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JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM FASE DE RECURSO
TEMAS DA PROVA
OBJETO DO LITÍGIO
DEPOIMENTO DE PARTE
ASSENTADA
CONFISSÃO JUDICIAL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO POR DENÚNCIA TÁCITA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
ILEGALIDADE DO TRESPASSE
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
USO PARA FIM DIVERSO
NÃO USO DO ESTABELECIMENTO INDUSTRIAL
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
Sumário
1- A identificação do objeto do litígio consiste na explicitação pelo juiz às partes, na fase intermédia do processo, da controvérsia que as opõe, atentos os pedidos formulados, causas de pedir e exceções invocadas, e reconduz-se na sinalização do denominando thema decidendum, para que aquelas coloquem nele o seu enfoque. 2- A enunciação dos temas da prova consiste numa identificação genérica da matéria de facto (apenas limitada pela causa de pedir e exceções invocadas pelas partes) que, na perspetiva do juiz, permanece controvertida e que entende ser essencial para a decisão de mérito a proferir e sobre a qual irá, por isso, recair a atividade instrutória, a fim de que se orientem nessa atividade. 3- O despacho em que o juiz identifica o objeto do litígio e enuncia os temas da prova não opera caso julgado formal, podendo ser modificado posteriormente, podendo aquele na sentença ir além ou ficar aquém do despacho em que procedeu à identificação do objeto do litígio uma vez que são os articulados que fixam esse objeto. 4- Por conseguinte, sendo interposto recurso da sentença e impugnando o recorrente nele o despacho que indeferiu a reclamação que apresentou contra o despacho em que o juiz identificou o objeto do litígio, imputando a esse despacho erro de direito, sem que dele extraia qualquer consequência jurídica para a sentença recorrida (em relação à qual não invoca nulidade por omissão ou excesso de pronúncia, nem por condenação ultra petitum), impõe-se que o tribunal ad quem, por força do art. 130º do CPC, se abstenha de conhecer da impugnação do despacho que indeferiu a reclamação apresentada pelo recorrente, sob pena de levar a cabo uma atividade processual absolutamente inútil, por o seu resultado ser insuscetível de se projetar ao nível da sentença recorrida. 5- E limitando-se o recorrente no recurso que interpôs da sentença a assacar erro de direito ao despacho que indeferiu a reclamação que apresentou contra os temas da prova enunciados pelo juiz, sem que dele extraia qualquer consequência jurídica para o julgamento da matéria de facto realizado na sentença recorrida, sem prejuízo de se vir a verificar que o tribunal a quo nela incorreu em erro de julgamento da matéria de facto na vertente da deficiência (ao não ter julgado provados, nem como não provados factos essenciais para a decisão de mérito a proferir que foram alegados pelas partes) não abrangidos pelos temas da prova que antes foram enunciadas às partes (impondo-se que, nesse caso, o tribunal de recurso tenha de anular a sentença e ordenar a ampliação do julgamento da matéria de facto quanto a esses factos, por terem ficado fora da instrução antes realizada), impõe-se que o tribunal de recurso, pela mesma ordem de razão (art. 130º do CPC), se abstenha de conhecer do alegado erro de direito que vem imputado ao despacho que indeferiu a reclamação. 6- As declarações de parte e o depoimento de parte sem valor confessório que favoreçam a parte que as presta (ou a parte representada pelo declarante/depoente) ficam submetidas ao princípio geral da livre convicção, podendo, por isso, servir de per se para que o juiz dê como provada a versão dos factos apresentada pelo declarante/depoente, independentemente de serem (ou não) corroboradas por outros elementos de prova. 7- Para que ocorra contrato de trespasse juridicamente válido de estabelecimento comercial ou industrial não é necessário que o trespassante transmita por via do contrato para o trespassário todos os elementos corpóreos e incorpóreos que integram o estabelecimento, bastando que lhe transmita os elementos essenciais que permitam identificar e caracterizar esse concreto estabelecimento enquanto unidade económica e que lhe faculte prosseguir o fim (atividade económica ou industrial) que até então prosseguia. 8- E para haver contrato de trespasse juridicamente válido também não é necessário que, no momento da celebração do contrato, o estabelecimento se encontre em efetivo funcionamento, bastando que estejam então reunidos os elementos corpóreos e incorpóreos que permitam que aquele possa entrar em funcionamento.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:
I- RELATÓRIO
EMP01..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., ..., ..., ..., instaurou por apenso aos autos do processo de insolvência n.º 753/20...., a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP02..., Lda., com sede no Lugar ..., ..., ... ..., e Massa Insolvente de EMP03..., S.A.,representada pela administradora da insolvência, pedindo que seja (procede-se à transcrição ipsis verbis do pedido):
“A) Declarado cessado o contrato de arrendamento por denúncia operada pela Sra. AI e, em consequência: (i) ser declarada a ilegalidade do contrato de trespasse celebrado; (ii) serem os RR. condenados à entrega do imóvel no mesmo estado em que a arrendatária o recebeu, livre e desimpedido de pessoas e bens; (iii) ser a Massa Insolvente condenada a pagar, até ao momento da restituição, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente à renda, elevada para o dobro em caso de mora. Caso assim não se entenda, B) Declarado o trespasse ilegal e, em consequência: (i) ser declarado que se operou uma cedência de gozo do imóvel não autorizada e, como tal, ilícita; (ii) ser declarado o contrato resolvido, operando-se a resolução na data da citação da Ré para os termos da ação; (iii) ser a Massa Insolvente condenada no pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência e até à data da resolução do contrato, acrescidas de uma indemnização correspondente a 20% atenta a mora verificada; (iv) serem as RR. condenadas na entrega do imóvel no mesmo estado em que a arrendatária o recebeu, livre e desimpedido de pessoas e bens; (v) ser a Massa Insolvente condenada a pagar, até ao momento da restituição, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente à renda, elevada para o dobro em caso de mora. Caso assim não se entenda, C) Declarado o contrato resolvido com justa causa, com base em incumprimento pela outra parte, designadamente por força do encerramento do locado e utilização do imóvel para fim diverso, operando-se a resolução da data da citação da Ré para os termos da ação, e em consequência: (i) serem as RR. condenadas no pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência e até à data da resolução do contrato, acrescidas de uma indemnização correspondente a 20% atenta a mora verificada; (ii) serem as RR. condenadas na entrega do imóvel no mesmo estado em que a arrendatária o recebeu, livre e desimpedido de pessoas e bens; (iii) serem as RR. condenadas a pagar, até ao momento da restituição, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente a renda, elevada para o dobro em caso de mora. Caso assim não se entenda, D) Ser o contrato declarado resolvido por falta de pagamento de rendas, e em consequência: (i) serem as RR. condenadas no pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência e até à data da resolução do contrato, acrescidas de uma indemnização correspondente a 20% atenta a mora verificada; (ii) serem as RR. condenadas na entrega do imóvel no mesmo estado em que a arrendatária o recebeu, livre e desimpedido de pessoas e bens; (iii) serem as RR condenadas a pagar, até ao momento da restituição, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente a renda, elevada para o dobro em caso de mora. Em qualquer dos casos, Deve ser ordenado o despejo e entregar à Autora o imóvel, completamente livre de pessoas e bens; e Caso assim não se entenda, E) Ser reconhecido à EMP01... o direito de preferência no trespasse, reconhecendo-se à Autora o direito de haver para si o estabelecimento.”
Para tanto alegou, em síntese, que: é proprietária do prédio urbano composto por um edifício fabril descrito na CRP ... sob o n.º ...28; arrendou esse prédio à sociedade EMP03..., S.A., para que esta exercesse nele a sua atividade industrial; por sentença de 10 de fevereiro de 2020, a sociedade arrendatária foi declarada insolvente; no dia 13 de fevereiro de 2020, a administradora da insolvência decidiu cessar a atividade da insolvente e encerrar o respetivo estabelecimento; nessa medida, não procedeu à apreensão do estabelecimento “enquanto conjunto de bens, móveis e/ou imóveis e direito e/ou obrigações, que constituem uma universalidade de direito indissociável,” (sic.), mas apenas à apreensão dos bens móveis que existiam dentro do referido edifício; não procedeu, também, à apreensão do direito ao arrendamento resultante do contrato celebrado entre a insolvente e a Autora; deixou de proceder ao pagamento da renda devida à Autora como contrapartida pela cedência do gozo do prédio; esse comportamento da administradora da insolvência configura uma declaração tácita de denúncia do contrato de arrendamento celebrado entre a insolvente e a Autora; com essa denúncia, o contrato de arrendamento cessou e a Autora ficou na expetativa de que lhe seria restituído o prédio; entretanto, a administradora da insolvência procedeu à resolução de um contrato de compra e venda de equipamentos que tinha sido celebrado entre a sociedade insolvente e a ora 1.ª Ré (ao qual respeita a fatura n.º ...26); na sequência, a 1.ª Ré propôs, contra a massa insolvente, ação de impugnação da resolução, a qual constitui o apenso C ao processo de insolvência; nessa ação, as Rés apresentaram, por requerimento de 23 de agosto de 2021, escrito em que consignaram transigir quanto ao respetivo objeto mediante a transmissão, da massa insolvente para a EMP02..., do estabelecimento industrial da insolvente, integrado por “todos os bens apreendidos para a massa insolvente (…), bem como a transferência temporária e onerosa, em conjunto com a exploração do estabelecimento que pertencia à devedora/insolvente[,] da fração autónoma composta por edifício fabril (…) melhor descrita no contrato de arrendamento celebrado em 1.05.2009”, tendo como contrapartida um preço fixado em € 500.000,00; essa transação foi homologada por sentença de 27 de agosto de 2021, que a julgou válida, quer quanto ao objeto, quer quanto à qualidade dos sujeitos intervenientes; na medida em que o estabelecimento transmitido já não existia, tal transação consubstancia a “venda de um direito inexistente (alheio)”, pelo que o “negócio é nulo por força do disposto no art. 892.º do Código Civil” (sic.); de qualquer modo, o comportamento da massa insolvente, através da respetiva administradora, na medida em que contraria a anterior declaração tácita de denúncia do contrato de arrendamento, configura um abuso do direito, “nos termos do art. 334.º do Código Civil na modalidade de venire contra factum proprium”; tendo cessado o contrato de arrendamento, “tem direito a obter a restituição do prédio arrendado e, bem assim, a receber uma indemnização pelo atraso no cumprimento da correspondente obrigação, no valor correspondente à renda (€ 4.112,18 mensais), elevado ao dobro, nos termos do disposto no art. 1045.º do Código Civil; ainda que se entenda que o contrato de arrendamento não cessou em virtude da referida denúncia tácita, sempre se tem de considerar que a transação configura uma cedência não autorizada pelo senhorio do prédio arrendado, por não existir, aquando da sua celebração, qualquer estabelecimento comercial, conferindo, assim, à Autora o direito à resolução do contrato de arrendamento (art. 1083.º, n.º 2, e), do Código Civil), com a consequente restituição do arrendado”; no mesmo pressuposto (o de que o contrato de arrendamento não cessou em virtude da referida denúncia tácita), a Autora tem direito à resolução do contrato de arrendamento, nos termos do disposto no art. 1083.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, uma vez que, a partir da data de encerramento do estabelecimento, a massa insolvente passou a usar o prédio arrendado para armazenar os bens móveis apreendidos para a massa, o que constitui fim diverso do convencionado; tem, finalmente, direito à resolução do arrendamento, “nos termos do disposto no art. 1083.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil, uma vez que a renda não é paga desde março de 2020”; em caso de resolução do arrendamento, tem também direito a obter o pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração da insolvência e das que se vencerem até à data da resolução, acrescido de uma indemnização de 20%, atenta a mora verificada, e de uma indemnização pela mora na restituição; caso se considere que a transmissão onerosa do estabelecimento operada pela transação é válida e eficaz, “devia ter sido notificada para exercer o direito de preferência consagrado no art. 1112.º, n.º 4, do Código Civil, o que não sucedeu, pelo que deve ser reconhecido o direito de haver para si o estabelecimento.”
As Rés EMP02..., Lda. e Massa Insolvente contestaram.
A Ré EMP02... alegou, em síntese: sob a epígrafe “Exceção de autoridade de caso julgado” que “a discussão que a Autora aqui pretende repetir foi decidida no apenso C, por sentença homologatória e por isso o facto – transmissão do estabelecimento – está definitivamente decidido por sentença, que constitui autoridade de caso julgado, e com ele se impede nova discussão do mesmo facto” (sic.); a Autora interpôs, no apenso C, recurso de apelação da sentença homologatória da transação, pedindo a sua revogação e extinção por outra que julgue a transação inválida e ilegal”; a procedência desse recurso levará à satisfação integral do seu interesse; a improcedência levará a que a questão da transmissão fique definitivamente resolvida; existe, portanto, causa prejudicial que deve ter como consequência a suspensão da instância; a administradora da insolvência não encerrou definitivamente a atividade da insolvente nem teve qualquer comportamento que possa ser configurado como uma denúncia tácita do contrato de arrendamento celebrado entre esta e a Autora; em 17 de outubro de 2019, a Autora propôs à sociedade insolvente a atualização do valor da renda, pelo que incorre em abuso do direito ao alegar uma hipotética denúncia tácita do arrendamento; a sua posição jurídica está tutelada em resultado das expetativas que lhe foram criadas pela administradora da insolvência e pelo tribunal ao homologar a transação; na hipótese de ser como alega a Autora, haveria uma “colisão de direito de espécie diferente, devendo prevalecer o que deva considerar-se superior”, que é o por si titulado (exercício de uma atividade industrial produtora de riqueza e geradora de postos de trabalho), uma vez que a Autora não alega qualquer prejuízo que lhe advenha da celebração da transação; não houve qualquer incumprimento das normas legais e a transmissão do estabelecimento ocorreu “não por via de um negócio inter partes, mas antes por via judicial, através da sentença homologatória” (sic.); a função do arrendado não foi alterada; após a celebração da transação, as Rés solicitaram o IBAN da Autora para procederem ao pagamento das rendas em dívida; perante a recusa desta, depositou as rendas relativas aos meses de novembro e dezembro de 2021 na Banco 1...; a Autora atua em abuso do direito uma vez que “teve oportunidade de resolver o contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas” logo em março de 2020; a Autora teve conhecimento do projeto de transação e manifestou desinteresse na aquisição do estabelecimento, pelo que é inócua a eventual omissão da comunicação para o exercício do direito de preferência; a Autora omitiu o depósito do preço, que é condição do exercício do direito de preferência, nos termos do disposto no art. 1410.º, n.º 1, do Código Civil.
Concluiu pela procedência da “exceção de autoridade de caso julgado” e, caso assim não seja entendido, pela improcedência dos pedidos formulados pela Autora.
A Ré Massa Insolvente contestou alegando, em síntese, que: o encerramento do estabelecimento foi um ato de preservação do património da insolvente, que visou impedir a laboração e gestão do negócio por parte desta; não se pretendeu pôr termo ao negócio como ativo da massa, tanto que a apreensão recaiu sobre “todo o imobilizado da insolvente do qual faz parte o estabelecimento comercial como um todo, como uma universalidade de direito, com o direito ao arrendamento incluso” (sic.); havendo dúvidas quanto ao IBAN da Autora, solicitou que esta o fornecesse; a Autora não respondeu, obstando, dessa forma, ao cumprimento da obrigação de pagamento das rendas; a Autora foi previamente avisada do projeto de transação, não reclamando a titularidade do direito de preferência.
Concluiu pela improcedência da ação.
Na sequência de despacho proferido em 19/01/2022, ordenando a notificação da Autora para, querendo, exercer o direito do contraditório quanto à matéria de exceção alegada pelas Rés, respondeu dizendo que: não existe qualquer situação de caso julgado, uma vez que o objeto da presente ação não coincide com o da ação que constitui o apenso C; não existe fundamento para a suspensão da instância, posto que a ação que constitui o apenso C não constitui causa prejudicial relativamente à presente; as Rés foram interpeladas, por carta de 22 de setembro de 2021, para procederem ao pagamento das rendas, facto que aceitaram; a consignação em depósito foi feita depois de decorrido o prazo previsto no n.º 2 do art. 1041.º do Código Civil, pelo que não fez cessar o direito à resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento das rendas.
No mais, impugnou o alegado pelas Rés, concluindo que a ação deve ser julgada procedente.
Por despacho de 14 de fevereiro de 2022, foi considerado que a ação que constitui o apenso C é causa prejudicial relativamente à presente e, com esse fundamento, suspendeu-se a instância até ao trânsito em julgado do acórdão que viesse a “versar sobre o recurso da sentença de homologação proferida.”
A Autora apelou para esta Relação.
Admitido o recurso, a instância recursiva foi declarada extinta, em 25 de outubro de 2022, por inutilidade superveniente, uma vez que, entretanto, transitou em julgado a sentença homologatória proferida no apenso C.
No prosseguimento dos autos, foi realizada a audiência prévia, tendo a Autora desistido do último pedido formulado, o que foi homologado por sentença de 22 de fevereiro de 2023, transitada em julgado.
Na mesma data, foi proferido despacho saneador em que, depois de se afirmar tabularmente a verificação dos pressupostos processuais relativos ao tribunal e às partes, foi julgada verificada a denominada “exceção de autoridade de caso julgado” (sic.) tal como arguida pela 1.ª Ré, com a consequente absolvição das Rés da instância.
Inconformada com o assim decidido a Autora interpôs recurso.
Por acórdão proferido por esta Relação de Guimarães de 28/09/2023, transitado em julgado, julgou-se a apelação procedente e, em consequência, revogou-se o despacho recorrido e julgou-se não verificada a arguida “exceção de autoridade de caso julgado”.
Em 15/11/2023, fixou-se o seguinte objeto do litígio: “Apurar se in casu se verifica os fundamentos legais que permitem condenar a massa insolvente a pagar uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente à renda, elevada para o dobro pela mora, desde a data da declaração de insolvência até à data da resolução do contrato”.
E fixaram-se os seguintes temas da prova: “- Apurar se a administradora da insolvência denunciou tacitamente o arrendamento; - Apurar se o trespasse realizado é ilegal; - Apurar se houve alteração do uso do locado; - Apurar se o não pagamento das rendas é devida a comportamento da A.; - Apurar se se verifica os requisitos de despejo e entrega do arrendado”.
Finalmente, conheceu-se dos requerimentos probatórios apresentados pelas partes e designou-se data para a realização da audiência final.
A Autora reclamou do objeto do litígio e dos temas da prova fixados pelo tribunal, sustentando que daquele objeto fazem parte todos os pedidos que formulou a título principal e subsidiário e propondo temas da prova alternativos (requerimento de 30/11/2023), tendo a reclamação sido indeferida por despacho de 23/01/2024.
Em 20/11/2023, a Ré EMP02... apresentou articulado superveniente em que requereu que se julgasse extinta a instância.
Alegou para tanto, em suma, que: após a notificação do despacho saneador tomou conhecimento do processo de execução n.º 1951/16...., a correr termos no Juízo de Execução da Vila Nova de Famalicão, instaurado em 18/03/2016, pelo Banco 2..., S.A., contra a aqui Autora, EMP01..., à ordem do qual, em 20/04/2016, foram penhorados três prédios propriedade desta, entre os quais o prédio sobre que versa a presente ação, tendo esta, sido notificada, na qualidade de depositária, para informar, por escrito, se os prédios penhorados estavam penhorados; desconhece se a Autora EMP01... deu conhecimento à agente de execução do contrato de arrendamento e da cedência do mesmo à aqui Ré EMP02..., mas presume que sim, caso contrário, não continuaria a comportar-se como senhoria e a receber as rendas e a reclamá-las judicialmente e, nem sequer teria intentado a presente ação; com a penhora do imóvel, a Autora deixou de ter a sua disponibilidade e as rendas serão entregues, nos termos do art. 756º, n.ºs 2 e 3 do CPC; aquela execução encontra-se a prosseguir para venda do imóvel; a penhora do imóvel (20/04/2016) é muito anterior à propositura da presente ação (18/10/2021) e também é anterior à declaração de insolvência (10/02/2020), pelo que, após 20/04/2016, a Autora não dispõe de legitimidade para receber quaisquer rendas do arrendado, não dispondo, por isso, de legitimidade para instaurar a presente ação.
A Autora respondeu ao articulado superveniente acabado de referir alegando, em suma: a inadmissibilidade legal daquele, sustentando que os factos alegados pela Ré não são objetivamente supervenientes, pois que o processo executivo invocado é anterior à propositura da presente ação e a Ré não alega quando é que tomou conhecimento dos factos que invoca, nem dos motivos que a impediram de ter conhecimento daqueles atempadamente, estando impedida de provar a superveniência subjetiva de tais factos; a extemporaneidade do articulado superveniente, sustentando que, em 17/01/2022, a agente de execução, em virtude do prédio penhorado se encontrar arrendado à Ré EMP02..., constituiu como novo fiel depositário AA, pessoa que se encontrava na posse do estabelecimento em nome e por conta da Ré, pelo que esta, pelo menos desde 17/01/2022 sabia, ou tinha obrigação de saber que o imóvel se encontrava penhorado, além de que, em 15/03/2023, a Ré EMP02... teve acesso ao processo de execução n.º 1951/16, data a partir do qual ficou a conhecer todos os seus termos; a manifesta improcedência da exceção invocada, alegando que a Ré EMP02... confunde ilegitimidade processual com ilegitimidade substantiva, concluindo não se verificar nenhuma dessas ilegitimidades, uma vez que, atento o pedido que formulou e a causa de pedir que alegou, dispõe de legitimidade processual ativa; quanto à ilegitimidade processual substantiva alegou que, por requerimento de 21/02/2018, junto ao processo de execução, informou que o prédio estava arrendado, na sequência do que, em 11/04/2018, o agente de execução constituiu como fiel depositário do mesmo o legal representante da arrendatária (à data a sociedade insolvente); e, em 17/01/2022, o agente de execução informou que o imóvel encontrava-se arrendado à Ré EMP02... e constituiu como fiel depositário daquele AA; e, finalmente, que o direito de crédito às rendas não foi penhorado.
Concluiu pedindo que se rejeitasse liminarmente o articulado superveniente; subsidiariamente, se julgassem as questões nele suscitadas totalmente improcedentes e que, em qualquer dos casos, se condenasse a Ré EMP02... como litigante de má-fé em multa e em indemnização, em valor não inferior a 1.000,00 euros.
A Ré EMP02... respondeu ao pedido de condenação como litigante de má-fé formulado pela Autora, concluindo pela sua improcedência. Não se descortina que sobre o articulado superveniente acabado de referir tivesse recaído qualquer despacho (expresso) do tribunal a quo.
Realizada a audiência final, em 19/07/2024, proferiu-se sentença julgando a ação totalmente improcedente e absolvendo as Rés do pedido e a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé, a qual consta da seguinte parte dispositiva: “Pelo exposto, Absolvo as RR. EMP02..., Lda. e a Massa Insolvente de EMP03..., S.A., dos pedidos contra si deduzidos pela A., EMP01..., S.A.. Absolvo a A., EMP01..., S.A., do pedido de condenação por litigância de má fé contra si formulado. Custas pela A., que lhes deu causa”.
Inconformada com o decidido a Autora, EMP01..., S.A., interpôs recurso, em que formulou as seguintes conclusões:
DO DEMÉRITO DA DEFINIÇÃO DO OBJECTO DO LITÍGIO E DOS TEMAS DAPROVA 1- Em 15.11.2023 (ref. ...95) o Tribunal proferiu o despacho a quealude o art. 596º do Código de Processo Civil (definição do objeto do litígio e dos temas da prova), tendo a Autora, em 30.11.2023 apresentado reclamação, nos termos do n.º 2 do art. 596º do Código de Processo Civil. 2- A identificação do objeto do litígio deve coincidir com as questões queas partes submetem à apreciação do juiz,delimitadoras dos seus poderes decognição,nomeadamente das questões consubstanciadas no pedido, causa depedir e matéria de exceção. 3 - Por sua vez, a enunciação dos temas da prova corresponde genericamente à enumeração das questões de facto fundamentais controvertidas. 4 - Mal andou o Tribunal recorrido ao ter decidido, à partida, e numa fase intermédia do processo, anterior à instrução, desconsiderar no objeto do litígio alguns dos pedidos formulados pela Autora, sem que, porém, tenha proferidoqualquer decisão sobre ospedidosdeduzidos nosautos (no sentidode julgar os pedidos procedentes, de julgar os pedidos procedentes improcedentes ou julgar verificada alguma exceção dilatória conducente à absolvição da instância) e relativamente aos quais terianecessariamente de proferir decisão em sede de sentença final. 5 - No caso dos autos, o objeto do litígio tinha necessariamente se ser integrado por todos os pedidos deduzidos pela Autora, uma vez que o Tribunal estava obrigado a eles dar resposta em sede de sentença final. 6 - O despacho de 05.02.2024, que indeferiu a reclamação deduzida pela Autora, padece de erro de julgamento e, como tal, deve ser o mesmo revogado e substituído por outro que julgue a reclamação da definição do objeto do litígio e dos temas da prova inteiramente procedente.
