver se ela estava bem. Respondeu a perguntas relativas às consequências que o embate teve na assistente. - AAA, 35 anos, funcionária pública, não conhece o arguido; estava no ... no dia e hora dos factos; estava meia sozinha, tinha estado num outro bar e chegou às 3.00 horas e juntou-se a várias pessoas, mas com ninguém de qualquer um dos grupos em confronto; esteve com a FF. Houve um desentendimento no interior do ... entre dois grupos que aparentemente tinha ficado resolvido; um dos grupos era de origem africana e o outro grupo segundo o que diziam era de etnia cigana; não se apercebeu como começou a discussão. Não ouviu palavras. Chegaram os seguranças para separar as pessoas, o grupo dos africanos foi colocado na rua, o outro grupo ficou no bar; a depoente falou com algumas pessoas para acalmar a situação. Não sabe quantas pessoas tinha cada um dos grupos em confronto, mas o grupo africano tinha mais gente; a depoente saiu do bar por volta da hora do fecho e quando saiu viu uma situação de conflito. Veio por fora, pelo passeio e parou frente à churrasqueira; havia confusão entre várias pessoas, entre os africanos com outras pessoas, e pelo passeio acima, e desvalorizou; não viu o MM, alcunha “NN” a agredir ninguém, mas falou com ele a acalmar para ele não se meter na discussão; não o tinha visto anteriormente no interior da discoteca. Entretanto, deixou de ver o MM; a depoente estava virada para baixo, de costas para o lado do mercado; ouviu “cuidado” e virou-se para cima e viu o carro e um senhor a levar com o carro e a ser projetado para o ar; a depoente desviou-se para trás e não é atingida pelo carro; não sabe que carro era o que atropelou. O carro não vinha muito devagar. Depois do carro passar viu pessoas caídas. Não sabe como é que o carro saiu do passeio, nem para onde se dirigiu, ficou aterrorizada com o cenário que viu e as pessoas amigas tiraram a depoente dali; admite que estariam ali cerca de 20 pessoas, eram as pessoas do ... e de um outro bar que existe em baixo; não viu os ocupantes do marca .... As pessoas que foram atingidas pelo carro eram na sua maioria de origem africana. Foi tudo muito rápido e surreal e a depoente também tinha consumido muito álcool. Quando a depoente o carro está quase em cima dela. Estava um rapaz ao lado dela que levou com o carro. Respondeu a perguntas sobre as consequências que a assistente FF sofreu em virtude do atropelamento de que foi vítima. - BBB, funcionário do ... desde 2012, entra às 11.00 horas e sai quando o bar fecha; viu o arguido no dia dos factos no bar. O arguido não era cliente habitual do bar. O depoente faz sala, levar bebidas, gelo, etc. e por todo o espaço. Não é um espaço aberto, tem divisórias. Estava a trabalhar normal e a dada altura ouviu uns “bate bocas” e os seguranças foram para o local, serenaram a situação, não houve nada de especial. Começaram a encaminhar para a saída alguns clientes, os de origem africana. Ficaram na entrada, chegou a polícia. saíram da porta e depois foram para cima, mas depois já não viu porque continuou dentro do bar. Passado um tempo veio cá fora, estavam os seguranças, subiu as escadas e já não havia nada. não viu o MM no ..., nem o viu mais tarde a agredir ninguém. Voltaram para trás e depois vê o carro a passar. O depoente estava de costas e ouviu alguém dizer “o carro, cuidado” e ele virou-se e encostou-se à grade. Apercebeu-se das luzes do carro e encostou-se para o lado. Apercebeu-se do carro em cima do passeio e a vir para baixo. O carro vinha rápido a passar para baixo; o carro para andar no passeio ia depressa, a 40 / 50 quilómetros hora; o carro entrou mais à frente na estrada; não identificou quem ia dentro do carro, nem se eram homens ou mulheres, nem quantas pessoas. Alguém estava a chamar o INEM; no local estariam cerca de 10, 15 pessoas. Viu caídas no chão 4 pessoas. Respondeu a perguntas sobre as consequências que a assistente FF sofreu em virtude do atropelamento de que foi vítima. - GG, 45 anos, segurança privado no ... à data dos factos; conhecia o arguido como cliente do bar anteriormente à situação em julgamento; estava na porta e circulava pelo estabelecimento; no dia dos factos houve um pequeno desacato entre um grupo e o arguido, que estava num grupo. Quando chegou ao pé do arguido, este estava sozinho e calmo; não sabe se ele estava embriagado. A confusão foi entre o grupo de africanos e o grupo do arguido AA. Não se recorda quem fazia parte do grupo do arguido. um colega de nome HH chegou primeiro ao local da confusão; encaminharam os grupos para a saída e deixaram sair primeiro o grupo dos angolanos. Esteve presente a PSP, que depois foi embora; conhece o MM e calcula que ele tenha estado na discoteca. Mas de certeza que o viu fora da discoteca. A certa altura pelo barulho apercebeu-se de confusão no exterior; vai até ao local pelas escadas, estavam pessoas aos berros, o grupo africano e outras pessoas que ali estava, havia pessoas a separar. não se lembra de ver o arguido fora da discoteca. Vê o carro em cima do passeio, não sabendo a sua proveniência; o carro vinha no passeio a descer. O carro vinha rápido porque só via pessoas a bater no carro e viu uma pessoa a bater no vidro e a estilhaçar o vidro; circulava a cerca de 20/30 quilómetros /hora. O carro continuou em cima do passeio e depois vê-o a ir para baixo em direção ao semáforo, não o viu quando ele retomou a estrada; e vê pessoas caídas no chão e foi socorrer as pessoas, não se interessou mais pelo carro; foi o depoente quem chamou o 112. Não viu quem seguia no interior do carro. Foi confrontado com as fotografias de fls. 236 a 239 (fotos da carrinha marca ... preta). Sabe que a viatura que atropelou as pessoas era uma carrinha escura, azul escura ou preta. E depois de confrontado com as referidas fotografias, confirmou que era esta a viatura. Quando a viatura chega ao local, os ânimos estavam serenados, não havia agressões, e ele tinha controlado o MM. Naquele momento a estrada estava livre, não havia circulação de carros, havia pessoas no passeio e na estrada, cerca de 20 /20 pessoas no passeio e na estrada. A marca ... só bateu em pessoas. Por fim, esclareceu que o arguido enquanto cliente do ... sempre o respeitou; não era cliente conflituoso. Mas de igual modo, nenhuma das pessoas do grupo dos africanos também estava referenciado como sendo cliente conflituoso. - RR, não conhece o arguido, o depoente estava no bar no dia dos factos; estava de férias em ..., durante uma semana; estava acompanhado com um grupo composto pelo AA, o ... e mais dois rapazes, sendo um deles o DD; no interior do bar houve uma discussão, não sabendo entre quem, tinha bebido demasiado; tem uns flashes de que houve uma confusão; saiu da discoteca com a FF. Disseram-lhe para não sair para fora do bar porque estava a haver confusão cá fora. O depoente é irmão do PP; saíram e foram para à frente da Banco 1...; nesta altura o grupo era composto por 6 pessoas e ainda a BB que trabalha com a FF. Sabe que o DD foi agredido, mas não sabe se foi dentro ou fora; sobre o atropelamento, estavam todos a conversas no passeio e de repente vê o carro em cima do passeio, não sabendo se o carro vinha do mercado para baixo, se no sentido contrário; “o carro estava com o acelerador ao máximo/ ao fundo; viu o carro a levar pessoas à frente e estas a cair ao chão. O carro passou por cima de metade do passeio e por isso não “apanhou” todas as pessoas que estavam no passeio; ele estava na parte de baixo do passeio e por isso não foi apanhado pelo carro. Não sabe a direção do carro depois do atropelamento. Respondeu a perguntas sobre as consequências que a assistente FF sofreu em virtude do atropelamento de que foi vítima. Não se apercebeu de palavras racistas durante a discussão no interior da discoteca. - DD, não conhece o arguido. Esteve presente no ... em ..., estava de férias durante um mê em ..., e a convite do cunhado – CC – foram a esta discoteca; também tinha ingerido bebidas alcoólicas. O grupo do depoente era composto por três pessoas, o próprio, o cunhado e outro rapaz; no interior da discoteca o cunhado apresentou-lhe amigos conhecidos que também la estavam. No interior da discoteca estava tudo calmo; a dada altura viu um rapaz a ser levado para fora. Soube mais tarde que a confusão lá dentro foi porque um rapaz tinha “levado um tapa na cara”. Dentro da discoteca não ouviu comentários racistas. A determinada altura saiu da discoteca com o CC e foi agredido. Não se recorda de ter estado junto a um Banco. A pessoa que o agrediu deu-lhe um soco na cara, tinha acabado de chegar ao local saindo de uma viatura. Não sabe se saiu da viatura que atropelou as pessoas. Não conhecia a pessoa que o agrediu, mas mais tarde identificaram como sendo “o NN”. Depois de ser agredido disse ao cunhado para irem para casa. Iam para casa e depois só se lembra de acordar no hospital; não se recorda de ver o carro e de o carro lhe ter embatido. Não viu o “NN” dentro da discoteca, só o viu cá fora. Em consequência do embate com o carro sofreu lesões e sentiu dores no corpo. - JJ, prescindida nos termos constantes da ata da terceira sessão. Esposa do arguido que invocando tal qualidade também referiu que não queria prestar depoimento. - HH, conhece o arguido da discoteca; trabalha no B Clube há 4 / 5 anos é segurança porteiro. Na altura estava dentro do espaço a vigiar. A cerca de 20 metros da porta. Lembra-se de uma altercação em que o arguido estava envolvido, que o chamou a dizer que um africano se tenha envolvido com eles; o depoente foi lá e abordou o africano que “reverteu as coisas”, a dizer o contrário, veio o resto do grupo dos africanos que começaram aos empurrões e aos insultos ao grupo do arguido; não se apercebeu a origem da altercação, nomeadamente comentários racistas. Depois ele e o colega conseguiram apaziguar as coisas; os africanos saíram para a rua de forma voluntária; o arguido não aparentava estar alcoolizado e teve a calma de o ir chamar. Entretanto volta para dentro, onde permanece e voltou para o pé do grupo do arguido, estando a acalmá-los para não saírem; chega a polícia, acalma as coisas e vai-se embora; o depoente ficou no bar até sair o pessoal todo; cá fora não assistiu a nada, viu apenas um do grupo dos africanos ensanguentado, isto antes do atropelamento; depois já estava tudo mais ou menos apaziguado, o patrão diz para saírem dali, o depoente e o ... saíram para o passeio e depararam com um carro em cima do passeio a vir para baixo e a abalroar as pessoas; não sabe de que sentido ele vinha, só viu mesmo em cima do passeio e a vir para baixo. A velocidade seria a 20, 30, 40 no máximo, e atropela as pessoas e tem uma escapatória e sai, segue o seu caminho; naquele local, em cima do passeio, 6 ou 7 africanos e ao total estariam 15 pessoas; conhece o MM alcunha “NN” que estava junto do proprietário da discoteca, não sabendo como ele ali chegou. Não consegue saber quantas pessoas seguiam no interior do carro, porque, entretanto, o vidro do condutor estilhaçou e o depoente teve de se desviar para não ser apanhado pelo carro. O trajeto do carro foi uniforme (não ia aos esses), teriam sido atingidas 5 ou 6 pessoas, não conseguiu prestar assistência porque “tenho o coração…” e viu que as pessoas estavam todas. … e depois chegou o INEM e foi-se embora. Durante o trajeto não ouviu ninguém dentro do carro a falar ou a dizer às pessoas para se desviarem. E no trajeto do veículo pelo passeio não se apercebeu que houvesse maior número de pessoas “africanas”. O arguido era cliente do ... e era ordeiro, não causava distúrbios. O MM “NN” estava no bar na altura que estava o arguido, mas não convivia com ele. - CCC, pai do arguido, quis falar, não presenciou os factos, soube através da PJ que no dia seguinte vieram ter com ele. O filho vivia com o depoente, sabe que naquele dia ele saiu com a mulher dele, mas não sabe se saiu com mais alguém; a PJ foi buscar a carrinha, que lhe disseram que o filho tinha tido um acidente, que a carrinha marca ... é do depoente e está em nome do filho mais novo e o seguro está em nome do depoente; o arguido tinha tirado a carta há pouco tempo e pediu-lhe a carrinha emprestada para sair com a esposa. Na noite dos factos, não viu o filho, nem esteve com ele; abonou sobre a personalidade o filho, nomeadamente que o filho depois do interrogatório o filho comportou-se bem, não discrimina pessoas pela cor da pele. Vai apoiar sempre o filho, independentemente da decisão do tribunal. - DDD, não conhece o arguido, nem estava presente no dia dos factos no ...; não presenciou quaisquer factos. Soube do acidente através de três pessoas que foram dormir a casa da depoente. O que sabe é apenas por via daquelo que lhe contaram. Foi dispensada. Esta a prova declarativa e testemunhal. Documental: - Auto de Noticia de Crime / Relatório Inicial de Diligências, PJ, fls. 96 a 106; - Auto de Notícia da PSP de ..., fls. 107 e 108; - Ficha de registo automóvel da viatura com a matrícula ..-CM-.., fls. 136; - Ficha de identificação de CCC, fls. 137; - Ficha de identificação de MM, fls. 139; - Relatório de Inspeção Técnica Facultativa da viatura marca ..., com a matrícula ..-CM-.., fls. 218 e 219; - Informação clínica do Centro Hospitalar ... relativa ao ofendido DD, fls. 259 a 263; - Informação clínica do Centro Hospitalar ... relativa ao ofendido CC, fls. 264 a 267; - Informação clínica do Centro Hospitalar ... relativa à ofendida BB, fls. 268 e 269; - Informação clínica do Centro Hospitalar ... relativa à ofendida FF, fls. 270 a 274. - Informação clínica do Centro Hospitalar ... relativa ao ofendido EE, fls. 275 a 278; Pericial: - Perícia Médico Legal (Dano Corporal) à ofendida BB, fls. 23 a 25 e 429 a 431; - Perícia Médico Legal (Dano Corporal) ao ofendido EE, fls. 27 a 29; - Perícia Médico Legal (Dano Corporal) ao ofendido CC, fls. 31 a 33 e 428 e ss.; - Perícia Médico Legal (Dano Corporal) ao ofendido DD, fls. 35 a 37; - Perícia Médico Legal (Dano Corporal) à ofendida FF, fls. 51 a 53 e 592 e ss.; - Relatório de Exame Pericial / GPC, fls. 197 a 216; - Relatório de Inspeção Técnica Facultativa da viatura marca ..., com a matrícula ..-CM-.., fls. 218 e 219; - Relatório de Exame Pericial / GPC, fls. 233 a 256; - Relatório de Exame Pericial (fotogramas ...), fls. 301 a 335; - Relatório de Exame Pericial (fotogramas EMP03...), fls. 336 a 348; - Relatório de Exame Pericial (lofoscopia/ comparação), fls. 368 a 370; - Relatório de Exame Pericial (lofoscopia), fls. 392 a 398; - Relatório de extracção de fotogramas, fls. 462 a 478. - Relatório de exame pericial, fls. 557 a 561 e fls. 583. E ainda como prova documental: - o Certificado de registo criminal atualizado. - o relatório social para determinação de sanção, de onde se retiraram factos sobre as condições de vida pessoal, familiar, profissional do arguido e sua inserção no meio comunitário antes de preso e comportamento e ocupação em estabelecimento prisional desde que em prisão preventiva à ordem dos presentes autos.
II - Análise crítica da prova: A convicção do tribunal resultou da análise crítica e conforme às regras da lógica e experiência de vida do conjunto da prova produzida em audiência, nomeadamente declarações do arguido em primeiro interrogatório judicial, depoimentos das testemunhas, prova pericial e documental, tudo analisado e compaginado entre si (art.º 127.º do CPP). É pacífico que na formação da convicção pode e deve o Tribunal socorrer-se da chamada prova indirecta, das deduções lógicas para formar uma convicção coerente com a realidade: na síntese do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/05/2015, disponível na base de dados da DGSI, no proc. n.º 1938/12.8PSLSB, L.1-9, relatado pelo Senhor Desembargador Francisco Caramelo em que a dado passou se escreveu: (…) “A prova não se resume à directa. Relevantes neste ponto, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções. Entre os meios de prova admissíveis em processo penal, o tribunal pode socorrer-se de presunções judiciais ou máximas da experiência inspiradas nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana. A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349º do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um tacto desconhecido». Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. (…) Nesta motivação importa ter presentes de forma sumária os ensinamentos sobre “o direito ao silêncio do arguido”, o princípio constitucional do “in dubeo pro reo” e o regime do elemento subjectivo típico “dolo”, por uma questão de facilidade de raciocínio. O arguido tem o direito ao silêncio, do qual foi expressamente advertido, que está previsto nos artigos 61.º, n.º1, al. d), 141.º, n.º4, al. b), 343.º, n.º1 e 345.º, n.º1, do CPP - e exercendo-o, aquele não pode ser desfavorecido ou por qualquer modo prejudicado. O silêncio do arguido é um direito processual penal que não pode ser valorado em qualquer sentido, a favor ou contra o arguido. Todavia, querendo o arguido prestar declarações as suas declarações podem e devem ser valoradas como qualquer outro meio de prova de acordo com os critérios legais, nomeadamente o disposto no art.º 127.º do CPP. Ou seja, tais declarações devem ser examinadas na sua coerência e lógica intrínseca de acordo com as regras do normal acontecer e da sua consistência face a todos os outros meios de prova produzidos (depoimentos, documentos, perícias) para assim se aferir da sua credibilidade e razoabilidade à luz das regras da experiência comum. Se as suas declarações em conjugação com a restante prova suscitarem a “dúvida fundada e razoável” e que esta não seja dissipável pelos restantes meios de prova, deve aplicar-se o princípio do “in dubio pro reo” e julgar não provados os factos a respeito dos quais se manteve tal dúvida. Com efeito, o princípio “in dubio pro reo” vale apenas para a matéria de facto e vem a traduzir-se em que “a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido” (cfr. Prof. Figueiredo Dias in “Direito Processual Penal, pág. 215). Este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito (tipo incriminador na sua dupla faceta de tipo objectivo e de tipo subjectivo), quer digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação (ditos tipos justificadores), bem como circunstâncias relevantes para a determinação da pena. O princípio “in dubio pro reo” é o correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido. Gozando o arguido da presunção de inocência (artigo 32, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), toda e qualquer dúvida com que o tribunal fique reverterá a favor daquele. O princípio “in dubio pro reo” constitui um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto deve ser sempre valorada favoravelmente ao arguido. O princípio “in dubio pro reo” aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (v. g. a legitima defesa), de exclusão da culpa. Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido" - Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, 1974, 211. "Não adquirindo o tribunal a "certeza" (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do princípio “in dubio pro reo”, a da absolvição. Neste sentido não é o princípio “in dubio pro reo” uma regra de ónus da prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus" - vd. Castanheira Neves in processo criminal, 1968, 55/60. O princípio “in dubio pro reo” só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido - Ac. do mesmo Supremo de 18/3/98 in Proc 1543/97. O tipo subjectivo exige o dolo em qualquer das suas formas: dolo directo, dolo necessário, dolo eventual. Nos termos do art.º 13.º do C. Penal só é punível criminalmente o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. A este respeito diz-nos o art.º 14.º do C. Penal que age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo legal de crime, actua com a intenção de o realizar (dolo directo), agindo ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta (dolo necessário), ou quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime foi representada como consequência possível da sua conduta, havendo dolo, em tal caso, se o agente actuar conformando-se com aquela realização (dolo eventual). No que se refere à negligência, preceitua o art.º 15.º do C. Penal que age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente), bem como aquele que não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto (negligência inconsciente). A respeito do elemento subjectivo, há muito que é pacífico na doutrina jurisprudência que o dolo ou a negligência têm como substrato um fenómeno psicológico, representado por uma certa posição do agente perante ilícito capaz de ligar um ao outro; ora esses fenómenos psicológicos, eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial, ou emocional do indivíduo, cabem ainda dentro da vasta categoria dos “factos” processualmente relevantes - neste sentido, para o processo civil, mas com evidente pertinência também para o processo penal, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual do Processo Civil”, 1984, pág. 392, citado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/11/1998, em CJ, Tomo V, pág. 140, aresto este que mais adiante assinala e bem o seguinte “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência” – cfr Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 23/02/1983, sumariado no BMJ, n.º 342, pág. 620. Isto posto. O arguido prestou declarações em primeiro interrogatório judicial, sendo que em julgamento não quis falar, limitando-se a dizer que confirmava o que anteriormente tinha dito, a nada mais querendo responder ou esclarecer. Ponderam-se, assim, as suas declarações em primeiro interrogatório judicial e confrontam-se as mesmas com a restante prova produzida. Ora, primeiro aspeto a reter é que o arguido aceita ter sido o autor dos factos objetivos de que vem acusado (os atropelamentos no passeio), negando apenas as intenções que lhe são imputadas, justificando-se em tal atuação; com efeito, o arguido confrontado com os factos, nomeadamente de “avançar com o carro para cima destas pessoas” respondeu que “é verdade, mas não foi com a intenção de machucar ninguém”. Não foi com intenção de atropelar ninguém, era para fugir dali; queria esquivar-se das outras pessoas que estavam na estrada, estavam ali muitas pessoas e queriam faze-lhe mal, estava com a mulher dele, que estava grávida e o que queria era fugir dali porque estava com medo e pânico; não sabe quem são as pessoas que atropelou e está muito arrependido de estar ali naquela hora, nem sabe quem são as pessoas; apenas tentou fugir. Ora, como é bom de ver da audição e análise de toda a prova testemunhal produzida esta versão do arguido não tem qualquer suporte probatório, e nem tem qualquer lógica à luz das regras da experiência. A contenda que se tinha passado momentos antes no interior da discoteca foi de pouca importância, consistindo essencial na troca de palavras, alguns insultos e empurrões e algumas agressões físicas (facto provado em 1), sendo como todas as testemunhas referiram, nomeadamente os funcionários da discoteca que curaram de pacificar a situação, ninguém saiu ferido da discoteca ou com lesões visíveis. Ninguém, nem o próprio arguido refere que em tal contenda tenham sido proferidas ameaças graves (nomeadamente de agressões físicas ou morte, contra a sua (do arguido) pessoa. Ou seja, nada ocorreu com os contornos de violência que o arguido quer fazer crer que justificasse por parte do arguido qualquer medo ou receio quando conduzia a carrinha marca ... preta pelo local dos factos e que justificasse que as outras pessoas, nomeadamente de origem africana ou subsaariana a lhe quisessem fazer mal ou o quisessem agredir como aquele quis fazer crer para justificar a sua condução de sair da faixa de rodagem e passar a circular pelo passeio com cerca de 20 a 25 pessoas, algumas de origem africana ou subsaariana. Com efeito, como dito por todas as testemunhas presentes no local, e de forma exaustiva, coerente entre si e como tal objetiva e isenta, sem qualquer intenção de prejudicar o arguido - , antes pelo contrário, algumas delas disseram não conhecer o arguido e nada ter contra ele, outras que o conheciam e não tinham ideia de ser pessoa conflituosa como é o caso dos seguranças e ou funcionários da discoteca, que descreveram o arguido de forma positiva, - no momento em que o arguido atuou da forma provada a situação de conflito estava completamente apaziguada, calma, não havendo qualquer animosidade contra quem quer que seja, e muito menos contra o arguido, para justificar qualquer medo da sua (arguido) parte para justificar a sua atuação; todas as testemunhas referem que naquele momento estavam várias pessoas em cima do passeio a conversar umas com as outras, estava tudo calmo depois da anterior agressão também injustificada de um tal MM (que não é arguido, nem testemunha nestes autos) a um dos elementos do grupo subsaariano ou africano, que ninguém na altura associou como estando ligado ao arguido; foi com muita surpresa e estupefação que todas as testemunhas se apercebem da carrinha marca ... a subir ao passeio e a atropelar as pessoas e a provocar a fuga e o pânico dos restantes para não serem atropeladas; tanto assim que algumas que das testemunhas (sendo alguns também ofendidos atropelados) estavam de costas para o local de onde o arguido vinha a conduzir a viatura e por onde entrou no passeio e os que foram atropelados não tiveram hipótese de fugir e outros só fugiram porque foram alertados pelos gritos dos que estavam a ver a atuação do arguido; ou seja, não existia nenhum ambiente de tensão ou alerta por parte dos presentes para qualquer situação de violência, e muito menos para aquela que o arguido despoletou. O que isto também denota é que o arguido não sinalizou a sua circulação na estrada, nem a sua abordagem e entrada no passeio; não gritou, não apitou, não fez sinais de luzes, ou fez qualquer manobra que evidenciasse que queria prosseguir na faixa de rodagem e que não o fazia por medo das pessoas que estavam a ocupar a faixa de rodagem. A maioria das testemunhas, vítimas ou não do atropelamento, nem sequer reconheceram o arguido como condutor do carro, ou qualquer outra pessoa que seguisse no lugar do pendura ou no banco de trás dentro do carro, como estando ligada à “confusão” anteriormente ocorrida no interior da discoteca, o que inculca de forma clara e inequívoca que naquele momento ninguém estava na faixa de rodagem a cortar a passagem de circulação ao veículo tripulado pelo arguido. Não tem, assim, qualquer lógica a justificação declarada pelo arguido para ter subido ao passeio e passar a circular em cima do mesmo, atropelando aqueles que ali encontravam. Se dúvidas houvesse – que não existem – o depoimento isento, objetivo e coerente com toda a restante prova produzida da testemunha BB consolida mais esta convicção. Esta testemunha diz de forma segura que viu o carro subindo no passeio pouco depois da passadeira, ele passou…pensou que ele ia entrar para um caminho de acesso a uma garagem perto do Banco 1.... Só que ele contornou a árvore; o carro não estava em aceleração, dava a sensação que ia parar; e quando ele acelerou viu que a intenção não era de parar. Ele acelera logo depois, o carro “começou a vir mais rápido para cima da gente”; a depoente olhou e viu uma pessoa careca, barbuda, um pouco menos forte, que reconheceu ser o ora arguido. Elucidativo. O que convence que a atuação do arguido – contrariamente ao que disse e quis fazer crer - foi uma atuação pensada, ponderada, com algum ardil, engano, efeito surpresa, e que de facto a todos surpreendeu, porque ninguém estava à espera de uma atuação daquelas; aliás, ninguém encontrou e relatou ao tribunal qualquer justificação para uma atuação daquelas naquele concreto circunstancialismo. E tanto assim (surpresa) que foram atropeladas cinco pessoas, uma delas com especial gravidade (a ofendida FF) que não tiveram tempo de fugir. A versão do arguido não tem, assim, suporte na prova produzida, não havendo uma única testemunha que a corrobore minimamente ou que contribua sequer para a admitir como possível, nomeadamente suscitando qualquer dúvida à convicção do tribunal, assinalando-se que as testemunhas da Defesa que poderiam eventualmente corroborar a sua versão ou lançar qualquer dúvida à convicção segura do tribunal, no exercício de um direito legal recusaram-se a prestar depoimento sobre os factos em julgamento, ou então nada sabiam e como tal nada relataram a tal respeito que corrobore a versão do arguido e permita justificar a sua atuação nos termos que aquele relatou em primeiro interrogatório. Assim sendo, com base em toda a prova testemunhal, pericial e documental, convenceu-se o tribunal em julgar provados todos os factos objectivos como julgou, os quais salienta-se não foram negados pelo arguido, nomeadamente o arguido além de não negar a autoria dos factos, não questionou que com a sua conduta atingiu cinco pessoas e os ferimentos que lhes causou; sempre se dirá que as vítimas foram socorridas no local existindo registos clínicos que descrevem os ferimentos que apresentavam quando do episódio de urgência hospitalar, sendo que os relatórios periciais não impugnados também convencem plenamente quanto aos ferimentos, lesões e sequelas de cada uma das cinco vítimas. Em relação aos factos motivadores da atuação do arguido provados em 1) não há dúvidas que no interior da discoteca ocorreu uma contenda do grupo do arguido composto por indivíduos de etnia cigana com outros indivíduos de origem africana ou subsaariana nos termos provados em 2); de facto, prova-se essa confusão com troca de palavras e algumas agressões físicas, como sejam empurrões ou algum murro, sendo que é nesse sentido que vão os depoimentos das testemunhas que revelaram conhecimento direto da situação, sendo que os insultos racistas por parte de indivíduos do grupo de etnia cigana contra os indivíduos de origem subsaariana também ocorreram pois que existe uma testemunha - QQ, 29 anos, gerente de uma loja de telecomunicações - ainda que com conhecimento indireto dos factos que relatou como foi abordado por um indivíduo de origem africana que confundindo-o com um dos intervenientes (porque fazendo parte do grupo de etnia cigana) na contenda no interior da discoteca, acusou-o de no interior da discoteca ter dito “pretos de merda, ide para a vossa terra” e “vou-te matar”. O que demonstra que de facto ocorreram agressões físicas e insultos racistas como julgado provado em 1), sendo, como é demais evidente e lógico, esta altercação que motivou toda a posterior atuação do arguido. Quanto à dinâmica da viatura provada em 2) a 4), a prova testemunhal analisada no seu conjunto convence que foram estes os trajetos efetuados pelo arguido até entrar no passeio e avançar com a viatura em direção das pessoas que ali se encontravam; de facto, há depoimentos que esclarecem que viram a viatura a fazer o primeiro trajeto em sentido ascendente e outras descrevem o segundo trajeto, ou seja, em sentido descendente, sendo que pelas regras da lógica o arguido teve de a determinada altura fazer inversão de marcha. Com efeito, a testemunha PP, 26 anos de idade, caixeiro 1.º ano da loja de fatos “...” relata o seguinte: a dada altura dos acontecimentos lembra-se de veículos a parar, deixaram sair pessoas e começou a agressão, os seguranças saíram para acalmar a agressão. Um desses veículos era um marca ... preto, o que mais tarde veio a atropelar as pessoas e esta carrinha vinha no sentido do terminal para o mercado – ou seja no sentido ascendente. O marca ... subiu pela passadeira e entrou no passeio. Não viu o marca ... a subir na direção do mercado. Só vê o marca ... quando entra no passeio; mas considerando como ele parou no sentido ascendente, teve de subir em direção ao mercado e voltar a descer para subir ao passeio. Ou seja, teve de fazer inversão de marcha para passar a fazer o trajeto no sentido descendente e subir ao passeio. E foram várias as testemunhas que viram o marca ... a fazer esse trajeto descendente, pelo que a conclusão lógica é os trajetos terem sido os que se julgaram provados em 3). Para a prova dos factos 5) a 9) além dos depoimentos de todas as testemunhas, serviu-se o tribunal de toda a documentação clínica junta aos autos e que acima está elencada em prova documental, bem como nos relatórios periciais de dano corporal, de onde constam todos os tratamentos e assistência clínica que os ofendidos sofreram em consequência do atropelamento, bem como as lesões e sequelas com que ficaram. A prova documental que são as facturas que instruem o pedido cível do Centro Hospitalar ..., não impugnadas, além de provaram as alegadas despesas hospitalares corroboram a convicção do tribunal a respeito da assistência hospitalar, tratamentos e meios diagnóstico que cada uma das vítimas reclamou em consequência da conduta do arguido em coerência com a prova documental que é a informação clínica do Centro Hospitalar ... a respeito de cada um dos cinco ofendidos e dos cinco relatórios de perícia médico legal de dano corporal de cada um dos cinco ofendidos. Importa agora fundamentar a convicção do tribunal quanto os factos subjetivos que julgou provados e não provados. Conjugando todos os factos objetivos provados e a prova produzida inexistem factos seguros para se puder julgar provados os elementos subjetivos de dolo de matar, em qualquer uma das suas três modalidades: direto, necessário ou eventual. O único facto objetivo que poderia levar a julgar provados os factos de natureza subjetiva de dolo de matar seria o uso do veículo automóvel, enquanto meio ou instrumento de grande potencialidade letal; quanto ao mais, inexistem factos anteriores, contemporâneos ou posteriores à atuação do arguido que nos permitam com a segurança (a que exige uma condenação crime) provar que o arguido quis tirar a vida a qualquer uma das cinco vítimas que atingiu com o veículo automóvel que conduzia, ou que colocando a possibilidade de com tal atuação lhes puder tirar a vida, com a mesma se tenha conformado. Desde logo, deparamo-nos com um obstáculo lógico-fatual: se é certo que a viatura é um instrumento de grande potencialidade letal e infelizmente causador de muitas mortes (pense-se no elevado número das vítimas de sinistralidade rodoviária na sua maioria por negligência) não é menos certo que não se compreende como estando cerca de 20/ a 25 indivíduos em cima do passeio só se equacionaram cinco crimes de homicídio qualificado tentado e não 20 /25 tentativas de homicídio qualificado. De facto, se a intenção do arguido era tirar a vida ou matar as pessoas que se encontravam em cima do passeio (dolo direto), ou se admitiu tal possibilidade e com ela de conformou (dolo eventual) o lógico seria acusar (e agora condenar) o arguido pela prática de 20 / 25 crimes de homicídio qualificado tentado, tantos crimes quantas as vítimas considerando que estamos perante bens jurídicos eminentemente pessoais e que a atuação do arguido é dolosa. E não se poderia deixar a verificação, ou não, da tentativa de homicídio em relação a cada uma das 20 ou 25 pessoas que estavam no passeio na “sorte” (estranha à vontade do arguido) de este acertar, ou não, com a viatura que conduzia em todas aquelas pessoas, porque então igual raciocínio se impunha em relação a alguém que empunhando uma pistola ou revólver e apontando-a em direção ao tronco / coração de 20 ou 25 pessoas, acerta em 5 e por azar, má pontaria, ou porque alguma daquelas pessoas se mexeu, não acertou nas restantes. Ou seja, a lógica da intencionalidade de matar ou não de matar (enquanto um fenómeno psicológico, representado por uma certa posição do agente perante ilícito capaz de ligar um ao outro; fenómenos psicológicos, eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial, ou emocional do indivíduo, enquanto facto que pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência) terá necessariamente de ser encontrada na atuação do arguido na sua globalidade ou no conjunto de todos os factos, convocando todos os factos anteriores, contemporâneos e posteriores à sua concreta atuação criminosa e não apenas o facto de ter, ou não, conseguido acertar em algumas das pessoas que se encontravam em cima do passeio. Sempre se dirá que mesmo por apelo a este critério a situação não é inequívoca porque em relação a duas das pessoas atropeladas – as duas ofendidas do sexo feminino – o arguido não as conhecendo, não tendo qualquer conflito anterior com elas, não tinha qualquer razão para as “querer matar” ou “admitindo que o poderia fazer com o seu atropelamento com tal se tenha conformado”. De facto, o automóvel usado tem a tal potencialidade letal de matar (mas também de ferir e muitas vezes gravemente), mas não pode ser este único facto para se afirmar automaticamente esse dolo (em qualquer das três modalidades) de matar. Se assim fosse, excluía-se a hipótese, também legal, das ofensas à integridade físicas qualificadas (simples ou graves) pelo uso do veículo automóvel enquanto meio particularmente perigoso que está expressamente prevista no art.º 145.º. nos 1 al. a) e c) e 2, do C. Penal. O art.º 105.º do Cód. da Estrada diz que automóvel é o veículo com motor de propulsão, dotado de pelo menos quatro rodas, com tara superior a 550 kg, cuja velocidade máxima é, por construção, superior a 25 km/h, e que se destina, pela sua função, a transitar na via pública, sem sujeição a carris. E por aqui já se alcança facilmente a sua potencialidade letal. O que importa é então saber se o arguido atuou com a intenção de tirar a vida aos cinco ofendidos que atropelou, ou por outras palavras a “intenção de matar” (dolo direto) ou então se o arguido ao actuar da forma descrita, admitiu como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte de BB, CC, FF, DD e EE, bem sabendo que aquela era idónea a provocar tal desfecho, e conformou-se com essa possibilidade (dolo eventual). Para ajudar a dilucidar esta questão da intenção importa ter presentes alguns critérios jurisprudências: No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/12/2015, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador José Maria Tomé Branco, com adjunto Senhor Juiz Desembargador Cruz Bucho, no proc. 72/14.0TBMDB.G2 que correu termos por este Juízo Central Criminal de Vila Real, J2, em julgamento presidido pelo ora relator deste acórdão, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães alterou a matéria de facto julgada na primeira instância quanto à intenção de matar, absolvendo o arguido de tal crime e condenando-o pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n,º1, do C. Penal, em que o arguido agrediu fisicamente o ofendido e simulou por várias vezes com uma catana simulou golpes em direção ao corpo do ofendido. E a tal respeito escreveu-se em tal d. acórdão o seguinte com relevo para a nossa decisão: “de resto ficou provado que logo que a agressão cessou, por intervenção da GNR, o A (ofendido) saiu do local pelo próprio pé. Por outro lado, tendo o recorrente na sua posse um instrumento cortante, nunca chegou a usá-lo para agredir o A, apenas se limitando a “simular golpes de catana, em direção ao corpo do assistente”; e diga-se, teve tempo mais que suficiente para o fazer. Na verdade, resulta do contexto em que os factos se desencadearam que se o arguido tivesse agido com o propósito de tirar a vida ao A, então, tê-lo-ia feito, porque dispôs de todas as condições para o efeito. Tinha na sua posse uma catana, que é um instrumento cortante e capaz de provocar ferimentos suscetíveis de causar a morte de uma pessoa, teve a colaboração do seu irmão, e teve tempo suficiente (pelo menos 20 minutos) para se assim o quisesse, poder tirar a vida ao assistente. Saliente-se que a dada altura os arguidos até estiveram sozinhos com o A. Significa isto que nada impedia o arguido, até à chegada dos agentes da GNR (que como vimos demoraram 20 a 25 minutos, desde que foram chamados a intervir até chegar à residência do A), se assim o quisesse, de agredir mortalmente o A. Neste termos, afigura-se-nos adequado concluir que os elementos probatórios indicados na decisão recorrida não justificam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, nesta concreta matéria de facto, impondo-se decisão diversa daquela em nome do principio do “in dúbio pro reo”, o qual constitui um limite normativo do principio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o tribunal decida pro reo, a favor do arguido, … (…). Neste caso, concluiu-se que não se descortinando com a certeza que a situação exigia que o arguido agiu com a intenção de matar, deu-se como não provada tal factualidade e absolveu-se o arguido pelo crime de homicídio tentado e condenou-se por um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. art.º 143.º, n.º, do C. Penal, na pena de dois anos de prisão. Num outro acórdão proferido em processo que igualmente correu termos neste Juízo Central Criminal de Vila Real, J2, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14/11/2023, no proc. 599/19.8JAVRL.G2, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Pedro Freitas Pinto, em que o arguido vinha acusado por dolo direito e que o tribunal entendeu convolar para dolo eventual, com recurso do Ministério Público quanto a tal convolação, escreveu-se o seguinte: (…) Relembremos que não está em causa o enquadramento jurídico dos factos na prática de um crime de homicídio agravado na forma tentada, mas “apenas” se o foi praticado na modalidade de dolo direto ou de dolo eventual. Assim, e relativamente: - Aos desentendimentos pré existentes entre o arguido e o ofendido, não se provou que os mesmos existissem e fossem relativos à “gestão” das águas das minas e à “gestão do terreno da cunhada falecida”, tendo antes ficado provado que no dia ../../2019, pelas 11.00 horas, na sequência de um corte de água feito à frente da casa do arguido por funcionários da Câmara Municipal ..., por indicação/ordem do ofendido EEE, o que o arguido entendeu ter sido feito para o prejudicar, ocorreu um desentendimento entre a mulher do arguido e o arguido contra aqueles funcionários e o ofendido EEE, durante a qual a mulher do arguido chamou ao ofendido “filho da puta” e “corno” e o ofendido chamou àquela de “vaca russa”. Dado o arguido estar exaltado, a sua mulher e a testemunha FFF levaram-no para o interior da sua residência e foi após o arguido ter assomado à janela e visto o ofendido a deitar as mãos aos seus testículos, dirigindo-se à mulher do arguido, GGG é que o arguido pegou na caçadeira e municiou-a com dois cartuchos. Ou seja, não existia um clima de animosidade anterior que fosse indiciador do arguido de uma forma pensada, pretender matar o ofendido, tendo tudo acontecido num clima de exaltação mais consentâneo com a modalidade do dolo eventual. - O modo como o crime foi perpetrado também inculca fortemente, atentas as regras de experiência que não existiu um dolo direto. O arguido municiou a caçadeira com dois cartuchos, mas só disparou um deles. Se a sua primordial intenção fosse a de matar o arguido e não conformar-se que poderia provocar a sua morte, não dispararia a uma distância de cerca de 44 metros de distância, por muito bom e experiente caçador que fosse, antes teria se aproximado mais em direção ao ofendido e sempre teria disparado o segundo cartucho para se assegurar que o ofendido tinha efetivamente morrido, como ele pretendia. Efetuou o disparo na direção do ofendido, mas não resultou que tivesse efetivamente visado atingi-lo naquela zona do corpo, o que resulta do facto de ter ficado provado que o ofendido apenas foi atingido por uma única baga de chumbo, não tendo sido encontrados quaisquer vestígios do impacto de outros chumbos junto ao local onde o ofendido se encontrava. Considerando as centenas de chumbos que compõem o cartucho objeto do disparo e o facto do ofendido ter apenas sido atingido por um deles, também aqui se denota a inexistência de indícios de dolo direto, pois é mister não se confundir um bago de chumbo com uma bala. - As consequências físicas que advieram ao ofendido não ajudam muito para distinguir qual a modalidade do dolo, mas sempre se dirá, que em consequência da lesão sofrida, o período de consolidação medico legal foi de dez dias e que as sequelas se traduziram numa cicatriz permanente de cerca de 1 (um) centímetro na região médio-frontal acima do dorso nasal e dores de cabeça. - No que respeita ao comportamento posterior por parte do arguido, este nunca assumiu que tivesse a intenção de matar o ofendido e o facto de ter ido logo entregar-se às autoridades policiais, resulta mais de um estado de preocupação natural com o que tinha feito, atingindo o ofendido e utilizando uma arma para a qual não estava legalmente autorizado a deter nem a utilizar. É assim de concluir face a todo o circunstancialismo que ficou apurado concatenado com as regras de experiência de vida, que a modalidade do dolo presente no caso em apreço, como bem considerou o douto acórdão recorrido, é a modalidade do dolo eventual, no qual, como ensina Manuel Cavaleiro Ferreira2, “há um enfraquecimento que se verifica tem lugar tanto na consciência ou elemento cognoscitivo como na vontade ou elemento volitivo”, acrescentando que quanto ao elemento cognoscitivo não é necessário que o agente preveja a realização do facto ilícito como consequência necessária e antes bastará que a preveja como consequência possível do seu comportamento e quanto ao elemento volitivo não será preciso que o crime seja o fim objetivo do próprio agente, bastando que “se conforme com essa realização”. E, conforme bem se salienta no acórdão do S.T.J. de 14 de janeiro de 2020: “A verificação da existência de elementos integradores do dolo pressupõe uma valoração que decorre de indícios, designadamente o perfil de atuação do agente, e deve ancorar-se em regras da experiência, ou mesmo em leis científicas, quando for o caso. Contudo, sendo em ultima ratio insondáveis os desígnios mais íntimos ou recônditos, há que separar, com rigor, v.g. o aparato de uma factualidade de profunda ilicitude, com culpa evidente e chocante, de uma certeza do julgador sobre a intencionalidade de produzir determinados efeitos, nomeadamente o querer a morte da vítima”. Diga-se, por último que conforme se salienta no acórdão da Relação do Porto de 28 de outubro de 2020, “a “decisão” de cometer o crime, a que se reporta o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal quando define a tentativa, é compatível com qualquer das modalidades de dolo e, portanto, também com a decisão de se conformar com o resultado própria do dolo eventual; este também implica, como as outras modalidades de dolo, representação e vontade, mesmo que esbatidas ou enfraquecidas”. Concluiu-se assim que bem andou o tribunal “a quo” ao considerar que a conduta do arguido de reconduzia à modalidade do dolo eventual. Por fim, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/03/2019, relatado pela Sr.ª Desembargadora Teresa Coimbra, na base de dados da DGSI, em cujo sumário consta: 1. Num crime de homicídio na forma tentada, como o dolo da atuação porque se situa no campo da subjetividade é sempre de difícil discernimento, a sua avaliação impõe o recurso a dados objetivos que sejam reveladores da verdadeira vontade colocada na atuação. 2.Tais dados são, em regra, por um lado, os instrumentos utilizados na prática do crime e o modo como o foram; por outro, a parte do corpo atingida e a extensão qualitativa e quantitativa das lesões. 3.Não pratica um crime de ofensa à integridade física grave, nem um crime de ofensa à integridade física qualificada, mas antes um crime de homicídio na forma tentada, quem desfere com a parte metálica de um sacho uma pancada na cabeça de outra pessoa, provocando-lhe ferida crânio cerebral frontal com perda de massa encefálica, além de outras lesões. (…) (sublinhados nossos). Voltando ao caso. Situando-se o dolo no campo da subjetividade é sempre de difícil discernimento a sua avaliação e como tal impõe-se o recurso a dados objetivos que sejam reveladores da verdadeira vontade colocada na atuação, o que faremos de seguida no caso concreto: - a motivação de atuação do arguido é a que se julgou provada na segunda parte do facto provado em 1): no local e no contexto julgados provados, o arguido envolveu- se, em conjunto com um grupo de amigos, no qual se fazia integrar, numa contenda, de contornos não totalmente definidos, com outros indivíduos, de origem africana, da qual resultaram insultos de teor racista e agressões físicas para estes últimos. Não se prova que em qualquer um destes momentos o arguido tenha proferido qualquer ameaça, nomeadamente de morte em relação a qualquer dos indivíduos de origem africana. Não se prova que durante a referida contenda tenha agredido qualquer um dos indivíduos de origem africana, ou por estes tenha sido agredido. Não os conhecia anteriormente a esta situação; os factos que ocorreram naquele circunstancialismo de tempo e lugar (no interior da discoteca) não são de molde a com segurança se possa afirmar que tenha formulado naquele momento uma resolução criminosa de os matar ou que tenha admitido que com a sua conduta os poderia matar e com esta hipótese se tenha conformado. Passe o plebeísmo, não estamos na mente do arguido para afirmar que tenha equacionado a possibilidade de os matar e com a mesma se tenha conformado (pode ser que sim, pode ser que não…), e na falta de tal segurança e certeza temos que seguir a jurisprudência acima citada – (…) neste termos, afigura-se-nos adequado concluir que os elementos probatórios indicados na decisão recorrida não justificam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, nesta concreta matéria de facto, impondo-se decisão diversa daquela em nome do principio do “in dúbio pro reo”, o qual constitui um limite normativo do principio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o tribunal decida pro reo, a favor do arguido, pois. (…). - analisando a identidade das vítimas, verifica-se que duas delas são do sexo feminino – BB e FF - não tiveram qualquer intervenção na contenda anteriormente ocorrida no interior da discoteca, não fazendo parte de qualquer das fações em confronto, nomeadamente não são de origem africana subsaariana ou com este grupo tinham qualquer relação ou convívio na altura dos confrontos; as outras três vítimas do atropelamento – CC, DD e EE - têm em comum ser do sexo masculino e de origem africana ou subsaariana e faziam parte do mesmo grupo, sendo amigos ou familiares entre si - e este elemento foi relevante para aquela concreta atuação criminosa do arguido: foi com indivíduos de origem africana ou subsaariana que ocorreu anteriormente a confusão, que motivou a sua atuação criminosa e, como tal, o natural e lógico é que a condução que fez em cima do passeio é com o objetivo primordial de atingir tais pessoas com o veículo. As restantes pessoas podem-se chamar “danos colaterais” sendo nesta parte a atuação do arguido de indiferença se atinge ou não tais pessoas, que as fere ou não, sendo que em relação às que feriu não há dúvidas que as feriu porque quis e daquele concreto modo, porque sublinhe-se a nenhuma delas pediu para se desviar, nem sinalizou a sua circulação, nem tão pouco desviou; no fundo é uma “lição” ou vingança do arguido contra os indivíduos de origem subsaariana com quem teve a confusão, mas também contra todos aqueles que estão em cima do passeio, estivessem ou não antes no interior da discoteca. A atuação do arguido foi algo “aleatória” quanto aos alvos a atingir durante a sua trajetória, tanto assim que não foram os três indivíduos do sexo masculino e de origem africana os primeiros a serem atingidos. Da fundamentação de facto resulta que foram precisamente a FF e a BB as primeiras a ser atropeladas. Não se denota de forma inequívoca uma especial (no sentido de mortal) “energia criminosa” do arguido em relação aos três indivíduos de origem subsaariana que atropelou em comparação com a atuação em relação às duas jovens que de igual modo foram atingidas/atropeladas; não atuou de forma diferente em relação a qualquer umas das pessoas atropeladas (nomeadamente acelerando mais, passando por cima delas mais que uma vez); não é, como tal, esta factualidade suficientemente segura para concluir que mesmo em relação aos três indivíduos do sexo masculino e de origem africana subsaariana tenha havido intenção de matar ou que o arguido se tenha conformado com a possibilidade de os matar. - as consequências da atuação do arguido são mais graves em relação à FF, precisamente pessoa que lhe era indiferente; não tinha qualquer motivação de a matar. Em relação aos indivíduos do sexo masculino de origem africana, as consequências foram lesões físicas simples, que só por si, na falta de outros critérios/factos objetivos não são compatíveis com a intenção de matar. - o arguido antes, durante ou posteriormente à sua condução em cima do passeio nunca verbalizou que queria matar quem quer que seja (nomeadamente gritando que as ia matar). - o arguido não foi visto antes, durante e posteriormente à sua conduta criminosa de atropelar pessoas na posse de qualquer arma ou objeto corto/contundente/perfurante, ou de disparo (v.g. pistola ou revólver) compatível com a intenção de matar, o que a acontecer poderia auxiliar a compreender melhor a sua personalidade como alguém “com insensibilidade pelo valor da vida humana”. - o arguido atuou num local público, à vista de toda a gente, sabendo que poderia ser identificado, que mais não seja pela matrícula da viatura que tripulava (nunca esteve tapada); sabendo dos danos que a sua viatura apresentava (vidros partidos, etc…) em consequência da sua atuação criminosa, ainda assim ficou na sua “posse”, permitindo facilmente a sua identificação, localização e exame pelas autoridades policiais, como resulta do relatório de exame pericial de fls. 235 a 255, mas também de todos os restantes exames ao local onde ficaram vestígios da viatura: a viatura foi encontrada estacionada num espaço público, com vestígios e indícios claros de ter sido usada nos termos julgados provados; ou seja, o arguido não curou de se “desfazer” da viatura como seria expectável e normal, à luz das regras da experiência comum, em alguém que atuou com a intenção de matar ou admitiu a hipótese de em resultado na sua atuação ter morto alguém; de facto, se o resultado morte de alguma das vítimas estivesse na mente do arguido, o mais normal seria tudo fazer para se livrar do objeto / instrumento do crime como aliás ocorre em casos semelhantes (viaturas atiradas ao rio, incendiadas, escondidas por algum tempo, tapar e esconder matrículas, etc…). - o arguido em primeiro interrogatório judicial admitiu ser o autor dos factos objetivos, negando a intenção de matar, nomeadamente nunca admitiu ter querido matar quem quer que seja, negando que com tal hipótese se tenha conformado; e independentemente da credibilidade de tal negação e dos factores ponderados na decisão do seu estatuto coativo processual, o que é certo é que aquele nunca ficou privado da liberdade, o que cremos não ser habitual em crimes de tão elevado grau de gravidade como são os de tentativa de homicídio, aos quais, em regra, está associada uma energia criminosa que indicia um elevado perigo de continuação da atividade criminosa (quem quer matar pode tentar fazê-lo novamente mais tarde) e de alarme social – tentar matar alguém continua a ser notícia e alarmar a comunidade em geral, muito mais uma cidade pequena como é .... Isto posto, considerando o acabado de expor importa analisar a hipótese de dolo de ofensa à integridade física e em que modalidade. O Tribunal convenceu-se que o arguido conduzindo o automóvel marca ... de matrícula ..-CM-.. sem abrandar, subindo o passeio, circulando no passeio e dirigindo-o contra os cinco ofendidos que se encontravam no passeio, conhecendo as características do veículo automóvel que conduzia e reconhecendo a respectiva superioridade de tamanho, peso e força relativamente aos ofendidos, quis provocar lesões na integridade física dos ofendidos que ali se encontravam, nos termos que provocou; de facto, apesar da ausência de motivação em relação às duas ofendidas do sexo feminino que o arguido também atingiu, o arguido não as mandou sair a frente e ou esboçou qualquer manobra de se desviar destas e quis atingi-las com o veículo como atingiu, causando-lhes os ferimentos que causou; e em relação a ofendida FF os ferimentos foram os mais graves como resulta dos factos provados, do respetivo depoimento e do respetivo relatório pericial. Como tal, a conclusão que se impõe em relação a estas vítimas é que apesar de ausência de motivação para as querer magoar, o arguido de facto quis atingi-las como atingiu, porque como se disse não alterou a sua trajetória, ou as avisou para se afastarem de modo a não as atropelar e assim seguir em direção às vítimas de origem africana subsaariana que eram a razão da sua atuação criminosa e o seu alvo preferencial (por serem as pessoas com as quais tinha ocorrido a confusão anteriormente no interior da discoteca nos termos julgados provados em 1)). Parece-nos, como tal, bem mais adequada a qualificação da conduta do arguido como crime de ofensa à integridade física qualificada (simples ou grave) consumada com dolo direto em relação a cada uma das cinco vítimas, e não como homicídio qualificado tentado em qualquer das apontadas modalidades de dolo (direto ou eventual). Existe alguma jurisprudência que nos auxilia nesta conclusão: No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/03/2022, Proc. nº 31/18.4PCCBR.C2, disponível em www.dgsi.pt no qual se decidiu o seguinte: «Resultando apurado que o arguido, conduzindo uma viatura automóvel, seguiu no encalço do veículo onde seguiam a sua mulher e a assistente, perseguindo-o, de muito perto, por várias artérias de Coimbra, e, quando o segundo entrou numa “bomba de gasolina”, embateu-o, por duas vezes, na parte traseira, seguida de uma terceira, atingindo agora o lado esquerdo/rectaguarda do mesmo, prosseguindo nos embates com a parte frontal do seu veículo na porta do lado do condutor da outra viatura, repetindo as colisões por, pelo menos, 5/6 vezes, fazendo, de cada vez, marcha atrás para ganhar margem e voltar a embater, esta conjunção de acontecimentos preenche a circunstância qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP (utilização de meio particularmente perigoso)». E bem assim a situação descrita no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20/10/2015, Proc. nº 89/11.7TARMR.E1: «Incorre no crime (tentado) de ofensa à integridade física qualificada (arts. 143º/ 1, 145º/1-a)/2 e 132º/ 2- h) do CP – utilização de meio particularmente perigoso) o arguido que ordena ao condutor de um veículo pesado porta-camiões que “passe por cima” do veículo em que a assistente se encontrava, que, perante a recusa daquele, repete “passa por cima dessa cabra”, e que depois assume a condução do veículo pesado avançando com ele na direcção da assistente, que se desvia, evitando o atropelamento». E como já dito também não há dúvidas que o arguido sabia que o veículo por si conduzido contra os cinco ofendidos, pelas suas caraterísticas (dimensões, peso e força motriz), é meio particularmente perigoso porque idóneo a pelo menos lesar a integridade física. Os factos do pedido de indemnização civil julgados provados tiveram por base todos os documentos clínicos e documentação que acompanha o pedido cível da instituição hospitalar, bem como documentação clínica e perícias médio legais de dano corporal relativamente a cada um dos seus ofendidos. Ponderou-se o relatório social para determinação de sanção do qual se retiraram os factos julgados provados respeitantes às condições de vida familiar, percurso escolar e profissional e inserção social do arguido na comunidade. A existência do antecedente criminal do arguido com base no certificado de registo criminal atualizado que se mostra sob a ref.ª ...73 de 20/06/2024..