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DO DEMÉRITO DA SENTENÇA RECORRIDA 7 - Não tendo os RR sido ouvidos em sede de declarações de parte, mas antes em sede depoimento de parte - do art. 452º do Código de Processo Civil - sobre concretos e identificados factos, o Tribunal estava impedido de valorar livremente tais depoimentos (por inaplicação do art. 466º n.º 3 do Código de Processo Civil) e, pior, de valorá-los como se de testemunhas se tratassem, olvidando que as partes têm um manifesto e direto interesse na ação; O Tribunal mal andou ao atribuir aos depoimentos não confessórios dos RR. força para, desacompanhados de qualquer outra prova documental ou testemunhal, permitir a demonstração de factos favoráveis aos depoentes.
DA FALTA DE PAGAMENTO DAS RENDAS e RESOLUÇÃO CONTRATUAL
A.1.) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO FACTOS PROVADOS 7, 23, 24, 25, 27, 28, 8- FACTOS PROVADOS 23, 24 e 25: O facto provado 23º deve ser eliminado, o facto provado 24º deve ser eliminado e o facto provado 25º deve passar a ter a seguinte redação:
“A EMP02... depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021 na Banco 1...”, porquanto:
- apesar de a Ré EMP02... ter alegado na sua contestação que remeteu à EMP01... uma carta datada de 29.09.2021 (junta com a contestação da Ré EMP02...) solicitando o IBAN para o pagamento das rendas, do documento junto com essa contestação (devolução do AR) resulta que Autoranão recebeu a carta remetida (objeto não reclamado),
- a Ré EMP02... não produziu qualquer prova nos autos quanto ao concreto envio de uma concreta comunicação - com o teor da minuta da carta junta aos autos com a sua contestação -, não tendo requerido a inquirição de qualquer testemunha ou sequer mesmo a prestação de declarações de parte.
- o depoimento de parte foi prestado pelo legal representante da Ré EMP02... (BB, depoimento de parte prestado em 10.03.2024, gravado nas rotações 10:50:37 a 11:33:04) foi prestado de forma absolutamente vaga e imprecisa e absolutamente insuscetível de conduzir à prova dos factos 23, 24 e 25. 9- Caso assim não se entenda, nesse caso, ter-se-á obrigatoriamente de aditar à matéria de facto o facto cuja prova resulta do contrato de arrendamento junto aos autos pela Ré Massa Insolvente na sua contestação, cujo teor não foi colocado em causa por qualquer uma das partes:
30. No contrato de arrendamento, as partes convencionaram a seguinte forma de notificação:
Neste caso, o teor dos factos 24 e 25 tem de ser alterado no sentido de ser coincidente com o teor dos documentos juntos aos autos com a contestação da Ré, dos quais resulta que o objeto de correio foi devolvido à Ré EMP02... em 15.10.2021 com a indicação de “objeto não reclamado”, a saber:
24º- A carta referida em 23º foi devolvida à Ré EMP02... em 15.10.2021 com a indicação de “objeto não reclamado” e
25º - Em face do provado em 24º, a EMP02... depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021 na Banco 1.... 10 - FACTO PROVADO 27 e 28. Os factos 27 e 28 devem ser eliminados porquanto:
- a Ré Massa Insolvente nenhuma prova fez de que tenha oferecido à Autora o pagamento das rendas - não arrolou uma só testemunha nos autos, nem requereu as declarações de parte.
- a Ré Massa Insolvente não provou que tivesse solicitado o IBAN à Autora, porquanto não juntou aos autos documento bastante para demonstrar que a carta que alega ter remetido à Autora chegou ao conhecimento desta. 11 - Caso assim não se entenda, sempre a redação dos factos deve passar a ser seguinte:
Provados: 27- A Ré Massa Insolvente remeteu à Autora as missivas datadas de 06.09.2021 e 13.10.2021 juntas com a contestação da Ré Massa Insolvente.
28- Eliminado. /
Não provados: F- Que a Autora EMP01... tenha recebido as cartas referidas em 27 dos factos provados. 12 - FACTO PROVADO 7 e 29. Atenta a prova documental constante dos autos, deve a redação dos factos 7 e 29 ser alterada no seguinte sentido:
7- A Sra. AI não procedeu ao pagamento de qualquer renda vencida após a declaração de insolvência até 11-1-2022 e
29- A massa insolvente só pagou as rendas em atraso a 11-1-2022, após ter recebido a carta que lhe foi dirigida pela Autora, datada de 05.01.2022, junta aos autos com o requerimento de 23.01.2023, porquanto:
- a Ré Massa Insolvente jamais alegou não dispor de um NIB para a realização do pagamento das rendas. O que a Ré Massa Insolvente alegou que foi que “na incerteza sobre qual o IBAN da Autora” solicitou a sua confirmação,
- a Ré Massa Insolvente na sua contestação juntou o aditamento ao contrato de arrendamento do qual consta expressamente o NIB para a realização do pagamento das rendas
- no requerimento de 12.01.2023 a Massa Insolvente juntou aos autos o mail que alegadamente terá acompanhado pagamento das rendas realizado no dia 11.01.2022
- do doc. n.º 1 ora junto resulta que a Massa Insolvente há muito que dispunha do NIB da EMP01... para a realização do pagamento das rendas (documento cuja junção é admissível em virtude de o mesmo apenas se ter tornado necessário em virtude de o julgamento proferido na primeira instância, uma vez que o Tribunal recorrido, de forma surpreendentemente e, a nosso ver de forma ilegal, considerou acriticamente e aceitou sem qualquer reserva o depoimento prestado pela Sra. AI, olvidando tratar-se do depoimento de uma parte interessada e parcial e de um depoimento que não se mostra sustentado em qualquer outra prova suplementar). 13- FACTO PROVADO A ADITAR. Por ser essencial à decisão dos autos a prova do teor do contrato de arrendamento e respetivo aditamento (cuja prova resulta dos documentos juntos autos pela Ré MI na sua contestação e não colocada em crise pelas partes), deve ser aditado à matéria de facto o seguinte facto:
31. A Autora EMP01... e a Ré Massa Insolvente celebraram, em momento posterior à declaração de insolvência, o contrato de arrendamento datado de 01.05.2009 e, bem assim, o Aditamento celebrado a 20.12.2016, ambos juntos aos autos com a contestação da Ré Massa Insolvente.
A.2.) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO 14- A decisão recorrida padece de erro de julgamento, porquanto:
(i) Nenhuma das RR provou que as alegadas missivas remetidas a pedir o IBAN chegaram ao conhecimento da Autora e que, nesse sentido, a Autora se tenha recusado a informar o IBAN – não se verifica a mora do credor,
(ii) Nenhuma das RR alegou e provou que não dispunha dos elementos necessários ao cumprimento das suas obrigações – provou-se que ambas dispunham do IBAN para o efeito – mora do devedor.
Resulta provado nos autos (facto provado 13), que a Autora EMP01... comunicou a ambas as RR. a resolução do contrato de arrendamento, comunicação que foi recebida, quer pela Ré EMP02..., quer pela Ré Massa Insolvente, no dia 27.09.2021 (conforme decorre dos documentos comprovativos dos Correios ... juntos com a inicial). 15- Operada a resolução do contrato dispunham as RR., nos termos do art. 1084.º n.º 3 do CC, do prazo de um mês para, querendo, por fim à mora, ficando, então, sem efeito a resolução, isto é, até ao dia 27.10.2021. 16- Nos termos do disposto no Artigo 1042.º do CC - cessação da mora – o locatário pode pôr fim à mora oferecendo ao locador o pagamento das rendas ou alugueres em atraso, bem como a indemnização fixada no n.º 1 do artigo 1041º, a saber, uma indemnização igual a 20 /prct. do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento. 17- Quer a Ré EMP02..., quer a Ré Massa Insolvente, não puseram, perante a Autora EMP01..., fim à mora até ao dia 27.10.2021, e, como tal, a resolução produziu os seus efeitos. 18- A Autora não recebeu das RR. qualquer solicitação de informação do IBAN para o pagamento das rendas em atraso, e não o recebeu por factos a si não imputáveis, donde resulta com evidente clareza que mal andou o Tribunal recorrido ao considerar existir mora do credor, aqui Autora EMP01..., pois não resultou provado que a Autora tenha “obstucalizado” o cumprimento da obrigação do devedor, porquanto:
- muito embora a Ré MI tenha justificado o seu incumprimento no facto de ter solicitado à Autora a informação sobre o IBAN para o qual devia realizar o pagamento, a verdade é que não logrou provar que a Autora tenha efetivamente recebido tal solicitação, pelo que não se verifica qualquer recusa por parte da Autora em fornecer o IBAN,
- muito embora a Ré EMP02... tenha alegado que, após a homologação da transação celebrada no apenso C, diligenciou pelo pagamento das rendas vencidas, tendo solicitando a indicação do IBAN para onde pudesse ser transferido valor das rendas, a verdade é que não provou que a alegada carta remetida à EMP01... a solicitar o IBAN tenha sido por esta recebida, pelo que não se verifica qualquer recusa por parte da Autora em fornecer o IBAN,
- as alegadas comunicações, a terem sido remetidas, não chegaram ao conhecimento da Autora por culpa das RR. que, incumprindo o domicílio convencionado no contrato – cláusula 7º -, optaram alegadamente por remeter as suas missivas para morada diversa,
- mesmo que assim não fosse, sempre caberia às RR. fazer prova quanto à culpa da EMP01... na falta de receção das alegadas missivas, isto porque, nos termos do 224.º, n.º 2 e 342.º, n.º 1 do Código Civil incumbe ao emitente o ónus da prova de que a carta não foi recebida por culpa do destinatário e não preenche tal ónus a mera demonstração da devolução da carta registada com aviso de receção, constando do envelope que “não foi reclamada”, mas não existindo nenhuma prova de que tenha sido deixado aviso para o destinatário a levantar. 20- No caso dos autos, jamais ocorreu qualquer mora do credor porquanto o cumprimento da obrigação das RR não estava dependente de qualquer ato da Autora necessário ao cumprimento e, muito menos, de qualquer prestação de informação da Autora necessário ao cumprimento - art. 813º do CC -, isto porque as RR. não alegaram ou sequer provaram que, sem a indicação do IBAN pela Autora, não lhes era possível cumprir a obrigação. 21- Tendo as RR, procedido ao pagamento das rendas em mora em singelo, isto é, sem o pagamento da indemnização prevista no n.º 1 do art. 1041º do CC, sempre em qualquer caso a resolução operada pela Autora produziria os seus efeitos, em virtude de não terem sido cumpridos os requisitos necessários à extinção da mora. 22- Atento a matéria de facto dada por provada em 12., incumbia, quer à Massa Insolvente, quer à EMP02... (porque a isso se obrigou), pôr termo à mora, o que não fizeram. 23- Ademais, qualquer acordo que a Ré MI e a Ré EMP02... pudessem ter estabelecido entre si quanto à divisão da responsabilidade pelo pagamento das rendas vencidas só a si os vincula, e não vincula nem produzia efeitos em relação à EMP01..., assistindo-lhe, por força das disposições conjugadas dos art. 1112.º e art. 427º do CC, o direito de opor à cessionária Ré EMP02... os meios de defesa provenientes do contrato, isto é, opor à Ré EMP02... a falta de pagamento das rendas vencidas como fundamento de resolução do contrato. 23- Atento o exposto, assiste à EMP01... direito a (i) ver o contrato resolvido por falta de pagamento de rendas, (ii) nos termos do art. 1039º a 1041º do CC, a receber da Massa Insolvente o pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência e até à data da resolução do contrato, acrescidas de uma indemnização correspondente a 20% atenta a mora verificada, (iii) à entrega do imóvel no mesmo estado em que o recebeu, livre e desimpedido de pessoas e bens – cfr. arts. 1038º n.º 1, 1043º do CC; (iv) a receber, até ao momento da restituição, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente à renda, elevada para o dobro em caso de mora - artigo 1045.º do CC.
B) DA EXTINÇÃO DO ARRENDAMENTO POR DENÚNCIA TÁCITA DAADMINISTRADORA DE INSOLVÊNCIA
B.1.) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO 24- FACTO PROVADO 9º e 21º. Os factos 9º e 21º devem ser eliminados, porquanto a matéria em causa diz respeito à transação que foi celebrada nos autos de Apenso C e constitui uma conclusão de direito a extrair em sede de integração jurídica dos factos e não, como está bom de ver, de um facto que possa “resultar do depoimento da Sra. AI” ou do teor da transação; Caso assim não se entenda, a matéria de facto deve limitar-se aos factos suscetíveis de serem extraídos do documento, a saber: As partes declararam na transação celebrada no Apenso C que: A Ré [Massa Insolvente] aceita a proposta da Autora [EMP02...] para a aquisição do estabelecimento da insolvente, o que integra todos os bens apreendidospara a massa insolvente, nomeadamente as verbas 1 a 192, que aqui se juntam (doc. 1), bem como a transferência temporária e onerosa, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à devedora/insolvente da fração autónoma composta por edifício fabril (…) melhor descrito no contrato de arrendamento celebrado em 1-5-2009 entre a EMP01... (…) e a então arrendatária EMP04... (…), entretanto transmitido para a devedora EMP03... aqui Ré, cujo prazo inicial de 10 anos se renovou por igual prazo de 10 anos em 1-5-2019, sendo absolutamente essencial para a celebração desta transação a transmissão do locado e a manutenção do contrato de arrendamento nos termos o contrato existente. 25- FACTO PROVADO 16º deve ser julgado não provado, porquanto:
- a sua prova não resulta do teor da própria transação (conforme justificado pelo Tribunal),
- a sua prova não resulta de qualquer outra prova complementar que a Ré EMP02... tenha produzido nos autos (relembra-se, a Ré não produziu qualquer prova testemunha, não requereu qualquer depoimento de parte, nem requereu a prestação de declarações de parte),
- compulsados os autos, verifica-se exatamente a prova do oposto, porquanto na audiência de julgamento de 27/10/2020, realizada no âmbito do Apenso C, a EMP02... apresentou uma proposta para a aquisição dos bens móveis objeto da resolução do negócio (sem incluir o direito ao arrendamento). 26- FACTOS PROVADOS 17º, 22º e 26º.
A redação do facto 17º deve ser alterada no seguinte sentido:
O estabelecimento foi encerrado pela Sra. AI e não era intenção da MI reativá-lo;
A redação do facto 22 ser alterada no seguinte sentido:
Com o encerramento do estabelecimento da insolvente, este deixou de ter atividade, giro comercial, trabalhadores, clientes e fornecedores;
O facto 26 deve ser eliminado, porquanto:
- atento o depoimento prestado pela Sra. AI - CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – quanto aos factos que lhe são desfavoráveis, os documentos constantes dos autos principais e a total ausência de prova complementar quanto aos factos alegados pela Ré MI e que lhe são favoráveis, resulta evidente que a resposta dada aos factos 17º, 22º e 26º não pode manter-se,
- dos autos resulta, pelo contrário, que o direito ao arrendamento não foi apreendido nos autos, não foi inventariado nos autos, não foi anunciado para venda nos autos e, nem sequer ao mesmo foi atribuído valor para efeitos de venda, pelo que mal ao andou o Tribunal ao julgar provado que do imobilizado “faz parte o estabelecimento comercial como um todo, com o direito ao arrendamento incluso”,
- do depoimento da Sra. AI resultou a confissão de que encerrou o estabelecimento e deixou de haver qualquer giro comercial (não havia clientes, não havia fornecedores, não havia trabalhadores, não havia atividade e não havia negócio) – cfr. depoimento prestado CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – minutos 04:00 e ss.
- a Sra. AI disse ainda expressamente que jamais reativou o estabelecimento porque não era esse o objetivo - depoimento prestado CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – minutos 04:30 e ss… 27 - FACTO NÃO PROVADO A, uma vez nenhuma prova foi realizada nos autos quanto a este facto e que dos documentos dos autos resulta, pelo contrário, que o direito ao arrendamento não foi apreendido nos autos, não foi inventariado nos autos, não foi anunciado para venda nos autos e, nem sequer ao mesmo foi atribuído valor para efeitos de venda (conforme confessou a Sra. AI no seu depoimento - depoimento prestado CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – minutos 13:00 e ss), deve a redação do PONTO A DA FACTO NÃO PROVADO ser alterado no sentido de se prever:
A- Que a Sra. AI considerou útil ou vantajoso para a massa manter o estabelecimento e o contrato de arrendamento e proceder à posterior venda do conjunto da universalidade de bens e direitos. 28- FACTO PROVADO 18º deve ser eliminado, porquanto:
- o depoimento de parte da Sra. AI - CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – é insuscetível de conduzir à sua prova, pois este facto não encontra respaldo em qualquer outra prova, documental ou testemunhal, produzida nos autos,
- os documentos juntos com os autos principais (cfr. requerimento de 17/07/2020 e requerimento de 02/03/2021, ref. ...81) e do documento ora junto, infirma matéria vertida no facto 18 e demonstram que a Sra. AI, quando referiu no seu depoimento que a EMP01... jamais pediu o pagamento das rendas em atraso (CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – minutos 16:30 e ss.) ou a entrega do imóvel mentiu, revelando que o seu depoimento, por ser parcial e interessado, não merece qualquer credibilidade. 29- FACTO PROVADO 20º deve ser eliminado da matéria de facto porquanto:
- na exata medida em que a matéria vertida no facto 20 não é desfavorável à Ré EMP02... e não favorece a Autora, esta matéria jamais poderia ter sido objeto de confissão - BB, depoimento prestado na audiência de 10.03.202, gravado nas rotações 10:50:37 a 11:33:04 - cfr. 352º do C. Civil,
- a matéria dada como provada não resulta provada do depoimento do legal representante da Ré EMP02... - BB, depoimento prestado na audiência de 10.03.202, gravado nas rotações 10:50:37 a 11:33:04 - depoimento que, como se disse, foi prestado de forma absolutamente vaga e imprecisa e absolutamente insuscetível de conduzir à prova da matéria do facto 20. 30- FACTO NÃO PROVADOS B, C e D devem ser eliminados, porquanto versam sobre conclusões jurídicas que o Tribunal há-de extrair dos factos e documentos dos autos e não de matéria de facto suscetível de ser provada.
B.1.) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO 31- Conforme resulta da prova produzida, no dia 13/02/2020, a Sra. AI CC procedeu ao encerramento da atividade da insolvente, tendo procedido ao despedimento de todos os trabalhadores, cessado toda a atividade da empresa, cessado o processo produtivo e as relações contratuais em curso (a insolvente deixou de ter atividade, giro comercial, trabalhadores, clientes e fornecedores), donde decorre que se operou a extinção do estabelecimentocomercial da insolvente, passando a massa insolvente a dispor tão só de um conjunto de bens móveis (verba 1 a 192) e um imóvel (verba 193). 32- Um estabelecimento comercial é composto pelo património, engloba os bens e direitos suficientes para que o explorar possa duradouramente uma atividade económica autónoma. In casu, o “estabelecimento" deixou de dispor de clientes, de saldos de clientes, fornecedores, trabalhadores, etc. 33- Conforme resultou provado nos autos:
‣ Em 06/04/2020 a Sra. AI CC juntou aos autos o Relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, acompanhado do inventário do ativo da Insolvente. Desse inventário constavam 193 verbas. – NENHUMA DELAS DIZ RESPEITO AO CONTRATO DE ARRENDAMENTO CELEBRADO COM A EMP01... SOBRE O IMÓVEL - EDIFÍCIO FABRIL DESCRITO NA TRANSAÇÃO
‣ Em 07/20... a Sra. AI CC junta aos autos o anúncio da venda do ativo da insolvente – NESSE ANÚNCIO NENHUMA ALUSÃO SE FAZ À TRANSMISSÃO DE UM ESTABELECIMENTO OU CONTRATO DE ARRENDAMENTO, RESUMINDO O ATIVO A BENS MÓVEIS e UM IMÓVEL;
‣ Em 14/09/2020 a Sra. AI CC juntou aos autos o auto de apreensão de bens, do qual constam 193 verbas46 – mais uma vez, NENHUMA DELAS DIZ RESPEITO AO ESTABELECIMENTO OU FABRIL DESCRITO NA TRANSAÇÃO: 34 - A Massa Insolvente jamais procedeu ao pagamento de uma só renda vencida após a declaração de insolvência, como se impunha cumprir caso tivesse interesse na manutenção do contrato, facto que, conforme decorre dos requerimentos juntos aos autos principais pela Ré EMP01... (a 17/07/2020, referência citius...47, e 02/03/2021, ref. ...48) e, bem assim, do documento n.º 1 ora junto, sempre foi entendido como desinteresse em manter o arrendamento. 35 - A Sra. AI denunciou o contrato de arrendamento, ainda que tacitamente, porquanto:
45 Cfr. requerimento apresentado no apenso E, em 06/07/2020, com referência Citius n.º 10243236.
46 Cfr. requerimento apresentado no apenso E, em 14/09/2020, com referência Citius n.º 10470435.
48 Autos principais:
‣ ao encerrar o estabelecimento da insolvente,
‣ ao não proceder à inventariação de qualquer estabelecimento ou direito ao arrendamento sobre o IMÓVEL edifício fabril descrito na CRP 224/...28 ..., propriedade da EMP01...;
‣ ao não proceder à apreensão de estabelecimento ou qualquer direito ao arrendamento sobre o IMÓVEL edifício fabril descrito na CRP 224/...28 ..., propriedade da EMP01...;
‣ ao não proceder à promoção da venda de qualquer estabelecimento ou direito ao arrendamento sobre o IMÓVEL edifício fabril descrito na CRP 224/...28 ..., propriedade da EMP01...,
‣ ao não cumprir com as obrigações do contrato de arrendamento, designadamente, o pagamento da renda,
‣ ao não atribuir qualquer valor de venda ao “direito ao arrendamento”
Só se pode concluir que a Sra. AI perdeu interesse na manutenção do contrato de arrendamento e os atos praticados constituem evidências de uma denúnciatácita, denúncia que a EMP01... aceitou, tendo-se operado uma revogação tácita consensual do contrato. 36 - Atentando ao disposto no art.º 236º do Cód. Civil e à atuação manifestada nos autos pela Sra. AI, um declaratário normal, colocado na posição concreta de declaratário efetivo, concluiria com segurança que a Sra. AI denunciou o contrato de arrendamento, declaração foi aceite pela EMP01.... 37 - A massa insolvente não estava em condições de manter o cumprimento do contrato, não lhe restando alternativa senão denunciá-lo, na medida em que:
‣ de acordo com os factos provados no processo, à data do encerramento da atividade da insolvente esta já não tinha tesouraria, sendo que o valor das encomendas existentes era insuficiente para suportar as despesas correntes da insolvente ⇨ pelo que, nos termos do n.º 4 do art. 102º do CIRE49, não sendo possível à massa cumprir as rendas vincendas, a opção pela manutenção do contrato sempre seria abusiva;
49 102 n.º 4 do CIRE: A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável.