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4. ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA. 4.1 Enquadramento jurídico-penal. O arguido AA vem acusado da prática como autor material e em concurso real de 05 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22º, 23º e 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), i) e j), do Código Penal. Por requerimento sob a ref.ª ...40 de 6/06/2024 o Ministério Público requereu a comunicação à Defesa ao abrigo do art.º 358.º, nos 1 e 3, do CPP, da alteração da qualificação jurídica imputando-se também o disposto no art.º 69.º, n.º1, do C. Penal. Do crime de homicídio qualificado na forma tentada: Dispõe o art. 131º do Cód. Penal que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos”. O crime de homicídio tutela o bem jurídico mais importante e significativo do catálogo – a vida humana –, compreendida como o conjunto de todas as funções biológicas e psicológicas do Homem. Da análise dos elementos objectivos do tipo, ressalta que o crime em causa se trata de um crime comum, uma vez que o sujeito activo pode ser qualquer pessoa (“Quem…”), consistindo a conduta típica em “matar outra pessoa”. É um crime de dano, porquanto, a consumação exige um efectivo dano do referido bem jurídico e de resultado ou material, na medida em que é elemento típico a produção de um determinado evento distinto espácio-temporalmente da acção, e também se trata de um tipo de crime legal de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito. É, porém, um crime de execução livre, na medida em que o delito pode ser perpetrado por qualquer meio, não descrevendo a lei qual o processo de execução necessário e nem interessando à realização típica os meios por que o crime é levado a cabo, se por acção, se por omissão. O tipo subjectivo exige o dolo em qualquer das suas formas: dolo directo, dolo necessário, dolo eventual. Nos termos do art.º 13.º do C. Penal só é punível criminalmente o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. A este respeito diz-nos o art.º 14.º do C. Penal que age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo legal de crime, actua com a intenção de o realizar (dolo directo), agindo ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta (dolo necessário), ou quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime foi representada como consequência possível da sua conduta, havendo dolo, em tal caso, se o agente actuar conformando-se com aquela realização (dolo eventual). No que se refere à negligência, preceitua o art.º 15.º do C. Penal que age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente), bem como aquele que não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto (negligência inconsciente). No caso em apreço, conjugando o que vem de se expor com os factos provados, resulta objectivamente que a actuação do arguido não foi de molde a desenvolver actos que levassem (ou podiam ter levado) à morte dos ofendidos, na medida que o tribunal concluiu que o mesmo não actuou com a intenção de matar – dolo direto – ou que o arguido ao actuar da forma descrita, tenha admitido como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte dos cinco ofendidos, bem sabendo que aquela era idónea a provocar tal desfecho, e que se tenha conformado com essa possibilidade (dolo eventual) Não se provando factos que integrem o elemento subjetivo dos cinco crimes de homicídio na forma tentada de que o arguido vinha acusado, da sua prática será absolvido. Todavia, os factos julgados provados podem e devem ser enquadrados juridicamente noutro crime. Do crime de ofensa à integridade física qualificada Nos termos do art.º 143.º, n.º 1 do Código Penal: “1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” Dispõe o artigo 145.º n.º 1 do Código Penal, sob a epigrafe «ofensa à integridade física qualificada» “Se as ofensas previstas à integridade física forem produzidas em circunstancias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) com a pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º. b) Com pena de prisão de três a doze anos no caso do artigo 144.º Nos termos do n.º 2, “São susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstancias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”. A tutela jurídico-penal da integridade física funda-se, em primeira linha, na tipologia do crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido no artigo 143.º n.º 1 do Código Penal, constituindo os artigos e normas seguintes casos especiais daquele ilícito, punidos com maior ou menor severidade, rectius, gravidade, em função do desvalor do resultado ou da existência de circunstâncias atenuantes ou agravantes relativas à ilicitude e/ou à culpa. Na verdade, pressupõe este tipo legal de crime que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa – logo, o objetos da acção é o corpo humano, ficando o tipo legal preenchido com qualquer ofensa ao corpo ou à saúde de outrem, independentemente da dor ou sofrimento causados e, sendo irrelevante a duração da agressão, se bem que possam ser tidos em conta para determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal. Com tal incriminação visa-se a protecção da integridade física da pessoa humana; sendo que, a ofensa ao corpo é descrita por Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo 1, 1999, pág. 206, como “... todo o mau trato através do qual a vítima é prejudicada no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante” e, a lesão da saúde como “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vitima, prejudicando-a”.
Dispõe o art.º 144.º do Código Penal que: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente; b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou d) Provocar-lhe perigo para a vida; É punido com pena de prisão de dois a dez anos.”
Deste jaez, o fundamento da agravação, relativamente ao tipo fundamental do art.º 143.º do Código Penal, corresponde a um acrescido desvalor do resultado. Resulta, pois, que o tipo legal do crime de ofensa à integridade física grave arvora-se nos seguintes elementos objectivos: -Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa; -Que a ofensa ou lesão provoque doença permanente e/ou perigo para a vida. A doença permanente é aquela que produz efeitos de média e longa duração, mesmo que não sejam particularmente dolorosos (por exemplo, a insuficiência hepática crónica e a diabetes crónica). – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 5ª Edição, 2022, pág. 626. Quanto à doença permanente deve a mesma ser entendida como doença duradoira, sem, contudo, envolver a ideia de perpetuidade. Mas como aponta Heleno Fragoso, não basta para qualificar o crime que a doença seja «transitória ou de duração limitada», exigindo-se antes que ela seja «estável, perene, continuando indefinidamente pelo tempo afora (Lições de Direito Penal, Parte Especial, 97). Não haverá, porém, lesão permanente nos casos em que o ferimento, embora deformante a princípio, possa vir a transformar-se, a curto prazo, em cicatriz insignificante. Há doença permanente, v.g., em casos de insuficiência hepática crónica ou de diabetes crónica. – Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, Parte Especial, 5.ª Edição, 2023, pág. 228. Sobre o conceito “doença particularmente dolorosa ou permanente” escreve Paula Ribeiro de Faria no “Comentário Conimbrincence do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, arts. 131º a 201º, Coimbra Editora, pp. 231, que a alínea c) do art. 144º “contempla, como fundamento da agravação, casos de doença particularmente dolorosa ou permanente ou anomalia psíquica grave ou incurável. Quando o legislador penal se refere a doença ou anomalia psíquica permanente ou incurável não está tanto em apreciar a gravidade para a saúde de que se reveste a lesão, antes e sobretudo, a duração dos efeitos nocivos sobre a mesma, e a impossibilidade de os evitar (mesmo que seja medicamente possível atenuar ou aliviar os sintomas da doença nem por isso esta deixa de ser incurável (...)” Ora, da análise dos cinco relatórios periciais de cada uma das cinco vítimas apenas um – o da ofendida FF a fls. 592 e ss. atribui carácter permanente às sequelas sofridas pela ofendida FF; com efeito, em descrição das sequelas refere-se perda momentânea de conhecimento, internamento entre 05 e 10 NOV 22 na sequência da fratura fechada dos ossos da perna direita. Membro inferior direito: cicatriz aderente de 1 x 1,2 cm de tamanho na face antero-interna do terço inferior da perna, cicatriz quelóide de 7 x 0,4 cm a nível da face anterior do joelho e terço superior da perna e infra patelar interna, duas cicatrizes de 1 cm cada, paralelas à cicatriz anterior, cicatriz de 1 cm de tamanho a nível da face anterior do terço inferior da perna sem défice de mobilidade do joelho, tornozelo e dedos do pé. Atrofia da coxa e região gemelar de 1 cm, que demandaram 206 dias para a consolidação médico-legal (30/05/2023), com afectação da capacidade de trabalho geral (5 dias) e com afectação de trabalho profissional (186 dias), bem como resultaram as consequências permanentes inerentes à fractura dos ossos da perna direita e descritas nas sequelas – cfr. fls. 592 e ss.; ou seja, as sequelas permanentes são as cicatrizes, mas especialmente a Atrofia da coxa e região gemelar de 1 cm. Dúvidas não restam as lesões sofridas na parte da atrofia da coxa e região gemelar de 1 cm integram o conceito de doença permanente. Cremos estar preenchido o conceito de doença permanente; o conceito de doença permanente contido no art. 144º, al. c), do Cód. Penal, não exige que a doença seja incurável e perpétua, mas tão só que seja duradoira, doença que se instala no corpo de forma prolongada, deixando a vítima durante longo tempo sob o seu efeito e sujeita às consequências que dela emergem; No caso concreto, deve entender-se que o conceito de doença permanente previsto no art. 144º, al. c) do CP, se encontra preenchido. Na verdade, a ofensa à integridade física em relação à ofendida FF é, in casu, grave seja por força da doença permanente e da doença particularmente dolorosa. Segundo o art. 144º als c) e d) do CP, as lesões graves podem manifestar-se, sob o ponto de vista criminal, por várias formas, sendo uma delas a da doença particularmente dolorosa ou permanente. Quando o legislador penal se refere a doença ou anomalia psíquica permanente ou incurável não está tanto em apreciar a gravidade para a saúde de que se reveste a lesão, antes e sobretudo, a duração dos efeitos nocivos sobre a mesma, e a impossibilidade de os evitar (mesmo que seja medicamente possível atenuar ou aliviar os sintomas da doença nem por isso esta deixa de ser incurável (...)” “O carácter doloroso da doença, se bem que não haja indicadores precisos que permitam determinar com rigor níveis de dor (e esta varia de paciente para paciente) far-se-á depender do tipo de medicamentos e tratamentos necessários, e, ao mesmo tempo da duração desses tratamentos: se os tratamentos são penosos difíceis e prolongados poderemos concluir que a ofendida suportou dores elevadas” até pelo que resulta da documentação clínica e do relatório pericial este internada e ortopedia de 5 a 10 de 11/2022 na sequência de fratura fechada dos ossos da perna direita (fratura da tíbia proximal) tratada cirurgicamente com redução fechada e encavilhamento anterógrado com cavilha “Stryker” e mais adiante a fls. 593 verso refere-se a deambular sem claudicação, ainda com atrofia muscular da coxa e pernas direitas … a manter cinesioterapia para reforço muscular. Podemos assim concluir que ocorre no caso doença permanente e da doença particularmente dolorosa. O perigo para a vida consiste numa situação de perigo concreto, em que o bem jurídico da vida da vítima foi colocado efectivamente em perigo, não sendo suficiente a mera adequação abstracta do meio lesivo utilizado para provocar a morte da vítima, mas também não sendo exigível que a situação de perigo seja permanente. – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 5ª Edição, 2022, pág. 627. “A lesão põe em perigo a vida quando implique probabilidade grave e imediata de levar à morte da vítima. São exemplos de ofensas que põem em perigo a vida, v.g. as decorrentes de traumatismo crânio-encefálico por fractura do crânio, coma, septicémia, insuficiência renal aguda e as que resultam de ferimentos penetrantes das cavidades toráxica ou abdominal. Para Nélson Hungria «perigo de vida é a probabilidade concreta e presente do resultado letal. Trata-se de um conceito objectivo-subjectivo: é necessária uma realidade objectiva, na qual se fundamente um juízo de probabilidade (…). Não basta uma probabilidade mediata ou condicionada a possíveis complicações. O perigo deve ser actual, sério, efectivo e não remoto ou meramente presumido (…). O perigo de vida deve ser reconhecido por sintomas objectivamente demonstráveis, referindo-se às funções mais importantes da vida orgânica.” – Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, Parte Especial, 5.ª Edição, 2023, pág. 229. Ora, dos factos provados não resulta que qualquer uma das cinco vítimas tenha sofrido este perigo concreto para a vida, pelo que não temos preenchida esta modalidade de ofensa grave da al. d) do art.º 144.º do C. Penal, em relação a qualquer uma delas. Quanto ao elemento subjectivo, é necessário que o agente actue com dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer uma das modalidades previstas no art.º 14.º do Código Penal, dolo que terá de abranger, para além da própria ofensa do corpo ou da saúde, o resultado agravante, ou seja, a provocação de doença particularmente dolorosa ou permanente e/ou o perigo para a vida. Por sua vez, o n.º 2 do referido artigo 145.º, elege como padrão para aferir da censurabilidade ou perversidade do agente as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Postergando a técnica que havia utilizado no Código de 1886, em que a moldura penal mais grave era sempre aplicada desde que se verificassem as circunstâncias agravantes, à semelhança do que sucede actualmente com o crime de furto qualificado, o legislador do código de 1982 aprovado pelo D.L. n.º 400/82 de 23.Setembro, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 48/95, de 15 de Março, bem como, da Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro, socorreu-se no referido artigo 132.º n.º 1 e 2 da chamada técnica dos “conceitos padrão”. Esta técnica legiferante combina “um tipo de culpa constituído por uma cláusula geral com um catálogo meramente exemplificativo de circunstâncias, cuja verificação nem sempre se revela qualificadora” (cfr. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Almedina, pág. 60), isto é, agrava-se a moldura penal aplicável ao agente através da intervenção autónoma de um tipo de culpa generalizador do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal . Além disso, estas circunstâncias não são taxativas e a sua aplicação não é automática, não existindo praticamente, quanto a este assunto, divergências substanciais, tanto na doutrina como na jurisprudência. Com efeito, nestas circunstâncias são referidos alguns indícios ou elementos que permitem revelar a censurabilidade ou a perversidade do agente, de modo a que o julgador possa dar aplicação ao n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal. Daqui se infere que tais circunstâncias não são elementos do tipo, mas sim da culpa (cfr. por todos: Eduardo Correia, Actas, 1979, págs. 24 e ss., Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos, in Código Penal anotado 2.º volume em anotação ao artigo 132.º; Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentários ao Código Penal, 2022, Católica Editora). Pode então o intérprete chegar à conclusão não se verificar o crime qualificado, embora se encontre aparentemente preenchida a tipologia e esse circunstancialismo, se apesar disso, o comportamento do agente não deixar transparecer uma atitude de profundo distanciamento em relação aos valores axiais ínsitos à norma e de acordo com a tutela normativa que ela valorativamente encerra. Por outro lado, também podem existir outras circunstâncias, que não as ali previstas, e que revelem essa censurabilidade ou perversidade. No ensinamento de e Figueiredo Dias “..., a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador”. Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, o que pode reconduzir-se à atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente. “A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor (…), que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade.” – Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, pág. 29.
Nos termos do art.º 132.º do Código Penal, para o que aqui releva, porquanto são as três alíneas que a acusação imputa ao arguido – e), i) e j): “1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: e) ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou satisfação de instinto sexual ou por qualquer motivo torpe e fútil; Não se alegam factos de natureza subjetiva que integrem esta circunstância qualificativa. Não tendo sido alegado, não pode agora tal omissão factual ser suprida. E esta insuficiência de alegação dos factos integrantes do elemento subjectivo não podem ser supridas pelo Tribunal pela “alteração não substancial dos factos” prevista no art.º 358.º do CPP. Com efeito, o Ac. de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, publicado no DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27, sob e a epígrafe Acusação / Falta / Dolo/ Negligência/ Ilicitude / Culpa/ Alteração Não Substancial dos factos/Audiência de Julgamento fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.» Apesar disso, deduz-se que seja em relação ao “motivo torpe e fútil” que se qualificou a conduta do arguido. O motivo determinante do crime constitui na dogmática penal um tema da maior importância e a doutrina vem-se dedicando à definição dos seus contornos, como forma de densificar o conceito, tendo acometido ao motivo fútil o alcance de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar o crime, revelando o facto – inteiramente desproporcionado e repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana. Nesta matéria, a nossa jurisprudência vem identificando o motivo fútil não tanto com aquele que passa pelo seu pouco relevo ou importância, mas sim o que faça avultar a «desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal em que ela se objectivou: no fundo o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade» – cf. Ac, do STJ , de 4.10.2001 , P.º n.º 1675/01 -5.ª; motivo fútil é «o notoriamente desproporcionado ou inadequado aos olhos do homem médio, denotando o agente, com isso, o egoísmo, intolerância , prepotência , mesquinhez» – cf. Ac. de 25.6.97, P.º n.º 96P1253; motivo fútil, também se qualificou como o frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática do crime, na inteira desproporção entre o motivo e a reação homicida – cf. Ac. do STJ , de 15.12.05 , P.º n.º 05P2978 , todos in www.dgsi.pt. Assim, motivo fútil é o “notoriamente desproporcionado ou inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado”; para além da desproporcionalidade, deve acrescer a insensibilidade moral, que tem a sua manifestação mais alta na brutal malvadez ou se traduz em motivos subjectivos ou antecedentes psicológicos que, pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a reacção homicida (cf. os acórdãos do STJ de 7 de Dezembro de 1999, BMJ 492, p. 168; e de 11 de Dezembro de 1997, BMJ 472, p. 163) – vide M. Miguez Garcia, in Direito Penal Passo a Passo, Elementos da Parte Especial, com os crimes contra as pessoas, Vol. I, 2011, pág. 90. Dos factos provados resulta que o motivo aí descrito e que esteve subjacente à prática dos factos pelo arguido prende-se, essencialmente, com o desentendimento anteriormente ocorrido no interior do bar/discoteca com os indivíduos de origem africana. Ora, em nosso entender, tentar matar ou matar alguém por tais razões pese embora seja um motivo baixo, mesquinho e censurável (como aliás são quase todos os motivos), não deixa de ser um motivo, não podendo a vingança ser considerado de “fútil”. No Ac. do STJ de 2/02/2022, no proc. 74/21.0GBRMZ.S1, relatado pelo Cons.º Lopes da Mota, disponível na base de dados da DGSI, em cujo sumário com relevo para melhor compreensão desta qualificativa, se pode retirar o seguinte: (…) III. Quanto ao “motivo torpe ou fútil”, indicado na al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, a doutrina e a jurisprudência vêm salientando unanimemente que se trata de um exemplo-padrão “estruturado com apelo a elementos estritamente subjetivos, relacionados com a especial motivação do agente”; atuar determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” significa que “o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”. IV. Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a atuação do agente do crime, desproporcionado e sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente. O motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. A desproporcionalidade de que se fala é a que se evidencia face ao motivo de “importância mínima”, “sem valor”, dotado de “insignificância” ou “frivolidade”; refere-se à relação entre o motivo e o facto, não caracteriza o motivo que determina o facto. V. A ação motivada por “ciúmes” pode remeter para a figura do homicídio por “razões passionais” – para o denominado “homicídio passional”, entendido como cometido, em regra, repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito – que, pelas possibilidades de perturbação ou interferência na liberdade da formação e execução da vontade criminosa, podem relevar, não para a agravação da culpa, mas para a sua atenuação, por verificação dos requisitos do crime de homicídio privilegiado, em virtude de o agente ter agido “dominado por compreensível emoção violenta” (artigo 133.º do Código Penal), ou, mesmo, para a exclusão, nos casos mais graves (inimputabilidade, por traduzirem “perturbações profundas da consciência” – artigo 20.º do Código Penal). VI. Daqui não resulta, porém, que a atuação do agente, fora destes casos, deva considerar-se como sendo determinada por “motivo fútil”. Enquanto expressão de sentimentos profundos e complexos, determinados pela perda ou pelo receio ou medo, real ou imaginário, de perda da pessoa a quem o agente se encontra afetivamente ligado, o ciúme traduz-se, como revelam os estudos da área da psicologia, num estado envolvendo emoções, reações e comportamentos muito diversos, que não podem, em si mesmos, qualificar-se como expressões de mera futilidade. (…) Ora, tudo conjugado, entendemos que a actuação do arguido não integra “motivo fútil” para se verificar a especial censurabilidade decorrente dessa mesma futilidade. O motivo para a prática dos factos em apreço não deve ser englobável no conceito de “motivo fútil” previsto no artigo 132.º, n.º 2, al. e) do Código Penal Al. i): utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso. Não foram alegados factos do elemento subjetivo para esta qualificativa agravante não podendo o tribunal suprir tal omissão nos termos acima já fundamentados, sempre se dizendo que o veículo automóvel utilizado não é meio insidioso, mas sim meio particularmente perigoso, como infra melhor se fundamentará, sendo alegados factos de natureza subjetiva para integrar a qualificativa de meio particularmente perigoso da al. h) d art.º 132.º do C. Penal. Estatui-se na al. j) que “é susceptível de revelar especial a especial censurabilidade ou perversidade (…), a circunstância de o agente (…) agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”. Miguez Garcia e Castela Rio na obra citada por último sintetizam que a frieza de ânimo tem sido definida como o agir “de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida”, um comportamento traduzido na “firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa” citando em tal sentido o AC. do STJ de 6/04/2006 (362/06-5). Mais esclarecem que a jurisprudência do STJ tem afirmado que a frieza de ânimo é uma acção praticada a coberto de evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime, que maquinou, por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas (Ac. do STJ 26/09/2007 (2591/07-3). Na jurisprudência citam-se ainda os seguintes arestos: O Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3/08/2011, no proc. 830/09.8PBCTB.C1, relatado pelo Exm.º Senhor Desembargador ALBERTO MIRA, disponível nas bases de dados da DGSI, definiu motivo fútil como sendo o móbil do crime da actuação despropositada do agente, sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação do facto, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente; e actuando com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução. Em recente e desenvolvido Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/05/2013, publicado em Colectânea de Jurisprudência, Acs.do STJ, n.º 248, Ano XXI, Tomo II, de 2013, pág. 196 a 205, escalpeliza-se o conceito de frieza de ânimo (pág. 203) nos sobreditos termos pacificamente definidos pela doutrina e jurisprudência vastamente ali citada como sendo uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue-frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na “firmeza, tenacidade, irrevocabilidade de resolução criminosa; e aceita-se o conceito de reflexão sobre os meios empregues como traduzindo-se no “amadurecimento temporal sobre o modo de praticar o crime, a congeminação serena e perdurante, no campo da consciência, da ideação de matar e dos meios a usar”… Ora, no caso dos autos, os factos provados são manifestamente insuficientes para se concluir que os arguidos agiram com frieza de ânimo. Não foram sequer alegados factos subjetivos que suportem tal frieza de ânimo, não podendo o tribunal suprir tal omissão nos termos acima já fundamentados; sempre se dirá que o arguido atuou “a quente” pelo que se tinha acabado de passar na discoteca e nunca com a tal reflexão e sangue frio. Ou seja, não se preenchem nenhumas das qualificativas constantes da incriminação final da acusação, mas preenche-se inequivocamente pelo uso do veículo automóvel a qualificativa da al. h) o qual integra o conceito de “meio particularmente perigoso”. E adianta-se que foram alegados e provados factos objetivos e subjetivos suficientes para integrar tal qualificativa, nomeadamente os factos provados em 10) e 12): ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, o arguido AA sabia que podia causar-lhes lesões e conhecia perfeitamente o tipo e as características do veículo automóvel que utilizou, bem sabendo que tal instrumento, dadas as suas dimensões, potência e força de impacto, era possuidor de grande capacidade de agressão dos tecidos humanos, sendo apto a causar lesões graves e profundas, ou mesmo a morte, se utilizado contra a vida ou integridade física de um ser humano, o qual perante o mesmo não possui qualquer possibilidade de defesa, e apesar disso não se absteve de praticar os factos acima descritos. Estabelece a al. h) do n.º2 do art.º 132 praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum. Utilizar meio particularmente perigoso é servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultam significativamente a defesa da vítima e que criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. A generalidade dos meios usados para matar, são perigosos e mesmo muito perigosos. O que a lei exige é que eles sejam “particularmente perigosos”, ou seja, é necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem aqui, seguramente, revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes). Para além disso, é indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio usado resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade, sob pena de, de outra forma, se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de se arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso. Na esteira da doutrina e jurisprudência citada por M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, em “Código Penal Parte Geral e Especial, Notas e Comentários”, Coimbra, 2014, todas as facas, navalhas e punhais são perigosos ou muito perigosos; o mesmo acontecendo com uma arma caçadeira; todavia, nem por isso preenchem a qualificativa, por não agregarem objectivamente uma perigosidade muito superior aos demais meios de agressão letal, normalmente usados para matar. A jurisprudência tem entendido de forma pacífica o automóvel como meio especialmente perigoso, nomeadamente os acima citados acórdãos referem isso mesmo: O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/03/2022, Proc. nº 31/18.4PCCBR.C2, disponível em www.dgsi.pt no qual se decidiu o seguinte: «Resultando apurado que o arguido, conduzindo uma viatura automóvel, seguiu no encalço do veículo onde seguiam a sua mulher e a assistente, perseguindo-o, de muito perto, por várias artérias de Coimbra, e, quando o segundo entrou numa “bomba de gasolina”, embateu-o, por duas vezes, na parte traseira, seguida de uma terceira, atingindo agora o lado esquerdo/rectaguarda do mesmo, prosseguindo nos embates com a parte frontal do seu veículo na porta do lado do condutor da outra viatura, repetindo as colisões por, pelo menos, 5/6 vezes, fazendo, de cada vez, marcha atrás para ganhar margem e voltar a embater, esta conjunção de acontecimentos preenche a circunstância qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP (utilização de meio particularmente perigoso)». E bem assim a situação descrita no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20/10/2015, Proc. nº 89/11.7TARMR.E1: «Incorre no crime (tentado) de ofensa à integridade física qualificada (arts. 143º/ 1, 145º/1-a)/2 e 132º/ 2- h) do CP – utilização de meio particularmente perigoso) o arguido que ordena ao condutor de um veículo pesado porta-camiões que “passe por cima” do veículo em que a assistente se encontrava, que, perante a recusa daquele, repete “passa por cima dessa cabra”, e que depois assume a condução do veículo pesado avançando com ele na direcção da assistente, que se desvia, evitando o atropelamento». E ainda o Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 8/05/2018, no proc. 318/12.0GEBNV.E1 : Um veículo automóvel, quando utilizado numa agressão, é um meio particularmente perigoso, face à enorme supremacia que confere um veículo automóvel e da sua exponencial perigosidade, o que dificulta a defesa da vítima. II – Comete um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, 132 n.º 2 al.ª h) do CP, o arguido que, após, juntamente com outros, ter subtraído bens com intenção de apropriação de uma residência, ao iniciar a marcha do veículo em ordem a abandonar o local, tendo sido surpreendido pelo ofendido – que, a dada altura, arremessou uma pedra contra o veículo, em ordem a evitar que este se pusesse em fuga – , conduziu o mesmo veículo contra o ofendido, só não o logrando atingir porquanto este se conseguiu desviar, evitando dessa forma ser colhido pelo referido veículo. Ora, atentos os factos dados como provados, dúvidas não existem de que as lesões provocadas pelo arguido aos cinco ofendidos são censuráveis e perversas, atenta a forma como o arguido actuou e o meio usado para as causar – o veículo que usou – marca ..., matrícula ..-CM-.. - é um meio particularmente perigoso face à enorme supremacia que confere e da sua exponencial perigosidade, o que dificultou a defesa das cinco vítimas que ficaram à sua mercê e à sorte de escaparem ou não à sua investida, bem como à forma como foram colhidas e aos resultados da sua projeção após o embate. Do mesmo modo, em relação à ofendida /vítima FF a conduta do arguido em tais termos provocou-lhe doença particularmente dolorosa e permanente como afirmado no relatório pericial, pelo que temos preenchido o crime de ofensa à integridade física grave a qual também é qualificada por causada pelo meio particularmente perigoso que é o veículo automóvel. Em relação aos outros 4 ofendidos/vítimas, não se provando qualquer uma das circunstâncias que permitam qualificar juridicamente a ofensa de que foram vítimas como “grave” nos termos antes fundamentados pelo art.º 144.º do C. Penal, terão as mesmas que ser qualificadas como “simples” nos termos acima definidos pelo art.º 143.º do C. Penal Relativamente ao elemento subjectivo: os factos provados preenchem os elementos subjetivos de cinco crimes de ofensas à integridade física, tendo-se provada factualidade de natureza subjetivas para os quatro crimes de ofensas à integridade física simples e para o crime de ofensa à integridade física grave. Com efeito provou-se que ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, o arguido AA sabia que podia causar-lhes lesões. O arguido AA actuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia atingir com violência a BB, CC, FF, DD e EE, lesando órgãos destes. O arguido AA conhecia perfeitamente o tipo e as características do veículo automóvel que utilizou, bem sabendo que tal instrumento, dadas as suas dimensões, potência e força de impacto, era possuidor de grande capacidade de agressão dos tecidos humanos, sendo apto a causar lesões graves e profundas, ou mesmo a morte, se utilizado contra a vida ou integridade física de um ser humano, o qual perante o mesmo não possui qualquer possibilidade de defesa, e apesar disso não se absteve de praticar os factos acima descritos. O arguido AA agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal. Afigura-se-nos serem factos suficientes para integrar os elementos subjetivos dos quatro crimes de ofensa à integridade física qualificada simples de que foram vítimas os ofendidos BB, CC, DD e EE, bem como o crime de ofensa à integridade física qualificada grave de que foi vítima a ofendida FF. Do concurso de crimes: De acordo com o disposto no artigo 30.º, n.º1, do Código Penal, “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo crime foi preenchido pela conduta do agente”. São equiparados, dentro do concurso efectivo de crimes, os casos designados por concurso real (quando a pluralidade de tipos de crime preenchidos corresponde a uma pluralidade de condutas do agente) e os casos designados de concurso ideal quando com uma conduta do agente são preenchidos ou diferentes tipos de crimes (concurso ideal heterogéneo) ou várias vezes o mesmo tipo de crime (concurso ideal homogéneo). Diferente é a situação de concurso legal ou aparente de crimes em que são formalmente violados preceitos incriminadores ou é várias vezes violado o mesmo preceito, sendo que esta plúrima violação é tão só aparente e não efectiva, na medida em que resulta da interpretação da lei que só uma das normas tem cabimento ou que a mesma norma deve funcionar uma só vez, em obediência a determinados princípios. Por sua vez, e quanto ao crime continuado: Nos termos do disposto no n.º2 do artigo 30.º do Código Penal “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”. São assim pressupostos do crime continuado: A homogeneidade da forma de execução do crime; A lesão do mesmo bem jurídico; A unidade do dolo; e A persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente. Atentos os pressupostos constantes do citado preceito, o crime continuado, que se traduz numa punição mais benévola de uma pluralidade de crimes, fundamenta-se numa considerável diminuição da culpa do agente, que assenta, necessariamente, numa circunstância exterior à vontade do agente e que de forma relevante o incite ou estimule a repetir uma conduta criminosa homogénea.