‣ tendo encerrado a atividade da empresa, a Sra. AI não tinha condições de manter a aplicação da coisa (do imóvel) ao fim a que se destinava (no contrato prevê-se que o imóvel se destina exclusivamente ao fabrico de confeções), já que após tal encerramento o imóvel passou a destinar-se exclusivamente a depósito de bens móveis. 38 - Atenta a conduta da Sra. AI e a sucessão de atos praticados no processo gerou na EMP01... a legítima expectativa e a confiança de que o contrato de arrendamento se mostrava extinto e a expectativa de, desimpedido o imóvel, ser restituída do mesmo, pelo que a atuação da Sra. AI no sentido de contemplar, sem mais e sem que nada o fizesse prever, o trespasse do arrendamento na transação celebrado no Apenso C dos autos, arrogando-se titular de um direitoao arrendamento, é suscetível de consubstanciar um abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil na modalidade de “venire contra factum proprium”. 39 - Assim,
‣ A conduta da Sra. AI e a sucessão de atos praticados no processo traduziu-se numa manifesta falta de interesse em manter o arrendamento e cumprir as prestações contratuais, motivo pelo qual não podia deixar de ser entendido por parte da EMP01... como uma denúncia ao contrato de arrendamento, ainda que tácita, tanto mais que, nos termos da lei, a massa insolvente não estava em condições de manter o cumprimento do contrato, não lhe restando alternativa senão denunciá-lo;
‣ A atuação da Sra. AI no sentido de contemplar, sem mais e sem que nada o fizesse prever, o trespasse do arrendamento na transação celebrado no Apenso C dos autos, arrogando-se titular de um direito ao arrendamento, é suscetível de consubstanciar um abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil na modalidade de “venire contra factum proprium”. 40 - Mostrando-se o contrato cessado, por força da denúncia operada, tem a EMP01... direito:
(i) a ver declarada a ilegalidade do contrato de trespasse celebrado, na medida que se trata de um ato de venda de um direito inexistente (alheio) – pelo que negócio é nulo por força do disposto no artigo 892º do CC;
(ii) à entrega do imóvel no mesmo estado em que o recebeu, livre e desimpedido de pessoas e bens – cfr. arts. 1038º n.º 1, 1043º do CC;
(iii) a receber, até ao momento da restituição, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente à renda, elevada para o dobro em caso de mora - artigo 1045.º do CC.
C) DA ILEGALIDADE DO TRESPASSE – INEXISTÊNCIA DE UMESTABELECIMENTO SUSCETÍVEL DE SER OBJECTO DE TRESPASSE
C.1.) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
(A matéria de facto com interesse para o conhecimento desta questão jurídica, foi já objeto de impugnação no ponto III – B).1, que aqui se dá por reproduzido.)
C.2.) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO 41 - Aos contratos de arrendamento celebrado entre o locatário e o insolvente é aplicável, não é o regime do art. 102º do CIRE, mas sim o art. 108º do CIRE, que de forma expressa prevê que a declaração de insolvência NÃO SUSPENDE o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior. 42 - O trespasse realizado por transação celebrada no Apenso C comporta um a prática de um ato ilegal na medida que, não tendo a Sra. AI procedido à apreensão do direito ao arrendamento, a MI não dispunha desse ativo de molde a poder ser transmitido em sede de liquidação, por força do disposto no art. 158.º do CIRE. 43 - O direito ao trespasse – enquanto cessão da posição contratual no arrendamento sobre imóvel – depende, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 1112º do CC - da inexistência de um estabelecimento trespassável, isto é, de uma unidade de bens (móveis e/ou imóveis), ativos (tais como marcas, know how, trabalhadores, carteira de clientes, fornecedores etc.) e direitos e/ouobrigações, que constituem uma universalidade de direito indissociável e com girocomercial. 44 - IN CASU, a Sra. AI CC, procedeu ao encerramento da atividade do estabelecimento, procedeu ao despedimento de todos os trabalhadores da sociedade insolvente, cessou o processo produtivo, as relações contratuais em curso e todos os direitos e obrigações em curso, deixando de dispor de clientes, de saldos de clientes, fornecedores, trabalhadores, etc., tendo-se operado a extinção do estabelecimento comercial da insolvente. 45 - A transação celebrada nos autos, através da qual foi realizada a transmissão da posição de arrendatário, teve por objeto exclusivo (a par do arrendamento) a transmissão de 192 verbas de bens móveis, o que, por si só, não constitui um núcleo essencial organizativo apto a gerar lucros. 46 -Extinto o estabelecimento comercial da insolvente e inexistindo qualquer universalidade de bens e direitos indissociáveis evidente se torna que o recurso ao instituto previsto na al. a) do n.º 1 do art. 1112º do CC é ilegal, em virtude de não se verificarem os respetivos requisitos e pressupostos de facto. 47 - Sendo o trespasse absolutamente ilegal estamos perante uma cedência de gozo do imóvel não autorizada e, como tal, ilícita. – cfr. 1038º al. f), 1083º n.º 2 al. e) do CC, assiste à EMP01... direito a:
(i) nos termos do art. 1083º n.º 2 al. e) do CC, ver o contrato resolvido com base em incumprimento pela outra parte, operando-se a resolução da data da citação da Ré para os termos da ação;
(ii) nos termos do art. 1039º a 1041º do CC, a receber da Massa Insolvente o pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência e até à data da resolução do contrato, acrescidas de uma indemnização correspondente a 20% atenta a mora verificada;
(iii) à entrega do imóvel no mesmo estado em que o recebeu, livre e desimpedido de pessoas e bens – cfr. arts. 1038º n.º 1, 1043º do CC;
(iv) a receber, até ao momento da restituição, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente à renda, elevada para o dobro em caso de mora - artigo 1045.º do CC.
D) DA ALTERAÇÃO DO USO DO LOCADO
D.1.) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO 48 - Do depoimento prestado pelo legal representante da Ré - BB, depoimento prestado na audiência de 10.03.202, gravado nas rotações 10:50:37 a 11:33:04, minutos 24:00 e ss. – resultou confessado que o imóvel se encontra fechado há mais de um ano, uma vez que no imóvel não é exercida qualquer atividade, pelo que deve ser aditado à matéria de facto provado, a seguinte matéria:
32 – O imóvel encontra-se fechado há mais de um ano, uma vez que nele não é exercida qualquer atividade industrial.
D.2.) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO 49 - Resulta provado nos autos que:
- a sociedade insolvente EMP03... exercia no local arrendado uma atividade industrial, de produção e comercialização de artigos têxteis, atividade que exerceu até que, após a declaração de insolvência, a Sra. AI decidiu encerrar o estabelecimento da Insolvente.
- desde a data de encerramento do estabelecimento, o local arrendado passou a funcionar apenas como armazém dos bens móveis que a Sra. AI se propunha vender em liquidação, tendo a Sra. AI, de forma unilateral, atribuiu ao locado um uso distinto daquele fixado no contrato de arrendamento.
- Apesar de no imóvel ter sido temporariamente exercida a atividade de industria têxtil (durante cerca de um ano e meio e por uma entidade terceira a quem a Ré EMP02... terá “subarrendando” o imóvel), há mais de um ano que nele não é exercida qualquer atividade, encontrando-se o mesmo fechado. 50 - Quer a atuação da Sra. AI, quer a atuação da Ré EMP02..., ao terem destinado o locado para um fim diverso do contratualmente atribuído – destino que aliás se mantém na data de interposição da presente ação - constitui um motivo fundamentador de resolução do contrato de arrendamento - nos termos do artigo 1038.º, alínea c), e artigo 1083.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código Civil. 51- A Massa Insolvente, e agora a EMP02..., mantêm o imóvel permanente encerrado deste o momento do encerramento do estabelecimento, facto que viola o interesse do senhorio em que não ocorra deterioração do prédio em virtude do encerramento por um período longo e em que não sofra uma desvalorização comercial do local com a cessação de atividade do estabelecimento. 52 - Tendo a Sra. AI e a Ré EMP02... destinado o imóvel a fim diverso ao previsto no contrato de arrendamento – destino diverso que se mantém na data da interposição da presente ação, e tendo conservado o imóvel encerrado, por mais de um ano - encerramento que se mantém na data da interposição da presente ação, assiste à EMP01... direito a:
(i) ver o contrato resolvido com base em incumprimento pela outra parte, operando-se a resolução da data da citação da Ré para os termos da ação,
(ii) nos termos do art. 1039º a 1041º do CC, a receber da Massa Insolvente o pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência e até à data da resolução do contrato, acrescidas de uma indemnização correspondente a 20% atenta a mora verificada,
(iii) à entrega do imóvel no mesmo estado em que o recebeu, livre e desimpedido de pessoas e bens – cfr. arts. 1038º n.º 1, 1043º do CC;
(iv) a receber, até ao momento da restituição, uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente à renda, elevada para o dobro em caso de mora - - Artigo 1045.º do cc.
Termos em que, dando-se provimento ao recurso, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outro nos moldes propugnados, fazendo-se desta forma JUSTIÇA.
Juntou em anexo às alegações de recurso documentos consubstanciado em correio eletrónico.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e como efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser, nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
1- Se é legalmente consentido à recorrente juntar aos autos os documentos que apresenta em anexo às alegações de recurso?
2- Se o despacho proferido em 23/01/2024, que indeferiu a reclamação apresentada pela recorrente contra o objeto do litígio e os temas da prova que foram fixados em 15/11/2023, padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe a sua revogação e julgar a reclamação procedente e fixar o objeto do litígio e os temas da prova nos precisos termos apontados pela recorrente naquela reclamação?
3- Se na sentença recorrida o tribunal a quo incorreu em erro de direito ao valorar os depoimentos prestados pelos legais representantes das recorridas (Rés), sem valor confessório, para julgar provada facticidade que lhes é favorável, quando aqueles depuseram em sede de depoimento de parte (e não de declarações de parte), olvidando que as partes têm manifesto e interesse direto no resultado da ação e que, por isso, os depoimentos daqueles não podem ser valorados para se julgar provada facticidade favorável às recorridas, sem que esses depoimentos sejam corroborados por outros elementos de prova, designadamente, prova documental e/ou testemunhal?
4- Se naquela sentença o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto na vertente de deficiência e, bem assim, ao ter julgado provada a facticidade dos pontos 7º, 9º, 16º, 17º, 18º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º e 29º, bem como, ao ter julgado não provada a facticidade das alíneas A, B, C e D e se, uma vez revisitada e reponderada a prova produzida se impõe:
- Quanto à facticidade julgada provada no ponto 7º, julgar apenas provado que: “17- A administradora da insolvência não procedeu ao pagamento de qualquer renda vencida após a declaração da insolvência até 11/01/2022”?
- Quanto à facticidade julgada provada no ponto 16º, a mesma tem de ser julgada não provada?
- Quanto à facticidade julgada provada nos pontos 23º, 24º e 25, tem de ser julgada não provada, ou, subsidiariamente, impõe-se aditar ao elenco dos factos provados o teor da cláusula 7º do contrato de arrendamento celebrado e, bem assim, que: “A carta referida no ponto 23º dos factos provados foi devolvida à Ré EMP02... em 15/10/2021, com a indicação de “objeto não reclamado”? “Em face do que, a Ré EMP02... depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021”? - Quanto à facticidade julgada provada nos pontos 17º e 22º, esta tem de ser alterada, julgando-se provado apenas que: “17 – O estabelecimento foi encerrado pela administradora da insolvência e não era intenção da MI reativá-lo”? “22- Com o encerramento do estabelecimento da insolvente, este deixou de ter atividade, giro comercial, trabalhadores, clientes e fornecedores”?
- Quanto à facticidade julgada provada nos pontos 18º, 20º e 26º, tem de ser julgada não provada?
- Quanto à facticidade julgada provada nos pontos 27º e 28º, esta tem de ser julgada não provada, ou, subsidiariamente, impõe-se alterar os factos julgados provados no ponto 27º para o seguinte: “27- A Ré massa insolvente remeteu à Autora as missivas datadas de 06/09/2021 e 13/10/2021, juntas com a contestação da Ré massa insolvente”?
Aditar ao elenco dos factos julgados não provados na sentença que: “A Autora EMP01... tenha recebido as cartas referidas em 27º dos factos provados”?
E eliminar a facticidade julgada provada no ponto 27º?
- Quanto à facticidade julgada provada no ponto 29º, esta tem de ser alterada, julgando-se provado que: “29- A massa insolvente só pagou as rendas em atraso a 11/01/2022, após ter recebido a carta que lhe foi dirigida pela Autora, datada de 05/01/2022, junta aos autos com o requerimento de 23/01/2023”?
- Quanto à facticidade julgada provada nos pontos 9º e 21º tem de ser julgada não provada, ou, subsidiariamente, tem de ser alterada, julgando-se provado que: “As partes declararam na transação celebrada no apenso C que a Ré massa insolvente aceita a proposta da Ré EMP02... para aquisição do estabelecimento da insolvente, o que integra todos os bens apreendidos para a massa insolvente, nomeadamente as verbas 1 a 192, bem como a transferência temporária e onerosa, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à devedora/insolvente da fração autónoma composta por edifício fabril, melhor descrito no contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2009 entre a EMP01... e a então arrendatária EMP04..., entretanto transmitido para a devedora EMP03..., aqui Ré, cujo prazo inicial de 10 anos se renovou por igual prazo de 10 anos em 01/05/2019, sendo absolutamente essencial para a celebração desta transação a transmissão do locado e a manutenção do contrato de arrendamento nos termos do contrato existente”?
- Quanto à facticidade julgada não provada sob a alínea A) tem de ser alterada, julgando-se não provado o seguinte: “A- A administradora da insolvência considerou útil ou vantajoso para a massa manter o estabelecimento e o contrato de arrendamento e proceder a posterior venda do conjunto da universalidade de bens e direitos”?
- Quanto à a facticidade julgada não provada nas alíneas B, C e D, esta deve ser eliminada do elenco dos factos julgados não provados na sentença, dado não conterem qualquer matéria de facto, mas apenas conclusões que o tribunal há-de extrair dos factos e documentos juntos aos autos?
- Por se mostrar essencial para a decisão de mérito a proferir, impõe-se aditar ao elenco dos factos provados na sentença a seguinte facticidade: “31- A Autora EMP01... e a Ré Massa Insolvente celebraram, em momento posterior à declaração de insolvência, o contrato de arrendamento datado de 01/05/2009 e, bem assim, o aditamento celebrado a 20/12/2016, ambos juntos aos autos com a contestação da Ré Massa Insolvente”? “32- O imóvel encontrava-se fechado há mais de um ano, uma vez que nele não era exercida qualquer atividade industrial”?
5- Se, na sequência da impugnação com êxito do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente, ou independentemente desse êxito, a decisão de mérito constante da sentença recorrida (que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu as recorridas do pedido principal e dos sucessivos pedidos subsidiários que formulou), padece de erro de direito e, em consequência, se impõe a sua revogação e condenar as recorridas no pedido principal ou num dos sucessivos pedidos subsidiários formulados pela recorrente?
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão de mérito a proferir na presente ação:
1- Entre o dia 28-10-2019, em que foi nomeada AJP, e 20-1-2020, altura em que foi remetido aos autos requerimento informando não haver plano de recuperação, correu termos o processo especial de revitalização da sociedade EMP03..., S.A., n.º 6405/19...., do Juiz ..., deste Tribunal, tendo posteriormente sido proferida sentença de declaração de insolvência a 10-2-2020.
2- No dia 13-2-2020 a AI, Dra. CC, procedeu ao encerramento da atividade da insolvente, cessando o processo produtivo.
3- Para o efeito desligou o sistema informático da insolvente.
4- E procedeu ao despedimento de todos os trabalhadores da insolvente sem prestar qualquer aviso prévio.
5- A AI, Dra. CC, nunca procedeu à apreensão do estabelecimento ou direito ao arrendamento sobre o imóvel edifício fabril descrito na CRP ..., ..., propriedade da EMP01... - certidão predial, relatório 155º, de 6-4-2020, com inventário do ativo, auto de apreensão de 14-9-2020.
6- A 6-7-2020 a AI Dra. CC juntou aos autos o anúncio da venda do ativo da insolvente resumindo-o a bens móveis e um imóvel, sem fazer qualquer alusão à transmissão de um estabelecimento ou contrato de arrendamento.
7- A Sra. AI não procedeu ao pagamento de qualquer renda vencida após a declaração de insolvência até 11-1-2022, após a A. ter remetido por carta o seu NIB.
8- À data do encerramento da atividade da insolvente esta já não tinha tesouraria, sendo que o valor das encomendas existentes era insuficiente para suportar as despesas correntes da insolvente.
9- A Sra. AI procedeu ao trespasse do estabelecimento comercial da insolvente, com o arrendamento na transação celebrada no apenso C.
10- Desde a data do encerramento do estabelecimento da insolvente o local arrendado passou a funcionar como armazém dos bens móveis da insolvente.
11- A 27-8-2021 foi homologada por sentença a transação celebrada entre a massa insolvente da EMP03... e a EMP02....
12- Na própria transação ficou estabelecido que a EMP02... se responsabilizaria pelo pagamento de todas as rendas em mora.
13- Por carta datada de 22-9-2021, que aqui se dá por integralmente reproduzida, a EMP01... comunicou à EMP02... que fazia operar a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no incumprimento reiterado da obrigação de pagamento das rendas vencidas há mais de três meses, nos termos do disposto nos artigos 1083º, n.ºs 1, 3 e 4 e artigo 1084º do Código Civil, o que constitui causa para despejo.
14- Tal missiva foi simultaneamente remetida para a Dra. CC, administradora judicial da insolvente e para a EMP02..., Lda.
15- A EMP02... não entregou o locado.
16- Se não fosse a transmissão do arrendamento para a EMP02..., esta não teria interesse na transação que celebrou no apenso C.
17- O estabelecimento foi encerrado até decisão final sobre o destino a dar ao estabelecimento.
18- A A. não exigiu a entrega do local arrendado invocando a resolução do contrato de arrendamento com o não pagamento das rendas antes da carta de 22-9-2021.
19- A A. remeteu a 17-10-2019 carta à então arrendatária EMP03..., propondo a atualização do valor das rendas – fls. 54 dos autos.
20- A EMP02... reativou a unidade produtiva da EMP03... readmitindo trabalhadores, pondo as máquinas a funcionar e negociando com clientes e fornecedores, reativando o giro comercial.
21- Da transação celebrada entre as RR. consta que a aquisição do estabelecimento integra todos os bens apreendidos para a massa insolvente, bem como a transferência do direito ao arrendamento, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à insolvente.
22- Com o encerramento do estabelecimento da insolvente a atividade industrial apenas ficou suspensa por um período de um ano e meio e com ela os negócios, a clientela e o giro comercial, até que fosse encontrada a solução jurídica para o destino da insolvente.
23- A EMP02... respondeu à carta da A. com carta datada de 29-9-2021 solicitando indicação de IBAN para onde pudesse ser transferido o valor das rendas – fls. 55 verso e 56.
24- A A. recusou-se a receber essa carta e não indicou qualquer IBAN.
25- Em face dessa recusa a EMP02... depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021 na Banco 1....
26- A AI encerrou o estabelecimento para preservar todo o imobilizado da insolvente, da qual faz parte o estabelecimento comercial como um todo, com o direito ao arrendamento incluso.
27- O valor das rendas vencidas até à adjudicação do estabelecimento à EMP02... foi oferecido pela massa insolvente à A. tendo-lhe solicitado por duas vezes através de cartas registadas com A/R que informasse o seu IBAN.
28- A A. não lhes respondeu por qualquer meio – fls. 68 verso, 69 e verso.
29- A massa insolvente só pagou as rendas em atraso a 11-1-2022, após a A. lhe ter fornecido o IBAN.
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E julgou não provado o seguinte:
A- Que a Sra. AI não considerou útil ou vantajoso para a massa manter o estabelecimento e o contrato de arrendamento e proceder à posterior venda do conjunto da universalidade de bens e direitos.
B- Que a A. EMP01... aceitou uma denúncia tácita do contrato de arrendamento pela Sra. AI, Dra. CC.
C- Que a conduta da Sra. AI gerou na EMP01... a convicção de que o contrato de arrendamento se mostrava extinto e a expectativa de lhe ser restituído o imóvel.
D- Que por causa dessa convicção a EMP01... considerou desnecessário proceder à prévia e formal resolução do contrato de arrendamento.
E- Que o pagamento da renda pela EMP02... devia ser realizado na sede da EMP01... através de cheque.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A- Da admissibilidade legal da junção aos autos dos documentos apresentados pela recorrente com as alegações de recurso
Em anexo às alegações de recurso a recorrente juntou aos autos vários documentos que consubstanciam correio eletrónico datado de 30/04/2020 e 08/07/2020, e alegou como razão justificativa dessa junção os erros de julgamento da matéria de facto em que, na sua perspetiva, incorreu o tribunal a quo ao julgar provada a facticidade dos pontos 7º, 18º e 29º.
Referindo-se ao erro de julgamento que assaca à facticidade julgada provada pela 1ª Instância nos pontos 7º e 29º alegou que: “Do doc. n.º 1 ora junto resulta que a Massa Insolvente há muito que dispunha do NIB da EMP01... para a realização do pagamento das rendas”. A junção do mencionado documento “é admissível em virtude de o mesmo se ter tornado necessário em virtude de o julgamento proferido na primeira instância, uma vez que o tribunal recorrido, de forma surpreendentemente e, a nosso ver de forma ilegal, considerou acriticamente e aceitou sem qualquer reserva o depoimento prestado pela Sr.ª AI, olvidando tratar-se do depoimento de uma parte interessada e parcial e de um depoimento que não se mostra sustentado em qualquer outra prova suplementar” – cfr. teor da conclusão 12ª das alegações de recurso.
A respeito da impugnação do julgamento da matéria de facto quanto à facticidade julgada provada pela 1ª Instância no ponto 18º, alegou que: “Os documentos juntos com os autos principais (cfr. requerimento de 17/07/2020 e requerimento de 02/03/2021, ref. ...81) e do documento ora junto, infirma a matéria vertida no facto 18 (…)” – cfr. teor da conclusão 28º das alegações de recurso.
Vejamos se perante os fundamentos justificativos que se acabam de transcrever assiste à recorrente o direito de juntar aos autos os identificados documentos na fase de recurso.
Com o intuito de promover a boa fé e a celeridade processuais (pondo termo às práticas recorrentes que até aí se assistiam, em que, no decurso da audiência de julgamento, em função da prova que ia sendo nela produzida, as partes iam libertando, em função dos seus interesses e conveniências, documentos com a finalidade de contrariar a prova à medida em que esta ia sendo produzida, numa atitude gravemente atentatória da boa-fé processual e da igualdade das partes, sem se falar das perturbações processuais que tal prática acarretava para a celeridade processual, levando a constantes interrupções da audiência final), a Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que reviu o CPC, alterou profundamente o regime processual quanto aos termos em que é consentido às partes juntarem ao processo prova documental.
Na sequência daquela revisão do CPC, no âmbito da ação declarativa, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, isto é, os documentos destinados a fazer prova da facticidade alegada na petição inicial devem ser juntos pelo autor com o identificado articulado inicial, base da ação declarativa, enquanto os destinados a fazer prova dos factos alegados na contestação devem ser juntos pelo réu com esse articulado (art. 423º, n.º 1).
Em sede de ação declarativa, a prova documental pode ainda ser junta até ao 20º dia anterior à data em que se realize efetivamente a audiência final, ou, comportando esta várias sessões, em que tenha início a sua realização (data da realização da primeira sessão de julgamento), mas, nesse caso, o apresentante ficará sujeito a multa, exceto se provar que não o pôde oferecer com o articulado (n.º 2 do art. 423º).
Posteriormente ao vigésimo dia que antecede o início efetivo da audiência final e até ao encerramento da discussão em 1ª Instância[2] podem ainda ser juntos ao processo documentos desde que se verifique alguma das seguintes circunstâncias: a) se a apresentação do documento não foi possível até àquela data limite, ou b) se a junção se tiver tornado necessária em consequência de ocorrência posterior (n.º 3 do art. 423º).
No que respeita à primeira das mencionadas exceções, a impossibilidade da parte de apresentar o documento antes do vigésimo dia que antecede a realização efetiva da audiência final, ou, no caso desta comportar várias sessões, até ao início efetivo da primeira sessão de julgamento, pode ser objetiva ou subjetiva.
Ocorre uma situação de impossibilidade objetiva quando não era possível - em termos práticos, materiais ou ontológicos - ao apresentante juntar o documento em causa ao processo até ao vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final, por aquele respeitar a factos ocorridos historicamente após essa data limite. E ocorre uma situação de impossibilidade subjetiva quando, apesar do documento respeitar a factos ocorridos historicamente antes do decurso daquela data limite, o apresentante não o pôde juntar ao processo até à referida data limite do vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final por facto que não lhe é imputável a título de culpa, nomeadamente, negligência (v.g., a parte desconhecia, sem culpa, da existência do documento, vindo apenas a tomar conhecimento da sua existência após o decurso daquela data limite, ou o documento refere-se a factos ocorridos historicamente próximo daquela data limite, e apesar da parte ter requerido prontamente a sua emissão à entidade pública competente, esta apenas o veio a emitir já após o decurso do vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final).