No caso concreto, temos cinco vítimas; valendo aqui o princípio de que estando em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, como é o caso, existem tantos crimes quantas as vítimas. Estão, assim, os referidos cinco crimes em concurso efectivo e real. Pelo exposto, o arguido praticou em concurso real e efetivo: - 4 (quatro) crimes de ofensa à integridade física qualificada simples, previsto e punido cada um deles pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal. - 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada grave, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal.
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4.2 DA MEDIDA CONCRETA DA PENA Importa determinar a pena nos termos previstos no art. 71º do C. Penal, i. é, «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção», tendo em consideração «todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra» o agente. Conhecidas que são, por já suficientemente enunciadas pela doutrina autorizada, as três fases do procedimento de determinação da pena - investigação e determinação da moldura legal, investigação e determinação dentro daquela moldura legal da medida concreta a aplicar, e escolha da espécie da pena, cumpre fazê-lo no presente caso. A determinação da medida da pena concreta é feita, de acordo com o critério constante do artigo 71.º, do Código Penal onde se diz que na fixação do “quantum” da pena se deve atender à culpa do agente e às exigências de prevenção. Estabelece o artigo 40.º do Código Penal (finalidades das penas e medidas de segurança): “1.A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2.Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. Importa, assim, saber quais são as funções desempenhadas pela culpa e pelas necessidades de prevenção em sede de determinação concreta da pena. No que concerne à culpa, este é um dos princípios estruturantes do Código Penal, porquanto “toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta” (cfr. ponto 2. do preâmbulo do Código Penal). Consagra-se deste modo o princípio da culpa. A função da culpa é estabelecer o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de prevenção da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de direito democrático. Como limite que é, pois, a medida da culpa serve para determinar um máximo da pena que não poderá em caso algum ser ultrapassado, não para fornecer em última instância a medida da pena: esta dependerá, dentro do limite consentido pela culpa, de considerações de prevenção. A medida da pena há-se ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Sendo certo, que quando se afirma que é função do direito penal tutelar bens jurídicos não se tem em vista só o momento da ameaça da pena, mas também o da sua aplicação. Deste modo, se alcança o significado prospectivo que assume a protecção dos bens jurídicos, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo reforço) da vigência da norma infringida. Estamos claramente em sede de prevenção geral positiva ou prevenção de integração. Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de proteção de bens jurídicos. Acolhemos, deste modo, o critério proposto por Figueiredo Dias na determinação da medida concreta da pena, (obs. citas.), - a designada “moldura de prevenção”. Para aferir do grau das exigências de prevenção que no caso se fazem sentir e da medida da culpa do arguido, importa atender aos factores de determinação da medida da pena. Estes factores estão enumerados, de modo não exaustivo, no artigo 71.º, n.º 2 do Cód. Penal. Vejamos. A cada um dos 4 (quatro) crimes de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal cabe a pena abstrata de prisão de 1 mês a 4 anos (artigos 41.º, n.º1, e 145.º, n.º1, al. a), do C. Penal) Ao (um) crime de ofensa à integridade física qualificada grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, cabe a pena abstrata de 3 a 12 anos (art.º 145.º, n.º1, a. c), do C. Penal). Estas as molduras penais dentro das quais será de fixar a pena concreta que cabe ao arguido, pela prática de cada um dos cinco crimes que cometeu. Considerando que à data dos factos cometidos o arguido tinha 18 anos de idade, importa ponderar a aplicação do regime especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, instituído pelo DL 401/82, o qual a aplicar-se importará uma atenuação especial da pena que na prática importará numa atenuação das referidas molduras abstratas. Sobre a aplicação do regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos. De harmonia com o artigo 4º Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena, nos termos do artigo 73º e 74º do Código Penal quando tiver razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado. Como se disse à data dos factos – 5.11.2022 – o arguido AA tinha 18 anos de idade, pelo que se impõe ponderar se deve ser aplicado in casu o regime que decorre do aludido Decreto-Lei e, assim, ser-lhes especialmente atenuada a pena. De facto, no preâmbulo de tal diploma justifica-se tal solução pela «necessidade de encontrar as respostas e reacções que melhor parecem adequar-se à prática por jovens adultos de factos qualificados pela lei penal como crime (...) que o direito penal dos jovens adultos surge como categoria própria, envolvendo um ciclo de vida, correspondendo a uma fase de latência social que faz da criminalidade um fenómeno efémero e transitório (…) que o que ocorre, hoje, é uma fase de autonomia crescente face ao meio parental e de dependência crescente face à sociedade que faz dos jovens adultos uma categoria social heterogénea, alicerçada em variáveis tão diversas como são o facto de o jovem ter ou não autonomia financeira, possuir ou não uma profissão, residir em casa dos pais ou ter casa própria.». Entende-se assim que a partir do momento em que o jovem assume responsabilidades (após esse período de latência social), é menor a hipótese de adoptar condutas ilícitas. Porém, o regime previsto neste diploma não tem aplicação automática e obrigatória, estando dependente do juízo que o julgador faz da vantagem para a reinserção social do jovem delinquente. Com a aplicação deste regime pretende-se, efectivamente, dar um estímulo ao jovem delinquente para arrepiar passo e evitar novas condutas desviantes. A aplicação deste regime especial tem sido entendida pela jurisprudência e doutrina não como uma mera faculdade do julgador, mas como um seu poder-dever, isto é, o julgador tem de o utilizar sempre que se verifiquem os seus pressupostos.
Relevam, assim, para a aplicação deste regime, nomeadamente: a) a sua estabilidade familiar e profissional; b) as suas condições pessoais e a sua situação económica; c) a conduta anterior e a posterior aos factos, nomeadamente se reparou ou não as consequências do seu crime.
Aqui chegados, vejamos o caso decidendo. O arguido não assumiu o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. O arguido AA, com a sua grave e violenta actuação, revela uma personalidade fortemente desconforme com a norma o que implica uma vigorosa necessidade da pena com vista à sua reinserção social, premente, pese embora a sua idade. A agravar a tudo isto, relembre-se que pratica os factos em 5/11/2022 passado pouco tempo do trânsito em julgado de um acórdão deste mesmo Tribunal que o condenou numa pena de prisão de 3 anos e 6 meses pela prática de um crime de roubo; com efeito, como acima consta dos factos provados pela prática em 25/06/2021, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º1, do C. Penal, por acórdão datado de 30/05/2022, transitado em julgado em 29/06/2022, foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova. Tudo ponderado, concluímos não ver razões para aplicar a atenuação especial ao arguido. Vejamos, então as penas concretas dentro das molduras penais acima elencadas sem qualquer atenuação especial da pena derivada do regime especial para jovens. A cada um dos 4 (quatro) crimes de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal cabe a pena abstrata de prisão de 1 mês a 4 anos (artigos 41.º, n.º1, e 145.º, n.º1, al. a), do C. Penal) Em relação aos quatro crimes de ofensas à integridade física qualificada simples, serão seguidos os mesmos critérios legais de determinação da pena, considerando a similitude de factos a ponderar para cada um dos quatro crimes, seja em termos de ilicitude, culpa e danos causados a cada uma das quatro vítimas. A ilicitude, é de grau mínimo/médio considerando o modo de atuação que se reconduz a um embate da viatura em cada uma das 4 vítimas, nenhuma outra conduta se tendo provado da parte do arguido antes ou depois de tal embate, e nada mais se podendo valorar em termos de ilicitude neste momento de determinação da medida da pena, nomeadamente não se pode valorar novamente o uso do veículo em tal embate porque já valorado como “meio particularmente perigoso” para qualificar as ofensas; fazê-lo seria violar o principio de proíbe a dupla valoração. Com efeito, como ensina o Ac. do STJ de 24/10/2008, relatado pelo Exm.ª Senhor Juiz Conselheiro Santos Carvalho, no proc. 06P3163, DGSI - O princípio da proibição de dupla valoração impede que a mesma circunstância agravativa seja valorada por duas vezes, num primeiro momento fazendo-a funcionar como agravante modificativa do tipo de crime, com alteração da moldura da pena abstracta, num segundo momento fazendo-a operar como agravante de natureza geral, para justificar que a pena concreta seja mais elevada do que seria sem ela. Também agrava a ilicitude o local público onde os factos ocorreram, o forte alarme, medo e pânico que a conduta do arguido causou em todos aqueles que ali se encontravam, especialmente os cerca de 20 a 25 indivíduos que se encontravam em cima do passeio e nestes em especial aqueles que apercebendo-se (porque de frente para o veículo) da aproximação e atropelamento iminente conseguiram fugir a tempo; anota-se que não se podendo incriminar a conduta do arguido por tal atuação em relação a todos aqueles que se encontrava, no passeio e que não foram atingidos, sem sendo a sua condução perigosa alvo de incriminação agora impossível por falta de factos, nomeadamente de natureza subjetiva que são podem ser supridos pelo tribunal (Ac. de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, publicado no DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27 acima citado), tal factualidade pode e deve ser ponderada para efeitos de agravamento da ilicitude. A culpa do arguido é médio /elevada porque não tem qualquer fundamento ou justificação a sua atuação naquele concreto circunstancialismo, pois que a confusão que tinha ocorrido no interior da discoteca tinha sido resolvida pelos seguranças da discoteca e pela própria intervenção ainda que passageira da PSP, sendo absolutamente incompreensível a sua atuação, a qual apenas se pode compreender numa atitude de vingança e manobra de magoar gratuitamente as pessoas de origem africana com que se tinha confrontado no interior da discoteca e causar o pânico em todos aqueles que se encontravam em cima do passeio, como causou. O dolo é direto em relação às quatro vítimas e de elevada intensidade: a atuação do arguido revela alguma maturação e planeamento do que pretendia fazer: o arguido AA depois de sair da discoteca deslocou-se para o exterior de tal estabelecimento, em seguimento do seu encerramento, dirigiu-se ao veículo onde se fazia transportar, de marca ...”, matrícula ..-CM-.., de cor ..., que se encontrava estacionado nas imediações de tal estabelecimento de diversão nocturna e uma vez aí chegado, entrou no mesmo, assumiu a sua direcção, arrancou no sentido ascendente da rua, inverteu a marcha, iniciando de seguida a marcha descendente, na Rua ..., em ... e no trajecto, sem abrandar, subiu o passeio e direccionou o veículo às pessoas que aí se encontravam no passeio de tal rua, cerca de 20 a 25 indivíduos, entre os quais aqueles que momentos antes se envolveram em contenda com o arguido no interior do estabelecimento nocturno. As consequências típicas da conduta do arguido são as julgadas provadas, nomeadamente as lesões físicas que causou em cada uma das 4 vítimas e que qualificamos acima como simples, sendo essencialmente edemas, equimoses, escoriações, cicatrizes que cada uma das vítimas sofreu, sendo no caso do EE também perda momentânea da consciência. – BB: no membro inferior direito: edema moderado do tornozelo e dorso do pé, equimose na face anterior do tornozelo, dorso e face lateral do pé, esverdeada, de limites mal definidos, com 16 cm por 14 cm de maiores dimensões; escoriação na face anterior do tornozelo, com crosta desidratada, irregular, com 8 cm por 5,5 cm de maiores dimensões (cfr. fls. 424 e ss.); – CC: no membro superior direito: duas cicatrizes na região supraciliar / escoriações em adiantado de evolução na face posterior do antebraço / escoriações no membro superior esquerdo / na face anterior do joelho apresenta uma escoriação com crosta desidratada, oval, com 4,5 cm por 4 cm, de maiores dimensões; no membro inferior esquerdo, sobre o maléolo lateral, apresenta uma escoriação com crosta desidatrada, arredondada, com 1,5 cm de maior eixo, cfr. fls 28v e 428 e ss.; – DD: crânio: escoriações em fase crostosa numa área 3 x 2 cm de tamanho na região parietal à direita, escoriações em fase de crosta numa área de 2 x 2 cm de tamanho na região frontal direita, vestígios de escoriação na região temporo-occipital à direita; membro superior direito: área de escoriações de 5 x 3 cm de tamanho na face postero-lateral do terço inferior do antebraço escoriação de 1 cm de diâmetro na face lateral do punho; no membro inferior direito: área de escoriações de 5 x 3 cm de tamanho na região nadegueira superior, que demandaram 14 dias para a cura (19/11/2022), com afectação da capacidade de trabalho geral (4 dias) e com afectação de trabalho profissional (14 dias) – cfr. fls. 35 e ss. – EE: perda momentânea de consciência. Face: duas cicatrizes de 1 cm cada a nível da região supraciliar direita; membro superior direito: escoriações ao longo da face posterior do antebraço, numa área de 16 x 2 cm de tamanho; membro superior esquerdo: escoriações punctiformes na face dorsal das MF do 2º, 3º, 4º e 5º dedos da mão; membro inferior esquerdo: penso na região nadegueira de 16 x 16 cm de tamanho – cfr. fls. 27 e ss. O arguido não assumiu em audiência de julgamento o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. Dos factos provados resulta que o arguido não se encontra socialmente inserido: AA, à data dos factos provados, integrava o agregado dos pais, com o cônjuge, JJ, na morada acima identificada. companheira e o arguido viveram em união de facto antes da cerimónia do seu casamento, realizada em outubro de 2022, e aguardam para breve o nascimento da primeira filha de ambos. É referida uma dinâmica familiar afetiva e apoiante entre todos os elementos que compõem a família, sendo o arguido o mais velho dos quatro filhos que os pais têm em comum, o mais novo com quatro anos de idade. O agregado, num total de sete elementos, vive em apartamento de tipologia 3, com condições de habitabilidade, cuja renda é no valor de 10,90€ mensais, inserido em bairro conotado com problemáticas sociais relevantes, na cidade .... Referem como despesas fixas habitacionais (água, eletricidade e telecomunicações) de cerca de 150,00€ mensais. A situação económica da família é assegurada através de apoios pecuniários estatais, designadamente do Rendimento Social de Inserção (RSI), sendo o pai do arguido o titular da medida. Acrescem os abonos dos quatro descendentes e, ainda, do abono de família pré-natal, no valor aproximado de 2.060,00€ mensais. São obtidos, ainda, alguns rendimentos da atividade dos pais em feiras na área de residência. Não regista no seu percurso de vida uma atividade laboral regular e apresenta um quotidiano sem ocupação formativa e/ou estruturada. O percurso escolar de AA foi marcado por insucessos, motivados pela desmotivação das atividades letivas e por reduzida assiduidade, que culminou no abandono escolar sem conclusão do 5º ano, não obstante, a intervenção junto da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) do .... Presentemente, o enquadramento habitacional e familiar do arguido é idêntico ao descrito à data dos factos, beneficiando dos familiares de apoio nas suas vivências diárias. AA é referenciado na comunidade local a grupo de pares associado a práticas ilícitas. AA regista anteriores contactos com o sistema judicial, tendo estado em acompanhamento neste serviço da DGRSP, no âmbito da suspensão de um processo tutelar educativo, por factos susceptíveis de integrar a prática de crime de ofensa à integridade física, com acções dirigidas à promoção de competências pessoais e sociais e de um papel proactivo no desempenho de uma atividade ocupacional. Nessa sequência e em articulação com a CPCJ ..., foi estabelecida programação mensal de acções, tendo o arguido cumprido os respetivos objetivos. Atualmente, o arguido é supervisionado, pela DGRSP, no âmbito da pena de prisão suspensa, que foi condenando no processo 112/21...., cujo transitado em julgado, ocorreu a 29/06/2022 e o termo está previsto para 29/12/2025. A sua constituição como arguido no presente processo não teve repercussões negativas na sua esfera familiar, que lhe mantem apoio no seu processo vivencial. Foi obtida informação junto da OPC territorialmente competente, de ser suspeito no processo 214/23...., datado de 06/08/2023, pelo crime de resistência e coação sobre funcionário. Por fim, como elemento a agravar a medida e necessidade da pena a existência de um antecedente criminal relevante: o arguido comete os factos destes autos em 5/11/2022, ou seja, pouco tempo após o trânsito do acórdão que o condenou em 3 anos e 6 meses de pena de suspensa na sua execução e em pleno período da suspensão, o que é bem revelador do respeito do arguido pela solene advertência contida naquela pena suspensa. Com efeito, como acima consta dos factos provados pela prática em 25/06/2021, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º1, do C. Penal, por acórdão datado de 30/05/2022, transitado em julgado em 29/06/2022, foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova. Algumas conclusões a retirar: - o acórdão transitou em 29/06/2022 e passado 4 meses e 8 dias o arguido praticou os factos destes autos; - foi condenado por um crime de roubo, o qual, como é sabido, se no seu recorte típico se pode estruturalmente visualizar um furto qualificado, e daí a sua inserção sistemática nos crimes contra a propriedade, o elemento pessoal tem no mesmo uma particular relevância, porque com a sua prática é posta em causa a liberdade, a integridade física ou até a própria vida da pessoa roubada. No caso o arguido comete crimes que colocam em questão o bem jurídico que é a integridade física o que é revelador do desrespeito repetido por bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal. - cometeu os factos graves pelos quais agora é condenado em pleno período da suspensão, o que revela elevado desrespeito pelas Decisões Judiciais, pelos Tribunais e pelo Estado de Direito. As necessidades de prevenção geral são elevadas pelo contexto do crime, pois que lamentavelmente são frequentes em Portugal as rixas, conflitos, agressões à saída de estabelecimentos noturnos, com consequências graves em termos de ferimentos e até mortes, não sendo ... exceção. Em sede de prevenção especial, tudo o antes referido – o arguido não assumiu em audiência de julgamento o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. O antecedente criminal pelo crime de roubo, a falta de inserção social - vai no sentido de serem elevadas as necessidades de prevenção especial que o arguido reclama. Todavia, não se pode olvidar apesar de tudo que não sendo aplicável o regime especial para jovens nos termos acima fundamentados, não se pode esquecer que o arguido à data dos factos tinha apenas 18 anos de idade, sendo um jovem, pelo que a pena deverá ficar abaixo do meio da moldura penal. Tudo visto e ponderado, entende-se justo e adequado condenar o arguido na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos quatro crimes de ofensa à integridade física qualificada simples.
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Ao (um) crime de ofensa à integridade física qualificada grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, cabe a pena abstrata de 3 a 12 anos (art.º 145.º, n.º1, a. c), do C. Penal). A ilicitude, é de grau mínimo/médio considerando o modo de atuação que se reconduz a um embate da viatura na vítima FF, nenhuma outra conduta se tendo provado da parte do arguido antes ou depois de tal embate, e nada mais se podendo valorar em termos de ilicitude neste momento de determinação da medida da pena, nomeadamente não se pode valorar novamente o uso do veículo em tal embate porque já valorado como “meio particularmente perigoso” para qualificar as ofensas; fazê-lo seria violar o principio de proíbe a dupla valoração. Com efeito, como ensina o Ac. do STJ de 24/10/2008, relatado pelo Exm.ª Senhor Juiz Conselheiro Santos Carvalho, no proc. 06P3163, DGSI - O princípio da proibição de dupla valoração impede que a mesma circunstância agravativa seja valorada por duas vezes, num primeiro momento fazendo-a funcionar como agravante modificativa do tipo de crime, com alteração da moldura da pena abstracta, num segundo momento fazendo-a operar como agravante de natureza geral, para justificar que a pena concreta seja mais elevada do que seria sem ela. Também agrava a ilicitude o local público onde os factos ocorreram, o forte alarme, medo e pânico que a conduta do arguido causou em todos aqueles que ali se encontravam, especialmente os cerca de 20 a 25 indivíduos que se encontravam em cima do passeio e nestes em especial aqueles que apercebendo-se (porque de frente para o veículo) da aproximação e atropelamento iminente conseguiram fugir a tempo; anota-se que não se podendo incriminar a conduta do arguido por tal atuação em relação a todos aqueles que se encontrava, no passeio e que não foram atingidos, sem sendo a sua condução perigosa alvo de incriminação agora impossível por falta de factos, nomeadamente de natureza subjetiva que são podem ser supridos pelo tribunal (Ac. de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, publicado no DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27 acima citado), tal factualidade pode e deve ser ponderada para efeitos de agravamento da ilicitude. A culpa do arguido é médio /elevada porque não tem qualquer fundamento ou justificação a sua atuação naquele concreto circunstancialismo, pois que a confusão que tinha ocorrido no interior da discoteca tinha sido resolvida pelos seguranças da discoteca e pela própria intervenção ainda que passageira da PSP, sendo absolutamente incompreensível a sua atuação, a qual apenas se pode compreender numa atitude de vingança e manobra de magoar gratuitamente as pessoas de origem africana com que se tinha confrontado no interior da discoteca e causar o pânico em todos aqueles que se encontravam em cima do passeio, como causou. O dolo é direto em relação às quatro vítimas e de elevada intensidade: a atuação do arguido revela alguma maturação e planeamento do que pretendia fazer: o arguido AA depois de sair da discoteca deslocou-se para o exterior de tal estabelecimento, em seguimento do seu encerramento, dirigiu-se ao veículo onde se fazia transportar, de marca ...”, matrícula ..-CM-.., de cor ..., que se encontrava estacionado nas imediações de tal estabelecimento de diversão nocturna e uma vez aí chegado, entrou no mesmo, assumiu a sua direcção, arrancou no sentido ascendente da rua, inverteu a marcha, iniciando de seguida a marcha descendente, na Rua ..., em ... e no trajecto, sem abrandar, subiu o passeio e direccionou o veículo às pessoas que aí se encontravam no passeio de tal rua, cerca de 20 a 25 indivíduos, entre os quais aqueles que momentos antes se envolveram em contenda com o arguido no interior do estabelecimento nocturno. As consequências típicas da conduta do arguido são as julgadas provadas, nomeadamente as lesões físicas que causou na ofendida FF e que qualificamos acima como graves: perda momentânea de conhecimento, internamento entre 05 e 10 NOV 22 na sequência da fratura fechada dos ossos da perna direita. Membro inferior direito: cicatriz aderente de 1 x 1,2 cm de tamanho na face antero-interna do terço inferior da perna, cicatriz quelóide de 7 x 0,4 cm a nível da face anterior do joelho e terço superior da perna e infra patelar interna, duas cicatrizes de 1 cm cada, paralelas à cicatriz anterior, cicatriz de 1 cm de tamanho a nível da face anterior do terço inferior da perna sem défice de mobilidade do joelho, tornozelo e dedos do pé. Atrofia da coxa e região gemelar de 1 cm, que demandaram 206 dias para a consolidação médico-legal (30/05/2023), com afectação da capacidade de trabalho geral (5 dias) e com afectação de trabalho profissional (186 dias), bem como resultaram as consequências permanentes inerentes à fractura dos ossos da perna direita – cfr. fls. 592 e ss.; O arguido não assumiu em audiência de julgamento o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. Dos factos provados resulta que o arguido não se encontra socialmente inserido: AA, à data dos factos provados, integrava o agregado dos pais, com o cônjuge, JJ, na morada acima identificada. companheira e o arguido viveram em união de facto antes da cerimónia do seu casamento, realizada em outubro de 2022, e aguardam para breve o nascimento da primeira filha de ambos. É referida uma dinâmica familiar afetiva e apoiante entre todos os elementos que compõem a família, sendo o arguido o mais velho dos quatro filhos que os pais têm em comum, o mais novo com quatro anos de idade. O agregado, num total de sete elementos, vive em apartamento de tipologia 3, com condições de habitabilidade, cuja renda é no valor de 10,90€ mensais, inserido em bairro conotado com problemáticas sociais relevantes, na cidade .... Referem como despesas fixas habitacionais (água, eletricidade e telecomunicações) de cerca de 150,00€ mensais. A situação económica da família é assegurada através de apoios pecuniários estatais, designadamente do Rendimento Social de Inserção (RSI), sendo o pai do arguido o titular da medida. Acrescem os abonos dos quatro descendentes e, ainda, do abono de família pré-natal, no valor aproximado de 2.060,00€ mensais. São obtidos, ainda, alguns rendimentos da atividade dos pais em feiras na área de residência. Não regista no seu percurso de vida uma atividade laboral regular e apresenta um quotidiano sem ocupação formativa e/ou estruturada. O percurso escolar de AA foi marcado por insucessos, motivados pela desmotivação das atividades letivas e por reduzida assiduidade, que culminou no abandono escolar sem conclusão do 5º ano, não obstante, a intervenção junto da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) do .... Presentemente, o enquadramento habitacional e familiar do arguido é idêntico ao descrito à data dos factos, beneficiando dos familiares de apoio nas suas vivências diárias. AA é referenciado na comunidade local a grupo de pares associado a práticas ilícitas. AA regista anteriores contactos com o sistema judicial, tendo estado em acompanhamento neste serviço da DGRSP, no âmbito da suspensão de um processo tutelar educativo, por factos susceptíveis de integrar a prática de crime de ofensa à integridade física, com acções dirigidas à promoção de competências pessoais e sociais e de um papel proactivo no desempenho de uma atividade ocupacional. Nessa sequência e em articulação com a CPCJ ..., foi estabelecida programação mensal de acções, tendo o arguido cumprido os respetivos objetivos. Atualmente, o arguido é supervisionado, pela DGRSP, no âmbito da pena de prisão suspensa, que foi condenando no processo 112/21...., cujo transitado em julgado, ocorreu a 29/06/2022 e o termo está previsto para 29/12/2025. A sua constituição como arguido no presente processo não teve repercussões negativas na sua esfera familiar, que lhe mantem apoio no seu processo vivencial. Foi obtida informação junto da OPC territorialmente competente, de ser suspeito no processo 214/23...., datado de 06/08/2023, pelo crime de resistência e coação sobre funcionário. Por fim, como elemento a agravar a medida e necessidade da pena a existência de um antecedente criminal relevante: o arguido comete os factos destes autos em 5/11/2022, ou seja, pouco tempo após o trânsito do acórdão que o condenou em 3 anos e 6 meses de pena de prisão suspensa na sua execução e em pleno período da suspensão, o que é bem revelador do desrespeito do arguido pela solene advertência contida naquela pena suspensa. Com efeito, como acima consta dos factos provados pela prática em 25/06/2021, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º1, do C. Penal, por acórdão datado de 30/05/2022, transitado em julgado em 29/06/2022, foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova. Algumas conclusões a retirar: - o acórdão transitou em 29/06/2022 e passado 4 meses e 8 dias o arguido praticou os factos destes autos; - foi condenado por um crime de roubo, o qual como é sabido se no seu recorte típico se pode estruturalmente visualizar um furto qualificado, e daí a sua inserção sistemática nos crimes contra a propriedade, o elemento pessoal tem no mesmo uma particular relevância, porque com a sua prática é posta em causa a liberdade, a integridade física ou até a própria vida da pessoa roubada. No caso o arguido comete crimes que colocam em questão o bem jurídico penal que é a integridade física o que é revelador do desrespeito repetido por bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal. - cometeu os factos graves em pleno período da suspensão, o que revela elevado desrespeito pelas Decisões Judiciais, pelos Tribunais e pelo Estado de Direito. As necessidades de prevenção geral são elevadas pelo contexto do crime, pois que lamentavelmente são frequentes em Portugal as rixas, conflitos e agressões à saída de estabelecimentos noturnos, com consequências graves em termos de ferimentos e até mortes, não sendo ... exceção. Em sede de prevenção especial, tudo o antes referido – o arguido não assumiu em audiência de julgamento o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. O antecedente criminal pelo crime de roubo, a a falta de inserção social - vai no sentido de serem elevadas as necessidades de prevenção especial que o arguido reclama. Todavia, não se pode olvidar apesar de tudo que não sendo aplicável o regime especial para jovens nos termos acima fundamentados, não se pode esquecer que o arguido à data dos factos tinha apenas 18 anos de idade, sendo um jovem, pelo que a pena deverá ficar abaixo do meio da moldura penal. Tudo visto e ponderado, entende-se justo e adequado condenar o arguido na pena de 4 (um) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada grave. Do cúmulo jurídico. Determinada a pena concreta de cada um dos 5 (cinco) crimes cometidos pelo arguido, cumpre determinar agora a moldura do concurso atendendo ao critério estabelecido no artigo 77.º, n.º2, do Código Penal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretas aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão, como é o caso, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Assim, a pena aplicável tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – 4 anos e 6 meses de prisão - e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – neste caso 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão. Será dentro destes limites que será determinada a medida da pena atendendo, em conjunto, aos factos e à personalidade do agente (art.º 77.º, n.º1, do C. Penal). O legislador consagrou expressamente que o tribunal deve levar em consideração, o conjunto dos factos e a personalidade do agente, na fixação da pena que resultará da apreciação da respectiva conduta abrangendo todo o espaço temporal e factos que o mesmo definiu como tal, no supra citado artigo 77º, nº 1, do CPP. Vem-se entendendo que, com tal asserção, se deve ter em conta, no dizer de Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” (in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 291). Perscrutando as condutas e penas, temos como seguro o seguinte: todos os 5 crimes dizem respeito direta a crimes que tutelam bens jurídicos eminentemente pessoais – integridade física -, mas considerando o contexto dos factos - os crimes são praticados num mesmo circunstancialismo de tempo e lugar – pelo que não se poderá considerar que estamos perante uma certa tendência ou carreira criminosa do arguido, pelo que não será de atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. Os factos são muito graves especialmente se atentarmos ao uso do veículo automóvel, ao número de pessoas atingidas – 5 – e ao número de pessoas que se encontravam em cima do passeio – cerca de 20 a 25 pessoas o que só por si reclama uma pena que se fixe no meio ou ligeiramente acima do meio da moldura abstrata.