Na impossibilidade objetiva essa impossibilidade resulta evidenciada pelo próprio teor do documento, pelo que, aquando da sua junção ao processo, não é necessário que o apresentante alegue o motivo justificativo para a junção tardia.
Tratando-se, porém, de uma situação de impossibilidade subjetiva, o apresentante terá de alegar e provar factos de onde decorra que a junção intempestiva do documento não lhe é imputável a título de culpa[3].
Acresce que, quer na situação de impossibilidade objetiva, quer na subjetiva, a parte tem de requerer a junção ao processo do documento logo que isso se lhe torne possível, sem aguardar qualquer dilação[4].
Quanto à outra situação excecional em que o n.º 3 do art. 423º consente a junção de documentos ao processo após o decurso da data limite do vigésimo dia que antecede o início efetivo da audiência final e até ao encerramento da discussão em 1ª Instância – a junção se ter tornado “necessária em virtude de ocorrência posterior” –, o elemento legitimador da junção tardia assenta na “ocorrência posterior” ao decurso daquele prazo limite, isto é, o documento tem de se destinar a fazer prova ou contraprova de factos ocorridos historicamente após o termo daquele prazo limite[5].
Após o encerramento da discussão em 1ª Instância não é, em princípio, consentida a junção de documentos ao processo, por tal implicar uma violação ao princípio do contraditório, exceto se for interposto recurso da sentença e nos termos limitados dos arts. 425º e 651º, n.º 1.
Com efeito, no caso de recurso, as disposições legais acabadas de referir consentem que recorrente e recorrido juntem ao processo, com as alegações ou contra-alegações de recurso, respetivamente, documentos em duas situações excecionalíssimas: a) a junção do documento não ter “sido possível até àquele momento”, isto é, até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, por impossibilidade objetiva ou subjetiva[6], com o sentido e o alcance já acima sobejamente enunciados; ou b) a junção do documento se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância.
No que respeita a esta última situação em que é excecionalmente admitida a junção de documentos com as alegações ou as contra-alegações de recurso, essa possibilidade tem como pressuposto que a decisão proferida pela 1ª Instância se revele de todo surpreendente para as partes relativamente ao que seria expectável em face dos elementos do processo, ou seja: é necessário que a decisão em causa se tenha baseado em meio de prova não esperado, designadamente, em meio probatório oficiosamente junto ao processo, quando já não era possível ao apresentante munir-se em tempo útil do documento que intenta juntar na fase de recurso com o propósito de fazer a contraprova da facticidade que o julgador a quo julgou provada ou não provada em função do documento que requisitou oficiosamente; ou nos casos em que a decisão proferida assentou em preceito jurídico ou em interpretação de preceito jurídico com cuja invocação/interpretação as partes não tivessem justificadamente contado[7].
Dito por outras palavras, para que a junção do documento seja permitida na fase de recurso, não basta que essa junção se tenha tornado necessária em face do julgamento realizado pelo tribunal recorrido, mas é imprescindível que apenas se tenha tornado necessária em virtude desse julgamento, ou seja, que a decisão proferidase tenha ancorado num elemento de cariz “inovatório” para as partes.
Deste modo, se a junção do documento era necessária para fundamentar a ação ou a defesa antes de ser proferida a decisão da 1ª Instância, e se essa decisão se baseou em meio de prova com que as partes podiam legítima e razoavelmente contar - como é o caso de depoimentos de parte ou de testemunhas, prova documental, pericial ou por inspeção judicial, respetivamente, arrolados e requeridos pelas partes ou oficiosamente determinadas pelo juiz (mas, neste último caso, em momento processual em que ainda era possível às mesmas, até ao encerramento da discussão em 1ª instância carrearem para o processo o documento que se propõem juntar na fase recurso, com vista a contrariar a prova produzida por determinação oficiosa) -, então a sua junção na fase de recurso não ocorre em virtude do julgamento realizado pelo julgador a quo, na medida em que as partes tiveram oportunidade de controlar a prova produzida em que assentou a decisão proferida, e tiveram, inclusivamente, oportunidade de juntar ao processo o documento que se propõem juntar na fase de recurso.
Neste sentido expendem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro que: “A apresentação do documento não se torna necessária em virtude de ocorrência posterior quando uma testemunha alude a um facto, ainda que em sentido contrário ao pretendido pelo apresentante, se se tratar de um facto essencial já alegado – ou de um facto puramente probatório. A ocorrência que torna necessária a apresentação deste meio de prova é a pretérita alegação desta matéria cabendo a situação no n.º 1 deste artigo” (art. 423º)[8].
Destarte, apenas quando a decisão da 1ª Instância se baseou em meio probatório não oferecido pelas partes, mas junto ao processo por iniciativa oficiosa, em momento processual em que já não lhes era possível apresentar o documento que intentam juntar aos autos na fase de recurso até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, ou quando a decisão proferida assente em regra de direito ou em interpretação de regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não podiam cogitar, em obediência ao princípio do contraditório, na sua dimensão positiva de proibição de prolação de decisões-surpresa (art. 3º, n.º 3 do CPC), é admitida a junção do documento ao processo na fase de recurso, dado o cariz inovador da decisão recorrida[9].
Com efeito, destinando-se os recursos a sindicar decisões judiciais por tribunal hierarquicamente superior, aqueles têm como único objetivo o reexame da decisão recorrida e não criar decisões sobre matéria nova, pelo que apenas nos casos em que a decisão recorrida apresente cariz inovatório é consentido a recorrente e recorrido juntarem na fase de recurso prova documental com vista a contrariar a mesma.
Por isso, não é consentido juntar documentos ao processo na fase de recurso quando a decisão recorrida nada de novo tenha relativamente ao que era expectável para as partes em termos de elementos probatórios, de julgamento da matéria de facto e/ou de julgamento da matéria de direito.
Na verdade, na ausência de qualquer caráter inovatório que impregnasse a decisão recorrida quanto aos aspetos acabados de referir, a admitir-se a junção de novos documentos ao processo na fase de recurso estaria a permitir-se um elemento de prova ao qual o julgador a quo não teve acesso e em que, portanto, não assentou o julgamento da matéria de facto que realizou e o subsequentemente julgamento da matéria de direito que preside ao dictat autoritário quanto ao modo como decidiu o litígio entre os pleiteantes que consta da parte dispositiva da sentença, em violação flagrante ao princípio do contraditório, em virtude desse (novo) documento não ter sido submetido a audiência contraditória; e contrariando-se as finalidades que presidem ao recurso, que é o reexame da matéria de facto e de direito que foi apreciada em sede de decisão recorrida, ao considerar um novo meio de prova que não constava do processo e que, por isso, não pôde ser considerado pelo julgador a quo e em que, por isso, não se baseou o julgamento da matéria de facto que realizou, e, por consequência, o julgamento da matéria de direito e a decisão que proferiu quanto ao modo como solucionou o litígio.
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, os documentos juntos pela recorrente com as alegações de recurso destinam-se, segundo a própria, a demonstrar que ao julgar provada a facticidade dos pontos 7º (em que a 1ª Instância julgou provado que: “A Sr.ª AI não procedeu ao pagamento de qualquer renda vencida após a declaração de insolvência até 11/01/2022, após a Autora ter remetido por carta o seu NIB), 29º (em que julgou provado que: “A massa insolvente só pagou as rendas em atraso a 11/01/2022, após a Autora lhe ter fornecido o IBAN”) e 18º (em que julgou provado que: “A Autora não exigiu a entrega do local arrendado invocando a resolução do contrato de arrendamento com o não pagamento das rendas antes da carta de 22/09/2021”) o julgador a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto.
Sucede que, nos pontos 88º a 98º da petição inicial a recorrente alegou que, por carta datada de 22/09/2021, resolveu o contrato de arrendamento com fundamento na circunstância de não lhe terem sido pagas as rendas do arrendado dos meses de março de 2020 a outubro de 2021.
A recorrida EMP02... contrapôs a essa alegação sustentando, nos arts. 96º a 101º da contestação (cfr. fls. 51 verso a 52 do processo físico) que, por carta de 29/09/201 respondeu àquela missiva que lhe fora enviada pela recorrente (Autora) e que, “aproveitando essa resposta, a Ré solicitou a indicação do IBAN para onde pudesse ser transferido o valor das rendas. A Autora recusou-se a receber essa carta/resposta e, por isso, não indicou qualquer IBAN para onde a Ré pudesse efetuar o pagamento das respetivas rendas. Em face dessa recusa e embora a isso não fosse obrigada, por cautela, a Ré depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021 (o contrato previa a antecipação de 1 mês de rendas) na Banco 1.... Sendo certo que, por indicação da Ré/AJ, a Autora teria também recusado receber as rendas devidas pela MI. Por isso, a Autora só não recebeu o valor das rendas desde março de 2020, porque não quis”.
Por sua vez, a recorrida Massa Insolvente contrapôs à alegação da recorrente, nos pontos 21º a 23º da contestação (cfr. fls. 62 verso a 63 do processo físico) o seguinte: “O valor das rendas vencidas até à adjudicação do estabelecimento à 1ª Ré, encontrava-se na posse da Massa Insolvente e foi oferecido à Autora para o pagamento dessas rendas. Sucede que, na incerteza sobre qual o IBAN da Autora, foi-lhe solicitado, por duas vezes, através de cartas registadas com a/r pela Ré aqui contestante, que procedesse a essa informação, conforme cópias das cartas enviadas que aqui se juntam como Docs. 2 e 3 e dão por reproduzidas para os devidos e legais efeitos, não se dignando aquela a responder por qualquer meio. Pelo que, não pôde a Ré proceder ao pagamento das referidas rendas, pois a Autora na qualidade de credores desses valores, impede esse pagamento até esta data”.
Ou seja, à pretensão da recorrente em resolver o contrato de arrendamento respeitante ao prédio onde se encontrava instalado o estabelecimento fabril trespassado pela Ré Massa Insolvente à Ré EMP02..., com fundamento no não pagamento das rendas dos meses de março de 2020 a outubro de 2021, inclusive, resolução essa que teria sido operada por carta datada de 22/09/2021, que a recorrente remeteu à Rés EMP02... e Massa Insolvente, estas, com a alegação acabada de transcrever, opuseram a essa pretensão resolutiva a exceção da mora da própria recorrente, alegando que lhe solicitaram, por cartas, informação sobre o IBAN em que deveriam proceder ao depósito do valor daquelas rendas que estavam por liquidar, e que foi esta (recorrente) que não lhes forneceu essa informação, com o que tornou impossível o pagamento das rendas que então se encontravam em dívida e com base no que pretendia resolver o contrato de arrendamento do estabelecimento fabril.
Notificada, por despacho de 19/01/2022, para que exercesse, querendo, o direito ao contraditório quanto à matéria de exceção alegada pelas Rés nas contestações, a recorrente respondeu à referida matéria da exceção, nos pontos 2º a 9º no articulado de resposta junto a fls. 77 a 83 do processo físico, entrado em juízo em 31/01/2022.
Logo, pretendendo, através dos documentos que intenta juntar ao processo em anexo às alegações de recurso, a recorrente demonstrar que a Ré “Massa Insolvente há muito que dispunha do NIB da EMP01... para a realização do pagamento das rendas”, competia-lhe juntar os mencionados documentos aos autos com a resposta de 31/01/2022, a fim de fazer prova que a matéria de exceções que fora alegada pelas recorridas (Rés) nas contestações era inconsistente, na medida em que aquelas já dispunham do IBAN onde deviam proceder ao depósito das rendas em dívida, conforme lhe era imposto pelo art. 423º, n.º 1, parte final.
Destarte, contrariamente ao pretendido pela recorrente, a necessidade da junção ao processo dos documentos que intenta juntar aos presentes autos com as alegações de recurso não decorre do julgamento realizado pela 1ª Instância, uma vez que este, conforme acabado de demonstrar, não apresenta qualquer caráter inovatório, mas decorre do incumprimento pela própria recorrente do ónus que lhe é imposto pelo art. 423º, n.º 1, parte final, na medida em que as recorridas, nas contestações, quando ao fundamento de resolução do contrato de arrendamento decorrente do não pagamento das rendas invocado na petição inicial pela recorrente, logo excecionaram, alegando ocorrer mora desta, decorrente de lhe terem solicitado o fornecimento do IBAN para que pudessem proceder ao depósito das rendas em dívida, e que esta não lho forneceu, inviabilizando que pudessem depositar/pagar as rendas que então se encontravam em dívida, pelo que, destinando-se aqueles documentos a fazer prova pela recorrente que essa matéria de exceção que fora alegada pelas recorridas nas respetivas contestações era infundada, impunha-se que os tivesse junto ao processo na resposta a essas exceções.
De resto, a recorrente não podia desconhecer que, uma vez analisada e produzida a prova em audiência contraditória, cumpria ao julgador a quo realizar o denominado julgamento da matéria de facto, julgando provados ou não provados os factos essenciais integrativos da causa de pedir que fora por ela alegada na petição inicial e, bem assim, os factos essenciais em que se baseiam as exceções alegadas pelas recorridas (Rés) nas contestações, bem como, os factos essenciais alegados pela recorrente na resposta àquelas exceções em que se baseiam as contra exceções que lhes opôs (arts. 5º, n.º 1, 552º, n.º 1, al. d), 572º, al. c), 587º, n.º 2 e 5º, n.º 3) e que esse julgamento da matéria de facto teria de ser feito em função da prova produzida junta aos autos e, bem assim, a pessoal produzida em audiência final, pelo que se pretendia que o tribunal considerasse nesse julgamento da matéria de facto os documentos que agora pretende juntar ao processo com as alegações de recurso, tinha de os ter apresentado com a resposta às contestações a fim de demonstrar a inconsistência da matéria de exceção alegadas pelas recorridas nas respetivas contestações, o que não fez.
Acresce enfatizar que a circunstância de, segundo a recorrente o julgador a quo ter julgado como provada a facticidade dos pontos 7º, 29º e 18º, a seu ver, de “forma surpreendente e ilegal”, com base “no depoimento prestado pela Sr.ª AI, olvidando tratar-se do depoimento de uma parte interessada e parcial e de um depoimento que não se mostra sustentando e qualquer outra prova suplementar”, não configura o fundamento previsto no art. 651º, n.º 1, parte final - “a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferida na 1ª instância” – que lhe confere o direito a juntar prova documental com as alegações de recurso, uma vez que o fundamento previsto nessa norma tem como pressuposto que o julgamento da matéria de facto e/ou de direito realizado pela 1ª Instância apresente cariz inovatório, o que não é o caso.
Se a facticidade julgada provada pela 1ª Instância nos identificados pontos 7º, 29º e 18º se ancorou exclusivamente nos depoimentos de parte prestados pela administradora da insolvência ou pelo legal representante da recorrida EMP02... e se tal não lhe era legalmente consentido (conforme pretende a recorrente acontecer), estar-se-á perante um erro de direito em que incorreu o julgador a quo (ao considerar um meio de prova para julgar provada facticidade favorável às partes representadas pelos depoentes, quando tal não lhe era legalmente consentido, sem que a versão dos factos apresentada pelo depoente não fosse corroborada através de outros meios de prova), que se projetou no julgamento da matéria de facto, tendo esse erro de julgamento de ser apreciado em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto, e não perante o fundamento do art. 651º, n.º 1 que autoriza a recorrente a juntar aqueles documentos na fase de recurso.
O que verdadeiramente tornou necessária a junção dos documentos na fase de recurso é, assim, o incumprimento pela recorrente do ónus legal que lhe era imposto pelo art. 423º, n.º 2, que lhe impunha que tivesse junto esses documentos com a resposta à matéria de exceção que fora alegada pelas recorridas nas respetivas contestações.
Em suma, decorre do excurso antecedente que a necessidade da junção aos autos dos documentos apresentados pela recorrente com as alegações de recurso não emerge do julgamento realizado pela 1ª Instância na sentença recorrida, dado que este não apresenta qualquer cariz inovatório em relação àquilo que era expectável pelas partes em sede de julgamento da matéria de facto e/ou de matéria e direito, mas apenas da circunstância de a própria recorrente não ter cuidado em juntar esses mesmos documentos com a resposta à matéria de exceção que fora alegada pelas recorridas (Rés) nas respetivas contestações, conforme lhe era imposto pelo art. 423º, n.º 1, parte final.
Neste termos, não se encontrando preenchidos os pressupostos legais do art. 651º, n.º 1, que permitem à recorrente juntar aos autos os documentos que apresenta em anexo às suas alegações de recurso, não se admite a sua junção aos autos e, após trânsito, ordena-se o seu desentranhamento do processo e devolução à apresentante (recorrente), que vai condenada em uma UC de taxa de justiça pelo incidente anómalo que gerou ao juntar aqueles documentos aos presentes autos fora do condicionalismo legal do art. 651º, n.º 1 (art.7º, n.ºs 4 e 8 do RCP e tabela II a ele anexa).
B- Do erro de direito assacado pela recorrente ao despacho de 23/01/2024, que indeferiu a reclamação por ela apresentada contra o despacho em que se identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova
Assaca a recorrente erro de direito ao despacho proferido pela 1ª Instância, em 23/01/2024, que indeferiu a reclamação, apresentada em 30/11/2023, quanto ao objeto do litígio e aos temas da prova fixados por despacho de 15/11/2023, advogando que: “A identificação do objeto do litígio deve ser coincidente com as questões que as partes submetem à apreciação do juiz, delimitadora dos seus poderes de cognição, nomeadamente das questões consubstanciadas no pedido, causa de pedir e matéria de exceção. Por sua vez, a enunciação dos temas da prova corresponde genericamente à enumeração das questões de facto fundamentais controvertidas”.
Conclui que o tribunal recorrido “andou mal ao ter decidido, à partida, e numa fase intermédia do processo, anterior à instrução, desconsiderar no objeto do litígio alguns dos pedidos formulados pela Autora, sem que, porém, tenha proferido qualquer decisão sobre os pedidos deduzidos (no sentido de julgar os pedidos procedentes, de julgar os pedidos procedentes, improcedentes ou julgar verificada alguma exceção dilatória conducente à absolvição da instância) e relativamente aos quais teria necessariamente de proferir decisão em sede de sentença final. No caso dos autos, o objeto do litígio tinha necessariamente de ser integrado por todos os pedidos deduzidos pela Autora, uma vez que o tribunal estava obrigado a eles dar resposta em sede de sentença final. O despacho de 05/02/2024, que indeferiu a reclamação deduzida pela Autora, padece de erro de julgamento e, como tal, deve ser o mesmo revogado e substituído por outro que julgue a reclamação da definição do objeto do litígio e dos temas da prova inteiramente procedente”.
Quid inde?
Por despacho de 15/11/2023, a 1ª Instância identificou o objeto do litígio nos termos que se seguem: “Apurar se, in casu, se verifica os fundamentos legais que permitem condenar a massa insolvente a pagar uma indemnização pelo atraso na restituição da coisa correspondente à renda, elevada para o dobro pela mora, desde a data da declaração de insolvência até à data da resolução do contrato”.
E fixou os seguintes temas da prova: “Apurar se a administradora da insolvência denunciou tacitamente o arrendamento; apurar se o trespasse realizado é ilegal; apurar se houve alteração do uso do locado; apurar se o não pagamento das rendas é devida a comportamento da A.; e apurar se se verifica os requisitos de despejo e entrega do arrendado”.
Por requerimento entrado em juízo em 30/11/2023, a recorrente, EMP01..., S.A., veio declarar nada ter a opor à dispensa da realização de audiência prévia, mas reclamou contra a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova operada pelo julgador a quo com fundamento na sua insuficiência, alegando que o objeto do litígio identificado não abrange todos os pedidos que formulou, nem todas as exceções que foram opostas pelas recorridas a esses pedidos e, bem assim, que os temas da prova que foram enunciados não abrangem toda a matéria de facto essencial que foi alegada por si e pelas recorridas que permanece controvertida.
Observado o contraditório quanto às recorridas (Rés) relativamente à reclamação apresentada pela recorrente (Autora), em 23/01/2024, a 1ª Instância indeferiu a reclamação nos seguintes termos (procede-se à transcrição ipsis verbis do despacho proferido): “A A. EMP01..., S.A., veio reclamar do despacho saneador relativamente ao objeto do litígio e aos temas da prova pretendendo que estes sejam alargados. Contudo, sem razão, a nosso ver, uma vez que a presente ação é por si própria identificada na petição como uma ação por dívidas da massa, nos termos do artigo 89º do CIRE. Esta é uma ação que tem por causa de pedir apenas as dívidas da massa insolvente. Não está em causa questões de denúncia tácita do contrato de arrendamento que constitui a causa de pedir do crédito e muito menos do trespasse operado em outro processo, a eventual ilegalidade deste e suas consequências jurídicas. No caso dos autos interessam apenas as alíneas C) e D) dos pedidos formulados na petição. Assim, indefiro a reclamação apresentada ao despacho saneador”.
Estabelece o art. 596º, n.ºs 1, 2 e 3 que, proferido despacho saneador, nos casos em que a causa houver de prosseguir, cumpre ao julgador identificar o objeto do litígio e enunciar os temas da prova, em relação aos quais as partes podem reclamar, mas o despacho que recaia sobre a reclamação apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final.
No caso vertente, tendo reclamado do despacho em que a 1ª Instância identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova, tendo essa reclamação sido desatendida, a recorrente vem impugnar, no recurso que interpôs da sentença proferida pelo tribunal a quo, o referido despacho em que o tribunal a quo desatendeu à reclamação que apresentou, conforme expressamente lhe é consentido pelo n.º 3 do art. 596º, mas não assacou, em sede de recurso, quaisquer reflexos jurídicos que o indeferimento daquela reclamação teve na sentença recorrida, limitando-se, aliás, no recurso, a sustentar que “o despacho de 05/02/2024, que indeferiu a reclamação deduzida pela Autora, padece de erro de julgamento” e, bem assim, a requerer que esse despacho seja revogado e substituído “por outro que julgue a reclamação da definição do objeto do litígio e dos temas da prova inteiramente procedente”.
O procedimento processual da recorrente que se acaba de relatar suscita a questão prévia de se saber se é legalmente consentido àquela impugnar, no recurso que interpôs da sentença final, o despacho que desatendeu à reclamação por si apresentada, quando não imputa aos erros de direito que assaca a esse despacho (que desatendeu à reclamação) quaisquer consequências ou reflexos jurídicos na sentença que acabou por ser proferida pela 1ª Instância em que esta dirimiu o conflito que a contrapõe às recorridas.
A resposta a essa questão exige que se aquilate das concretas finalidades que são prosseguidas pelo legislador com o comando legal do art. 596º, n.º 1, que impõe ao julgador o ónus de, nas ações declarativas que devam prosseguir para audiência final, uma vez proferido despacho saneador, ter de identificar o objeto do litígio e enunciar os temas da prova.
Neste conspecto, cumpre dizer que, pondo termo ao modelo de processo civil que vigorava na ordem jurídica adjetiva nacional, a Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que reviu o CPC, abandonou o anterior modelo em que, finda a fase dos articulados, impunha-se ao julgador o ónus de proferir despacho saneador e, nos casos em que a ação devesse prosseguir para julgamento (por existir matéria de facto que permanecia controvertida), lhe impunha a obrigação de, entre a facticidade que fora alegada pelo autor na petição inicial como constituindo a causa de pedir em que fazia assentar o pedido que pretendia que o tribunal lhe reconhecesse e, bem assim, a matéria de facto que fora alegada pelo réu na contestação como integrando as exceções que por ele fora aí invocada, bem como, a que integrasse as contra exceções que o autor opôs a essas exceções, selecionar aquela que já se encontrava assente, daquela outra que permanecia controvertida e que, encontrando-se submetida ao princípio geral da livre apreciação da prova, devia ser objeto de instrução.
Quanto à facticidade que na fase intermédia da ação declarativa já se encontrava assente por prova documental, confissão ou admissão, a mesma devia ser levada aos denominados “Factos Assentes” (anterior “Especificação”), e essa matéria de facto encontrava-se, em definitivo, adquirida para o processo, isto é, nele definitivamente provada, não mais podendo ser alterada ou posta em crise, independentemente da prova que viesse a ser produzida na fase da instrução da ação.
Por sua vez, a facticidade que na fase intermédia do processo se encontrasse controvertida e que se encontrasse submetida ao princípio regra vigente no ordenamento jurídico nacional da livre convicção do tribunal, devia ser levada à denominada “Base Instrutória” (anterior “Questionário”), sendo apenas quanto à mesma que iria recair a fase de instrução.
Conforme expende Paulo Pimenta, tal como estava estruturado o sistema processual civil português antes da revisão operada ao CPC pela Lei n.º 41/2013, esse modelo “assentava na pressuposição (ficção) de que a realidade da vida a que se reportava cada concreta lide tinha sido suficiente e adequadamente vertida nos respetivos articulados. Por isso, ainda que, na pendência da causa, houvesse a perceção de alguma desconformidade entre o alegado e a realidade das coisas, a resposta do sistema era de indiferença, vedando-se a entrada dessa realidade nos autos. Tudo a pretexto de que o ónus da alegação recaía sobre as partes e de que o tribunal só podia servir-se dos factos articulados pelas partes. (…). A realidade forense veio a mostrar que o modo como eram, habitualmente, redigidos os quesitos acabava por funcionar como um elemento perturbador ou limitador, tanto para os atos probatórios, como para o próprio ato do julgamento de facto. (…). Outras vezes, a exagerada preocupação de limitar a resposta às sacramentais fórmulas “provado” ou “não provado” era impeditiva de que se alcançasse uma decisão conforme à realidade das coisas, cuja dinâmica era inconciliável com a rigidez e inflexibilidade dos quesitos e das respostas correspondentes. (…). Contribuindo para toda a rigidez apontada havia ainda a circunstância de a seleção fáctica supor a cuidada distinção entre matéria de facto e matéria de direito”[10], quando essa distinção assenta muitas vezes numa divisão forçada, artificial e sem qualquer utilidade prática, dado que para o direito não há factos, mas somente factos jurídicos e, por isso, “o objeto de prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto”[11].
Adotando um novo paradigma de processo civil, mais preocupado com a realização da justiça material em detrimento da formal, eliminando as preclusões que vigoravam no sistema processual civil anterior em sede de alegação de matéria de facto e do nexo direto entre os depoimentos testemunhais e concretos pontos de facto pré-definidos pelo julgador na base instrutória (anterior questionário), o legislador da reforma do CPC de 2013 reconheceu que, findos os articulados, ultrapassada a fase do pré-saneador, proferido este, nas ações declarativas que devam prosseguir para audiência final, por existirem factos essenciais que constituem a causa de pedir que foram alegados na petição inicial e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas pelas partes que permaneçam controvertidos, a prova a produzir deve incidir sobre toda a matéria de facto que se mostre pertinente para a decisão de mérito a proferir no processo, sem que essa instrução se encontre sujeita a barreiras artificiais e sem quaisquer constrangimentos, em que a matéria de facto sobre a qual deve recair a fase da instrução é toda a que se mostre relevante para a decisão de mérito a proferir, a qual apenas deverá ser balizada pela causa de pedir alegada pelo autor na petição inicial e pelas exceções invocadas pelas partes.
Prosseguindo esse novo paradigma, na sequência da revisão ao CPC operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, o art. 596º, n.º 1 passou a prever que, uma vez proferido o despacho saneador, nas causas que devam prosseguir para audiência final, o juiz tem de proferir despacho identificando o objeto do litígio e enunciando os temas da prova.
Ao impor o ónus ao julgador de, na fase intermédia da ação declarativa, ter de identificar o objeto do litígio, quis o legislador que, uma vez finda a fase dos articulados e ultrapassada a fase do pré-saneador, proferido o saneador, nos casos em que a ação deva prosseguir para audiência final, por existirem factos essenciais que permanecem controvertidos, que relevam para a decisão de mérito a proferir, de acordo com as diversas soluções de direito suscetíveis de serem aplicáveis à controvérsia, quis o legislador que o julgador explicitasse junto das partes qual a concreta controvérsia que as opõe, ou seja, identificasse quais os concretos pedidos que foram formulados pelo autor na petição inicial, qual a concreta causa de pedir que este aí alegou para fundamentar esses pedidos e, bem assim, quais as concretas exceções que foram invocadas pelo réu na contestação, com vista a impedir, modificar ou extinguir o efeito jurídico articulado pelo autor na petição inicial, bem como quais as concretas contra exceções que foram opostas pelo autor às exceções invocadas pelo réu na contestação.
A identificação do objeto do litígio resume-se, em suma, à enunciação pelo julgador do denominado thema decidendum a que o tribunal vê a sua atividade instrutória e decisória delimitada, e da qual não se pode apartar, sob pena de incorrer em nulidade por omissão ou excesso de pronúncia ou por condenação ultra petitum[12].
A referida identificação do objeto do litígio consiste, assim, na indicação pelo juiz, através de uma formulação genérica, de pendor jurídico, da controvérsia que opõe os pleiteantes, a qual é definida pelos pedidos formulados pelo autor, atenta a causa de pedir que aquele elegeu na petição inicial para ancorar aqueles pedidos e pelas exceções perentórias que foram invocadas pelas partes, com vista a impedir, modificar ou extinguir o direito invocado pela sua contraparte.
O objetivo prosseguido pelo legislador ao impor que o juiz identifique às partes, na fase intermédia da ação declarativa, o objeto do litígio é o de focá-las no enquadramento jurídico da lide, para que fiquem cientes da controvérsia jurídica que as contrapõe.
Por sua vez, a enunciação dos temas da prova consiste numa identificação genérica pelo juiz das questões fundamentais de facto que, uma vez finda a fase dos articulados, permanecem controvertidas e sobre a qual irá recair a fase da instrução, para que se orientem e fiquem assim a saber quais as questões de facto fundamentais que, na perspetiva do julgador, permanecem controvertidas e sobre as quais devem produzir prova.
Não se trata já de uma quesitação atomística e sincopada da matéria de facto que foi alegada pelas partes e que permanece controvertida, como acontecia no modelo anterior de processo civil, mas numa enunciação genérica dessa matéria de facto, “que pode fazer-se em diversos graus de abstração ou concretização, ora mais vaga, ora mais precisa, tudo dependendo daquilo que seja realmente mais adequado às necessidades de uma instrução apta a propiciar a justa composição do litígio, tendo em conta circunstâncias variadas, desde o modo como as partes articularam os fundamentos da ação e da defesa, até ao tipo de prova a utilizar para determinados segmentos da matéria de facto, em que os únicos limites quanto à facticidade controvertida sobre a qual irá recair a instrução são os que decorrem da causa de pedir e das exceções invocadas”. Ao enunciar os temas da prova, o juiz deve ter “sempre presente normas como a do art. 410º (segundo a qual a instrução terá por objeto os temas da prova), do art. 516º (em que se definiu claramente que os depoimentos testemunhais e outras provas devem incidir sobre a matéria dos temas da prova, sem as limitações que possam encontrar-se na natureza circunstancial ou instrumental de alguns dos factos) ou do art. 607º, n.º 4 (nos termos do qual é na sentença que o juiz deve declarar, dentro da matéria controvertida definida pelos factos que constituem a causa de pedir e que integra, as exceções, aqueles que julga provados ou não provados)”[13].
O objetivo prosseguido pelo legislador com a enunciação dos temas da prova é o de orientar as partes para os grandes temas matéria de facto relevantes para a decisão de mérito a proferir no processo que permanece controvertida, atento o thema decidendum que nele contrapõe os litigantes (pedido, causa de pedir e exceções), a fim de que se orientem na fase da instrução que se irá seguir, sem que, todavia, se limite, condicione ou restrinja aquelas quanto à prova a produzir (essa prova irá incidir sobre toda a facticidade que se mostre pertinente para a decisão de mérito a proferir, com o único limite decorrente da causa de pedir e das exceções invocadas).
Decorre do que se vem dizendo que a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova que é imposta ao julgador pelo n.º 1, do art. 596º, não é um fim em si mesmo, mas trata-se de dotar as partes de mecanismos de trabalho auxiliares para que, uma vez ultrapassada a fase dos articulados, proferido o despacho saneador, reconhecendo o julgador que o processo tem de prosseguir para audiência final por existir matéria relevante para proferir decisão de mérito que permanece controvertida, fiquem cientes, por um lado, sobre a concreta controvérsia jurídica que as contrapõe (thema decidendum) e, por outro, quais os grandes temas da matéria de facto que, na perspetiva do julgador, permanecem controvertidos e sem os quais, na sua perspetiva, não tem uma base de facto segura que lhe permita desde já (em sede de saneador) conhecer de mérito, a fim de que se orientem e coloquem o seu enfoque naqueles aspetos, designadamente, na fase da produção da prova que se irá seguir.
Por isso, os erros de julgamento em que incorra o julgador em sede de identificação do objeto do litígio e/ou na enunciação dos temas da prova apenas assumirão relevância na estrita medida em que se projetem na sentença de mérito que venha a ser proferida, assim se compreendendo, aliás, o comando do n.º 3 daquele art. 596º, ao estabelecer que: “O despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso da decisão final”.
Com efeito, ainda que o julgador tenha incorrido em erro de direito na identificação do objeto do litígio e/ou na enunciação dos temas da prova, no caso dos mesmos não se terem projetado na sentença que conheceu de mérito, ou no caso de o tribunal ad quem estar impedido de conhecer, em sede de recurso interposto da sentença, desses reflexos jurídicos, é indesmentível que a apreciação daqueles erros seria uma atividade espúria, por absolutamente inútil, dado serem insuscetíveis de se projetarem na decisão de mérito nela proferida (ou a proferir pelo tribunal de recurso), e como tal proibida pelo art. 130º.
Com interesse, na senda do que se vem expondo, lê-se no acórdão do STJ, de 16/06/2016, que “o objeto do litígio coincide com as questões que as partes submetem à apreciação do juiz, delimitadoras dos seus poderes de cognição (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso), nomeadamente das questões consubstanciadas no pedido, causa de pedir e matéria de exceção. A identificação do objeto do litígio, tendo em conta os pressupostos em que assenta, tem como finalidade esclarecer as partes, depois dos articulados e antes da instrução, dos termos precisos da controvérsia da ação, de modo a potenciar uma melhor e mais esclarecedora discussão dos termos da causa. No entanto, o despacho de identificação do objeto do litígio, servindo apenas para delimitação da controvérsia da ação, não atribui nem retira direitos às partes, sendo certo que a omissão ou excesso de pronúncia provoca a nulidade da decisão nos termos do art. 615º, n.º 1, al. d). A enunciação dos temas da prova, que substitui a anterior base instrutória, que, por sua vez, já tinha substituído o questionário, corresponde genericamente à enumeração das questões de facto fundamentais da controvérsia. A partir dos factos controvertidos que corporizam a causa de pedir e as exceções, procede-se à sua enunciação, delimitando a matéria objeto de instrução, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. A enunciação dos temas da prova constituiu um ato processual relevante, nomeadamente na definição do objeto da instrução. A identificação do objeto do litígio, sendo meramente enunciativa, não atribui nem retira direitos às partes e, como tal, não decide qualquer relação processual. Por isso, o despacho de identificação do objeto do litígio, correspondente ao alegado nos articulados, designadamente na petição inicial, não chega a constituir caso julgado, podendo o objeto da ação ir além daquele despacho, se o conteúdo dos articulados o permitir, na medida em que são os mesmos que delimitam os poderes de cognição do tribunal, independentemente da identificação do litígio que tenha sido declarada, embora a esta, observando a disciplina processual, deva corresponder inteiramente à alegação dos articulados. O despacho que enuncia os temas da prova também não forma caso julgado, pois pode ser modificado posteriormente. Tanto o despacho de identificação do objeto do litígio como o da enunciação dos temas da prova, podendo ser modificados posteriormente, não formam caso julgado formal”[14] (sublinhados e destacados nossos).
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, estando, por via do princípio da limitação dos atos (art. 130º), o tribunal ad quem proibido de praticar no processo atos processuais inúteis, por serem insuscetíveis de se projetarem na decisão de mérito proferida na sentença recorrida (ou a proferir pelo tribunal ad quem), limitando-se a recorrente a assacar erro de direito ao despacho proferido pela 1ª Instância em 23/01/2024, que indeferiu a reclamação por si apresentada em 30/11/2023, contra o objeto do litígio que fora identificado por despacho de 15/11/2023, sem que tivesse apontado a esse pretenso erro de direito qualquer reflexo jurídico na sentença recorrida, salvo o devido respeito por entendimento contrário, por via daquele princípio encontra-se esta Relação impedida, por um duplo fundamento, de apreciar esse pretenso erro de direito, sob pena de levar a cabo uma atividade espúria, por absolutamente inútil, dado ser incapaz de se projetar na decisão de mérito proferida na sentença recorrida ou a proferir por esta Relação. Primo: porque, conforme antedito, a identificação do objeto do litígio imposta pelo art. 596º consiste na explicitação/sinalização às partes da controvérsia que as opõe, atentos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram por elas invocadas, para que estas se consciencializem sobre a real controvérsia que as separa e coloquem o seu enfoque no enquadramento jurídico dessa controvérsia.
Dado o caráter meramente identificativo/enunciativo do despacho em que o juiz identifica o objeto do litígio, este não forma caso julgado formal, podendo aquele, em qualquer momento, alterar o anterior despacho em que identificara o objeto do litígio, ou poderá, inclusivamente, fazê-lo na sentença de mérito que venha a proferir, indo além do objeto do litígio que fixara naquele despacho do art. 596º, n.º 1 na fase intermédia do processo, ou ficando aquém desse objeto antes fixado em função das verdadeiras “questões” que lhe foram colocadas pelas partes nos articulados à sua apreciação e decisão (isto é, a apreciação de todos os pedidos formulados pelo autor na petição inicial, atentas todas as causas de pedir que por ele aí foram invocadas e de todas as exceções perentórias que foram aduzidas pelo réu na contestação e de todas as contra exceções que foram opostas pelo autor a essas exceções).
Na verdade são os articulados que fixam e delimitam o thema decidendum a que o tribunal vê a sua atividade instrutória e decisória delimitada, fazendo com que aquele incorra em nulidade da sentença (acórdão por via do art. 666º, n.º 1, ou despacho por força do art. 613º, n.º 3) que venha a proferir, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. d), quando nela não se pronuncie sobre todas as questões de que devesse conhecer (ou seja, não aprecie todos os pedidos, à luz de todas as causas de pedir e de todas as exceções que foram invocadas pelas partes), salvo se esse conhecimento estiver prejudicado pela solução dada a outra questão de que conheceu e decidiu (art. 608º), ou incorra em nulidade por excesso de pronúncia, quando na sentença, acórdão ou despacho conheça de questão de que não podia conhecer (isto é, de pedido, com base em causa de pedir que não foi alegada pelo autor na petição inicial, ou quando conheça de exceção não alegada pelas partes), salvo se a lei lhe permitir o conhecimento oficioso da exceção de que conheceu (art. 608º, n.º 2, parte final).
Destarte, independentemente da identificação do objeto do litígio feita pelo julgador, nos termos do art. 596º, n.º 1, na fase intermédia do processo padecer (ou não) de erro de direito, o que releva é saber se na sentença de mérito que a final o julgador proferiu (sentença recorrida), o mesmo conheceu de todas os fundamentos que foram alegados pelas partes (de todos os pedidos, à luz de todas as causas de pedir e de todas as exceções que foram invocadas pelas partes), e se, consequentemente, a sentença que proferiu padece (ou não) do vício de nulidade por omissão da pronúncia (decorrente de nela não ter conhecido de todos aqueles fundamentos, e os de que não conheceu não estarem prejudicados por decisão proferida quanto a outro(s) fundamento(s) de que nela conheceu e decidiu) ou por excesso de pronúncia (decorrente de nela ter ido além desses fundamentos, quando a exceção de que conheceu e que não fora invocada pelas partes não ser de conhecimento oficioso) ou, em termos de pretensão, condenando o réu ou o autor-reconvindo em objeto quantitativa ou qualitativamente diverso do pedido, incorrendo em nulidade por condenação ultra petitum. Secundo: apesar do art. 615º, n.º 1 falar em causas determinativas de “nulidade da sentença”, as pretensas causas de nulidade previstas nas als. b) a e), do n.º 1 daquele preceito são, na realidade, causas determinativas da sua anulabilidade, conforme decorre do seu n.º 4, em que se estabelece que essas nulidades apenas podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença (acórdão ou despacho), mediante incidente de reclamação, quando o processo em que foi proferida não comporte recurso ordinário; de contrário apenas podem ser suscitadas em sede de recurso, o que significa que as nulidades das als. b) a e) não são do conhecimento oficioso do tribunal, que apenas pode delas conhecer por impulso das partes (em sede de recurso, quando o processo comporte recurso ordinário, ou em sede de reclamação, quando não o comporte) e, por isso, são na realidade causas determinativas de anulabilidade da sentença[15].
Ora, revertendo ao caso em análise, limitando-se a recorrente a assacar erro de direito ao despacho que indeferiu a reclamação que apresentou contra a identificação do objeto do litígio feita pela 1ª Instância no despacho de 15/11/2023, sem que tivesse, no presente recurso, apontado qualquer reflexo jurídico decorrente desse pretenso erro para a decisão de mérito proferida na sentença (a quem não assaca nenhuma causa determinativa de nulidade do tipo previsto nas als. b) a e), do n.º 1, do art. 615º), e estando desta feita a presente Relação impedida de conhecer dessas eventuais nulidades (as quais, aliás, não se descortina ocorrerem), por não invocadas, caso, por via daquele pretenso erro que alegadamente afetará a identificação do objeto do litígio feita pela 1ª Instância na fase intermédia do processo, a sentença recorrida padeça efetivamente de uma dessas causas determinativas da sua “nulidade” (verdadeiramente “anulabilidade), é apodítico que o conhecimento daquele pretenso erro de julgamento que o recorrente assaca ao despacho de 23/01/2024, que indeferiu a sua reclamação quanto à identificação do objeto do litígio é uma atividade processual, total e absolutamente inútil, por o resultado dessa apreciação ser insuscetível de se projetar na decisão de mérito proferida na sentença recorrida, e como tal proibida pelo art. 130º.
Termos em que, face aos fundamentos que se acabam de enunciar, por força do princípio da limitação dos atos (art. 130º), abstemo-nos de conhecer do pretenso erro de julgamento em que terá incorrido a 1ª Instância ao ter indeferido a reclamação apresentada pela recorrente contra a identificação do objeto do litígio fixado em 15/11/2023.
Quanto ao erro de direito que a recorrente assaca ao despacho de 23/01/2024, em que a 1ª Instância indeferiu a reclamação que apresentou em 30/11/2023 contra o despacho em que enunciou os temas da prova, verifica-se que, mais uma vez, a recorrente não extrai desse pretenso erro de direito nenhum reflexo jurídico para o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo na sentença sob sindicância.
A enunciação dos temas da prova, conforme antedito, consiste numa identificação genérica dos temas da matéria de facto que permanece controvertida, apenas balizada pela causa de pedir e pelas exceções invocadas pelas partes e sobre a qual irá recair a atividade instrutória do tribunal e das partes, a fim de que se orientem.
Deste modo, aquilo que não for coberto pelos temas da prova enunciados pelo julgador no despacho proferido nos termos do n.º 1 do art. 596º, está excluído da instrução[16].
Por isso, verificado que seja que o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância padece do vício da deficiência no sentido de que factos essenciais que constituem a causa de pedir que foram alegados na petição inicial, ou em que se baseiam as exceções invocados pelas partes não foram julgados provados, nem não provados na sentença sob sindicância, no caso dessa facticidade não se mostrar abrangida pelos temas da prova enunciados pela 1ª Instância no despacho proferido na fase intermédia do processo, na medida em que esses factos ficaram excluídos da instrução da causa, impõe-se que o tribunal ad quem tenha de anular a sentença e ordenar, nos termos da al. c), do n.º 2, do art. 662º, a ampliação do julgamento da matéria de facto quanto a essa concreta facticidade em relação à qual ocorreu o vício de deficiência e não abrangida pelos temas da prova enunciados pelo julgador a quo[17].
Tratando-se já de facticidade essencial em relação à qual ocorra o vício da deficiência do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância na sentença recorrida, mas que se encontre abrangida pelos temas da prova que enunciou no despacho do art. 596º, n.º 1, porque sobre essa facticidade recaiu a instrução da causa, nessa situação, cumpre ao tribunal ad quem, fazendo uso dos seus poderes de substituição, suprir esse vício, julgando provada ou não provada a facticidade em relação à qual o tribunal a quo incorreu no vício da deficiência, a partir dos elementos de prova que constam do processo e/ou da gravação (art. 662º, n.º 1), salvo quando não o poder fazer com a necessária segurança, caso em que, fazendo uso dos poderes de cassação da al. c), do n.º 2 daquele art. 662º, deve anular a sentença e ordenar a ampliação do julgamento da matéria de facto a essa facticidade[18].
No caso em análise, na medida em que a recorrente não extrai do erro de direito que assaca ao despacho proferido pela 1ª Instância no qual esta indeferiu a sua reclamação quanto aos temas da prova por aquela fixados quanto ao julgamento da matéria de facto realizado na sentença sob sindicância, sob pena de levarmos a cabo uma atividade, total e absolutamente inútil e, consequentemente, proibida pelo art. 130º, por ser insuscetível de se projetar na decisão de mérito, abstemo-nos de conhecer desse pretenso erro de julgamento, sem prejuízo de, em sede de apreciação da impugnação do julgamento da matéria de facto, irmos verificar se ocorre (ou não) o vício da deficiência do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância e, no caso positivo, se essa facticidade se encontra, ou não, abrangida pelos temas da prova enunciados no despacho proferido em 15/11/2021, altura em que, sempre que tal se justifique, retomaremos a questão, o que se decide. C- Do erro de direito decorrente da valoração dos depoimentos prestados pelos legais representantes das recorridas
Assaca a recorrente erro de direito à decisão de mérito constante da sentença recorrida advogando que: “não tendo os RR sido ouvidos em sede de declarações de parte, mas antes em sede depoimento de parte - do art. 452º do Código de Processo Civil - sobre concretos e identificados factos, o Tribunal estava impedido de valorar livremente tais depoimentos (por inaplicação do art. 466º n.º 3 do Código de Processo Civil) e, pior, de valorá-los como se de testemunhas se tratassem, olvidando que as partes têm um manifesto e direto interesse na ação; O Tribunal mal andou ao atribuir aos depoimentos não confessórios dos RR. força para, desacompanhados de qualquer outra prova documental ou testemunhal, permitir a demonstração de factos favoráveis aos depoentes”.
Neste conspecto, urge referir que, a encontrar-se o tribunal a quo impedido de valor as declarações de parte prestadas pelos legais representantes das recorridas, sem valor confessório, para dar provada facticidade favorável às últimas, sem que essa versão dos factos tivesse sido corroborada por outros elementos de prova, conforme pretende a recorrente acontecer, está-se perante uma situação de erro de direito decorrente da 1ª Instância ter infringido regras de direito probatório material que lhe vedavam a possibilidade de, em sede de julgamento da matéria de facto, apreciar essas declarações de parte em favor das recorrentes sem que fossem corroboradas por outros elementos de prova, nomeadamente, documental ou testemunhal, erro de direito esse que se projetou no julgamento da matéria de facto que realizou.
Destarte, a questão suscitada pela recorrente reconduz-se a erro de julgamento da matéria de facto, pelo que se impunha que aquela tivesse invocado a questão que ora suscita em relação a cada um dos concretos pontos da matéria de facto que impugna em relação aos quais essa questão se coloca.
Todavia, compulsada a impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente verifica-se que a mesma suscita essa concreta questão em relação a diversos pontos da facticidade julgada provada pelo julgador a quo que impugna, pelo que vamos, desde já, apreciar essa questão, ficando assim a mesma apreciada e decidida quanto a esses diversos pontos da matéria de facto que vêm impugnados pela recorrente.
Seguindo de perto o acórdão de 18/01/2024, de que fomos relator, o depoimento de parte encontra-se regulado nos arts. 452º a 465º do CPC, e traduz-se no meio processual mediante o qual se visa provocar a confissão judicial de alguma das partes ou dos seus legais representantes, enquanto declaração de ciência através da qual a parte confitente reconhece a realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária (art. 352º do CC).