Atenta-se ainda: O arguido não assumiu em audiência de julgamento o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. A ponderar o antecedente criminal: o arguido comete os factos destes autos em 5/11/2022, ou seja, pouco tempo após o trânsito do acórdão que o condenou em 3 anos e 6 meses de pena de prisão suspensa na sua execução e em pleno período da suspensão, o que é bem revelador do desrespeito do arguido pela solene advertência contida naquela pena suspensa. Com efeito, como acima consta dos factos provados pela prática em 25/06/2021, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º1, do C. Penal, por acórdão datado de 30/05/2022, transitado em julgado em 29/06/2022, foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.
Algumas conclusões a retirar: - o acórdão transitou em 29/06/2022 e passado 4 meses e 8 dias o arguido praticou os factos destes autos; - foi condenado por um crime de roubo, o qual, como é sabido, se no seu recorte típico se pode estruturalmente visualizar um furto qualificado, e daí a sua inserção sistemática nos crimes contra a propriedade, o elemento pessoal tem no mesmo uma particular relevância, porque com a sua prática é posta em causa a liberdade, a integridade física ou até a própria vida da pessoa roubada. No caso, o arguido comete crimes que colocam em questão o mesmo bem jurídico – penal que é o da “integridade física” o que é revelador do desrespeito repetido por bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal. - comete os factos em pleno período da suspensão, o que revela elevado desrespeito pelas Decisões Judiciais, pelos Tribunais e pelo Estado de Direito. Apesar do acabado de expor, não se pode olvidar que o arguido à data dos factos tinha apenas 18 anos de idade, sendo um jovem, pelo que a pena única deverá fixar-se no meio da moldura penal, refletindo deste modo a gravidade de todos os factos e a personalidade do arguido acima analisada (art.º 77.º, n.º1, do C. Penal). Assim sendo, entende-se como justo e adequado condenar o arguido na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.
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Da medida da pena acessória do art.º 69.º, n.º1, al. a), do C. Penal: A prática dos cinco crimes de ofensa à integridade física qualificada (4 simples e 1 grave) com violação das regras de trânsito rodoviário (o arguido circulo pelo passeio) pelos quais o arguido foi condenado, para além da pena principal (prisão) é ainda sancionada com proibição de conduzir veículos com motor por um período entre 3 meses e 3 anos, por força do disposto no art. 69º, n.º 1, al. a), do Código Penal. A referida sanção inibitória tem natureza de pena acessória, como resulta claramente do texto do citado artigo, da sua inserção sistemática e do elemento histórico, traduzindo-se numa censura adicional pelo crime praticado. Correspondendo a uma manifesta necessidade de política criminal, que se prende com a elevada sinistralidade rodoviária, a aplicação de tal pena acessória visa dissuadir os condutores de se absterem de comportamentos no exercício da condução com consequências extremamente nefastas. A propósito das suas finalidades, refere Figueiredo Dias que, “se (…) pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa (…). Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano”. - Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 165. A pena em apreço tem, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal, sendo a sua finalidade a intimidação da generalidade e dirigindo-se ainda à perigosidade do agente. Embora distintas nos seus pressupostos, quer a pena principal quer a acessória assentam num juízo de censura global pelo crime praticado. Daí que para a determinação da medida concreta de uma e de outra se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no art. 71º do Código Penal. A determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele. Quanto aos factos praticados, haverá que ter em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequências típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.). Quanto à personalidade do agente, haverá que atender às condições pessoais, situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto- Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 245 No caso vertente são fortes as exigências de prevenção geral, atentos os elevados índices de sinistralidade estradal que se verificam em Portugal, com devastadoras consequências, demonstrando o insucesso das repetidas campanhas de segurança rodoviária. Continua, pois, a sentir-se uma particular necessidade de combater essa sinistralidade. Mais ainda quando a atuação do arguido foi dolosa e não meramente negligente. Assim, a medida ótima de tutela do bem jurídico e das expectativas comunitárias faz elevar consideravelmente os limites da moldura da prevenção geral. Também o grau de ilicitude é elevado, como grave foi o modo de execução dos factos e o grau de violação dos deveres impostos ao agente. Acresce a gravidade das consequências do crime, a natureza dos interesses tutelados e a intensidade da conduta dolosa, sendo, ainda, de realçar as modestas condições pessoais e económicas e a existência de um antecedente criminal do arguido. Face a todo o descrito circunstancialismo, afigura-se-nos que a medida da pena acessória de proibição de conduzir de 2 (dois) anos se apresenta como necessária para se atingir o nível mínimo de verdadeira advertência penal, de modo a que a eficácia preventiva de tal pena não fique irremediavelmente afetada.
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Do pedido de indemnização civil do Centro Hospitalar ...: Quanto ao pedido cível formulado pelo Centro Hospitalar ..., EPE, o mesmo deverá proceder na totalidade, pois que se julgaram provados os factos a tal respeito alegados pela demandante, nomeadamente que assistência médica prestada pela requerente aos cinco ofendidos teve origem nas lesões físicas resultantes das agressões do arguido – art. 6º, do Dec. Lei n.º 218/99, de 15 de Junho. Por outro lado, provou-se que o veículo conduzido pelo arguido estava segurado na EMP02..., PLC – .... O demandante é um terceiro com direito a ser indemnizado pelas despesas em que incorreu com a prestação de serviços de saúde aos ofendidos BB, CC, FF, DD e EE em virtude das lesões corporais por estes sofridas em consequência direta e necessária do acidente de viação julgado ainda que criminalmente doloso acima provado, nos termos do art.º 495.º, n.º2, do C. Civil, o qual estabelece que “neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenha contribuído para o tratamento ou assistência à vítima”. A responsabilidade pelo pagamento é da demandada seguradora nos termos legais e jurisprudências acima já fundamentados a respeito da ilegitimidade passiva do arguido e que agora se reproduz novamente. Dispõe o art.º 15.º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, de 21.08, que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs a Directiva n.º 2005/14/CE do Parlamento e do Conselho, de 11.05, que “o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas (…) de acidentes de viação dolosamente provocados (…) e o art.º 27.º, n.º 1, alín. b) que, “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros (…) tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente (realce nosso)”. Por seu turno o n.º 1, alín. a), do art.º 64.º do mesmo diploma legal estipula que “as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil, quer o sejam em processo penal e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório”. A não exclusão do âmbito da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel dos danos resultantes de “acidentes de viação dolosamente provocados” remonta ao primeiro dos diplomas que versou tal matéria, o DL n.º 165/75, de 20.03, em cujo art.º 8.º dispunha que “o seguro garante também a responsabilidade civil resultante de acto doloso, dispondo, neste caso, o segurador do direito de regresso contra o responsável”. Esse diploma não chegou, porém, a entrar em vigor por razões histórias que tiveram a ver com a nacionalização da maioria das seguradoras, conforme foi assinalado no preâmbulo do DL n.º 408/79, de 25.09, diploma que se lhe seguiu na instituição, doravante operante, do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e em cujo art.º 6.º, n.º 2, continuou a dispor que “o seguro garantirá igualmente os danos provenientes de acidente de viação dolosamente provocados” bem como o art.º 19.º, alín. b), continuou a facultar à seguradora o direito de regresso contra o causador doloso do acidente. Seguir-se-ia o DL n.º 522/85, de 31.12, à luz do qual foram tirados os acórdãos acima elencados, em cujo preâmbulo começou por se assinalar que “a institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel revelou-se uma medida de alcance social, inquestionável que, como o decurso do tempo, apenas impõe reforçar e aperfeiçoar, procurando dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados por acidentes de viação”, para, no seu art.º 8.º, n.º 2, garantir a satisfação das indemnizações devidas por acidente de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do direito de regresso da seguradora “contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente” (art.º 19.º, alín. a)). Desta sucessão normativa resulta a preocupação do legislador em salvaguardar os interesses dos lesados, ainda que os danos advenham de acidente dolosamente provocado. Daí que se afirme que o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel revista a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir directamente da seguradora a reparação do seu direito (Ac. de 06.07.2011). O que justifica dar à expressão “acidente de viação” uma interpretação diferente da tradicional, que liga o acidente a acontecimento fortuito ou casual, a uma álea, a favor de interpretação mais geral, focada no interesse do lesado e na perspectiva do seu ponto de vista, como se tratando de um fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo automóvel (Ac. de 01.04.93). Face ao interesse protegido pela norma (direito do lesado), outra não deve ser a conclusão de que tanto é acidente o acontecimento (evento) estradal inesperado, como o dolosamente causado. É esse, de resto, o sentido literal da norma (“acidentes de viação dolosamente provocados”) enquanto critério de interpretação à luz do art.º 9.º, n.º 2, do CC, com o qual manifestamente se não coaduna a interpretação sustentada pelos recorrentes, sob pena de se concluir que o legislador criou uma regra jurídica incongruente e inútil, insusceptível de aplicação prática (Ac. de 07.05.2009). Um outro argumento adjuvante, este de ordem sistemática, tem a ver com a exclusão dos danos causados “por um veículo terrestre a motor” no âmbito de aplicação do regime jurídico de protecção às vítimas de crimes violentos (art.º 1.º, n.º 5, do DL n.º 423/91, de 30.10, entretanto substituído pelo art.º 3.º, n.º 2, da Lei n.º 104/2009, de 14.09). Essa exclusão só tem sentido se o dano dolosamente provocado por um veículo terrestre a motor já estiver acautelado noutra disposição legal, como seja a do art.º 15.º, n.º 2, do DL n.º 291/2007 acima transcrito. Por outro lado, ainda, aquela interpretação é a que melhor se coaduna com o direito comunitário, que tem influenciado o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e com a própria jurisprudência comunitária, como disso dá nota Moitinho de Almeida no estudo Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (em www.stj.pt ou em Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, 2009, p. 221). Quanto ao argumento das recorrentes, da nulidade dos contratos de seguro que cubram danos resultantes de actos constitutivos de crimes, por contrários à ordem pública ou ofensivos dos bons costumes (art.º 280.º, n.º 2, do CC), é falho se sentido. Por um lado, todos aceitarão que o regime de seguro obrigatório abrange os acidentes causados por negligência do condutor e cuja conduta integre, por exemplo, um crime de ofensa à integridade física ou homicídio, ambos por negligência e, por outro, é patente a contradição das recorrentes quando tomam à letra a expressão acidente de viação como evento fortuito ou ocasional e admitem a sua reparação em casos de acidentes provocados com dolo eventual! Finalmente, em domínio contratual em que a liberdade de cada contraente está fortemente condicionada, mercê de uma certa publicização do ramo do direito em causa em ordem à justiça social que está na base do seguro obrigatório, o âmbito de protecção da norma visa a defesa dos lesados e só por isso a seguradora responde perante eles, não podendo esquecer-se que a responsabilidade última recai sobre o condutor. A seguradora, enquanto entidade com maior solvência, apenas garante o pagamento da indemnização, assistindo-lhe, depois, o direito de regresso contra o responsável. Eis por que soçobra toda a argumentação das recorrentes, nada havendo a censurar à decisão recorrida quando imputou à seguradora a reparação dos danos pelo acidente ainda que dolosamente provocado, em consequência concluindo pela absolvição da instância da demandada civil, por falta de legitimidade. Aderimos integralmente a este entendimento do nosso mais alto Tribunal e que cremos o único possível face à lei em vigor. Pelo exposto, deve a demandada seguradora pagar ao demandante estabelecimento hospitalar a quantia peticionada de €3.618,69 euros (três mil seiscentos e dezoito euros e sessenta e nove cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, desde a notificação a que alude o art. 78º do C.P.P. até efectivo e integral pagamento.
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5. DISPOSITIVO
Pelo exposto, julgando a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, com a convolação jurídica efectuada, acordam os juízes que constituem este Tribunal Colectivo:
I – ABSOLVER o arguido AA da prática, como autor material, em concurso real e efetivo de 05 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22º, 23º e 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), i) e j), do Código Penal, de que vinha acusado. II - Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, em concurso real e na forma consumada de: - um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida BB); - um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa do ofendido CC); - um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa do ofendido DD); - um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida EE); - um crime de ofensa à integridade física qualificada grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida FF). III - Em CÚMULO JURÍDICO, condenar o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão. IV - Condenar o arguido AA, com fundamento no art.º 69.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos a motor, pelo período de 2 (dois) anos.
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PEDIDOS CÍVEIS: I - Do pedido cível deduzido por FF contra o arguido AA: Julgar verificada a exceção dilatória da ilegitimidade passiva e, consequentemente, nos termos dos artigos art.º 15.º, n.º 2, e 64.º, n.º1, al. a) do DL n.º 291/2007, de 21.08, e artigos 577.º, al. e), 578.º, 278.º, n.º1, al. d), todos do CPC, aplicáveis pelo art.º 4.º do Cód. de Proc. Penal e 71.º e ss.º do mesmo diploma legal, julgar o arguido/demandado AA parte ilegítima e em consequência, absolvê-lo da instância. Custas pela demandante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia II - Do pedido cível deduzido pelo Centro Hospitalar ... contra EMP01... PLC – ..., com sede na Rua ..., Lisboa Julgar totalmente procedente o pedido do Centro Hospitalar ..., E.P.E. e condenar EMP01... PLC – ... a pagar-lhe a quantia de €3.618,69 euros (três mil seiscentos e dezoito euros e sessenta e nove cêntimos) relativa à assistência prestada a BB, CC, FF, DD e EE, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento. Custas pela demandada seguradora atento o seu integral decaimento.
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Custas crime pelo arguido AA fixando-se em 5 (cinco) UC’s a taxa de justiça devida e os legais acréscimos devidos nos termos do actual regulamento das custas processuais, sem prejuízo de apoio judiciário concedido.» (…)
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3. Apreciação dos Recursos
Como acima se referiu, após enunciarem especificamente na motivação os fundamentos dos seus recursos, os recorrentes terminam as suas peças processuais formulando as conclusões de cada uma das suas pretensões, resumindo as razões dos pedidos, sendo, pois, estas conclusões que constituem o limite do objeto de cada um dos recursos, que balizam as questões a apreciar, a decidir, não podendo este Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Regressando às conclusões apresentadas no caso vertente, as questões sobre as quais temos de nos pronunciar prendem-se com os invocados erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto na al. c) do nº 2 do art. 410º do CPP, e erro de julgamento, tal como previsto no art. 412º, do mesmo diploma legal, com eventuais consequências no enquadramento jurídico dos factos e alegada condenação do arguido da prática dos crimes pelos quais vinha publicamente acusado, homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual, com as consequentes repercussões ao nível da medida da pena, parcial e única, que deverá ser elevada, isto quanto ao recurso interposto pelo Ministério Público. No que concerne ao interposto pelo arguido, a sua insurgência limita-se às penas aplicadas em primeira instância, tanto parciais como única, que considera excessivas e pretende ver reduzidas.
Vejamos.
Da matéria de facto
- Do erro notório na apreciação da prova
Alega a este título o recorrente Ministério Público
«2- Constitui objeto do presente recurso o vicio de erro notório na apreciação de prova em que incorre o acórdão recorrido, previsto no artigo 410º n.º2 alínea c) do Código de Processo Penal e a incorreta decisão proferida sobre a matéria de facto [impugnação ampla da matéria de facto e do erro de julgamento] e decorrente absolvição do arguido AA da prática dos sobreditos crimes de homicidio qualificado , na forma tentada. Na verdade, 3- Ao dar como provado o circunstancialismo, o modo de agir do arguido, aquela noção e consciência das caraterísticas do veículo que conduziu e da sua capacidade agressiva constantes da factualidade dada como provada nos pontos 1 a 9, não podia o Tribunal a quo, a nosso ver, dar como não provado, que o arguido previu a possibilidade de matar aquelas cinco pessoas e se conformou com aquele resultado ao persistir na sua atuação pelo que ao tê-lo feito efetuou um raciocínio ilógico, não aceitável, contraditório e claramente violador das regras da experiência comum, incorrendo assim, de forma clara, no vicio de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal, claramente decorrente do texto da decisão recorrida, vicio esse que agora expressamente se invoca.»
Recordemos, primeiramente e de modo sucinto, em que consistem estes vícios enunciados no art.410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Esta norma processual, estatui que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou
c) O erro notório na apreciação da prova.
Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P., que são de conhecimento oficioso, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
As normas da experiência comum são, na lição de Cavaleiro de Ferreira «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.». (Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág.300.)
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) deste preceito, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
Como bem anota Pereira Madeira “Se se constatar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do Processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de «não provado», então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão” (In “Código de Processo Penal Comentado”, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Almedina, 4.ª edição revista, págs. 1327 e 13285).
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência ( art.127.º do C.P.P.).
Para afirmação deste vício importa, pois, perspetivar o objeto do processo, fixado pela acusação e/ou pela pronúncia, complementada pela pertinente defesa.
Em conclusão, só existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes que integram o objeto do processo e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. (Cf., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496, pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483, pág. 49) e Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., páginas 737 a 739)
O vício da contradição insanável a que alude a alínea b) em apreciação, existirá, por sua vez, quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa.
Ocorrerá este vício, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Como assertivamente escrevem Simas Santos e Leal Henriques, «Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.» (Cf. “Código de Processo Penal anotado” , 2.º Vol., 2ª ed., pág. 739.).
Este vício não se verifica quando o recorrente fundamenta o seu recurso na valoração da prova de modo diverso daquela que o tribunal entendeu, nem quando o resultado a que o juiz chegou na decisão advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados.
Por fim, o erro notório na apreciação da prova, imputado ao acórdão recorrido, consiste num vício de apuramento da matéria de facto que, como todos os outros vícios do n.º2 do art.410.º do C.P.P., prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos.
Verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
No dizer de Leal-Henriques e Simas Santos existe “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. (Cf. obra citada, 2.º Vol., pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231)
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Este vício tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média.
Nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento.
Posto isto, vejamos se o recorrente tem razão.
Vejamos, então, se a decisão recorrida enferma do invocado vício de erro notório na apreciação da prova, que no entender do recorrente se verifica através da conjugação da factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 2 a 6, 8 e 12, com a não provada.
Sendo a seguinte a factualidade em questão: “(…) «2) Após, o arguido AA deslocou-se para o exterior de tal estabelecimento, em seguimento do seu encerramento, dirigiu-se ao veículo onde se fazia transportar, de marca ...”, matrícula ..-CM-.., de cor ..., que se encontrava estacionado nas imediações de tal estabelecimento de diversão nocturna, 3) Uma vez aí chegado, entrou no mesmo, assumiu a sua direcção, arrancou no sentido ascendente da rua, inverteu a marcha, iniciando de seguida a marcha descendente, na Rua ..., em ..., 4) e no trajecto, sem abrandar, subiu o passeio e direccionou o veículo às pessoas que aí se encontravam no passeio de tal rua, cerca de 20 a 25 indivíduos, entre os quais aqueles que momentos antes se envolveram em contenda com o arguido no interior do estabelecimento nocturno; 5) Assim, da referida ação, veio a embater com o veículo por si conduzido e colher/atropelar os ofendidos: BB, CC, FF, DD e EE, que se encontravam apeados no passeio da Rua ..., em .... 6) Os quais foram projectados e embateram no solo e no poste de iluminação que ali se encontrava. 7) Tais ofendidos, face às lesões sofridas, deram entrada no Centro Hospitalar ..., cfr. fls 7, 7v, 8, 8v e 9, episódios de urgência nº ...06 // ...07 // ...08 // ...09 // ...10, respectivamente, onde foram medicamente assistidos. 8) De seguida, o arguido abandonou o local, dirigindo a sua viatura na direcção da Segurança Social, de .... (…)” 12) O arguido AA conhecia perfeitamente o tipo e as características do veículo automóvel que utilizou, bem sabendo que tal instrumento, dadas as suas dimensões, potência e força de impacto, era possuidor de grande capacidade de agressão dos tecidos humanos, sendo apto a causar lesões graves e profundas se utilizado contra a integridade física de um ser humano, o qual perante o mesmo não possui qualquer possibilidade de defesa, e apesar disso não se absteve de praticar os factos acima descritos.
B) Factos não provados: Da acusação não se provou que: - ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, o arguido AA sabia que podia provocar-lhes a morte, propósito que visava alcançar e o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade. - o arguido AA actuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia tirar a vida a BB, CC, FF, DD e EE, com o que se conformou, e o que apenas não sucedeu porque aqueles foram projetados com o embate. - o arguido AA agiu com total insensibilidade pelo valor da vida humana, que sabia dever respeitar.»