O depoimento de parte, na medida em que se destina a provocar a confissão do depoente (ou da pessoa coletiva ou de incapaz por ele representada, que seja parte na ação), por um lado, apenas pode recair sobre factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento (art. 454º, n.º 1 do CPC) e, por outro, apenas pode recair sobre factos que sejam desfavoráveis ao depoente (ou à parte, sua representada) e que favoreçam a parte contrária.
Trata-se de um meio de prova que pode ser produzido a requerimento da parte contrária, de um dos compartes ou por determinação oficiosa do juiz (arts. 452º, n.º 1 e 453º, n.ºs 2 e 3), mas, quando seja requerido por alguma das partes ou compartes, o requerente encontra-se obrigado, logo no requerimento de prova em que requeira esse meio de prova, a indicar, de forma discriminada, os factos sobre os quais pretende que recaia o depoimento de parte (art. 452º, n.º 2), a fim de viabilizar que o juiz possa ajuizar se estão (ou não), reunidos os pressupostos legais desse concreto meio de prova, ou seja, se os factos sobre os quais o requerente pretende que a parte contrária, o seu comparte, o legal representante de incapaz, pessoa coletiva ou sociedade (que sejam partes na ação) preste depoimento de parte consubstanciam (ou não) factos pessoais do depoente (isto é, factos praticados com a intervenção deste, ou que, apesar de terem sido praticados por terceiros, foram-no na presença daquele ou de que deva ter conhecimento, por dever presumir-se que deles tem conhecimento[19]), e para que, no caso positivo, possa sindicar se essa facticidade é (ou não) desfavorável ao depoente (ou à parte sua representada) e se favorecem (ou não) a parte contrária.
O depoimento de parte é recolhido, em regra, na audiência final (art. 456º) e quando culmine em confissão, ou quando o depoente narre factos ou circunstâncias que impliquem a indivisibilidade da declaração confessória, a declaração confessória e aquelas circunstâncias que impliquem a indivisibilidade da confissão devem ser reduzidas a escrito (art. 463º, n.º 1).
A obrigatoriedade da redução a escrito da declaração confessória e dos factos em que o depoente narre factos ou circunstâncias que implicam a indivisibilidade daquela relaciona-se com o comando do art. 358º, n.º 1 do CC, nos termos do qual a confissão judicial, isto é, a que é feita em juízo, competente ou não, mesmo quando arbitral, e ainda que o processo seja de jurisdição voluntária (n.º1, do art. 355º do CC), quando reduzida a escrito tem força probatória plena contra o confitente, mas nos termos do n.º 4 desse art. 358º a confissão judicial quando não seja reduzida a escrito fica submetida ao princípio geral da livre apreciação da prova.
Por conseguinte, sempre que seja deferido o pedido de depoimento de parte, ou esta seja determinada oficiosamente pelo tribunal e ocorra confissão, o juiz deve, por imposição legal reduzi-la a escrito (art. 463º, n.ºs 1 e 2), uma vez que os factos confessados e reduzidos a escrito adquirem força probatória plena contra a parte confitente (ou contra a parte por este representada); mas ocorrendo essa confissão, no caso de não ser reduzida a escrito, os factos confessados ficam submetidos ao princípio geral da livre apreciação da prova.
Frise-se que, nas situações em que ocorra confissão do depoente e o juiz não a reduza a escrito, este omite uma formalidade que lhe é imposta por lei e que é suscetível de influir no exame da causa e que, por isso, se reconduz ao cometimento de uma nulidade secundária (art. 195º, n.º 1), a qual tem de ser suscitada pela parte interessada na observância da formalidade omitida (art. 197º, n.º 1) até ao encerramento da audiência final em que a confissão ocorreu, ou, não estando esse interessado nela presente, dentro do prazo geral de dez dias, nos termos e limites previstos no art. 199º, n.º 1, sob pena dessa nulidade secundária se consolidar na ordem jurídica, não podendo posteriormente ser suscitada, passando a confissão feita em juízo pela parte confitente (ou pelo legal representante desta), mas não reduzida a escrito a estar sujeita ao princípio geral da livre apreciação da prova[20].
Enfatize-se que apesar do depoimento de parte ter por escopo provocar a confissão, nos casos em que não ocorra confissão, nos termos do art. 361º do CC, o depoimento de parte sem valor confessório fica submetido ao princípio geral da livre apreciação[21].
Diferente da prova por depoimento de parte é a por declarações de parte, a qual se encontra regulada no art. 466º.
Trata-se de um meio processual que foi introduzido ex novo na ordem adjetiva nacional na sequência da reforma ao CPC operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, e que permite às partes requererem, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto (n.º 1, do art. 466º).
As declarações de parte consubstanciam um verdadeiro direito potestativo que a lei processual civil conferiu às partes de se oferecerem para prestarem declarações, devendo para tanto comparecerem, por sua iniciativa, na audiência final até ao início das alegações orais em 1ª instância, requerendo que lhes sejam tomadas declarações de parte, o que equivale por dizer, para que lhes seja recolhida, em audiência contraditória, a sua própria versão dos factos controvertidos, quando neles tenham intervindo pessoalmente ou dos quais tenham conhecimento direto.
Subjacente ao instituto das declarações de parte está “a ideia de que são as partes que verdadeiramente conhecem os contornos do litígio e detêm a razão de ciência mais direta, não havendo qualquer obstáculo de ordem material a que possam comparecer espontaneamente perante o tribunal para, sem intermediários, exporem a sua versão dos factos, submetendo-se ao imediato contraditório da parte contrária e ao inquisitório do tribunal”[22].
O instituto processual do depoimento de parte não se confunde, por isso, com o das declarações de parte, uma vez que, enquanto o primeiro é determinado oficiosamente pelo juiz ou a requerimento de uma das partes em relação à parte contrária ou a um dos seus compartes e tem por objetivo obter a confissão do depoente, não podendo, pois, a própria parte requerer que lhe seja tomado (ou ao seu legal representante) depoimento de parte (pelo que sempre que o depoente compareça em audiência final para nela prestar depoimento de parte o mesmo não exerce qualquer direito subjetivo ou potestativo que lhe assista, mas limita-se a cumprir uma obrigação que lhe é legalmente imposta), nas declarações de parte é a própria parte que, exercendo um verdadeiro direito potestativo de natureza processual que lhe é reconhecido pela lei adjetiva, decide exercer esse direito e para o efeito comparece em audiência final para nela, em audiência contraditória, apresentar a sua própria versão dos factos quando neles tenha intervindo pessoalmente ou sobre eles tenha conhecimento direto, em que o escopo do declarante não é o de confessar, mas apenas apresentar a sua própria versão dos factos.
Acresce que, destinando-se o depoimento de parte a obter a confissão judicial do depoente (pelo que esse meio de prova apenas pode ser requerido em relação a factos pessoais do depoente ou de que deva ter conhecimento e que acrescidamente se mostrem desfavoráveis ao próprio depoente - ou à parte por si representada - e que favoreçam a parte contrária), as declarações de parte têm um objetivo mais amplo, na medida em que não visam provocar a confissão do declarante, mas possibilitar-lhe o exercício do direito potestativo de expor em audiência contraditória a sua própria versão quanto a factos em que pessoalmente interveio ou de que tenha conhecimento direto, quer esses factos sejam favoráveis ou desfavoráveis ao declarante (ou à parte por si representada), e favoreçam ou desfavoreçam a parte contrária.
De resto, quem comparece em audiência final para prestar declarações de parte não atua naturalmente com o objetivo de confessar factos que lhe sejam desfavoráveis (ou que sejam desfavoráveis à parte por si representada) e que favoreçam a parte contrária, mas atua com o intuito de apresentar a sua própria versão dos factos por naturalmente entender que esta lhe é favorável (ou à parte por si representada) e desfavorável à parte contrária.
Não obstante, apesar das declarações de parte não terem por escopo provocarem a confissão do declarante, nem este atue com esse objetivo, pode acontecer que o mesmo acabe por confessar factos pessoais ou de que deva ter conhecimento e que lhe sejam desfavoráveis (ou à parte sua representada) e que favoreçam a parte contrária.
Quando assim suceda, embora o instituto das declarações de parte não tenha por escopo obter a confissão judicial do declarante, atento o princípio da aquisição processual, nos termos do qual “os factos materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo, sendo atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária”[23], compreende-se que, nos termos da parte final do n.º 3, do art. 466º do CPC, as declarações de parte confessórias fiquem submetidas às regras da confissão judicial, pelo que, sob pena de nulidade processual secundária, essas declarações confessórias (à semelhança do depoimento de parte confessório) devem ser reduzidas a escrito pelo juiz, passando a ter força probatória plena contra o confitente ou contra a parte sua representada, tal como o determina o art. 358º, n.º 1 do CC; nos casos em que o juiz omita a redução a escrito das declarações de parte com valor confessório, este incorre em nulidade processual secundária nos termos já acima sobejamente enunciados, passando essa declaração confessória, não reduzida a escrito, a ficar submetida à regra geral da livre apreciação do tribunal.
A propósito das declarações de parte em que não ocorre confissão e em que o declarante declare factos que lhe sejam favoráveis ou à parte por si representada e que sejam desfavoráveis à parte contrária discutiu-se (e continua a discutir-se) na doutrina e na jurisprudência se essas declarações podem ser valoradas pelo tribunal em benefício do próprio declarante (ou da parte por ele representada) e em desfavor da parte contrária.
A propósito da referida problemática encontram-se três posições doutrinárias e jurisprudenciais essenciais: 1ª - tese do caráter supletivo vinculado à esfera restritiva de conhecimento dos factos (segundo a qual as declarações de parte têm uma natureza essencialmente supletiva, sendo insuficientes, por si só, para fundamentarem um juízo de prova, salvo nos casos de prova única, em que não existe outra prova[24]); 2ª - tese do princípio de prova (nos termos da qual as declarações de parte não são suficientes, por si só, para estabelecer um juízo de aceitabilidade final, salvo quando forem corroboradas por outros elementos de prova[25]); e 3ª - tese de autossuficiência das declarações de parte, segundo a qual, embora com as suas especificidades, as declarações de parte, podem, por si só, serem autossuficientes para estribar a convicção do juiz, assumindo um valor probatório autónomo[26].
Tendo em consideração que o n.º 3 do art. 466º estabelece que “o tribunal aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão”, submetendo, portanto, expressamente a força probatória das declarações de parte sem valor confessório e que sejam favoráveis ao próprio declarante ou à parte por ele representada e que se mostrem desfavoráveis à parte contrária ao princípio regra vigente no ordenamento jurídico civil nacional da livre apreciação da prova, prefigura-se-nos que será contralegem qualquer um dos dois primeiros entendimentos supra enunciados, na medida em que degradam à partida o valor probatório das declarações de parte, sem valor confessório, em relação aos restantes meios de prova que o legislador também submeteu ao mesmo princípio regra, como se as declarações de parte sem valor confessório que se mostrem favoráveis ao declarante ou à parte por ele representada fossem um minus comparativamente àqueles outros meios de prova que também se encontram submetidos ao mesmo princípio da livre apreciação da prova, quando o legislador, ao submetê-los todos ao mesmo princípio regra (livre apreciação do tribunal) não previu entre eles qualquer grau de hierarquia, colocando-os em plano de paridade, admitindo, portanto, que todos eles possam de, per se, fundar um juízo de prova definitivo do julgador quanto à verificação (ou não) de determinado facto, quando esse seja o juízo a ser por ele emitido por ser o que atinge o patamar da probabilidade prevalecente.
Por conseguinte, na nossa perspetiva, embora com as necessárias cautelas, por não convir olvidar que o declarante é efetivamente pessoa interessada no resultado da ação, as declarações de parte (assim como o depoimento de parte), sem valor confessório, que sejam favoráveis ao próprio declarante ou à parte por si representada, e que se mostrem desfavoráveis à parte contrária, podem, de per se alicerçar a convicção do julgador, levando-o a julgar provada ou não provada determinada facticidade que se encontre controvertida, sem que essas declarações tenham de ser corroboradas por outros meios de prova.
Decorre do excurso antecedente que, contrariamente ao pretendido pela recorrente, a circunstância de a 1ª Instância ter assentado a sua convicção a propósito de determinados factos que julgou provados ou não provados no depoimento de parte dos legais representantes das recorridas, sem valor confessório, e em beneficio das próprias recorridas, não fez com que aquela tivesse incorrido em qualquer erro de direito que se tivesse projetado, por si só, no julgamento da matéria de facto que realizou, uma vez que, quer o depoimento de parte, quer as declarações de parte, sem valor confessório e que favoreçam a própria parte que as prestou (ou a parte por ele representada), ficam submetidas ao princípio geral da livre apreciação e, por isso, podem de per se servir para a formação da convicção do julgador, sem que essa versão dos factos tenha de ser necessariamente corroborada por outros elementos de prova.
Destarte, sem prejuízo da impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente, improcede este fundamento de recurso.
D- Da impugnação do julgamento da matéria de facto.
Advoga a recorrente que a 1ª Instância incorreu em erro de julgamento da matéria de facto quanto à facticidade que julgou provada nos pontos supra já identificados e, bem assim, quanto à facticidade que julgou não provada nas alíneas também acima identificadas, além de que esse julgamento da matéria de facto padece do vício da deficiência.
Antes de entrarmos na apreciação da impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente impõe-se verificar se aquela cumpriu com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), sem o que não é consentido ao tribunal ad quem entrar no conhecimento dessa apreciação e, depois, no caso positivo, estabelecer os parâmetros em que é consentido ao tribunal da Relação alterar o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo.
D.1 – (In)cumprimento pela recorrente dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto
No que respeita à primeira questão que se acaba de enunciar, cumpre enfatizar que, com vista a evitar a interposição de recursos de pendor genérico e à salvaguarda cabal do princípio do contraditório que assiste aos recorridos (que apenas ficarão habilitados de todos os elementos necessários para organizar a sua defesa em sede de contra-alegações quando lhes for dado a conhecer o que se encontra impugnado pelo recorrente e qual a lógica de raciocínio por ele percorrida na valoração e conjugação deste ou daquele meio de prova), o legislador rodeou a impugnação do julgamento da matéria de facto de uma série de ónus, que enuncia, de modo taxativo no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), os quais terão de ser cumpridos pelo recorrente, sob pena do recurso que interpôs quanto ao julgamento da matéria de facto ter de ser rejeitado em relação à facticidade que impugnou mediante a inobservância desses ónus impugnatórios.
Deste modo, o legislador optou “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de factos controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, pelo que se mantém o entendimento que, como tribunal de 2ª Instância, a Relação deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto[27], estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação pelo recorrente.
Depois, tal como se impõe ao juiz a quo a obrigação de fundamentar/motivar as suas decisões quanto ao julgamento da matéria de facto que realizou, também é imposto ao recorrente, como correlativo dos princípios da autorresponsabilidade, da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o recurso, demonstrando (justificando) o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando, perante a prova produzida se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desse ónus, o recorrente indicar não só a matéria de facto que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, se impunha que tivesse sido adotada quanto a essa concreta facticidade, bem como os concretos meios de prova que ancoram esse julgamento de facto diverso que postula, com a respetiva análise crítica, isto é, com a indicação do porquê dessa prova por si indicada não consentir o julgamento de facto realizado pelo tribunal recorrido e antes impor o que vem por si propugnado (n.º 1, do art. 662º).
Dito por outras palavras, recai sobre o recorrente “o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente: cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente”[28].
Na verdade, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo tribunal de 1ª instância. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo[29], e, como decorrência deste, mas também do contraditório, terá de indicar qual a concreta decisão fáctica que se impõe extrair da prova produzida em relação à matéria de facto que impugna; as concretas provas que alicerçam esse julgamento diverso que propugna; e as concretas razões pelas quais essa prova em que funda a sua impugnação afasta os fundamentos probatórios invocados pelo tribunal a quo para motivar o julgamento de facto que realizou, mas antes impõe o julgamento de facto que propugna.
Deste modo, compreende-se que, no art. 640º, n.º 1, se estabeleça que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (sublinhado nosso).
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 640º).
Acresce que, cumprindo a exigência de conclusões nas alegações de recurso a missão essencial de delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem (cfr. n.º 4 do art. 635º), é entendimento jurisprudencial uniforme que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que impugna. E é entendimento de uma parte da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, nas conclusões, o recorrente tem também de indicar a concreta resposta que, na sua perspetiva, deve ser dada à matéria de facto que impugna[30], diferendo jurisprudencial esse que, pelo menos em parte, se encontra ultrapassado, perante o acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) n.º 12/2023, proferido pelo Supremo em 17/10/2023, Proc. n.º 8344/16.6T8STB.E1-A.S1, publicado no D.R., n.º 220/2023, Série I, de 14/11/2023, em que uniformizou a seguinte jurisprudência: “Nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 640º do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
No que respeita aos demais ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto previstos no art. 640º, n.ºs 1, als. b) e c) e 2, al. a), porque não têm uma função delimitadora do objeto do recurso, mas se destinam a fundamentar o último, não devem constar das conclusões, mas sim das motivações de recurso.
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, lidas as alegações de recurso apresentadas pela recorrente, decorre linearmente da sua análise que aquela cumpriu integralmente com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto, previstos no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, na medida em que identificou: nas conclusões de recurso, os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados e que, por isso, impugna, com o que cumpriu com o ónus impugnatório primário da al. a), do n.º 1, do art. 640º do CPC; na motivação de recurso (e, inclusivamente, indevidamente nas conclusões), os concretos meios probatórios em que funda a sua impugnação,com o que satisfez o ónus impugnatório primário da al. b), daquele n.º 1; na motivação de recurso (e também, desnecessariamente, nas conclusões) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto impugnada, com o que deu satisfação ao ónus impugnatório primário da al. c) do mesmo n.º 1; e, finalmente, na motivação do recurso (e novamente, incorretamente nas alegações), indicou o início e o termo dos excertos da prova pessoal em que funda a sua impugnação e, inclusivamente, procedeu à respetiva transcrição, com o que cumpriu com o ónus impugnatório secundário da al. a), do n.º 2, daquele art. 640º.
Em suma, decorre do que se vem dizendo que, do ponto de vista do cumprimento dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto, não existe qualquer impedimento processual a que esta Relação entre na apreciação da impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente.
D.2- Critérios em que é consentido à Relação alterar o julgamento da matéria de facto
No seguimento do que se vem dizendo, em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto submetida ao princípio da livre apreciação da prova, o tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria tem de realizar um novo julgamento; neste tem de formar a sua convicção de forma autónoma; para a formação dessa sua convicção não só reaprecia os meios de prova especificados por recorrente e recorrido, respetivamente, nas alegações e contra-alegações de recurso, mas todos os que lhe sejam acessíveis e que, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda serem pertinentes para formar uma convicção segura; sem prejuízo das limitações que decorrem da falta de imediação e de oralidade, o novo julgamento a realizar pelo tribunal de recurso não está condicionado pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido, uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, gozando, por isso, o tribunal ad quem dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, podendo, nomeadamente, na formação dessa sua convicção autónoma recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o julgador da 1ª instância[31]; na sequência desse novo julgamento, a Relação pode determinar, mesmo oficiosamente, a renovação da produção de prova quando se suscitarem dúvidas sérias sobre a credibilidade de determinado depoente ou sobre o sentido do seu depoimento, ou ordenar a produção de novos meios de prova que potenciem a superação de dúvidas sérias sobre a prova anteriormente produzida (art. 662º, n.º 2, als. a) e b) do CPC); sempre que, reapreciando a prova produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, e através das regras da experiência comum, da ciência ou da técnica, o tribunal de recurso consiga relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente adquirir uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento, impõe-se que introduza as modificações pertinentes ao julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância; porém, em caso de dúvida sobre o julgamento da matéria de facto por esta realizado, nomeadamente, perante depoimentos contraditórios e a fragilidade da prova produzida, se o julgamento da matéria de facto realizado pelo julgador a quo se mostrar objetivado numa fundamentação compreensível, onde se optou por uma das soluções de facto permitidas pelas regras da experiência comum, da ciência ou da técnica, deverá prevalecer esse julgamento de facto, em respeito pelos princípios da oralidade, da imediação, da concentração e da livre apreciação da prova[32].
Com efeito, estabelece o art. 662º, n.º 1 do CPC que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (destacado nosso).
Resulta do comando legal que se acaba de transcrever que, para que ao tribunal da Relação seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, não é suficiente que a prova produzida indicada pelo recorrente, isolada ou conjuntamente com a demais prova produzida que aquele, ao abrigo do princípio da oficiosidade entenda dever socorrer-se, consinta ou permita o julgamento da matéria de facto propugnado pelo recorrente, mas é necessário que o imponha.
O que se acaba de concluir tem plena justificação quando se pondera estar-se na presença de facticidade submetida ao princípio da livre apreciação da prova, pelo que, tendo presente esse princípio, bem como os da imediação, da oralidade e da concentração (que se mantêm em vigor no âmbito da atual lei adjetiva nacional) e a consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao julgador da 1ª Instância, nem desconsiderar que a imediação, a oralidade e a concentração da prova tornam percetíveis ao mesmo, que intermediou a produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação de uma convicção segura, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem, através da mera audição da gravação dos depoimentos pessoais prestados em audiência final.
Assim é que se compreende que a Relação apenas possa/deva alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância quando, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova que consta do processo que entenda pertinente para a formação de uma convicção segura, conclua, com a necessária segurança que a prova pessoal produzida em audiência final, conjugada com a restante prova (documental, pericial e/ou por inspeção) constante dos autos, uma vez submetida às regras do normal acontecer, da ciência ou da técnica apontam numa direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância, por infirmar os termos do raciocínio probatório adotado pelo julgador a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e inconsistente, e antes aponta para outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente[33], impondo-se, todavia, que, em caso de dúvida, nomeadamente, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida faça prevalecer a decisão de facto proferida pela 1ª Instância, em observância aos enunciados princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nessa parte”[34].
Assentes nas premissas acabadas de enunciar urge entrar na concreta apreciação da impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente, no que iremos seguir o mesmo método que foi por ela seguido nas alegações de recurso.
D.3- Falta de pagamento das rendas D.3.1- Pontos 23º, 24º e 25º da facticidade julgada provada
A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade: “23- A EMP02... respondeu à carta da A. com carta datada de 29-9-2021 solicitando indicação de IBAN para onde pudesse ser transferido o valor das rendas – fls. 55 verso e 56”. “24- A A. recusou-se a receber essa carta e não indicou qualquer IBAN”. “25- Em face dessa recusa a EMP02... depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021 na Banco 1...”.
Advoga a recorrente que a facticidade julgada provada nos pontos 23º e 24º tem de ser julgada não provada e que a julgada provada no ponto 25º tem de ser alterada para o seguinte: “A EMP02... depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021”.
Alicerça a pretensão acabada de referir nos argumentos que se seguem: “apesar de a Ré EMP02... ter alegado na sua contestação que remeteu à EMP01... uma carta datada de 29.09.2021 (junta com a contestação da Ré EMP02...) solicitando o IBAN para o pagamento das rendas, do documento junto com essa contestação (devolução do AR), resulta que Autoranão recebeu a carta remetida (objeto não reclamado); a Ré EMP02... não produziu qualquer prova nos autos quanto ao concreto envio de uma concreta comunicação - com o teor da minuta da carta junta aos autos com a sua contestação -, não tendo requerido a inquirição de qualquer testemunha ou sequer mesmo a prestação de declarações de parte; e o depoimento de parte foi prestado pelo legal representante da Ré EMP02... (BB, depoimento de parte prestado em 10.03.2024, gravado nas rotações 10:50:37 a 11:33:04) foi prestado de forma absolutamente vaga e imprecisa e absolutamente insuscetível de conduzir à prova dos factos 23, 24 e 25”.