Afigura-se-nos relevante para apreciar a questão colocada pelo recorrente trazer à liça os seguintes excertos da fundamentação: “(…) «O arguido prestou declarações em primeiro interrogatório judicial, sendo que em julgamento não quis falar, limitando-se a dizer que confirmava o que anteriormente tinha dito, a nada mais querendo responder ou esclarecer. Ponderam-se, assim, as suas declarações em primeiro interrogatório judicial e confrontam-se as mesmas com a restante prova produzida. Ora, primeiro aspeto a reter é que o arguido aceita ter sido o autor dos factos objetivos de que vem acusado (os atropelamentos no passeio), negando apenas as intenções que lhe são imputadas, justificando-se em tal atuação; com efeito, o arguido confrontado com os factos, nomeadamente de “avançar com o carro para cima destas pessoas” respondeu que “é verdade, mas não foi com a intenção de machucar ninguém”. Não foi com intenção de atropelar ninguém, era para fugir dali; queria esquivar-se das outras pessoas que estavam na estrada, estavam ali muitas pessoas e queriam faze-lhe mal, estava com a mulher dele, que estava grávida e o que queria era fugir dali porque estava com medo e pânico; não sabe quem são as pessoas que atropelou e está muito arrependido de estar ali naquela hora, nem sabe quem são as pessoas; apenas tentou fugir. Ora, como é bom de ver da audição e análise de toda a prova testemunhal produzida esta versão do arguido não tem qualquer suporte probatório, e nem tem qualquer lógica à luz das regras da experiência. A contenda que se tinha passado momentos antes no interior da discoteca foi de pouca importância, consistindo essencial na troca de palavras, alguns insultos e empurrões e algumas agressões físicas (facto provado em 1), sendo como todas as testemunhas referiram, nomeadamente os funcionários da discoteca que curaram de pacificar a situação, ninguém saiu ferido da discoteca ou com lesões visíveis. Ninguém, nem o próprio arguido refere que em tal contenda tenham sido proferidas ameaças graves (nomeadamente de agressões físicas ou morte, contra a sua (do arguido) pessoa. Ou seja, nada ocorreu com os contornos de violência que o arguido quer fazer crer que justificasse por parte do arguido qualquer medo ou receio quando conduzia a carrinha marca ... preta pelo local dos factos e que justificasse que as outras pessoas, nomeadamente de origem africana ou subsaariana a lhe quisessem fazer mal ou o quisessem agredir como aquele quis fazer crer para justificar a sua condução de sair da faixa de rodagem e passar a circular pelo passeio com cerca de 20 a 25 pessoas, algumas de origem africana ou subsaariana. Com efeito, como dito por todas as testemunhas presentes no local, e de forma exaustiva, coerente entre si e como tal objetiva e isenta, sem qualquer intenção de prejudicar o arguido - , antes pelo contrário, algumas delas disseram não conhecer o arguido e nada ter contra ele, outras que o conheciam e não tinham ideia de ser pessoa conflituosa como é o caso dos seguranças e ou funcionários da discoteca, que descreveram o arguido de forma positiva, - no momento em que o arguido atuou da forma provada a situação de conflito estava completamente apaziguada, calma, não havendo qualquer animosidade contra quem quer que seja, e muito menos contra o arguido, para justificar qualquer medo da sua (arguido) parte para justificar a sua atuação; todas as testemunhas referem que naquele momento estavam várias pessoas em cima do passeio a conversar umas com as outras, estava tudo calmo depois da anterior agressão também injustificada de um tal MM (que não é arguido, nem testemunha nestes autos) a um dos elementos do grupo subsaariano ou africano, que ninguém na altura associou como estando ligado ao arguido; foi com muita surpresa e estupefação que todas as testemunhas se apercebem da carrinha marca ... a subir ao passeio e a atropelar as pessoas e a provocar a fuga e o pânico dos restantes para não serem atropeladas; tanto assim que algumas que das testemunhas (sendo alguns também ofendidos atropelados) estavam de costas para o local de onde o arguido vinha a conduzir a viatura e por onde entrou no passeio e os que foram atropelados não tiveram hipótese de fugir e outros só fugiram porque foram alertados pelos gritos dos que estavam a ver a atuação do arguido; ou seja, não existia nenhum ambiente de tensão ou alerta por parte dos presentes para qualquer situação de violência, e muito menos para aquela que o arguido despoletou. O que isto também denota é que o arguido não sinalizou a sua circulação na estrada, nem a sua abordagem e entrada no passeio; não gritou, não apitou, não fez sinais de luzes, ou fez qualquer manobra que evidenciasse que queria prosseguir na faixa de rodagem e que não o fazia por medo das pessoas que estavam a ocupar a faixa de rodagem. A maioria das testemunhas, vítimas ou não do atropelamento, nem sequer reconheceram o arguido como condutor do carro, ou qualquer outra pessoa que seguisse no lugar do pendura ou no banco de trás dentro do carro, como estando ligada à “confusão” anteriormente ocorrida no interior da discoteca, o que inculca de forma clara e inequívoca que naquele momento ninguém estava na faixa de rodagem a cortar a passagem de circulação ao veículo tripulado pelo arguido. Não tem, assim, qualquer lógica a justificação declarada pelo arguido para ter subido ao passeio e passar a circular em cima do mesmo, atropelando aqueles que ali encontravam. Se dúvidas houvesse – que não existem – o depoimento isento, objetivo e coerente com toda a restante prova produzida da testemunha BB consolida mais esta convicção. Esta testemunha diz de forma segura que viu o carro subindo no passeio pouco depois da passadeira, ele passou…pensou que ele ia entrar para um caminho de acesso a uma garagem perto do Banco 1.... Só que ele contornou a árvore; o carro não estava em aceleração, dava a sensação que ia parar; e quando ele acelerou viu que a intenção não era de parar. Ele acelera logo depois, o carro “começou a vir mais rápido para cima da gente”; a depoente olhou e viu uma pessoa careca, barbuda, um pouco menos forte, que reconheceu ser o ora arguido. Elucidativo. O que convence que a atuação do arguido – contrariamente ao que disse e quis fazer crer - foi uma atuação pensada, ponderada, com algum ardil, engano, efeito surpresa, e que de facto a todos surpreendeu, porque ninguém estava à espera de uma atuação daquelas; aliás, ninguém encontrou e relatou ao tribunal qualquer justificação para uma atuação daquelas naquele concreto circunstancialismo. E tanto assim (surpresa) que foram atropeladas cinco pessoas, uma delas com especial gravidade (a ofendida FF) que não tiveram tempo de fugir. A versão do arguido não tem, assim, suporte na prova produzida, não havendo uma única testemunha que a corrobore minimamente ou que contribua sequer para a admitir como possível, nomeadamente suscitando qualquer dúvida à convicção do tribunal, assinalando-se que as testemunhas da Defesa que poderiam eventualmente corroborar a sua versão ou lançar qualquer dúvida à convicção segura do tribunal, no exercício de um direito legal recusaram-se a prestar depoimento sobre os factos em julgamento, ou então nada sabiam e como tal nada relataram a tal respeito que corrobore a versão do arguido e permita justificar a sua atuação nos termos que aquele relatou em primeiro interrogatório. Assim sendo, com base em toda a prova testemunhal, pericial e documental, convenceu-se o tribunal em julgar provados todos os factos objectivos como julgou, os quais salienta-se não foram negados pelo arguido, nomeadamente o arguido além de não negar a autoria dos factos, não questionou que com a sua conduta atingiu cinco pessoas e os ferimentos que lhes causou; sempre se dirá que as vítimas foram socorridas no local existindo registos clínicos que descrevem os ferimentos que apresentavam quando do episódio de urgência hospitalar, sendo que os relatórios periciais não impugnados também convencem plenamente quanto aos ferimentos, lesões e sequelas de cada uma das cinco vítimas. Em relação aos factos motivadores da atuação do arguido provados em 1) não há dúvidas que no interior da discoteca ocorreu uma contenda do grupo do arguido composto por indivíduos de etnia cigana com outros indivíduos de origem africana ou subsaariana nos termos provados em 2); de facto, prova-se essa confusão com troca de palavras e algumas agressões físicas, como sejam empurrões ou algum murro, sendo que é nesse sentido que vão os depoimentos das testemunhas que revelaram conhecimento direto da situação, sendo que os insultos racistas por parte de indivíduos do grupo de etnia cigana contra os indivíduos de origem subsaariana também ocorreram pois que existe uma testemunha - QQ, 29 anos, gerente de uma loja de telecomunicações - ainda que com conhecimento indireto dos factos que relatou como foi abordado por um indivíduo de origem africana que confundindo-o com um dos intervenientes (porque fazendo parte do grupo de etnia cigana) na contenda no interior da discoteca, acusou-o de no interior da discoteca ter dito “pretos de merda, ide para a vossa terra” e “vou-te matar”. O que demonstra que de facto ocorreram agressões físicas e insultos racistas como julgado provado em 1), sendo, como é demais evidente e lógico, esta altercação que motivou toda a posterior atuação do arguido. Quanto à dinâmica da viatura provada em 2) a 4), a prova testemunhal analisada no seu conjunto convence que foram estes os trajetos efetuados pelo arguido até entrar no passeio e avançar com a viatura em direção das pessoas que ali se encontravam; de facto, há depoimentos que esclarecem que viram a viatura a fazer o primeiro trajeto em sentido ascendente e outras descrevem o segundo trajeto, ou seja, em sentido descendente, sendo que pelas regras da lógica o arguido teve de a determinada altura fazer inversão de marcha. Com efeito, a testemunha PP, 26 anos de idade, caixeiro 1.º ano da loja de fatos “...” relata o seguinte: a dada altura dos acontecimentos lembra-se de veículos a parar, deixaram sair pessoas e começou a agressão, os seguranças saíram para acalmar a agressão. Um desses veículos era um marca ... preto, o que mais tarde veio a atropelar as pessoas e esta carrinha vinha no sentido do terminal para o mercado – ou seja no sentido ascendente. O marca ... subiu pela passadeira e entrou no passeio. Não viu o marca ... a subir na direção do mercado. Só vê o marca ... quando entra no passeio; mas considerando como ele parou no sentido ascendente, teve de subir em direção ao mercado e voltar a descer para subir ao passeio. Ou seja, teve de fazer inversão de marcha para passar a fazer o trajeto no sentido descendente e subir ao passeio. E foram várias as testemunhas que viram o marca ... a fazer esse trajeto descendente, pelo que a conclusão lógica é os trajetos terem sido os que se julgaram provados em 3).» (…)” Importa agora fundamentar a convicção do tribunal quanto os factos subjetivos que julgou provados e não provados. Conjugando todos os factos objetivos provados e a prova produzida inexistem factos seguros para se puder julgar provados os elementos subjetivos de dolo de matar, em qualquer uma das suas três modalidades: direto, necessário ou eventual. O único facto objetivo que poderia levar a julgar provados os factos de natureza subjetiva de dolo de matar seria o uso do veículo automóvel, enquanto meio ou instrumento de grande potencialidade letal; quanto ao mais, inexistem factos anteriores, contemporâneos ou posteriores à atuação do arguido que nos permitam com a segurança (a que exige uma condenação crime) provar que o arguido quis tirar a vida a qualquer uma das cinco vítimas que atingiu com o veículo automóvel que conduzia, ou que colocando a possibilidade de com tal atuação lhes puder tirar a vida, com a mesma se tenha conformado. Desde logo, deparamo-nos com um obstáculo lógico-fatual: se é certo que a viatura é um instrumento de grande potencialidade letal e infelizmente causador de muitas mortes (pense-se no elevado número das vítimas de sinistralidade rodoviária na sua maioria por negligência) não é menos certo que não se compreende como estando cerca de 20/ a 25 indivíduos em cima do passeio só se equacionaram cinco crimes de homicídio qualificado tentado e não 20 /25 tentativas de homicídio qualificado. De facto, se a intenção do arguido era tirar a vida ou matar as pessoas que se encontravam em cima do passeio (dolo direto), ou se admitiu tal possibilidade e com ela de conformou (dolo eventual) o lógico seria acusar (e agora condenar) o arguido pela prática de 20 / 25 crimes de homicídio qualificado tentado, tantos crimes quantas as vítimas considerando que estamos perante bens jurídicos eminentemente pessoais e que a atuação do arguido é dolosa. E não se poderia deixar a verificação, ou não, da tentativa de homicídio em relação a cada uma das 20 ou 25 pessoas que estavam no passeio na “sorte” (estranha à vontade do arguido) de este acertar, ou não, com a viatura que conduzia em todas aquelas pessoas, porque então igual raciocínio se impunha em relação a alguém que empunhando uma pistola ou revólver e apontando-a em direção ao tronco / coração de 20 ou 25 pessoas, acerta em 5 e por azar, má pontaria, ou porque alguma daquelas pessoas se mexeu, não acertou nas restantes. Ou seja, a lógica da intencionalidade de matar ou não de matar (enquanto um fenómeno psicológico, representado por uma certa posição do agente perante ilícito capaz de ligar um ao outro; fenómenos psicológicos, eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial, ou emocional do indivíduo, enquanto facto que pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência) terá necessariamente de ser encontrada na atuação do arguido na sua globalidade ou no conjunto de todos os factos, convocando todos os factos anteriores, contemporâneos e posteriores à sua concreta atuação criminosa e não apenas o facto de ter, ou não, conseguido acertar em algumas das pessoas que se encontravam em cima do passeio. Sempre se dirá que mesmo por apelo a este critério a situação não é inequívoca porque em relação a duas das pessoas atropeladas – as duas ofendidas do sexo feminino – o arguido não as conhecendo, não tendo qualquer conflito anterior com elas, não tinha qualquer razão para as “querer matar” ou “admitindo que o poderia fazer com o seu atropelamento com tal se tenha conformado”. De facto, o automóvel usado tem a tal potencialidade letal de matar (mas também de ferir e muitas vezes gravemente), mas não pode ser este único facto para se afirmar automaticamente esse dolo (em qualquer das três modalidades) de matar. Se assim fosse, excluía-se a hipótese, também legal, das ofensas à integridade físicas qualificadas (simples ou graves) pelo uso do veículo automóvel enquanto meio particularmente perigoso que está expressamente prevista no art.º 145.º. nos 1 al. a) e c) e 2, do C. Penal. O art.º 105.º do Cód. da Estrada diz que automóvel é o veículo com motor de propulsão, dotado de pelo menos quatro rodas, com tara superior a 550 kg, cuja velocidade máxima é, por construção, superior a 25 km/h, e que se destina, pela sua função, a transitar na via pública, sem sujeição a carris. E por aqui já se alcança facilmente a sua potencialidade letal. O que importa é então saber se o arguido atuou com a intenção de tirar a vida aos cinco ofendidos que atropelou, ou por outras palavras a “intenção de matar” (dolo direto) ou então se o arguido ao actuar da forma descrita, admitiu como possível que da sua conduta viesse a resultar a morte de BB, CC, FF, DD e EE, bem sabendo que aquela era idónea a provocar tal desfecho, e conformou-se com essa possibilidade (dolo eventual). (…)” Voltando ao caso. Situando-se o dolo no campo da subjetividade é sempre de difícil discernimento a sua avaliação e como tal impõe-se o recurso a dados objetivos que sejam reveladores da verdadeira vontade colocada na atuação, o que faremos de seguida no caso concreto: - a motivação de atuação do arguido é a que se julgou provada na segunda parte do facto provado em 1): no local e no contexto julgados provados, o arguido envolveu- se, em conjunto com um grupo de amigos, no qual se fazia integrar, numa contenda, de contornos não totalmente definidos, com outros indivíduos, de origem africana, da qual resultaram insultos de teor racista e agressões físicas para estes últimos. Não se prova que em qualquer um destes momentos o arguido tenha proferido qualquer ameaça, nomeadamente de morte em relação a qualquer dos indivíduos de origem africana. Não se prova que durante a referida contenda tenha agredido qualquer um dos indivíduos de origem africana, ou por estes tenha sido agredido. Não os conhecia anteriormente a esta situação; os factos que ocorreram naquele circunstancialismo de tempo e lugar (no interior da discoteca) não são de molde a com segurança se possa afirmar que tenha formulado naquele momento uma resolução criminosa de os matar ou que tenha admitido que com a sua conduta os poderia matar e com esta hipótese se tenha conformado. Passe o plebeísmo, não estamos na mente do arguido para afirmar que tenha equacionado a possibilidade de os matar e com a mesma se tenha conformado (pode ser que sim, pode ser que não…), e na falta de tal segurança e certeza temos que seguir a jurisprudência acima citada – (…) neste termos, afigura-se-nos adequado concluir que os elementos probatórios indicados na decisão recorrida não justificam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, nesta concreta matéria de facto, impondo-se decisão diversa daquela em nome do principio do “in dúbio pro reo”, o qual constitui um limite normativo do principio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o tribunal decida pro reo, a favor do arguido, pois. (…). - analisando a identidade das vítimas, verifica-se que duas delas são do sexo feminino – BB e FF - não tiveram qualquer intervenção na contenda anteriormente ocorrida no interior da discoteca, não fazendo parte de qualquer das fações em confronto, nomeadamente não são de origem africana subsaariana ou com este grupo tinham qualquer relação ou convívio na altura dos confrontos; as outras três vítimas do atropelamento – CC, DD e EE - têm em comum ser do sexo masculino e de origem africana ou subsaariana e faziam parte do mesmo grupo, sendo amigos ou familiares entre si - e este elemento foi relevante para aquela concreta atuação criminosa do arguido: foi com indivíduos de origem africana ou subsaariana que ocorreu anteriormente a confusão, que motivou a sua atuação criminosa e, como tal, o natural e lógico é que a condução que fez em cima do passeio é com o objetivo primordial de atingir tais pessoas com o veículo. As restantes pessoas podem-se chamar “danos colaterais” sendo nesta parte a atuação do arguido de indiferença se atinge ou não tais pessoas, que as fere ou não, sendo que em relação às que feriu não há dúvidas que as feriu porque quis e daquele concreto modo, porque sublinhe-se a nenhuma delas pediu para se desviar, nem sinalizou a sua circulação, nem tão pouco desviou; no fundo é uma “lição” ou vingança do arguido contra os indivíduos de origem subsaariana com quem teve a confusão, mas também contra todos aqueles que estão em cima do passeio, estivessem ou não antes no interior da discoteca. A atuação do arguido foi algo “aleatória” quanto aos alvos a atingir durante a sua trajetória, tanto assim que não foram os três indivíduos do sexo masculino e de origem africana os primeiros a serem atingidos. Da fundamentação de facto resulta que foram precisamente a FF e a BB as primeiras a ser atropeladas. Não se denota de forma inequívoca uma especial (no sentido de mortal) “energia criminosa” do arguido em relação aos três indivíduos de origem subsaariana que atropelou em comparação com a atuação em relação às duas jovens que de igual modo foram atingidas/atropeladas; não atuou de forma diferente em relação a qualquer umas das pessoas atropeladas (nomeadamente acelerando mais, passando por cima delas mais que uma vez); não é, como tal, esta factualidade suficientemente segura para concluir que mesmo em relação aos três indivíduos do sexo masculino e de origem africana subsaariana tenha havido intenção de matar ou que o arguido se tenha conformado com a possibilidade de os matar. - as consequências da atuação do arguido são mais graves em relação à FF, precisamente pessoa que lhe era indiferente; não tinha qualquer motivação de a matar. Em relação aos indivíduos do sexo masculino de origem africana, as consequências foram lesões físicas simples, que só por si, na falta de outros critérios/factos objetivos não são compatíveis com a intenção de matar. - o arguido antes, durante ou posteriormente à sua condução em cima do passeio nunca verbalizou que queria matar quem quer que seja (nomeadamente gritando que as ia matar). - o arguido não foi visto antes, durante e posteriormente à sua conduta criminosa de atropelar pessoas na posse de qualquer arma ou objeto corto/contundente/perfurante, ou de disparo (v.g. pistola ou revólver) compatível com a intenção de matar, o que a acontecer poderia auxiliar a compreender melhor a sua personalidade como alguém “com insensibilidade pelo valor da vida humana”. - o arguido atuou num local público, à vista de toda a gente, sabendo que poderia ser identificado, que mais não seja pela matrícula da viatura que tripulava (nunca esteve tapada); sabendo dos danos que a sua viatura apresentava (vidros partidos, etc…) em consequência da sua atuação criminosa, ainda assim ficou na sua “posse”, permitindo facilmente a sua identificação, localização e exame pelas autoridades policiais, como resulta do relatório de exame pericial de fls. 235 a 255, mas também de todos os restantes exames ao local onde ficaram vestígios da viatura: a viatura foi encontrada estacionada num espaço público, com vestígios e indícios claros de ter sido usada nos termos julgados provados; ou seja, o arguido não curou de se “desfazer” da viatura como seria expectável e normal, à luz das regras da experiência comum, em alguém que atuou com a intenção de matar ou admitiu a hipótese de em resultado na sua atuação ter morto alguém; de facto, se o resultado morte de alguma das vítimas estivesse na mente do arguido, o mais normal seria tudo fazer para se livrar do objeto / instrumento do crime como aliás ocorre em casos semelhantes (viaturas atiradas ao rio, incendiadas, escondidas por algum tempo, tapar e esconder matrículas, etc…). - o arguido em primeiro interrogatório judicial admitiu ser o autor dos factos objetivos, negando a intenção de matar, nomeadamente nunca admitiu ter querido matar quem quer que seja, negando que com tal hipótese se tenha conformado; e independentemente da credibilidade de tal negação e dos factores ponderados na decisão do seu estatuto coativo processual, o que é certo é que aquele nunca ficou privado da liberdade, o que cremos não ser habitual em crimes de tão elevado grau de gravidade como são os de tentativa de homicídio, aos quais, em regra, está associada uma energia criminosa que indicia um elevado perigo de continuação da atividade criminosa (quem quer matar pode tentar fazê-lo novamente mais tarde) e de alarme social – tentar matar alguém continua a ser notícia e alarmar a comunidade em geral, muito mais uma cidade pequena como é .... Isto posto, considerando o acabado de expor importa analisar a hipótese de dolo de ofensa à integridade física e em que modalidade. O Tribunal convenceu-se que o arguido conduzindo o automóvel marca ... de matrícula ..-CM-.. sem abrandar, subindo o passeio, circulando no passeio e dirigindo-o contra os cinco ofendidos que se encontravam no passeio, conhecendo as características do veículo automóvel que conduzia e reconhecendo a respectiva superioridade de tamanho, peso e força relativamente aos ofendidos, quis provocar lesões na integridade física dos ofendidos que ali se encontravam, nos termos que provocou; de facto, apesar da ausência de motivação em relação às duas ofendidas do sexo feminino que o arguido também atingiu, o arguido não as mandou sair a frente e ou esboçou qualquer manobra de se desviar destas e quis atingi-las com o veículo como atingiu, causando-lhes os ferimentos que causou; e em relação a ofendida FF os ferimentos foram os mais graves como resulta dos factos provados, do respetivo depoimento e do respetivo relatório pericial. Como tal, a conclusão que se impõe em relação a estas vítimas é que apesar de ausência de motivação para as querer magoar, o arguido de facto quis atingi-las como atingiu, porque como se disse não alterou a sua trajetória, ou as avisou para se afastarem de modo a não as atropelar e assim seguir em direção às vítimas de origem africana subsaariana que eram a razão da sua atuação criminosa e o seu alvo preferencial (por serem as pessoas com as quais tinha ocorrido a confusão anteriormente no interior da discoteca nos termos julgados provados em 1)). Parece-nos, como tal, bem mais adequada a qualificação da conduta do arguido como crime de ofensa à integridade física qualificada (simples ou grave) consumada com dolo direto em relação a cada uma das cinco vítimas, e não como homicídio qualificado tentado em qualquer das apontadas modalidades de dolo (direto ou eventual). (…)” E como já dito também não há dúvidas que o arguido sabia que o veículo por si conduzido contra os cinco ofendidos, pelas suas caraterísticas (dimensões, peso e força motriz), é meio particularmente perigoso porque idóneo a pelo menos lesar a integridade física.»
Analisando a matéria de facto ora descrita, e respetiva fundamentação do acórdão recorrido, tal como invocada pelo recorrente, verificamos que a mesma respeita ao chamado elemento do tipo subjetivo do crime de homicídio, sob a forma tentada, na modalidade de dolo eventual, como imputado ao arguido na acusação pública, que aquele entende, face à panóplia factual aludida, não poderia deixar de ter sido dado como provado, com as respetivas consequências a nível do enquadramento legal e respetivas penas.
Dela resulta que o arguido, ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, circunstância que bem conhecia, bem sabendo que esse veículo automóvel de marca ..., modelo ... carrinha, atendendo às suas dimensões, potência e capacidade de impacto, utilizado como instrumento de agressão contra pessoas, que se encontravam num passeio destinado à circulação de peões, desprevenidas, era apto a causar lesões graves e profundas se utilizado contra a integridade física de um ser humano, o qual perante o mesmo não possui qualquer possibilidade de defesa, não poderia deixar de saber, como qualquer pessoa comum sabe, que esse veículo, nessas circunstâncias, é dotado de uma grande capacidade de impacto e letalidade.
Mas, apesar disso o arguido não se absteve de praticar os factos acima descritos, fazendo-o livre e conscientemente, ou seja, deliberadamente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia atingir com violência as pessoas que se encontravam no passeio por onde passou a circular, que poderia causar-lhes lesões, e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
Não obstante este conjunto de circunstâncias que resultaram provadas, o tribunal recorrido teve o entendimento que das mesmas não é possível retirar que o arguido previu, como consequência possível da sua conduta, da forma como conduziu o seu veículo, poderia tirar a vida aos ofendidos, conformando-se com esse resultado, que só não logrou atingir por motivos que lhe são alheios.
Impõe-se, naturalmente, enquadrar estes factos provados e a respetiva fundamentação.
Procedendo ao enquadramento daqueles factos, através da leitura dos pontos n.ºs 2 a 4, verificamos que antes do arguido haver embatido com o veículo por si conduzido nos corpos dos ofendidos, após a contenda verificada no interior da discoteca, que envolveu agressões físicos entre o grupo em que se encontrava inserido e um outro integrado por indivíduos de origem africana, deslocou-se para o exterior de tal estabelecimento, dirigiu-se ao veículo onde se fazia transportar, de marca ...”, matrícula ..-CM-.., de cor ..., que se encontrava estacionado nas imediações de tal estabelecimento de diversão noturna, entrou no mesmo, assumiu a sua direção, arrancando no sentido ascendente da rua. Após inverter a marcha, iniciou de seguida a marcha descendente, na Rua ..., em ..., e no trajeto, sem abrandar, subiu o passeio e direcionou o veículo às pessoas que aí se encontravam no passeio de tal rua, cerca de 20 a 25 indivíduos, entre os quais aqueles que momentos antes se envolveram na dita contenda no interior do estabelecimento noturno.
O atropelamento com o veículo marca ... só ocorre, pois, após o arguido, já depois da refrega ou contenda em que esteve envolvido estar resolvida, ter decidido direcionar essa viatura de encontro ao grupo de pessoas que integrava três dos indivíduos de origem africana que tinham participado, ou integravam o grupo de pessoas dessa origem, nesse distúrbio. Tendo para o efeito, propositadamente, invertido a marcha que inicialmente havia tomado, e, tomando o sentido descendente da rua, passado a circular com esse veículo pelo passeio onde esse grupo de pessoas se encontrava, fazendo-o sem abrandar a velocidade a que o dito veículo circulava.
Deste modo, afigura-se-nos estarmos perante uma iminente colisão racional entre a factualidade dada como provada nos pontos aludidos com parte da factualidade constante dos pontos n.ºs 11 e 12, concretamente: “atuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia atingir com violência a BB, CC, FF, DD e EE, lesando órgãos destes; e “O arguido AA conhecia perfeitamente o tipo e as características do veículo automóvel que utilizou, bem sabendo que tal instrumento, dadas as suas dimensões, potência e força de impacto, era possuidor de grande capacidade de agressão dos tecidos humanos, sendo apto a causar lesões graves e profundas se utilizado contra a integridade física de um ser humano, o qual perante o mesmo não possui qualquer possibilidade de defesa, e apesar disso não se absteve de praticar os factos acima descritos.” e entre estes factos provados com os pontos da factualidade dada como não provada, ou seja, “- o arguido AA actuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia tirar a vida a BB, CC, FF, DD e EE, com o que se conformou, e o que apenas não sucedeu porque aqueles foram projetados com o embate. - o arguido AA agiu com total insensibilidade pelo valor da vida humana, que sabia dever respeitar.” (Sublinhados nossos)
Para além disso, diremos até que essa factualidade dada como provada pelo tribunal a quo se mostra, ainda, em contradição e, insanável, com a fundamentação da matéria de facto, pois como já se consignou, a versão dos factos apresentada quando prestou declarações; “negando apenas as intenções que lhe são imputadas, justificando-se em tal atuação; com efeito, o arguido confrontado com os factos, nomeadamente de “avançar com o carro para cima destas pessoas” respondeu que “é verdade, mas não foi com a intenção de machucar ninguém”. Não foi com intenção de atropelar ninguém, era para fugir dali; queria esquivar-se das outras pessoas que estavam na estrada, estavam ali muitas pessoas e queriam faze-lhe mal, estava com a mulher dele, que estava grávida e o que queria era fugir dali porque estava com medo e pânico; não sabe quem são as pessoas que atropelou e está muito arrependido de estar ali naquela hora, nem sabe quem são as pessoas; apenas tentou fugir. Ora, como é bom de ver da audição e análise de toda a prova testemunhal produzida esta versão do arguido não tem qualquer suporte probatório, e nem tem qualquer lógica à luz das regras da experiência.”; não colheu atendimento.
Se essa versão não foi atendida, e foi a única em que se faz referência à intenção do arguido ao conduzir o veículo de encontro às pessoas que se encontravam no passeio, afigura-se-nos no mínimo contraditório que as declarações de alguém que não mereceu credibilidade possam ter conduzido o tribunal recorrido à dúvida que terá pairado quanto à verdadeira intenção daquele arguido, e às consequências que poderiam resultar para as pessoas que viesse a abalroar com o veículo que direcionou ao seu encontro, sem abrandar a sua marcha ou de alguma forma a sinalizar. Sendo certo que era conhecedor da potencialidade agressora e letalidade dessa viatura quando dirigida contra pessoas indefesas. Ou seja, o tribunal a quo refere que a versão do arguido não mereceu qualquer credibilidade na sua tentativa de justificar o seu apurado comportamento, ou seja, que a sua atuação teria sido movida por medo ou receio que as outras pessoas, nomeadamente de origem africana, lhe quisessem fazer mal, e só por isso, saiu da faixa de rodagem e passou a circular com o veículo pelo passeio.
Ora, concretamente no que concerne a esta parte da fundamentação da matéria de facto, respeitante apenas à segunda fase dos factos verificados na discoteca, e fora desta, não tem sentido lógico a conclusão de que o arguido não terá cogitado que ao direcionar a viatura de encontro aos ofendidos, e demais pessoas que se encontravam no mesmo passeio, com intenção de os atingir corporalmente, corria sério risco de lhes causar danos físicos suscetíveis de lhes causar a morte, e de que não se terá conformado com a possibilidade de tal resultado.
E para se atingir esta conclusão, podemos até socorrer-nos de parte da fundamentação vertida no acórdão recorrido, onde se diz: «A respeito do elemento subjectivo, há muito que é pacífico na doutrina jurisprudência que o dolo ou a negligência têm como substrato um fenómeno psicológico, representado por uma certa posição do agente perante ilícito capaz de ligar um ao outro; ora esses fenómenos psicológicos, eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial, ou emocional do indivíduo, cabem ainda dentro da vasta categoria dos “factos” processualmente relevantes – neste sentido, para o processo civil, mas com evidente pertinência também para o processo penal, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual do Processo Civil”, 1984, pág. 392, citado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/11/1998, em CJ, Tomo V, pág. 140, aresto este que mais adiante assinala e bem o seguinte “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência” – cfr Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 23/02/1983, sumariado no BMJ, n.º 342, pág. 620.»
Contrariamente às ilações retiradas no tribunal recorrido com suporte nesta linha doutrinal e jurisprudencial, como bem se salienta no recurso interposto: “Ao extrair daquela factualidade dada como provada que o arguido apenas admitiu como resultado possível da conduta o atingimento do corpo e da saúde dos ofendidos/assistente e não já a vida destes contrariou totalmente o Tribunal recorrido as regras da experiência comum e a lógica normal da vida. De facto, em face daquele circunstancialismo que antecedeu o abalroamento que empreendeu, daquela sua provada atuação, da provada forma como utilizou o veículo, do provado local para onde o dirigiu não poderia senão o arguido, tal como faria qualquer outro homem médio colocado na sua posição, cogitar como possível que viesse a causar a morte àquelas cinco pessoas que estavam na sua trajetória, resultado que, indiferente à vida destas, desvalorizou/ignorou não pondo cobro àquela sua conduta. Assim, dando como provado aquele modo de agir, aquela noção e consciência das caraterísticas do veículo que conduziu e da sua capacidade agressiva não podia o Tribunal a quo, a nosso ver, negar e, por essa via, dar como não provado, que o arguido previu a possibilidade de matar aquelas cinco pessoas e se conformou com aquele resultado ao persistir na sua atuação…..”
Analisando o texto da decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação da matéria de facto transcrita, e mais concretamente ainda o exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, afigura-se-nos evidente, salvo o devido respeito por opinião diversa, que o tribunal a quo, ao decidir a matéria de facto dada como provada e não provada nos pontos aludidos, concretamente quanto aos elementos de índole subjetiva, deliberativo, cognitivo e volitivo que nortearam a sua conduta no momento da prática dos factos, seguiu no acórdão recorrido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, de onde se pode concluir pela existência do invocado erro notório na apreciação da prova.
Na verdade, o conjunto da matéria de facto provada só poderia ter conduzido à consideração como provados dos factos julgados como não provados. Constatamos que no texto da decisão recorrida se dá por provada, e não provada, materialidade fáctica respeitante aos elementos subjetivos que nortearam o seu comportamento que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Como dizem Leal-Henriques e Simas Santos, na obra supra citada, “...quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”, estamos perante um erro notório na apreciação da prova.
Todo o material probatório recolhido e a panóplia factual tem de ser alvo de uma articulação entre si, pois que isolados podem inclusivamente não fazer sentido, sequer.
Há, pois, que ter uma visão de conjunto sobre a prova produzida em relação a cada facto e ver depois o quadro geral que se apresenta, à luz da normalidade das atitudes humanas e aplicando regras de experiência e senso comuns.
Nomeadamente quando, como no caso sucedeu, em que estamos na presença de factos respeitantes à vida interior do arguido, eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial, ou emocional do indivíduo, que não são passíveis de apreensão direta, de prova direta ou facilmente visível atinente à factualidade penalmente relevante.
Na verdade, a prova pode ser direta ou indireta/indiciária.
Enquanto a prova direta se refere diretamente ao tema da prova, a prova indireta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas, que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto aquele.
Daí que haja necessidade de tais ilações serem sempre motiváveis.
As “... conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que exorbita o poder de cognição do S.T.J. enquanto tribunal de revista” (Ac. do S.T.J. de 21.10.2004, em C.J., tomo III, pág. 197), onde se ensina que “o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgado, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à sua convicção”.
O ato de julgar, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal de um tratamento cognitivo por parte dos restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objeto de formulação de deduções ou induções, correção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.
Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125º do CPP) e o art. 349º do CC, aplicável ex vi do art. 4º do CPP, prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351º CC).
Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indireta se faz valer através desta espécie de presunções”.
Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou “hominis” que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência. O juiz, valendo‑se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência” (cf. Vaz Serra, “Direito Probatório Material”, BMJ, nº 112 pág. 190).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado diretamente, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do percurso e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
E para concluir que o acórdão sob escrutínio incorre claramente em erro notório na apreciação da prova, como não considerar, segundo elementares regras de experiência comum e à luz da normalidade expectável dos comportamentos humanos, que o arguido não soubesse, não cogitasse, das consequências que poderiam advir do atropelamento com um veículo automóvel das pessoas que se encontravam no passeio, da possibilidade, forte, de lhes causar lesões físicas das quais poderiam advir a sua morte.
É flagrante, salvo o devido respeito, que o arguido, como qualquer pessoa, não poderia ignorar essa possibilidade, sendo certo que conhecia as caraterísticas do veículo que tripulava, da sua capacidade de contundência e letalidade quando de encontro a corpos humanos, e, não obstante, dirigiu essa viatura de encontro aquelas pessoas, o que fez propositadamente e sem diminuir a sua marcha. De tudo sabia e a tudo se prestou, obviamente numa atitude revanchista relativamente à altercação ocorrida anteriormente, e indiferente ao resultado da sua conduta, inclusive em relação a outras pessoas que estavam no mesmo passeio, com que se conformou.
Pelo que os factos alcançados por prova direta, impõem a presunção sobre os demais constantes da acusação, concretamente os relativos à componente subjetiva que presidiu à sua atuação, e sem qualquer tipo de hesitação ou modificação.
Concluindo, a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, vício contemplado na alínea c) do nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal.
Refira-se, ainda, que não se compreende o recurso ao princípio da presunção da inocência, e ao seu corolário processual do princípio do in dubio pro reo, plasmado na decisão recorrida.
Efetivamente, as declarações do arguido devem ser valoradas como qualquer outro meio de prova de acordo com os critérios legais, nomeadamente segundo o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do CPP. Ou seja, tais declarações devem ser examinadas na sua coerência e lógica intrínseca de acordo com as regras do normal acontecer e da sua consistência face a todos os outros meios de prova produzidos (depoimentos, documentos, perícias) para assim se aferir da sua credibilidade e razoabilidade à luz das regras da experiência comum.
Se as suas declarações em conjugação com a restante prova suscitarem a “dúvida fundada e razoável” e que esta não seja dissipável pelos restantes meios de prova, deve aplicar-se o princípio do “in dubio pro reo” e julgar não provados os factos a respeito dos quais se manteve tal dúvida.
Não foi o que aconteceu no caso vertente, como resulta da fundamentação de facto vertida no acórdão recorrido. As declarações do arguido, como acima se disse, foram totalmente desconsideradas, tendo sido contrariadas pela demais prova produzida, designadamente os depoimentos das testemunhas e as declarações dos assistentes/ofendidos.
Assim sendo, não vislumbramos de onde se pode retirar, face à sua inconsistência perante todos os outros meios de prova produzidos, que lhe retiraram toda a credibilidade, a suscetibilidade de essas declarações do arguido em conjugação com a restante prova levarem à tal “dúvida fundada e razoável”.
Sempre se dirá, porém, que a dúvida suscitada pelo tribunal recorrido é uma dúvida que não poderia permanecer no espírito do julgador, atentas as circunstâncias acabadas de referir. Quando muito, poderia configurar uma dívida meramente possível, hipotética.
Ora, a dúvida que subjaz ao principio in dubio pro reo é antes uma dúvida concreta, real, positiva, alicerçada em factos concretos, uma “dúvida racional que ilida a certeza contrária” (Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e ‘In Dubio Pro Reo’, Coimbra 1997, pág. 51).
Como a Cour de Cassation francesa tem vindo a salientar, o juiz não pode razoavelmente invocar uma qualquer dúvida, nomeadamente a dúvida ligeira, a dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria (doute sérieux) se impõe à sua íntima convicção.
Por isso que esta última deva ser uma dúvida argumentada, coerente, razoável, uma verdadeira dúvida (cfr. Cruz Bucho, Notas sobre o principio in dubio pro reo, CEJ, 1998, pág. 6 e 11).
O que no caso não se verifica.
Perante a verificação deste vício da decisão o que fazer.
Segundo o disposto no artigo 426.º do CPP
“Reenvio do processo para novo julgamento
1 - Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.”
Não obstante, no caso vertente afigura-se-nos ser possível decidir a causa sem necessidade de retrocesso processual, sempre de evitar e por razões que de tão óbvias dispensam qualquer tipo de consideração adicional.
Para tanto, considerar-se-ão provados os seguintes factos da acusação tidos por não provados, passando os pontos 10 e 11 daquela matéria provada a ter a seguinte redação:
«10) Ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, o arguido AA sabia que podia provocar-lhes a morte, o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade.
11) O arguido AA atuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia tirar a vida a BB, CC, FF, DD e EE, com o que se conformou, e o que apenas não sucedeu porque aqueles foram projetados com o embate».
Pelo que, procedendo o recurso, na parte que respeita à factualidade a considerar, com as necessárias repercussões ao nível do enquadramento legal da conduta do arguido.
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- Do erro de julgamento
O Ministério Público no seu recurso começa por afirmar, em substância, que a sentença sob recurso padece de erro notório na apreciação da prova, mas também prossegue a sua argumentação para o erro de julgamento, ao apontar as provas que imporiam solução diversa.
Os factos em questão nas duas formas de impugnação da matéria de facto são os mesmos.
O erro de julgamento não se confunde com o erro notório na apreciação da prova e logo que este, como é sua característica, se evidencie do texto da sentença, como acabou por acontecer, não há que ajuizar sobre a concreta apreciação e ponderação das provas produzidas que imponham decisão diversa sobre a mesma factualidade.
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- De Direito
Enquadramento jurídico e medida da pena.
Assim sendo, passaremos de imediato à apreciação das questões de direito que ora se colocam, designadamente quanto ao enquadramento jurídico dos factos provados e à determinação das penas a aplicar a cada um dos crimes cometidos.
Os crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, e de ofensa à integridade física qualificada preenchimento dos elementos típicos:
O arguido estava acusado da prática, como autor material e em concurso real, de 5 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22º, 23º e 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), i) e j), do Código Penal.
Em 1ª instância, veio a ser absolvido da prática, como autor material, em concurso real e efetivo dos 5 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22º, 23º e 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), i) e j), do Código Penal, de que vinha acusado.
E condenado:
Pela prática, em autoria material, em concurso real e na forma consumada de quatro crimes de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal;
E de um crime de ofensa à integridade física qualificada grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal.
Vejamos.
Dispõe o art.º 131º do Código Penal, que "Quem matar outra pessoa é punido com pena de pisão de 8 a 16 anos".
Neste normativo prevê-se o chamado tipo legal fundamental, matricial, do crime de homicídio, sendo a vida o bem jurídico protegido.
O tipo objetivo consiste em matar outra pessoa.
No plano subjetivo, trata-se de um crime doloso, abrangendo o dolo em qualquer das suas modalidades (direto, necessário e eventual) - artºs 13º e 14º do CP.
«O art.º 132º do Cód. Penal prevê uma forma agravada do homicídio simples, recorrendo para o efeito a um critério generalizador e descrito com recurso a conceitos indeterminados, determinante de um tipo de culpa agravado, com a técnica dos exemplos – padrão.
Aí se prescreve no seu nº 1: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.”.
“É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: “ (…) h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum; (…)”
De acordo com o ensinamento da generalidade da doutrina, reiteradamente seguido jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a partir do tipo de homicídio do art.º 131º do C. Penal, o art.º 132º do mesmo diploma legal prevê e pune um homicídio qualificado que resulta de a morte ter sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade (tipo de culpa, constituído por uma cláusula geral, contida no nº 1), fornecendo o legislador um enunciado, meramente exemplificativo, de circunstâncias suscetíveis de revelarem especial censurabilidade ou perversidade (nº 2).
O método de qualificação combina um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica dos exemplos-padrão. A qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral, descrito com conceitos indeterminados (n.º 1), cuja verificação é indiciada por circunstâncias, umas relativas ao facto, outras ao autor, elencadas no n.º 2, a título exemplificativo, os renomados exemplos-padrão. São estes que dão estrutura, delimitando-os também, àqueles conceitos abertos de especial censurabilidade ou perversidade, embora de modo não automático.
Por conseguinte, as circunstâncias enunciadas no citado normativo não são taxativas e não operam automaticamente.
A verificação das circunstâncias enunciadas no nº 2 do art.º 132º – ou situação valorativamente análoga - constituiu um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade que fundamenta a moldura penal agravada, impondo-se, sempre, contudo, para o preenchimento do tipo de ilícito homicídio qualificado, a conclusão pela verificação, no caso concreto, da cláusula geral prevista no n.º 1 do referido art.º 132.º, n.º 1, do C.P. , ou seja, pela “especial censurabilidade ou perversidade” (cf. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Livraria Almedina, 1995, pág. 66).
A “especial censurabilidade” integra aquelas condutas em que “o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas”, e a “especial perversidade”, integra aquelas em que “o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas” (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal¸ Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 29).
No homicídio qualificado, o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao julgador concluir pela aplicação do artigo 132º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou outra circunstância suscetível de preencher o Leitbild dos exemplos-padrão” (Teresa Serra, op.cit., pág. 64), ou, segundo Figueiredo Dias, “o que motiva a agravação … tem a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples”. («Homicídio qualificado», Colectânea de Jurisprudência, ano XII – 1987, tomo 4, pág, 52).
Tendo em conta as circunstâncias que, atento a factualidade provada, o caso concreto convoca, importa ainda referir sucintamente o seguinte:
Quanto à qualificativa constante da alínea h) do art.º 132º, nº 2 do CP, a factualidade apurada remete para a constante da 2ª parte “utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”.
Verificar-se-á esta circunstância desde que na execução do facto se faça uso de meio particularmente perigoso, o que implica o uso de um instrumento que, pelas suas características, traduz um perigo acentuado, qualitativamente superior ao perigo inerente a qualquer meio usado para causar a morte de outrem, sendo considerado como tal, pela jurisprudência, aquele meio que acarreta dificuldades acrescidas para a defesa da vítima e que, além disso, constitui perigo para outros bens jurídicos pessoais (cf. Acs. do STJ de 02-03-2006, Proc. n.º 472/06 - 5.ª, e de 05-09-2007, Proc. n.º 2430/07 - 3.ª).
O instrumento usado pelo arguido – um veículo automóvel – é qualificado, pelas suas características, como meio particularmente perigoso, pelo que os factos dados como provados se subsumem ao tipo legal de crime de homicídio qualificado, na forma tentada.
Diríamos mesmo, que a sua conduta poderia igualmente ser enquadrada como sendo determinada por um motivo fútil (al. e) do nº 2 do art. 132º), por falta de motivo minimamente plausível que justifique o seu inusitado comportamento, mas assim não foi entendido pelo acusador público.
No que tange ao tipo subjetivo, importa apurar se a situação, correspondente a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga, foi representada pelo agente e, se assim foi, se a mesma é suscetível de revelar uma situação de especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Por último, como é sabido, crime de homicídio é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, e de resultado, quanto ao objeto da ação.
Há tentativa, quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se - artº 22º, nº 1, do CP
E explicita o n.º 2 do mesmo normativo o que são atos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores
1.2. Crime Ofensa à Integridade Física:
O direito à integridade física é um direito constitucionalmente consagrado (artigo 25º da Constituição da República Portuguesa) e, como tal, inviolável, pertencendo a um núcleo de direitos, liberdades e garantias merecedores de tutela penal.
Dando consagração a esta tutela constitucional, o Código Penal consagra um capítulo aos crimes contra a integridade física, que se inicia com o artº 143º, o qual contém o tipo fundamental doloso, na forma de ofensa à integridade física simples, constituindo a “ofensa ao corpo ou à saúde de outra pessoa” o elemento comum as formas de incriminação agravadas ou privilegiada.
É indiscutível que o bem jurídico protegido através deste tipo legal é a integridade física de outra pessoa, na dupla vertente bem estar do corpo e da saúde.
Trata-se de crime de material ou de dano, que abrange um determinado resultado - lesão do corpo ou saúde de outrem.
No que ao caso interessa, assinale-se que o tipo legal do artº 143º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor e sofrimento causados.
Por outro lado, não revelam, para preenchimento do tipo objetivo do ilícito, os meios usados pelo agressor ou a duração da agressão.
O tipo legal do art.º 143º do CP exige o dolo em qualquer das suas modalidades (art.º 14º do CP).
A ofensa à integridade física é qualificada, com o consequente agravamento da moldura penal relativamente ao tipo simples, se forem produzidas em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente, sendo suscetíveis de o revelar as circunstâncias previstas no nº 2 do art.º 132º, atrás analisadas, dando-se nesta sede por reproduzido o que a esse propósito se explanou no acórdão recorrido.
Ora, face à alteração da matéria de facto supra decidida, dando-se aqui por reproduzida toda a considerada provada, a conduta do arguido terá de ser integrada na prática de crime de homicídio qualificado, com dolo eventual e na forma tentada. Mostrando-se apurados os elementos típicos objetivos e subjetivos enformadores desse ilícito penal.
Não subsistindo, pois, quaisquer dúvidas de que se tornou autor dos crimes de homicídio, com dolo eventual, na forma tentada, p. e p. nos art.s 14º, nº 3, 22.º, 23.º e 131.º e 132.º, n.º 2, al. h), do CP, pelos quais foi acusado. Mostrando-se exuberantemente verificada a circunstância qualificativa ponderada, sendo certo essa situação, ou exemplo padrão, é também reveladora de uma evidente especial censurabilidade da conduta do arguido.
Pelo que, também irá ser alterada a qualificação jurídica do comportamento do arguido, e revogada a decisão recorrida no que a esse enquadramento jurídico concerne.
Assim sendo, o arguido será condenado pela prática de 05 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22º, 23º e 73º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h, do Código Penal
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Medida da Pena
A este título recorreram o Ministério Público e o arguido, pugnando aquele, para além da revogação do acórdão recorrido quanto à qualificação jurídica dos factos, pelo consequente agravamento das penas parcelares e única em conformidade. Por sua vez, o arguido, insurge-se apenas quanto às molduras penais encontradas na decisão sob escrutínio, manifestando o entendimento de que as penas parcelares e única fixadas se mostram desproporcionadas e desajustadas à situação concreta, e, por isso, deverão ser reduzidas.
Para além disso, o arguido pugna também pela aplicação do regime penal para jovens delinquentes, previsto no DL n.º 401/82, de 23 de Setembro.
Vejamos.
O Ministério Público culmina a sua motivação recursiva manifestando que o arguido deverá ser condenado: «-por cada um dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual previsto pelos artigos 131º, 132º n.º 1, 132º n.º 2 alínea h) do Código Penal dos quais foram vitimas BB, CC, DD e EE uma pena não inferior a 3 anos de prisão; -pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, com dolo eventual previsto pelos artigos 131º, 132º n.º 1, 132º n.º 2 alínea h) do Código Penal do qual foi vitima FF uma pena não inferior a 5 anos de prisão; -em cúmulo jurídico, uma pena única não inferior a 10 anos de prisão.»
Em causa está a prática de crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos art.ºs 22.º, 23.º e 131.º e 132.º, n.º 2, al. h), do Código Penal
Após a convolação do crime de homicídio qualificado tentado para o crime de ofensa á integridade física qualificada simples e agravada, na 1ª instância foi decidido, condenar o arguido: “(…) - - um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida BB); - um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa do ofendido CC); - um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa do ofendido DD); - um crime de ofensa à integridade física qualificada simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida EE); - um crime de ofensa à integridade física qualificada grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 144.º, alínea c) e 145.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, por referência ao preceituado no artigo 132.º, n.º 2, alínea h, todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão (na pessoa da ofendida FF). III - Em CÚMULO JURÍDICO, condenar o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.»
Antes de mais, iremos debruçar-nos sobre a solicitada aplicação do Regime Penal Para Jovens Delinquentes.
Tendo em conta que à data dos factos, 5.11.2022, o arguido tinha 18 anos de idade, urge ponderar, por força do vertido no artigo 9º, do CP, a solicitada aplicação do denominado Regime Penal Aplicável A Jovens Delinquentes, que comporta o regime especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, consagrado no Decreto-Lei nº401/82, de 23 de Setembro.
Estatui-se no seu artigo 1º o âmbito de aplicação do regime previsto nesse diploma:
1 – O presente diploma aplica-se a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime.
2 – É considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos.
À atenuação especial da pena preconizada por este diploma subjaz a ideia de que o jovem imputável é merecedor de um tratamento penal especializado, atentando que a capacidade de ressocialização do homem é pressuposto necessário, sobretudo quando este se encontra ainda no limiar da sua maturidade (cfr. ponto 2. do preâmbulo do referido diploma).
Trata-se, portanto, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões, no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção (cfr. ponto 4., do preâmbulo, e artigo 4º, do aludido diploma legal).
A este propósito, dispõe o artigo 4º, do diploma legal em apreço, que se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
Conforme se elucida no Acórdão do STJ, de 31.03.2016: (...) A atenuação especial da medida da pena decorrente do regime especial para jovens adultos (DL 401/82, de 23-09) não constitui um “efeito automático” derivado da juventude do arguido, mas uma consequência a ponderar caso a caso em função dos crimes cometidos, do modo e tempo como foram cometidos, do comportamento do arguido anterior e posterior ao crime, e de todos os elementos que possam ser colhidos do caso concreto (...) Cabe ao julgador, por força do disposto no art. 9.º, do CP, averiguar se é possível aplicar as normas especiais aplicáveis a delinquentes com idade entre os 16 anos e os 21 anos, devendo aplicá-las sempre que admita, com uma razoabilidade evidente, que daí possam resultar vantagens para a ressocialização daquele jovem – sublinhado nosso (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº499/14.8PWLSB.L1.S1, relatora HELENA MONIZ).
E como se explica no Acórdão do STJ, de 18.02.2009: (…) “a aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos – regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária – não constitui uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos. … A oficiosidade da aplicação e do conhecimento de todas as questões que lhe pertinem resulta da natureza dos interesses que se visam proteger, na realização de uma irrecusável (...) opção fundamental de política criminal, e da própria letra da lei ao usar a expressão “deve” com significado literal de injunção”. (ac. de 11-06-2003, recurso 1657/03-3). «A atenuação especial da pena prevista no art. 4.° do DL 401/82 não se funda nem exige “uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa do agente” nem, contra ela, poderá invocar-se “a gravidade do crime praticado e/ou a defesa da sociedade e/ou a prevenção da criminalidade”. Pois, por um lado, a lei não exige – para que possa operar – a «demonstração de» (mas a simples «crença em») «sérias razões» de que «da atenuação resultem vantagens para a [sua] reinserção social» (cfr. STJ 27-02-2003, recurso 149/03-5). E, por outro, «a atenuação especial da pena a favor do jovem delinquente não pressupõe, em relação ao seu comportamento futuro, um “bom prognóstico”, mas, simplesmente, um “sério” prognóstico de que dela possam resultar “vantagens” para uma (melhor) reinserção social do jovem condenado» (ibidem). Tanto mais que, «tratando-se de jovens delinquentes, são redobradas as exigências legais de afeiçoamento da medida da pena à finalidade ressocializadora das penas em geral». Efectivamente, se, quanto a adultos não jovens, a reintegração do agente apenas intervém para lhe individualizar a pena entre o limite mínimo da prevenção geral e o limite máximo da culpa, já quanto a jovens adultos essa finalidade da pena, sobrepondo-se então à da protecção dos bens jurídicos e de defesa social, poderá inclusivamente - bastando que “sérias razões” levem a crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado” – impor, independentemente da sua (menor) culpa, o recurso à atenuação especial da pena» (ac. STJ de 29-01-2004 – proc. 3767/03-5): «O que o art. 9.º do CP trouxe de novo aos chamados jovens adultos foi, além do mais, a imperativa atenuação especial (“deve o juiz atenuar”), mesmo que o princípio da culpa o não exija, quando “haja razões sérias para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado” (art. 4.º do DL 401/82)» (ibidem). «A atenuação especial dos art.ºs 72.º e 73.º do CP, uma das principais manifestações do princípio da culpa (ou seja, o de que a pena, ainda que fique aquém do limite mínimo da moldura de prevenção, “em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa” - art. 40.º, n.º 2), beneficia, evidentemente, tanto adultos como jovens adultos. Mas, relativamente aos jovens adultos (art. 2.º do DL 401/82) - e, aí, a diferença -, essa atenuação especial pode fundar-se não só no princípio da culpa (caso em que essa atenuação especial recorrerá aos art.ºs 72.º e 73.º do CP) como, também ou simplesmente, em razões de prevenção especial (ou seja, de reintegração do agente na sociedade)» (ibidem). Nem poderá invocar-se, contra a atenuação especial da pena, o perigo de reincidência (a menos, claro, que esse perigo só possa concretamente debelar-se mediante um dissuasor reforço da pena de prisão). Como se afirma no Ac. deste STJ de 21-09-2006, proc. 3062-06 (relator Cons. Carmona da Mota), de onde respigámos esta jurisprudência, «Relativamente a jovens adultos, em suma, a atenuação especial da pena de prisão – quando (concretamente) aplicável – apenas será de afastar se contra-indicada por uma manifesta ausência de «sérias razões» para se crer que, dela, possam resultar vantagens para a reinserção social do jovem condenado» – sublinhado nosso (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº08P3775, relator ARMÉNIO SOTTOMAYOR).
Também no Acórdão do STJ, de 10.04.2014, esclarece-se que: I – A atenuação especial regulada no CP funda-se no pressuposto material da diminuição da culpa (na qual se reflecte também a da ilicitude) ou das exigências da prevenção. Já, porém, no caso dos jovens delinquentes, os requisitos de aplicabilidade da atenuação especial constante do art. 4.º do DL 401/82, de 23-09, são diferentes: desde logo, a idade, que funciona como pressuposto formal, que é condição necessária, mas não suficiente; depois, um requisito de ordem material: haver “razões sérias” para o tribunal acreditar que a atenuação especial favorecerá a “reinserção social” do condenado. II – Não se exige, portanto, nem diminuição da culpa/ilicitude, nem da necessidade da pena, o que demonstra a autonomia deste tipo de atenuação especial, a sua especificidade, relativamente à idêntica figura regulada no CP. III – Daqui se retira que a atenuação especial não pode ser recusada com fundamento exclusivo em razões preventivas ou de culpa. A culpa pode ser intensa, ou as exigências de prevenção geral muito fortes e, ainda assim, ser possível formular um juízo favorável sobre as vantagens da atenuação da pena para a reinserção do condenado, em que o legislador aposta fortemente pelas razões já apontadas. Tudo dependerá da ponderação global das circunstâncias do caso – sublinhado nosso (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº368/12.6PFLRS.L1.S1, relator MAIA COSTA; vide, ainda, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 03.04.2017, acessível em www.dgsi.pt/jtrg, Processo nº897/14.7JABRG.G1, relator FERNANDO CHAVES).
Como se referiu supra, o citado artigo 4º, deste regime penal especial, prevê a atenuação especial da pena, nos termos dos artigos 73º e 74º, do CP.
O juízo a realizar acerca da sua aplicação deve fundar-se em factos concretos, pois que, como ficou já exposto, não basta a idade.
Com efeito, haverá que atentar nas circunstâncias que rodeiam o crime, na personalidade do jovem delinquente, na sua conduta anterior e posterior (ao crime) e nas suas condições de vida (pessoais, familiares, profissionais, económicas e sociais), de maneira a avaliar se é ou não sensível à aceitação dos valores tutelados pelo direito penal.
Quanto a esta questão exarou-se no acórdão recorrido: «Aqui chegados, vejamos o caso decidendo. O arguido não assumiu o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. O arguido AA, com a sua grave e violenta actuação, revela uma personalidade fortemente desconforme com a norma o que implica uma vigorosa necessidade da pena com vista à sua reinserção social, premente, pese embora a sua idade. A agravar a tudo isto, relembre-se que pratica os factos em 5/11/2022 passado pouco tempo do trânsito em julgado de um acórdão deste mesmo Tribunal que o condenou numa pena de prisão de 3 anos e 6 meses pela prática de um crime de roubo; com efeito, como acima consta dos factos provados pela prática em 25/06/2021, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º1, do C. Penal, por acórdão datado de 30/05/2022, transitado em julgado em 29/06/2022, foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova. Tudo ponderado, concluímos não ver razões para aplicar a atenuação especial ao arguido.»
É este também o nosso entendimento.
No caso vertente, para além do passado criminal recente do arguido, com condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, e factos cometidos pouco após o trânsito dessa decisão, no início do período de suspensão da execução dessa pena, haverá que ter presente que a conduta adotada não se enquadra numa atuação fortuita e imponderada, fruto de uma imaturidade própria da juventude, mas antes, ao invés, numa lógica de facilidade na assunção de comportamentos delituosos, numa conduta assumida sem razões plausíveis que lhe pudessem conferir alguma justificação, pensada e movida por instintos de vingança.
A sua atuação, retratada na matéria de facto provada, demonstra uma personalidade desviante, bem ciente do que fazia e das consequências da sua atuação. Com total desprezo pelas consequências da sua conduta na saúde, integridade física e a própria vida de pessoas indefesas e surpreendidas por um comportamento completamente inesperado e imprevisível.
Para além disso, não obstante dispor de retaguarda familiar, o arguido não desenvolve qualquer atividade de carácter ocupacional ou profissional (o mesmo sucedendo com a sua companheira) da qual retire rendimentos para assegurar a sua subsistência e a do seu agregado – estando dependente do auxílio de familiares, alguns deles beneficiários do RSI –, o que é suscetível de constituir um forte apelo para a adoção de condutas com caráter delitivo.
Acresce que face à problemática criminal em causa nestes autos nada verbalizou, não tendo demonstrado arrependimento.
Este quadro evidencia por parte do arguido uma clara incapacidade de autocrítica perante os concretos factos sob discussão, o que significa que não interiorizou o desvalor da sua conduta, podendo eventualmente voltar a não respeitar os valores que enformam o Direito Penal e conformam a vida em sociedade.
Como se explicita no Acórdão do STJ, de 23.06.2022, (...) [a] ressocialização do arguido parte da sua vontade de querer nortear-se pelo respeito dos valores ético-jurídico comunitários e de respeitar os bens jurídicos, postura que tem de manifestar-se em atitudes comportamentais, que objectivamente, elucidem que está realmente interessado no caminho da ressocialização. A aplicação do regime especial encontrará dificuldades nos casos em que não haja assunção pela prática dos factos e o convencimento do julgador do sincero arrependimento e do determinado comprometimento do arguido em não reincidir, o que terá de passar pelo crivo de um mínimo de credibilidade – sublinhado e destacado nossos (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº694/20.0PBSTR.E1.S1, relator CID GERALDO).
No caso sub judice, salvaguardando o devido respeito por entendimento distinto, cremos que não resultam dos autos nenhuns indicadores que permitam surpreender no arguido qualquer interesse e empenho no caminho da ressocialização e da interiorização dos valores básicos da vivência em sociedade.
Assim, uma vez que os aspetos negativos assinalados se sobrepõem aos (parcos) positivos, não é possível fundar um juízo de prognose favorável no sentido de existirem sérias razões para crer que a atenuação prevista no regime especial previsto no Decreto-Lei nº401/82, de 23 de Setembro, lhe traga vantagens para a sua reinserção social.
Donde se conclui, como na primeira instância, pela não aplicação ao arguido do regime especial para jovens.
Abordemos agora o direito aplicável nesta fase processual respeitante à determinação da medida concreta da pena.
Como decidido ficou, o arguido terá de ser condenado pela prática de 5 (cinco) crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, p. e p. nos artigos 131º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), 22º, 23º e 73º, do Código Penal, o que implica encontrar as penas (parcelares e única) a aplicar em conformidade com a qualificação jurídica diversa daquela que foi decidida no acórdão recorrido, procedendo à escolha da medida das penas de acordo com os critérios legalmente estabelecidos.
O crime de homicídio qualificado, na forma tentada, é punível com pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão (art.º 132º, nº1, 22º, 23º e 73º, nº 1, als. a) e b) do CP).
Em sede de determinação da pena concreta importa ter presente o disposto nos artigos:
- 40.º do CP, Com a epígrafe de "finalidades das penas (...)", aquele preceito legal dispõe que:
"1. A aplicação de penas (...) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa".
- 71.º do CP, O qual preceitua que:
“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) a intensidade do dolo ou da negligência;
c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta de ser censurada através da aplicação da pena”.
Tais disposições legais conferem ao intérprete e ao aplicador do direito critérios gerais, mais ou menos seguros e normativamente estabilizados, para efeito de medida da reação criminal, sendo que o preceituado sob o número 2 do indicado artigo 40.º constitui inegavelmente um afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito penal é estruturado com base na culpa do agente, constituindo a medida da culpa uma condicionante da medida da pena de forma a que esta não deve ultrapassar aquela.
A pena serve finalidades de prevenção geral e especial, sendo delimitada no seu máximo inultrapassável pela medida em que se dimensione a culpa.
«Só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas.
A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação de delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».