Mais pretende que: “Caso assim não se entenda, nesse caso, ter-se-á obrigatoriamente de aditar à matéria de facto o facto cuja prova resulta do contrato de arrendamento junto aos autos pela Ré Massa Insolvente na sua contestação, cujo teor não foi colocado em causa por qualquer uma das partes: 30. No contrato de arrendamento, as partes convencionaram a seguinte forma de notificação: (…). “Neste caso, o teor dos factos 24 e 25 tem de ser alterado no sentido de ser coincidente com o teor dos documentos juntos aos autos com a contestação da Ré, dos quais resulta que o objeto de correio foi devolvido à Ré EMP02... em 15.10.2021 com a indicação de “objeto não reclamado”, a saber: 24º - A carta referida em 23º foi devolvida à Ré EMP02... em 15.10.2021 com a indicação de “objeto não reclamado” e 25º - Em face do provado em 24º, a EMP02... depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021 na Banco 1....
Antes de mais, impõe-se referir que analisamos todo o processo especial de revitalização, o processo principal (processo de insolvência), o relativo à ação instaurada pela recorrida EMP02... contra a Massa Insolvente (impugnando a resolução operada pela administradora da insolvência do contrato de compra e venda celebrado entre aquela – EMP02... - e a devedora – EMP03... -, mediante o qual esta lhe vendeu a totalidade das máquinas que integravam o seu estabelecimento fabril - apenso C), os apensos de apreensão e de liquidação de bens (apensos F e E), a prova documental junta à presente ação e, bem assim, procedemos à audição integral da prova pessoal produzida em audiência final no âmbito da presente ação.
Iremos desde já identificar a prova documental que se nos prefigura relevante para apreendermos o conflito sobre que versa a presente ação, para depois aproximarmo-nos da concreta materialidade fáctica que vem impugnada pela recorrente.
A devedora EMP03..., S.A. apresentou-se a processo especial de revitalização (PER) em 24/10/2019.
Decorrido o prazo legal de negociações, sem que nenhuma proposta de revitalização tivesse sido apresentada pela devedora, a administradora judicial provisória emitiu parecer, que foi junto ao PER em 20/01/2020, em que se lê, além do mais, que a devedora desenvolve a sua atividade nas suas instalações fabris, sitas na Rua ..., ..., freguesia ..., ..., e onde concluiu que aquela se encontra insolvente.
Em 30/01/2020 foi instaurada a ação especial de insolvência.
Em 10/02/2020, foi proferida sentença, transitada em julgado, em que se declarou a devedora insolvente.
Em 16/04/2020, a administradora da insolvência juntou ao processo de insolvência o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, em anexo ao qual juntou o inventário dos bens da devedora (EMP03...), em que, sob as verbas 1 a 107, inventariou máquinas, teares, compressores, empilhadores, camião, carrinhas, lotes de roupa, secretárias e cadeiras, ou seja, em suma, todo o recheio do estabelecimento fabril da devedora, estabelecimento fabril esse que se encontra instalado no edifício que tomara de arrendamento à ora recorrente, EMP01..., S.A., por contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2009, com a então sociedade EMP04..., S.A., contrato de arrendamento esse que se encontra junto à presente ação, a fls. 64 a 67 do processo físico, e, bem assim, todo o recheio das instalações de escritório da devedora, as quais funcionavam num outro edifício, sito nas imediações das instalações fabris, o qual era propriedade da devedora, e que foi inventariado pela administradora da insolvência sob a verba n.º 108.
Aliás, conforme de vê do apenso de apreensão de bens (apenso F), a administradora da insolvência juntou a esse apenso, em 14/09/2020, o auto de apreensão, onde se vê que aquela apreendeu a favor da massa insolvente, sob as verbas n.ºs 1 a 107, o supra identificado recheio das instalações fabris da devedora e, bem assim, o recheio das instalações de escritório e, sob a verba n. 108, apreendeu este último edifício, propriedade da devedora, onde funcionava o escritório.
Logo, uma primeira conclusão se impõe extrair: tal como foi julgado provada pela 1ª Instância no ponto 5º, a administradora da insolvência, CC, não procedeu à apreensão para a massa insolvente do estabelecimento ou direito ao arrendamento sobre o prédio onde funcionava o estabelecimento fabril, prédio esse que tinha tomado de arrendamento à recorrente EMP01..., na medida em que apenas procedeu à apreensão a favor da massa do recheio que nele existia, bem como, o recheio que existia nas instalações, propriedade da devedora, onde funcionava o escritório desta e, bem assim, este último prédio (onde funcionava o escritório).
No identificado relatório elaborado pela administradora da insolvência a que alude o art. 155º do CIRE, por ela junto ao processo de insolvência em 16/04/2020, lê-se, além do mais, que a devedora dedica-se ao “fabrico, comercialização de produtos têxteis, importação e exportação” e que: “Em 12/02/2020, a AI apresentou-se nas instalações sede de insolvente (…). Os trabalhadores encontravam-se no seu posto de trabalho (…). Os salários do mês de janeiro de 2020 não se encontravam pagos. O fornecimento de gás estava cortado há dias por falta de pagamento, impedindo a laboração das áreas de tinturaria e termofixação. Para reativar o fornecimento a entidade fornecedora solicitava o pagamento dos valores em atraso, cerca de 26.059,81 euros. Existiam faturas em atraso relativas ao fornecimento de eletricidade. O seguro de responsabilidade civil das instalações, máquinas, mercadorias e restantes bens não está ativo, por falta de pagamento dos prémios. As licenças informáticas não estavam pagas, estando bloqueados alguns acessos, o que dificultava a gestão de toda a atividade. As rendas das instalações estavam em atraso há alguns meses. Cerca de 30 funcionários já tinham solicitado a suspensão do contrato de trabalho, por salários em atraso. O contabilista certificado da empresa tinha renunciado em outubro de 2019, estando em incumprimento, desde essa data, todas as obrigações fiscais. (…). Confirmou-se que todos os bens existentes na empresa tinham sido vendidos em data anterior ao PER e celebrado um contrato de arrendamento do imóvel da insolvente. Neste momento já foram efetuadas as resoluções em benefício da massa insolvente. Perante a informação obtida, mostrou-se, de forma clara e absoluta, a inviabilidade da manutenção da atividade da empresa e dos postos de trabalho (…). Após uma explicação breve da situação da empresa, bem como após rendidas todas as questões colocadas pelos trabalhadores, esta administradora judicial entregou a todos e cada um dos funcionários a “Declaração da Situação de Desemprego”. Antes de se retirarem das instalações, a grande maioria afirmou que, se a fábrica retomasse a sua laboração, num futuro próximo, estariam disponíveis para regressar e dar o seu contributo. (…). Esta prestimosa colaboração dos trabalhadores permitirá manter o valor dos mesmos e reativar a atividade da empresa a qualquer momento. (…). Para viabilizar a insolvente (…) foram efetuados vários contactos com potenciais investidores, da área têxtil e de outras áreas industriais. Nenhum deles mostrou interesse em ser acionista da empresa pelas seguintes razões: (…). Por não se ter encontrado esse investidos, e não se perspetivando outra forma de recuperar a empresa, não se consegue apresentar um plano de viabilização da insolvente. Perante o exposto não resta outra alternativa, se não o encerramento da atividade do estabelecimento e a liquidação do ativo. Os ativos da empresa, de acordo com o inventário apresentado, estão valorizados para venda imediata no montante de: Bens móveis: 335.217,80 euros. Bem imóvel: 600.000,00 euros. O imóvel está onerado com hipotecas voluntárias ao Banco 3... e à Segurança Social e hipotecas legais à Segurança Social. As instalações onde está instalada a fábrica não pertencem à empresa, existindo um contrato de arrendamento. Na liquidação podem-se considerar as seguintes opções para a realizar: a) venda dos bens à peça (em leilão ou propostas em carta fechada); b) venda dos bens por lotes (em leilão ou propostas em carta fechada); c) venda do estabelecimento no seu universo. (…). Nas opções acima descritas, a unidade fabril ficará despojada de todos os equipamentos e, consequente entrega do espaço (instalações físicas ao senhorio, sem qualquer possibilidade de retoma da atividade. A venda do estabelecimento coloca uma questão central, o facto das instalações serem propriedade de uma terceira empresa, a EMP01..., S.A., que mantinha com a insolvente um contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo. (…). Neste pressuposto e por considerar que esta é uma melhor opção de venda dos ativos, que permitirá a retoma da atividade e a readmissão dos trabalhadores da insolvente, foram contactados potenciais interessados, nomeadamente empresas concorrentes, com uma estrutura consolidada, com clientes e encomendas em carteira. Estes interessados visitaram as instalações e tomaram conhecimento do inventário da empresa, da cópia do contrato de arrendamento que asseguraria o arrendamento até 2029. Entretanto deu-se o início à problemática do Covid-19, seguido do estado de emergência (…). Muito provavelmente será esta uma das razões pela qual, só foi recebida uma proposta (…). Ainda assim, em época de incertezas, não deixou de apresentar proposta e, embora o não tenha escrito, deixou claro num contacto anterior, que se propunha contratar para esta unidade fabril cerca de 50 dos 130 funcionários, hoje em situação de desemprego. Assim, optando-se pela liquidação com a venda do estabelecimento, poder-se-á apurar em termos imediatos o valor proposto, sem incertezas ou riscos associados à redução do investimentos que nos próximos tempos se fazem antever”.
A administradora da insolvência terminou o relatório que se vem transcrevendo, propondo: “1)Encerramento da atividade, nos termos do art. 65º do CIRE. 2) A liquidação do ativo, nos seguintes moldes: a) Venda do imóvel da insolvente, após indicação pelo credor hipotecário do valor base de venda do mesmo. b) Venda do estabelecimento. c) Colocar à votação, neste ato, a proposta obtida (Doc. 7) Dado o contexto de exceção que se vive urge reativas a atividade da empresa, uma vez que a aceitação desta proposta permitirá: (…)” (destacados e sublinhados nossos).
Em anexo a esse relatório encontra-se junto diverso correio eletrónico enviado por EE (funcionário da empresa leiloeira contratada pela administradora da insolvência para proceder à venda do estabelecimento fabril da devedora – conforme decorre do despacho proferido em 28/10/2020, nos autos de insolvência) a potenciais interessados na aquisição daquele estabelecimento fabril, e em que lhes remeteu o contrato de arrendamento relativo a essas instalações fabris celebrado entre a aqui recorrente EMP01... e a EMP04....
Destaca-se o correio eletrónico datado de 26/03/2020, enviado pela sociedade “EMP05..., Lda” a EE em que se lê: “(…). Após visita e consulta detalhada do inventário estaríamos, eventualmente interessados em remeter uma proposta, mas não antes de que se declare o fim da pandemia”.
Ainda em anexo ao relatório vindo a referir, a administradora da insolvência juntou a proposta apresentada pela sociedade “EMP06..., S.A. (tratando-se da proposta que aquela alude no dito relatório e que nele pretende ver submetida a votação dos credores), em que se lê: “A empresa EMP06..., S.A., (…), vem pelo presente apresentar a sua proposta à totalidade das verbas do processo de insolvência em epígrafe (verbas 1 a 99), relativo à entidade EMP03... (…). Neste sentido efetuamos a proposta de 400.000,00 euros (…) pelo total do inventário. Importa referir que é nossa intenção a reativação da atividade produtiva da empresa e a admissão da parte dos trabalhadores caso se mostrem disponíveis a tal”.
Logo, em face dos elementos de prova objetivos que se acabam de expor (que é a documental), impõe-se extrair as seguintes conclusões adicionais: Segunda conclusão (a primeira é a que acima se apontou): em 13/02/2020 (conforme resulta da prova pessoal produzida em audiência final), perante a situação com que se deparou (fornecimento de gás cortado, dívidas de eletricidade, seguro, licenças informáticas por pagar, 30 trabalhadores da devedora que já tinham solicitado a suspensão dos seus contratos de trabalho, o salário do mês de janeiro de 2020 por pagar a todos os trabalhadores da devedora, vários meses de renda em dívida à recorrente EMP01... como contrapartida do arrendamento do espaço onde funcionava a parte fabril da devedora, renúncia de funções pelo contabilista certificado, incumprimento de todas as obrigações fiscais da devedora, etc.), a administradora da insolvência despediu todos os trabalhadores da devedora e encerrou o estabelecimento fabril desta, que assim ficou totalmente inativo a partir de 13/02/2020, mas com todos os seus apetrechos necessários a uma futura reativação desse estabelecimento fabril no interior dessas instalações fabris (tudo conforme se julgou provados nos pontos 2º a 4º da sentença, os quais não foram impugnados). Terceira conclusão: apesar da administradora da insolvência não ter inventariado nem apreendido para a massa insolvente o estabelecimento fabril da devedora (na medida em que não procedeu ao inventário e à apreensão do direito de arrendamento que a devedora tinha sobre esse espaço onde funcionam as suas instalações fabris emergente do contrato de arrendamento que tinha celebrado com a recorrente – o que, aliás, nem sequer releva, na medida em que detetada a falta de apreensão desse direito ao arrendamento a administradora da insolvência podia apreendê-lo a qualquer momento), foi sempre intenção da administradora da insolvência apreender como um todo o mencionado estabelecimento fabril da devedora, isto é, como uma unidade produtiva, em que estava incluído o direito de arrendamento da devedora sobre a recorrente EMP01... emergente do contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2009, e proceder à sua venda/liquidação como um todo (todo o recheio dessa unidade fabril e direito ao arrendamento do espaço onde esta se encontra instalada), com vista a que o adquirente dessa unidade fabril a reativasse, conforme decorre claramente e inequivocamente do teor do relatório por ela junto, acima parcialmente transcrito, e, bem assim, da circunstância da leiloeira por ela contratada ter encetado contactos com diversos interessados na aquisição dessa unidade fabril (como um todo), a quem, inclusivamente, remeteu o contrato de arrendamento – vide correio eletrónico junto em anexo a esse relatório –, e desta ter logrado encontrar uma sociedade interessada – a EMP06..., S.A. – que se propôs adquirir aquela unidade fabril como um todo (incluindo o direito ao arrendamento) por 400.000,00 euros”.
Note-se que, contrariamente ao que se fez querer crer em audiência final, apesar desta sociedade na dita proposta aludir que a sua proposta de 400.000,00 euros é apresentada quanto “à totalidade das verbas do processo de insolvência em epígrafe (verbas 1 a 99)”, e estas verbas não se reportarem ao direito ao arrendamento, mas apenas ao recheio da unidade fabril da devedora, conforme resulta do segmento dessa proposta, em que aquela proponente diz ser sua intenção “a reativação da atividade produtiva da empresa e a admissão de parte dos trabalhadores caso se mostrem disponíveis”, é indiscutível que o único sentido interpretativo possível a dar a essa proposta é o de que a mesma abrange o recheio (máquinas, teares, etc. –, em suma, todos os móveis apreendidos a favor da massa) da unidade fabril da devedora, incluindo o direito ao arrendamento onde essa unidade fabril se encontra instalada, posto que, de outro modo, não seria possível à proponente a reativação da atividade produtiva da empresa, como afirma pretender fazer, uma vez que essa unidade fabril encontrava-se (e encontra-se) instalada no edifício arrendado pela devedora à EMP01....
Aliás, a interpretação que se acaba de referir foi a que foi dada pela administradora da insolvência à proposta de aquisição presente pela sociedade EMP06... no relatório a que alude o art. 155º do CIRE, e esse relatório foi por ela notificado a todos os credores da devedora (onde se inclui a recorrente EMP01..., uma das credoras da devedora – cfr. lista dos credores da devedora notificados do teor desse relatório, junta aos autos de insolvência pela administradora da insolvência em 16/04/2020), onde a mesma propõe que esses credores aprovem a dita proposta apresentada pela proponente EMP06... de “venda do estabelecimento”, afirmando que essa aprovação permitirá “reativar a atividade da empresa”, e que “a aceitação desta proposta permitirá a readmissão imediata de parte dos trabalhadores da insolvente; evitar a deterioração das máquinas da insolvente; a proponente é uma empresa bem cotada na área do “Seamless” (roupa sem costura, de acordo com toda a prova produzida, que é toda ele concordante nesse sentido), o que por si só, garante a recuperação e desenvolvimento da atividade (…)”. Neste sentido aponta-se ainda o facto de tendo, por despacho proferido em 29/06/2020, nos autos de insolvência, a Meritíssima Senhora Juiz ordenado que os autos prosseguissem para liquidação, “tendo em conta o apuramento dos votos”, ordenou que se notificasse a administradora da insolvência “para abrir o competente apenso, informando os proponentes para aquisição do estabelecimento para apresentarem as suas propostas através do site da e-leilões, procedendo aí à venda por quantia nunca inferior a 455.000,00 euros”.
E aponta-se que, nessa sequência, em 06/07/2020, a administradora da insolvência juntou requerimento (com o qual se deu início ao apenso de liquidação - apenso E), o qual consta do seguinte teor: “CC, Administradora da Insolvência no processo à margem identificado, vem requerer a V. Exa. a junção aos autos do anúncio do estabelecimento na modalidade de leilão eletrónico”.
Em anexo a esse requerimento encontra-se junto o dito anúncio, em que se lê: “…venda de estabelecimento de unidade fabril de confeção seamless. Empresa vertical com tecelagem, termofixação, tinturaria com laboratório, zona de confeção, acabamento. Venda de lote composto por empilhadores, veículos e vestuário diferente” (os sublinhados e destacados são nossos).
Logo, desde sempre foi intenção da administradora da insolvência proceder à liquidação/venda da unidade fabril da devedora como um todo, ou seja, recheio dessa unidade fabril, incluindo máquinas, teares, etc. (que apreendeu a favor da massa insolvente), incluindo o direito do arrendamento do espaço em que essa unidade fabril se encontrava (e encontra) instalada (que não cuidou em apreender a favor da massa), a fim de que o adquirente dessa unidade fabril a reativasse, do que tudo deu conhecimento aos credores da devedora, onde se inclui a recorrente EMP01..., que sempre tiveram conhecimento desse facto.
Note-se que, em função do que se acaba de dizer, a facticidade julgada provada no ponto 10º da sentença recorrida não tem correspondência com a realidade ontológica efetivamente ocorrida.
Ponderando, porém, que esse ponto 10º da facticidade julgada provada na sentença sob sindicância não foi impugnado pela recorrente, encontra-se esta Relação impedida de conhecer do erro de julgamento da matéria de facto de que aquele manifestamente enferma, sem prejuízo de se impor a sua alteração para evitar contradições quanto à sindicância que se venha a fazer em relação à facticidade que venha impugnada pela recorrente (ou que seja de conhecimento do tribunal ad quem), na medida em que isso se torne necessário para evitar possíveis contradições. Quarta conclusão: sendo a ora recorrente EMP01... uma das credoras da devedora (veja-se que é a credora n.º 147 da relação de créditos reconhecidos pela administradora da insolvência em 29/04/2020, ao apenso D - apenso de reclamação de créditos -, em que esta lhe reconheceu um crédito de 83.711,04 euros por “rendas em atraso”, e que a administradora da insolvência notificou-a daquele relatório a que se vem fazendo referência – cfr. relação das pessoas a quem a AI notificou o relatório em causa, junta ao processo de insolvência em 16/04/2020), aquela sempre teve conhecimento, por não o puder desconhecer, que apesar da administradora da insolvência ter encerrado a unidade fabril da devedora em 13/02/2020, era sua intenção proceder à venda/liquidação dessa unidade fabril (com o direito ao arrendamento em que essa unidade fabril funcionava incluído), a fim de ser reativada por quem a viesse adquirir e que a proposta de aquisição apresentada pela proponente EMP06..., S.A. englobava a totalidade dessa unidade fabril, isto é, não só as máquinas que nele existiam (quando foi encerrado em 13/02/2020 e que nele permaneciam), como também o arrendamento do espaço à recorrente EMP01... onde essa unidade fabril se encontrava (e encontra) instalada.
Refira-se, aliás, que a recorrente EMP01... sempre foi notificada de todos os atos processuais praticados ao longo do processo de insolvência e respetivos apensos, onde, inclusivamente, interpôs recurso da sentença proferida em 27/08/2021, que homologou a transação celebrada entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02... (junta ao apenso C, em 23/08/2021), recurso esse que foi rejeitado por acórdão proferido por esta Relação em 22/09/2022, transitado em julgado, por falta de legitimidade daquela (EMP01...) para interpor recurso daquela sentença; pronunciou-se quanto à destituição de CC do cargo de administradora da insolvência, acusando-a de não cumprir as funções que lhe estavam confiadas (cfr. autos de insolvência) e arguiu a nulidade do ato de liquidação.
Avançando…
Em 28/04/2020, a recorrida EMP02..., Lda. instaurou contra a recorrida Massa Insolvente da devedora EMP03..., ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente operada pela administradora da insolvência, por carta registada com aviso de receção, de 28/02/2020, em que esta declarou resolvido a favor da massa o contrato de compra e venda celebrado entre a devedora (EMP03...) e a EMP02..., mediante o qual a primeira vendeu à segunda todo o recheio das suas instalações fabris – cfr. apenso C (e que era o recheio que se encontrava no interior dessas mesmas instalações fabris quando, em 13/02/2020, a administradora da insolvência encerrou essa unidade fabril e que acabou por ser por ela apreendido a favor da massa – neste sentido vide: teor do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, que acima se transcreveu; depoimento de parte de BB, legal representante da recorrida EMP02...; e de CC, administradora da insolvência).
No âmbito dessa ação, entre as recorridas EMP02... e Massa Insolvente, veio a ser celebrada a seguinte transação, que se encontra junta ao identificado apenso C em 23/08/2021: “1- A Ré aceita a proposta da Autora para aquisição do estabelecimento da Autora, o que integra todos os bens apreendidos para a massa insolvente, nomeadamente as verbas 1 a 192, que aqui se juntam (doc. 1), bem como a transferência temporária e onerosa, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à devedora/insolvente da fração autónoma composta por edifício fabril destinado à indústria de confeção com dois pisos e sótão, destinado a armazém e atividade industrial, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...24, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...24, inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o art. ...54, melhor descrito no contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2009 entre a EMP01..., S.A, e a então arrendatário EMP04..., S.A., e entretanto transmitido para a devedora EMP03... aqui Ré, cujo prazo inicial de 10 anos se renovou por igual prazo de 10 anos em 01/05/2019, sendo absolutamente essencial para a celebração desta transação a transmissão do locado e manutenção do contrato de arrendamento nos termos do contrato existente. 2- Nos termos do disposto no art. 1109º, n.º 3 do Código Civil, a Ré obriga-se a comunicar à senhoria EMP01... Imobiliária, S.A., a transferência do estabelecimento. 3- O preço a pagar por esta aquisição é de 500.000,00 (quinhentos mil) euros, não sujeita a IVA por força do n.º 4 do art. 3º do CIVA, a pagar por transferência bancária para a conta da Ré com o IBAN… 4- O pagamento será efetuado imediatamente após ser proferido o despacho/sentença de homologação. (…). 7- A Ré obriga-se a pagar as rendas em dívida, desde a data da insolvência até à data em que for proferido o despacho de homologação, obrigando-se a Autora a pagar todas as demais, a partir dessa data. (…)” (sublinhados e destacados nossos).
A identificada transação foi homologada por sentença proferida em 27/08/2021, mas, conforme antedito, a ora recorrente EMP01... dela interpôs recurso, o qual foi rejeitado, por acórdão desta Relação de 22/09/2022, transitado em julgado, com fundamento de que aquela não dispunha de legitimidade para interpor recurso daquela sentença homologatória da dita transação aí recorrida.
A presente ação foi instaurada pela recorrente EMP01... em 18/10/2021.
A fls. 68 e 69 do processo físico (da presente ação) foram juntas pela recorrida Massa Insolvente duas cartas registadas, datadas de 06/09/2021, enviadas: a primeira pela administradora da insolvência para “EMP01..., S.A., Avenida ..., ..., ... ...” (ou seja, para a sede da recorrente, que vem por ela indicada a fls. 1 verso da petição inicial, e que é também a sede que a mesma indicou no processo de insolvência), cujo registo data de 06/09/2021 (cfr. fls. 69 verso); e a segunda, remetida pela administradora da insolvência para “EMP01..., S.A..; Att. Exma. Presidente da Administração FF; GG, n.º ...”.
O teor das duas cartas é exatamente o mesmo e nelas lê-se: “Na qualidade de Administrador da massa insolvente de EMP03..., S.A. no processo (…), venho pela presente informar V. Exas., na qualidade de Senhorios da Insolvente, que nos termos da transação efetuada entre a Massa Insolvente e a credora EMP02..., Lda., cujo termo se encontra junto aos autos homologado por douta sentença, foi o estabelecimento da insolvente entregue àquela credora no passado dia 03 do corrente. Assim, em virtude desta alteração da arrendatária, deverão V. Exas. de ora em diante emitir os respetivos recibos de renda em nome de: EMP02... (…). Solicito ainda que me forneçam o v/IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito até ao momento, da responsabilidade da massa insolvente, sendo que a partir de agora tais rendas serão da responsabilidade da nova arrendatária”.