Mas «em caso algum pode haver pena sem culpa ou a medida da pena ultrapassar a medida da culpa», o que «não vai buscar o seu fundamento axiológico, (...), a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. (…) A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização» Cf. Figueiredo Dias in As Consequências Jurídicas do Crime, Edição Notícias Editorial, 1993, páginas 72 e 73.
“(...) 1) toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais” Cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, edição de 2011, página 84.
Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição de 1998, da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa – AAFDL –, pág. 25, escreve que «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
Por sua vez, Américo A. Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, no Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infrator apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.
Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
“A medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente (...). Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas. É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposto pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente” Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Penas, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano XII, n.º 2 (Abril/Junho de 2002).
Na mesma obra, esta autora apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.
Dito de outro modo, as penas são fixadas em função da culpa e da prevenção geral e especial.
Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa - e constituindo esta limite máximo da pena.
Através da prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela dos bens e valores jurídicos.
Com o apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências da socialização (ou ressocialização) do agente em ordem a uma sua integração digna no meio social Cf. neste sentido, entre muitos outros, vejam-se os Acórdãos do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2009, Processo n.º 726/00.9SPLSB.S1 – 5.ª, relatado pelo Senhor Conselheiro Arménio Sottomayor, 10.02.2010, Processo n.º 217/09.2JELSB.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, 28.04.2010, Processo n.º 1103/05.0PBOER.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Fernando Fróis, ambos in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos /secção criminal, 30.11.2011, Processo n.º 238/10.2JACBR.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, 20.06.2012, Processo n.º 443/10.1GBLLE.E2.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Pires da Graça, e 06.02.2013, Processo n.º 593/09.7TBBGC.P1.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Sousa Fonte, in www.dgsi.pt/jstj.
Como enunciou o acórdão do Supremo Tribunal, de 28-04-2016, proferido no processo n.º 37/15.5GAELV.S1:
“A eventual intervenção correctiva do STJ no domínio do procedimento de determinação da medida da pena só se justificará se, for de concluir, face aos factos julgados provados, que o Tribunal Colectivo falhou na indicação de algum dos factores relevantes para o efeito ou se, pelo contrário, valorou outros que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, se tiver violado as regras da experiência ou se o quantum fixado se mostrar de todo desproporcionado em comparação com o que, para casos semelhantes, vem sendo decidido, nesta matéria, pelo STJ”.
“Também decorre da lição da melhor doutrina (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 196-197, §255) e constitui jurisprudência uniforme do STJ (cfr., v.g. os Acs. do STJ de 9-11-2000, in Sumários STJ de 29-1-2004, proc.º n.º 03P1874, e de 27-5-2009, proc.º n.º09P0484, disponíveis in www.dgsi.pt), aplicável à segunda instância (cfr. v.g. Ac. da Rel. de Lisboa de 31-10-2019, proc.º n.º 989/17.0PZLSB.L1-9, da Rel. do Porto de 2-10-2013, proc. n.º 180/11.0GAVLP.P1, e da Rel. de Guimarães de 13-5-2019, proc.º n.º 348/18.7GAVLP.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt), a intervenção do tribunal de recurso pode incidir na questão do limite ou da moldura da culpa assim como na atuação dos fins das penas no quadro da prevenção; mas já não na determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo se tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada
Nesta linha de orientação refere o Ac. da Rel. do Porto de 6-1-2013, proc.º n.º 201/10.3GAMCD.P1: «Acerca da questão da cognoscibilidade, controlabilidade da determinação da pena, no âmbito do recurso, há que dizer que a intervenção do tribunal nesta sede, de concretização da medida da pena e do controle da proporcionalidade no respeitante à sua fixação concreta, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada. Vem-se entendendo que se pode sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada».” (Cfr. AC. da RG, 05/06/2024, Rel. Paulo Cunha, não publicado)
Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se, no entanto, de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.
O limite mínimo da pena a aplicar é determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e seguintes.
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40.º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito.
Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo – total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena.
Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.” (Ibidem Ac. do STJ de 03/06/2020)
No acórdão recorrido ponderou-se a este título: «A ilicitude, é de grau mínimo/médio considerando o modo de atuação que se reconduz a um embate da viatura na vítima FF, nenhuma outra conduta se tendo provado da parte do arguido antes ou depois de tal embate, e nada mais se podendo valorar em termos de ilicitude neste momento de determinação da medida da pena, nomeadamente não se pode valorar novamente o uso do veículo em tal embate porque já valorado como “meio particularmente perigoso” para qualificar as ofensas; fazê-lo seria violar o principio de proíbe a dupla valoração; (…)” Também agrava a ilicitude o local público onde os factos ocorreram, o forte alarme, medo e pânico que a conduta do arguido causou em todos aqueles que ali se encontravam, especialmente os cerca de 20 a 25 indivíduos que se encontravam em cima do passeio e nestes em especial aqueles que apercebendo-se (porque de frente para o veículo) da aproximação e atropelamento iminente conseguiram fugir a tempo; anota-se que não se podendo incriminar a conduta do arguido por tal atuação em relação a todos aqueles que se encontrava, no passeio e que não foram atingidos, sem sendo a sua condução perigosa alvo de incriminação agora impossível por falta de factos, nomeadamente de natureza subjetiva que são podem ser supridos pelo tribunal (Ac. de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, publicado no DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27 acima citado), tal factualidade pode e deve ser ponderada para efeitos de agravamento da ilicitude. A culpa do arguido é médio /elevada porque não tem qualquer fundamento ou justificação a sua atuação naquele concreto circunstancialismo, pois que a confusão que tinha ocorrido no interior da discoteca tinha sido resolvida pelos seguranças da discoteca e pela própria intervenção ainda que passageira da PSP, sendo absolutamente incompreensível a sua atuação, a qual apenas se pode compreender numa atitude de vingança e manobra de magoar gratuitamente as pessoas de origem africana com que se tinha confrontado no interior da discoteca e causar o pânico em todos aqueles que se encontravam em cima do passeio, como causou. O dolo é direto em relação às quatro vítimas e de elevada intensidade: a atuação do arguido revela alguma maturação e planeamento do que pretendia fazer: o arguido AA depois de sair da discoteca deslocou-se para o exterior de tal estabelecimento, em seguimento do seu encerramento, dirigiu-se ao veículo onde se fazia transportar, de marca ...”, matrícula ..-CM-.., de cor ..., que se encontrava estacionado nas imediações de tal estabelecimento de diversão nocturna e uma vez aí chegado, entrou no mesmo, assumiu a sua direcção, arrancou no sentido ascendente da rua, inverteu a marcha, iniciando de seguida a marcha descendente, na Rua ..., em ... e no trajecto, sem abrandar, subiu o passeio e direccionou o veículo às pessoas que aí se encontravam no passeio de tal rua, cerca de 20 a 25 indivíduos, entre os quais aqueles que momentos antes se envolveram em contenda com o arguido no interior do estabelecimento nocturno. As consequências típicas da conduta do arguido são as julgadas provadas, nomeadamente as lesões físicas que causou na ofendida FF e que qualificamos acima como graves: perda momentânea de conhecimento, internamento entre 05 e 10 NOV 22 na sequência da fratura fechada dos ossos da perna direita. Membro inferior direito: cicatriz aderente de 1 x 1,2 cm de tamanho na face antero-interna do terço inferior da perna, cicatriz quelóide de 7 x 0,4 cm a nível da face anterior do joelho e terço superior da perna e infra patelar interna, duas cicatrizes de 1 cm cada, paralelas à cicatriz anterior, cicatriz de 1 cm de tamanho a nível da face anterior do terço inferior da perna sem défice de mobilidade do joelho, tornozelo e dedos do pé. Atrofia da coxa e região gemelar de 1 cm, que demandaram 206 dias para a consolidação médico-legal (30/05/2023), com afectação da capacidade de trabalho geral (5 dias) e com afectação de trabalho profissional (186 dias), bem como resultaram as consequências permanentes inerentes à fractura dos ossos da perna direita – cfr. fls. 592 e ss.; O arguido não assumiu em audiência de julgamento o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. Dos factos provados resulta que o arguido não se encontra socialmente inserido: AA, à data dos factos provados, integrava o agregado dos pais, com o cônjuge, JJ, na morada acima identificada. companheira e o arguido viveram em união de facto antes da cerimónia do seu casamento, realizada em outubro de 2022, e aguardam para breve o nascimento da primeira filha de ambos. É referida uma dinâmica familiar afetiva e apoiante entre todos os elementos que compõem a família, sendo o arguido o mais velho dos quatro filhos que os pais têm em comum, o mais novo com quatro anos de idade. O agregado, num total de sete elementos, vive em apartamento de tipologia 3, com condições de habitabilidade, cuja renda é no valor de 10,90€ mensais, inserido em bairro conotado com problemáticas sociais relevantes, na cidade .... Referem como despesas fixas habitacionais (água, eletricidade e telecomunicações) de cerca de 150,00€ mensais. A situação económica da família é assegurada através de apoios pecuniários estatais, designadamente do Rendimento Social de Inserção (RSI), sendo o pai do arguido o titular da medida. Acrescem os abonos dos quatro descendentes e, ainda, do abono de família pré-natal, no valor aproximado de 2.060,00€ mensais. São obtidos, ainda, alguns rendimentos da atividade dos pais em feiras na área de residência. Não regista no seu percurso de vida uma atividade laboral regular e apresenta um quotidiano sem ocupação formativa e/ou estruturada. O percurso escolar de AA foi marcado por insucessos, motivados pela desmotivação das atividades letivas e por reduzida assiduidade, que culminou no abandono escolar sem conclusão do 5º ano, não obstante, a intervenção junto da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) do .... Presentemente, o enquadramento habitacional e familiar do arguido é idêntico ao descrito à data dos factos, beneficiando dos familiares de apoio nas suas vivências diárias. AA é referenciado na comunidade local a grupo de pares associado a práticas ilícitas. AA regista anteriores contactos com o sistema judicial, tendo estado em acompanhamento neste serviço da DGRSP, no âmbito da suspensão de um processo tutelar educativo, por factos susceptíveis de integrar a prática de crime de ofensa à integridade física, com acções dirigidas à promoção de competências pessoais e sociais e de um papel proactivo no desempenho de uma atividade ocupacional. Nessa sequência e em articulação com a CPCJ ..., foi estabelecida programação mensal de acções, tendo o arguido cumprido os respetivos objetivos. Atualmente, o arguido é supervisionado, pela DGRSP, no âmbito da pena de prisão suspensa, que foi condenando no processo 112/21...., cujo transitado em julgado, ocorreu a 29/06/2022 e o termo está previsto para 29/12/2025. A sua constituição como arguido no presente processo não teve repercussões negativas na sua esfera familiar, que lhe mantem apoio no seu processo vivencial. Foi obtida informação junto da OPC territorialmente competente, de ser suspeito no processo 214/23...., datado de 06/08/2023, pelo crime de resistência e coação sobre funcionário. Por fim, como elemento a agravar a medida e necessidade da pena a existência de um antecedente criminal relevante: o arguido comete os factos destes autos em 5/11/2022, ou seja, pouco tempo após o trânsito do acórdão que o condenou em 3 anos e 6 meses de pena de prisão suspensa na sua execução e em pleno período da suspensão, o que é bem revelador do desrespeito do arguido pela solene advertência contida naquela pena suspensa. Com efeito, como acima consta dos factos provados pela prática em 25/06/2021, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º1, do C. Penal, por acórdão datado de 30/05/2022, transitado em julgado em 29/06/2022, foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova. Algumas conclusões a retirar: - o acórdão transitou em 29/06/2022 e passado 4 meses e 8 dias o arguido praticou os factos destes autos; - foi condenado por um crime de roubo, o qual como é sabido se no seu recorte típico se pode estruturalmente visualizar um furto qualificado, e daí a sua inserção sistemática nos crimes contra a propriedade, o elemento pessoal tem no mesmo uma particular relevância, porque com a sua prática é posta em causa a liberdade, a integridade física ou até a própria vida da pessoa roubada. No caso o arguido comete crimes que colocam em questão o bem jurídico penal que é a integridade física o que é revelador do desrespeito repetido por bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal. - cometeu os factos graves em pleno período da suspensão, o que revela elevado desrespeito pelas Decisões Judiciais, pelos Tribunais e pelo Estado de Direito. As necessidades de prevenção geral são elevadas pelo contexto do crime, pois que lamentavelmente são frequentes em Portugal as rixas, conflitos e agressões à saída de estabelecimentos noturnos, com consequências graves em termos de ferimentos e até mortes, não sendo ... exceção. Em sede de prevenção especial, tudo o antes referido – o arguido não assumiu em audiência de julgamento o desvalor da sua conduta, não denotando, portanto, arrependimento. Não ressarciu as vítimas por qualquer forma, quer no prisma financeiro quer num simples pedido de desculpa. O arguido não pagou as despesas hospitalares que causou com a sua conduta. O antecedente criminal pelo crime de roubo, a a falta de inserção social - vai no sentido de serem elevadas as necessidades de prevenção especial que o arguido reclama. Todavia, não se pode olvidar apesar de tudo que não sendo aplicável o regime especial para jovens nos termos acima fundamentados, não se pode esquecer que o arguido à data dos factos tinha apenas 18 anos de idade, sendo um jovem, pelo que a pena deverá ficar abaixo do meio da moldura penal.» (…)”
Ponderando os critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal importa desde já referir que, de uma forma geral, sufragamos a análise dos critérios supra enunciados e sua aplicação à situação concreta, efetuada pelo tribunal a quo, revelando-se, porém, necessário, a nosso ver, tecer alguns comentários divergentes do exarado relativamente a essa matéria.
Concretamente, reportamo-nos ao grau de ilicitude, à culpa do arguido e ao dolo
Apreciando o caso, afigura-se-nos que o grau de ilicitude do facto é acentuado, pois a conduta do arguido reflete desvalor em relação à ordem jurídica, à integridade física e própria vida do conjunto de pessoas que se encontrava em cima do passeio, sendo que parte delas só não foi atingida porquanto se terão apercebido da manobra encetada e fugiram do local por onde o veículo passou a circular. Sendo também de relevar o modo de execução, especialmente traiçoeiro e imprevisível, em local onde as pessoas à partida se sentiriam seguras e jamais imaginariam que por aí viesse a circular um veículo em sua direção, sem que de alguma forma sinalizasse ou avisasse a sua presença. Sendo também de ponderar a este título os danos físicos graves que acabou por causar na vítima FF.
Os sentimentos no cometimento dos crimes, comportamento incompreensível, de uma violência exacerbada, reveladora de um sentimento com total desprezo pelos outros, egoístico e socialmente desajustado, jogam no mesmo sentido de graduação elevada da culpa do arguido, para o que também contribuíram os motivos determinantes do mesmo, o revanchismo injustificado que o determinou a assumir aquela conduta.
Por fim, ao nível do dolo temos de levar em consideração, face aos crimes praticados pelo arguido, que os mesmos foram levados a cabo com dolo eventual, ou seja, o arguido não foi movido pelo propósito de tirar a vida aos ofendidos, ou às pessoas que se encontravam próximas destes, mas não deixou de prever que da sua atuação, designadamente da utilização, como instrumento agressor, de um veículo automóvel, que tal desiderato pudesse vir a ocorrer, possibilidade com que se conformou, mas que não o impediu de levar avante o seu comportamento. De qualquer forma, deparamo-nos com a modalidade de menor intensidade dolosa.
Assim sendo, levando em devida conta todos os fatores apontados, entendemos como ajustado e proporcionado à culpa do arguido fixar, dentro da moldura abstrata que vai de uma pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, as seguintes penas:
Por cada um dos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual (art.s 131º, 132º, nºs 1 e 2 h), 14º, nº 3, 22º, 23º e 73º, nº 1, als. a) e b) do CP) praticados sobre as pessoas dos ofendidos BB; CC; DD e EE, três (3) anos de prisão;
Pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual (art.s 131º, 132º, nºs 1 e 2 h), 14º, nº 3, 22º, 23º e 73º, nº 1, als. a) e b) do CP) praticado sobre a pessoa da ofendida FF, quatro (4) anos de prisão.
Cúmulo Jurídico
Vejamos agora as regras de punição do concurso de crimes
Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal:
“Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
E nos termos do n.º 2, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Segundo o n.º 3 “Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.
Estabelece o n.º 4: As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.
Naquele normativo consagra-se o chamado sistema da pena conjunta, obtido através de cúmulo jurídico inspirado essencialmente no princípio da cumulação.
Esse sistema radica num triplo procedimento.
Em primeiro lugar, deve determinar-se a pena concreta de cada um dos crimes em concurso.
Depois, estabelece-se a moldura penal do concurso, constituindo o respetivo limite inferior a mais elevada das penas concretas integrantes do mesmo concurso e o seu limite superior a soma de todas as penas concretamente aplicadas, não podendo exceder 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
Finalmente, determina-se a pena conjunta do concurso, em função das exigências gerais de prevenção e da culpa, sempre considerando os factos e a personalidade do agente.
Como escreve Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica”.
“Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou, tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” Cf. Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, edição Notícias Editorial, 1993, páginas 291 e 292.
Conforme refere José de Faria Costa, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3945, a págs. 326/327: “Seria redundante dizer-se que se prefere o sistema do cúmulo jurídico ao do material porque este último se revela de difícil exequibilidade, pois obrigaria o condenado ao cumprimento sucessivo das diferentes penas a que se chegou em cada uma das condenações. No entanto, embora esta razão seja inteiramente válida, aqueloutra pela qual o sistema do cúmulo jurídico se apresenta de maior justeza reside no facto de, com ele, se evitar que os factos penais ilícitos, após a aplicação das respetivas penas, ganhem uma gravidade exponencial porque vistos isoladamente ou compartimentados uns dos outros. Gravidade essa que, obviamente, se refletirá, em um primeiro momento, em uma culpa igual ou proporcionalmente grave e, em momento posterior, em pena de igual dosimetria à culpa. Isto é, a culpa reportada a cada facto ganha (...) um efeito multiplicador. Como consequência do que se acabou de dizer, sendo a culpa relativa a cada facto ilícito-típico, tal redundará na ultrapassagem do limite da culpa (...) podemos concluir que só o sistema do cúmulo jurídico é suscetível de ser dogmaticamente justificável porque é através dele que obtemos a imagem global dos factos praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global. Apenas efetuando (...) um exame dos factos em conjunto podemos perscrutar a ligação que os factos ilícitos isolados mantêm uns com os outros. Só através do cúmulo jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente e, dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não radica na sua personalidade, mas antes em fatores exógenos. (...) através do sistema do cúmulo jurídico a culpa é adequadamente valorada e, em consequência, a pena encontrada é, inquestionavelmente, mais justa”.
A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria.
Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes.
Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese, correspondente a um novo ilícito e a uma nova culpa (agora culpa pelos factos em relação), uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal.
Constitui posição sedimentada e segura no Supremo Tribunal de Justiça a de nestes casos estarmos perante uma especial necessidade de fundamentação, na decorrência do que dispõem o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal, e os artigos 97.º, n.º 5 e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em aplicação do comando constitucional ínsito no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, onde se proclama que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Como estabelece o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal “Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”, decorrendo, por seu turno, do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, e do disposto no artigo 375.º, n.º 1, do mesmo Código, que a sentença condenatória deve especificar os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 15.ª edição, pág. 277 (e a págs. 275 da 16.ª edição, de 2004, e pág. 295 da 18.ª edição, de 2007), a propósito do artigo 77.º, salientava que “na fixação da pena correspondente ao concurso entra como fator a personalidade do agente, a qual deve ser objeto de especial fundamentação na sentença. Ela é mesmo o aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, por força das coisas, carácter unitário”.
A punição do concurso efetivo de crimes funda as suas raízes na conceção da culpa como pressuposto da punição – não como reflexo do livre arbítrio ou decisão consciente da vontade pelo ilícito. Mas antes como censura ao agente pela não adequação da sua personalidade ao dever-ser jurídico penal.
Como acentua Figueiredo Dias em Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1983, págs. 183 a 185, “ (…) o substracto da culpa (…) não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (…). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena”. (Ibidem Ac. do STJ de 03/06/2020)
Regressando ao caso vertente
Tal como foi vertido no acórdão recorrido, na efetivação do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, de acordo com os critérios enunciados no n.°2 do citado artigo 77.°, do CP, a pena a aplicar terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.
Foram aplicadas ao arguido as penas parcelares acima apontadas, ou seja, entendeu-se adequado e ponderado a aplicação das seguintes penas:
- pela prática, em autoria material, do crime de homicídio qualificado na forma tentada, as penas de 3 (três) anos de prisão, relativamente a quatro dos ilícitos, e 4 (quatro) anos de prisão quanto ao quinto dos crimes perpetrados.
Dão-se aqui por reproduzidos todos os considerandos tecidos relativamente às penas parcelares fixadas.
Quanto à pena única resultante da operação de cúmulo jurídico, na ponderação da sua fixação na decisão proferida fez-se ainda constar: «Perscrutando as condutas e penas, temos como seguro o seguinte: todos os 5 crimes dizem respeito direta a crimes que tutelam bens jurídicos eminentemente pessoais – integridade física -, mas considerando o contexto dos factos - os crimes são praticados num mesmo circunstancialismo de tempo e lugar – pelo que não se poderá considerar que estamos perante uma certa tendência ou carreira criminosa do arguido, pelo que não será de atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. Os factos são muito graves especialmente se atentarmos ao uso do veículo automóvel, ao número de pessoas atingidas – 5 – e ao número de pessoas que se encontravam em cima do passeio – cerca de 20 a 25 pessoas o que só por si reclama uma pena que se fixe no meio ou ligeiramente acima do meio da moldura abstrata.»
Os crimes cometidos apresentam um grau acentuado de ilicitude, o que se mostra refletido nas respetivas penas parcelares acima fixadas.
As necessidades de prevenção geral são muito elevadas, de prevenção geral positiva, estando em causa a violação do bem jurídico fundamental, a vida de uma pessoa, o que acarreta um repúdio manifesto por parte da comunidade, o que, para efeito de uma estabilização contra fáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reação forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito.
Ao nível das necessidades de prevenção especial, há que salientar os antecedentes criminais do arguido pela prática de um crime de roubo, e o facto de ter praticado os factos em causa nos autos pouco tempo após o trânsito do acórdão que o condenou em 3 anos e 6 meses de pena de prisão suspensa na sua execução, ou seja, em pleno período da suspensão, o que é bem revelador do desrespeito do arguido pela solene advertência contida naquela pena suspensa. A sua inserção familiar não deixa de ser relevante, e também a sua idade à data, 18 anos, tratando-se de um jovem adulto, o que não poderá deixar de ser ponderado.
De qualquer forma, também teremos de realçar o circunstancialismo que rodeou a prática dos factos, o motivo que os determinou e o modo de execução dos mesmos, que acima se referiram, que denotam uma personalidade com traços de agressividade, violência e de indiferença à vida e integridade física alheias.
Para além disso, a sua postura perante o episódio ocorrido não revela arrependimento ou consciência critica do desvalor dos seus atos
Assim sendo, para além das circunstâncias pessoais do arguido se mostrarem refletidas nas penas concretas aplicadas, porquanto dentro das molduras abstratas aplicáveis, respetivamente de 3 (três) e 4 (quatro) anos de prisão, ou seja, penas dentro do primeiro terço daquelas molduras, também na fixação das mesmas se mostram devidamente ponderadas as circunstâncias em que tudo ocorreu, os motivos que determinaram a sua conduta, as consequências da mesma, e os acentuados graus de ilicitude e de culpa que os factos evidenciam. Tudo conjugado com a personalidade do arguido, que revela tendência para a agressão, a violência física, com desrespeito profundo da integridade física e da vida da pessoa humana, como insofismavelmente certifica a facticidade assente.
Especificamente no que respeita ao quantum da pena única de prisão em apreço aplicada ao arguido/recorrente, teremos de reponderar novamente a factualidade apurada, nomeadamente os factos relativos aos ilícitos criminais perpetrados, as condições pessoais do arguido e a sua personalidade, a gravidade do ilícito global perpetrado e a conexão entre os factos concorrentes.
Nessa avaliação da personalidade - unitária - do arguido não poderemos deixar de ponderar o conjunto dos factos, o ambiente em que decorreram, os motivos que o determinaram, a violência gratuita, a condição de fragilidade de cada uma das vítimas perante o instrumento de agressão utilizado e o inusitado abalroamento de que foram vítimas, todo um conjunto de circunstâncias que nos conduzem a concluir estarmos perante um indivíduo com alguma propensão para a prática de ilícitos penais, uma personalidade violenta e com desprezo pela integridade física e vida alheia, a que não poderá deixar de se atribuir, designadamente à pluralidade de crimes, um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.
Também será de ponderar o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do arguido, como exigência de prevenção especial de socialização.
O elevado grau de culpa com que o arguido atuou.
Sendo também de ponderável gravidade, o grau de ilicitude dos factos, e o impacto causado na saúde das vítimas, principalmente da FF, como resulta dos exames médicos constantes dos autos.
As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da proteção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição – são muito elevadas, designadamente face ao tipo de crime em questão.
As necessidades de prevenção especial avaliam-se em função da necessidade de prevenção de reincidência, de dissuadir o delinquente da prática de outros ilícitos e da necessidade de se auto ressocializar.
Ora no presente caso, face a tudo o que acima já dissemos, atendendo à forma temerária e violenta da sua atuação, ao instrumento de agressão utilizado perante a fragilidade das vítimas, à inusitada, surpreendente e imprevisibilidade da sua conduta, e à falta de motivo aparente que justificasse tal conduta, sem o mínimo respeito pela sua saúde e até pela própria vida dos ofendidos, tal quadro de atuação muito embora se nos afigure poder dever-se a uma mera ocasionalidade, revela uma já expressiva tendência criminosa da sua personalidade para a prática de ilícitos. Sendo manifesto que estamos perante um caso de um indivíduo com facilidade para a prática deste tipo de ilícitos, não obstante não ter registados quaisquer confrontos com o sistema penal de justiça pela prática de crimes da mesma natureza.
Apresentando no período da prática dos factos uma desconformidade com os valores que subjazem e enformam a nossa sociedade, um desvalor, um grau de culpa, que não poder ser menosprezado, antes pelo contrário, em termos de valoração, que terá de se repercutir na medida da censura pessoal que lhe tem de ser feita, com reflexos na medida da pena.
Tendo em conta a imagem global do conjunto factual em apreciação, entende-se que a pena única a aplicar deverá situar-se nos 8 (oito) anos de prisão, dentro da moldura abstrata aplicável ao arguido, que tem como limite mínimo 4 (quatro) anos de prisão e máximo de 16 (dezasseis) anos de prisão, realizando a mesma de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Sendo certo que a pena única encontrada se revela proporcionada e equilibrada, tendo em conta a culpa do agente e todas as circunstâncias do caso.
Por fim, cumpre salientar que a alvitrada redução das penas aplicadas em primeira instância suscitadas pelo arguido/recorrente, que também estava dependente da improcedência da impugnação da matéria de facto, e da manutenção da qualificação jurídica dos factos assumida no acórdão recorrido, se mostra prejudicada perante tudo o anteriormente decidido.
*
*
III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA;
- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o acórdão recorrido, e, consequentemente:
- Determinar a alteração da matéria de facto, considerando-se como provados factos da acusação que haviam sido julgados como não provados, passando os pontos 10 e 11 daquela matéria provada a ter a seguinte redação:
«10) Ao dirigir o veículo por si conduzido contra os ofendidos, usando instrumento/meio com grande potencialidade letal, o arguido AA sabia que podia provocar-lhes a morte, o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade.
11) O arguido AA atuou livre e conscientemente, admitindo como possível que da forma como conduziu o seu veículo poderia tirar a vida a BB, CC, FF, DD e EE, com o que se conformou, e o que apenas não sucedeu porque aqueles foram projetados com o embate».
- Condenar o arguido AA:
Pela prática dos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, previstos e puníveis pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2 h), 14º, nº 3, 22º, 23º e 73º, nº 1, als. a) e b) do CP, cometidos sobre as pessoas dos ofendidos BB; CC; DD e EE, numa pena de três (3) anos de prisão, por cada um deles;
Pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual, previsto e punível pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2 h), 14º, nº 3, 22º, 23º e 73º, nº 1, als. a) e b) do CP) praticado sobre a pessoa da ofendida FF, numa pena de quatro (4) anos de prisão.
- Em cúmulo jurídico de penas, vai o arguido AA condenado na pena única de oito (8) anos de prisão.
- Manter no mais o acórdão recorrido.
*
Custas a suportar pelo recorrente AA, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC´s, [arts. 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa a este último diploma].
Notifique.
(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
Guimarães 11 de março, de 2025
Os Juízes Desembargadores
Relator – José Júlio Pinto
1º Adjunto – Paulo Correia Serafim
2ª Adjunta – Fátima Furtado