Por sua vez, a fls. 26 verso a 29 do processo físico foram juntas à presente ação pela recorrente EMP01... duas cartas, registadas com aviso de receção, datadas de 22/09/2021, sendo: uma remetida pela recorrente EMP01... à recorrida “EMP02... Lda., Rua ..., ..., ... ..., CC. Sra. Dra. CC, Administradora Judicial, Rua ..., ... ...”, que foi rececionada pela recorrente EMP02... em 27/09/2029 (cfr. aviso de receção junto a fls. 27 verso); e a outra remetida pela EMP01... à administradora da insolvência, e por esta rececionada em 27/09/2021 (cfr. aviso de receção junto a fls. 29), em que a recorrente EMP01... responde à carta anterior, que lhe foi remetida pela administradora da insolvência.
O teor de ambas as cartas é exatamente o mesmo e nelas lê-se que:
“A EMP01..., S.A. credora da insolvente EMP03..., S.A., vem pela presente acusar a receção da v/ missiva datada de 6 de setembro de 2021 e informa v/Exa. do seguinte: 1. Não obstante a Massa Insolvente ter, alegadamente na qualidade de arrendatária, celebrado com a credora “EMP02..., Lda. (no apenso C do processo n.º 753/20....) uma transação que veio a ser objeto de homologação por sentença, a EMP01..., não reconhece a existência, eficácia e validade de qualquer contrato de arrendamento pelas razões que, em sede própria, não deixará de pugnar; 2. A EMP01..., mediante a interposição de recurso de apelação da referida sentença homologatória, já manifestou a sua posição quanto à transação celebrada e respetiva homologação que considera serem ilegais, não reconhecendo a EMP02... como arrendatária, já que nenhum trespasse existiu. 3. De todo o modo, meramente à cautela e para a hipótese remota de se vir a considerar que o contrato de arrendamento se mantém valido e eficaz e/ou que o trespasse realizado é válido e eficaz, aproveitamos o ensejo para, desde já, fazer operar a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no incumprimento reiterado da obrigação de pagamento das rendas vencidas (há mais de 3 meses), nos termos do disposto nos arts. 1083º, n.º 1, n.º 3 e 4 e art. 1084º do Código Civil, o que constitui justa causa de despejo. 4. Encontra-se, neste momento, em mora as seguintes rendas: (Segue-se quadro, em que se identifica encontrarem-se em dívida as rendas de março de 2020 a outubro de 2021, inclusive, no montante global de 82.243.60 euros, e em cuja coluna mais à direita consta a menção do acréscimo de 20% sobre essas rendas em dívida, num total de 16.448,72 euros). 5- A presente missiva e interpelação foi simultaneamente remetida para a Sra. Dra. CC, Administradora Judicial da insolvente EMP03..., S.A., e para a EMP02..., Lda.” (sublinhados e destacados constantes da carta original).
A fls. 55 a 57 do processo físico foi junta pela recorrida EMP02..., uma carta registada com aviso de receção, que a mesma remeteu à recorrente EMP01... em resposta à carta acabada de referir, que consta do seguinte teor: “Respondendo à V/missiva de 22/09/2021, gostaríamos de esclarecer relativamente aos pontos 1 e 2 apesar de constituírem considerações de direito que não dominamos, não podemos deixar de considerar estranhas, atenta a celebração da transação efetuada com a MI, representada pela Exma. Senhora AJ a qual foi devidamente homologada por sentença do Tribunal de Comércio de VN de Famalicão. Quanto ao ponto 3 não aceitamos a resolução pelos motivos indicados. Como V. Exas. saberão a transação prevê o pagamento das rendas, sendo que as vencidas até 6 de setembro de 2021, são da responsabilidade da MI e a partir dessa data são da N/ responsabilidade. Já solicitamos à Exma. Senhora AJ que nos fornecesse o IBAN da V./empresa a fim de proceder ao pagamento das rendas, tendo-nos sido informado que V. Exas., não prestaram essa informação. Por outro lado, não nos parece ser de boa fé que V. Exas. não tenham reclamado o pagamento das rendas desde março de 2020 à inquilina MI e venham agora fazê-lo passados 18 meses a N/sociedade e após a celebração da transação, sendo certo que e conforme informação prestada pela AJ, as rendas vencidas até 6 de setembro de 2021, só não foram pagas porque V. Exas se recusaram a fornecer o IBAN”.
A carta registada com aviso de receção acabada de referir foi remetida pela recorrida EMP02..., para a recorrente EMP01..., sob registo e nela consta o seguinte destinatário “EMP01... – Imobiliário, S.A., Avenida ..., ..., ... ...” – cfr. fls. 56 verso -, ou seja, para a mesma direção que a recorrente EMP01... indica nos presentes autos e no processo de insolvência como sendo a sua sede e, bem assim, para onde a administradora da insolvência enviara a carta, datada de 6 de setembro de 2021, junta a fls. 68 do processo físico, para a recorrente EMP01..., e que esta rececionou, conforme confessa acontecer na carta resposta, junta a fls. 28 a 29 do processo físico.
Acontece que a identificada carta de fls. 55 a 57 acabou por ser devolvida à remetente EMP02..., com a menção de “objeto não reclamado”, em virtude de não ter sido reclamada pela destinatária EMP01..., apesar do carteiro ter expedido dois avisos para a última para que procedesse ao seu levantamento: um, em 20/10/2021, e outro, em 21/10/2021 (cfr. fls. 57 do processo físico).
Ainda a fls. 54 verso da presente ação encontra-se junto aos autos um depósito realizado em 11/10/2021, pela recorrida EMP02..., na Banco 1... (Banco 1...), a favor da recorrente EMP01..., da renda do mês de novembro de 2021, onde aquela indicou como motivo para efetuar o mesmo: “Recusa da senhoria em conceder IBAN para depósito de renda”; e a fls. 55, outro depósito efetuado pela EMP02..., em 08/11/2021, na Banco 1..., a favor da recorrente EMP01..., da renda de dezembro de 2021, em que indicou o mesmo motivo justificativo para proceder a esse depósito.
Aqui chegados, impõe-se extrair as seguintes conclusões adicionais em face da prova objetiva (documental) que se vem identificando: Quinta conclusão: apesar da devedora EMP03... ter pelo menos vários meses de rendas em dívida relativas ao espaço em que tinha a sua unidade fabril instalado junto da recorrente EMP01... (senhoria) respeitante ao período anterior à declaração da sua insolvência, a recorrente nunca cuidou em resolver o contrato de arrendamento que tinha celebrado com a EMP03... antes desta ter sido declarada insolvente. Sexta conclusão: apesar da massa insolvente não ter liquidado/pago as rendas à recorrente EMP01..., que se venceram após a declaração da insolvência, em 10/02/2020, e de ter conhecimento que a administradora da insolvência tinha encerrado a unidade fabril da devedora em 13/02/2022, que a partir daí ficou inativa, paralisada, e de ter conhecimento que aquela pretendia liquidar/vender essa unidade fabril como um todo (todo o seu recheio, incluindo o direito ao arrendamento do espaço em que essa unidade fabril se encontrava instalada) a fim de que o adquirente reativasse essa unidade fabril, nunca antes da carta datada de 22/09/2021, a recorrente EMP01... resolveu o contrato de arrendamento. Sétima conclusão: a recorrente EMP01... apenas passou a alegar assistir-lhe o direito a resolver o contrato de arrendamento com fundamento na inexistência do contrato de arrendamento do espaço onde funciona a unidade fabril da devedora, por pretensamente a administradora da insolvência o ter denunciado tacitamente; por inexistência desse estabelecimento (unidade fabril da devedora) suscetível de ser trespassado; por alegado não uso do arrendamento e por falta de pagamento das rendas na carta de 22/09/2021, junta a fls. 26 verso a 27, na sequência da transação celebrada, em 23/08/2021, entre as recorrentes Massa Insolvente e EMP02... no apenso C, e da homologação dessa transação por sentença proferida em 27/08/2021, da qual, inclusivamente, interpôs recurso, o qual, conforme antedito, não foi admitido por acórdão desta Relação em 22/09/2022, por falta de legitimidade da EMP01... para recorrer dessa sentença homologatória, passando, pois, a recorrente EMP01..., a partir dessa transação a assumir um comportamento contrário àquele que até aí tinha assumido, conforme aliás, a própria assume, na dita carta de fls. 26 verso e 27, que remeteu à administradora da insolvência e à recorrente EMP02..., em resposta às cartas datadas de 06 de setembro de 2021, juntas aos autos a fls. 68 verso a 69 (que a administradora da insolvência lhe remeteu e à presidente da sua administração), em que acusa a receção dessas cartas, mas em que afirma “não reconhecer a existência, eficácia e validade de qualquer contrato de arrendamento”,afirmando que “a transação celebrada e respetiva homologação são ilegais, não reconhecendo a EMP02... como arrendatária, já que nenhum trespasse existiu”,e em que, “à cautela e para a hipótese remota de se vir a considerar que o contrato de arrendamento se mantém válido e eficaz e/ou que o trespasse realizado é válido e eficaz”, declara “o ensejo para, desde já, fazer operar a resolução do contrato e arrendamento com fundamento no incumprimento reiterado da obrigação do pagamento das rendas” - cfr. cartas de fls. 26 a 29 do processo físico. Oitava conclusão: a recorrente EMP01... não rececionou a carta junta ao processo físico a fls. 55 verso a 57, datada de 29 de setembro de 2021, que a recorrida EMP02... lhe remeteu em resposta à carta anterior (a de fls. 26 e 27) propositadamente, isto é, intencionalmente, posto que, essa carta foi remetida pela EMP02... para a sede da EMP01... (que é, relembra-se, a morada que esta indicou como sendo a sua sede na presente ação e, bem assim, no processo de insolvência, e essa também foi a morada para onde a administradora da insolvência remeteu a carta de fls. 68 verso, datada de 06 de setembro de 2021, a qual, como referido, foi rececionada pela EMP01...). Acresce que o carteiro avisou a EMP01... por duas vezes para que esta procedesse ao levantamento da carta que a EMP02... lhe enviou (cfr. fls. 57). Aliás, o mencionado comportamento de verdadeira recusa da recorrente EMP01... em receber aquela carta mostra-se conforme ao comportamento por esta adotado, recusando-se a reconhecer a validade da transação celebrada entre a EMP02... e a Massa Insolvente e recusando-se a reconhecer aquela como arrendatária do espaço onde se encontrava instalada a unidade fabril da devedora e que a EMP02... se propunha reativar e reativou apenas na sequência da transação que foi celebrada entre as Rés EMP02... e Massa Insolvente no apenso C.
Adiante…
A fls. 64 a 67 do processo físico da presente ação encontra-se junto o contrato de arrendamento celebrado em 1/05/2009, entre a recorrente EMP01... e a então EMP04..., S.A, mediante o qual a 1ª deu de arrendamento o prédio onde a devedora tinha instalada a sua unidade fabril (e onde este permanece instalada), lendo-se nele, com relevância para os autos: “O local arrendado destina-se exclusivamente ao fabrico de confeções, nomeadamente, ao acabamento de malhas, tecidos e artigos têxteis e sua comercialização, não podendo ser utilizado para outros fins, nem sublocado ou cedido por qualquer foram, onerosa ou gratuitamente, no todo ou em parte, sem autorização escrita da primeira outorgante” – cláusula 1.2; “O arrendamento é celebrado pelo prazo inicial de dez anos, tendo o seu início no dia 1 de maior de 2009 e termo no dia 30 de abril de 2019, sendo automaticamente renovado por períodos sucessivos de dez anos, salvo se for denunciado por qualquer uma das partes nos termos dos números seguintes” – cláusula 2.1; “A renda anual devida é de 42.000,00 euros e será paga, pela Segunda Outorgante à Primeira Outorgante em duodécimos mensais de 3.500,00 euros, a liquidar até ao dia 8 do mês anterior a que disser respeito, na sede da Primeira Outorgante, contra emissão de recibo” – cláusula 3.1; “A Segunda Outorgante procede, nesta data, ao pagamento da quantia de 7.000,00 euros, referentes às rendas de maio e abril de 2009, dando a Primeira Outorgante a competente e devida quitação por este contrato” – cláusula 3.3; “Quaisquer comunicações a realizar no âmbito do presente contrato serão efetuadas por carta registada com aviso de receção, por telecópia ou correio eletrónico, confirmados por recibo de entrega, e ter-se-ão por realizadas, no caso da carta registada, na data da sua receção e, no caso da telecópia e do correio eletrónico, no momento da sua receção no posto do destinatário, se se verificar dentro das horas normais de expediente ou, em caso contrário, no primeiro dia útil seguinte” – cláusula 7.1; “Para efeitos das comunicações a realizar ao abrigo do presente contrato são as seguintes as moradas, os números de fax e Email das Outorgantes: Senhorio: EMP01..., S.A. A/c: HH Morada: Lugar ..., ... ... Fax: Email: .... Arrendatária: (…) – cláusula 7.2.
A fls. 67 a 68 do processo físico encontra-se junto o “Aditamento” ao contrato de arrendamento anterior, datado de 20/12/2016, em que a recorrente EMP01... e a EMP04... procederam à alteração da cláusula 3.1 daquele, nos seguintes termos: “3.1- A renda anual devida é de 48.000,00 euros e será paga, pela Segunda Outorgante à Primeira Outorgante em duodécimos mensais de 4.000,00 euros, a liquidar até ao dia 8 de mês anterior a que disser respeito, através de transferência bancária para a conta da Primeira Outorgante, com o IBAN ...05”.
A fls. 204 a 205 do processo físico encontra-se junta carta registada com aviso de receção, remetida pela recorrente EMP01... à administradora da insolvência, datada de 05/01/2022, em que se lê: “Assunto: Resposta à S/missiva datada de 06 de setembro de 2021 Processo n.º (…) Exma. Sra. Dr.ª CC Conforme é do seu conhecimento, a EMP01..., S.A, intentou ação de processo comum contra a Massa Insolvente de EMP03..., S.A. e contra a EMP02..., Lda., para a qual a Sra. Administradora já foi citada. Nessa ação, como sabe, a EMP01... não reconhece a existência e validade de qualquer contrato de arrendamento e subsequente trespasse pelas razões aí melhor expostas, A verdade é que, independentemente do desfecho da sobredita ação, sempre são devidas à EMP01... as rendas (/indemnização) pela ocupação dos seguintes meses:
(Segue-se quadro em que se indica estarem em dívida as rendas dos meses de março de 2020 a janeiro de 2022, inclusive, no montante global de 94.586,14 euros. Na quadrícula mais à direita desse quadro indica-se o acréscimo de 20% sobre as rendas em dívida, num total de 18.917,23 euros).
O texto dessa carta continua: “Atenta a mora verificada, ao valor das rendas acresce o valor de 20% e juros contabilizados desde a data de vencimento da renda até efetivo e integral pagamento. Pelo que vimos interpelas V. Exa., para, no prazo máximo de 5 dias, proceder ao pagamento das rendas vencidas e não pagas, para o NIB ...45 remetendo –nos posteriormente o comprovativo para o seguinte mail: ...”.
Na sequência, dessa missiva a administradora da insolvência remeteu à recorrente EMP01..., em 11/01/2022, o correio eletrónico junto ao processo físico a fls. 198, em que se lê: “Acusamos a receção da V/missiva de 05 do corrente, a qual serve para nos dar conhecimento do V/IBAN, o qual já vínhamos a solicitar desde outubro de 2021. Assim, e conforme já informamos em anteriores comunicações, procedemos ao pagamento das rendas que são da responsabilidade da MI, conforme comprovativo que se segue anexo. Não procedemos ao pagamento de qualquer mora, por não ser devida, tal como V. Exas. têm tacitamente reconhecido, designadamente desde fevereiro de 2020” (destacado constante do original).
Em anexo a esse correio eletrónico (fls. 198 verso), foi junto um documento em que se vê que a administradora da insolvência transferiu para a conta da recorrente EMP01..., com o NIB por ela indicado na carta de fls. 204 a 205, em 11/01/2022, a quantia de 58.598,57 euros; e a fls. 199, um outro documento, onde se vê que aquela administradora reteve na fonte e entregou às Finanças em 11/01/2022, a quantia de 19.532,43 euros.
Uma última conclusão se impõe extrair em face da prova objetiva (documental) que se vem analisando: Nona conclusão: apesar de já nas cartas que remeteu à recorrente EMP01... e à presidente da administração desta, em 06 de setembro de 2021 (cartas juntas a fls. 68 verso a 69) a administradora da insolvência ter solicitado que lhe fosse fornecido o IBAN para proceder ao pagamento das rendas em débito, “perante a incerteza sobre o IBAN” – conforme vem alegado pela recorrida Massa Insolvente no art. 22º da contestação (cfr. fls. 63), estado de incerteza esse que, diga-se, é mais que justificado quando se verifica que a devedora, quando foi declarada insolvente, em 10/02/2020, já não pagava a renda devida à EMP01... há meses, e quando se vem a constatar que o IBAN que consta do aditamento ao contrato de arrendamento não é o que acabou por ser fornecido pela EMP01... à administradora da insolvência na carta de fls. 204 e 205 -, verifica-se que a EMP01... apenas forneceu o IBAN à administradora da insolvência por carta datada de 05/01/2022, conforme é pela própria reconhecido ao escrever nesta: “Assunto: Resposta à S/missiva datada de 06 de setembro de 2021” (cfr. fls. 204 a 205), na sequência do que a administradora liquidou imediatamente as rendas que se encontravam em dívida em singelo (cfr. fls. 198 a 199).
Passando à prova pessoal produzida em audiência final, BB, gerente da recorrida EMP02..., em sede de depoimento de parte, nada adiantou de novo em relação à prova documental que se vem identificando e analisando, pelo que o seu depoimento apenas corrobora o que se vem dizendo.
BB referiu ter feito um negócio com a devedora EMP03..., em que comprou as máquinas que esta tinha instaladas nas suas instalações fabris, e que, por via desse negócio, veio a fazer um outro com a Massa Insolvente tendo por objeto as mesmas máquinas e o “arrendamento do espaço para poderem estar lá a trabalhar” (referindo-se à transação celebrada entre as recorridas EMP02... e Massa Insolvente no apenso C).
Referiu que, “quando fez (a EMP02...) o negócio com a massa, a EMP03... (devedora) não estava a laborar, não tinha trabalhadores”, mas “não sabe se a EMP03... estava ou não há ano e meio parada. A EMP03... fazia “seamless”, que é roupa de desporto e roupa interior. A EMP02... dedica-se a fazer máquinas industriais e têxtil. “Compraram as máquinas e o espaço arrendado para fazer o mesmo que fazia a EMP03...”. “Aquilo começou a trabalhar, estiveram a produzir durante um ano/ano e meio, produzindo têxtil e depois o gás subiu muito e pararam”. O AA é que estava à frente da unidade fabril que fora da EMP03... após a EMP02... a ter reativado. O AA tinha sido funcionário da EMP03....
O depoente BB acabou por afirmar que tinha intenção de constituir uma sociedade com o AA, com quem veio a desatender-se e que, nessa sequência, após as instalações fabris terem sido reativadas pela EMP02... e terem laborado durante um ano/um ano e meio, as mesmas foram encerradas e estão encerradas.
Confrontado com a carta de fls. 26 verso e 27, enviada pela recorrente EMP01... à recorrida EMP02..., o depoente BB confirmou ter rececionado essa carta e que, na sequência da mesma não pagou (a EMP02...) as rendas que estavam em atraso antes da homologação da transação, porque cumpria à massa insolvente proceder a esse pagamento, o que, refira-se, contrariamente à facticidade julgada provada no ponto 12º na sentença sob sindicância, é corroborado pelo teor da transação junta ao apenso C.
Todavia, o depoente II referiu que a EMP02... pagou todas as rendas que se venceram após a transação, nada devendo (a EMP02...) à EMP01... – “as rendas estão todas pagas”.
Questionado das razões para ter procedido ao depósito das rendas na Banco 1..., referiu que quando compraram as máquinas (recheio da unidade fabril) e o arrendamento do espaço (onde essa unidade se encontra instalada) “telefonaram várias vezes à EMP01... e eles não diziam nada. Queriam pagar e ninguém dizia como deviam pagar e então dirigiram-se ao banco (Banco 1...) e começaram a pagar por depósito”. “Eles” (referindo-se à EMP01...) não lhe davam (à EMP02...) o número da conta para eles pagarem”. Referiu que, em data recente, a EMP01... enviou uma carta, comunicando à EMP02... para não depositar mais as rendas na Banco 1... e para proceder ao depósito das mesmas na conta que lhe indicou, o que a EMP02... passou a fazer.
Por sua vez, CC, administradora da insolvência, referiu que, quando se deslocou pela primeira vez às instalações da devedora, esta encontrava-se a trabalhar, mas não estava a gerar receitas suficientes e ela encerrou o estabelecimento, dispensou os funcionários (não suspendeu os contratos de trabalhos, mas cessou-os, despedindo os trabalhadores), e contratou uma empresa de segurança para assegurar o património. Referiu não ter contactado clientes, nem fornecedores da devedora a fim de manter a unidade fabril em funcionamento. “Em termos práticos a empresa deixou de ter qualquer atividade e ela não mais reativou aquele estabelecimento”.
CC referiu não ter apreendido o direito ao arrendamento do espaço onde funcionavam as instalações fabris da devedora “por lapso”, mas “tudo o que foi feito, foi para vender o estabelecimento. Nunca, em momento algum, a intenção foi de vender isoladamente as máquinas”.
Relatou que as rendas que estavam em dívida desde a declaração da insolvência da devedora foram pagas pela massa insolvente em janeiro de 2022. Questionada sobre os motivos da massa insolvente não vir a pagar as rendas mensalmente, a partir da insolvência da devedora, referiu que a devedora tinha uma loja de venda ao público, num espaço que também tinha sido tomado arrendamento à EMP01... e que se localizava nas imediações das instalações fabris, e ela, administradora da insolvência, decidiu encerrar esse espaço e entregá-lo à senhoria (EMP01...). Na altura, em maio de 2020, contactou telefonicamente a advogada da EMP01... – Dr.ª JJ -, a quem entregou a dita loja e, quanto às rendas relativas ao espaço fabril, comunicou à última que a Massa Insolvente não tinha dinheiro para proceder ao pagamento dessas rendas, mas que estas seriam pagas logo que a Massa tivesse dinheiro para o efeito, o que foi aceite pela EMP01..., uma vez que “nunca lhe disseram para que saísse. Depois a EMP03... andava sempre com rendas em atraso e quando pagava, nunca pagava com qualquer acréscimo por mora”. Referiu que, por duas vezes, solicitou à EMP01... o IBAN para proceder ao pagamento das rendas em dívida, e que logo que esta lhe enviou o IBAN, liquidou as rendas em singelo.
Por último, a administradora da insolvência referiu que o negócio celebrado entre a devedora e a EMP02..., que a mesma resolveu a favor da massa insolvente, englobava a venda pela primeira à última da totalidade das máquinas que se encontravam nas instalações fabris da devedora e que lá se encontravam quando se deslocou a essas instalações e encerrou a empresa têxtil.
Por sua vez, KK, gerente da devedora, limitou-se, em sede de depoimento de parte, a confirmar que, quando a administradora da insolvência, se deslocou às instalações da devedora, esta estava “a produzir e estava em funcionamento”, e que a administradora, no dia 13/02/2020, encerrou a empresa, despediu todos os funcionários, a quem entregou a documentação necessária para que recebessem o subsídio de desemprego, colocou trancas nas portas, passando desde então a unidade fabril a estar totalmente inativa.
A versão dos factos que foi apresentada por KK foi confirmada pelas testemunhas LL e MM, funcionárias da devedora, e que também foram despedidas pela administradora da insolvência em 13/02/2020.
Logo, conforme resulta do que se vem dizendo, a prova pessoal nada de novo trouxe em relação à prova documental acima já identificada e analisada, limitando-se esta a corroborar essa mesma prova nos termos da qual, na sequência da declaração da insolvência da devedora, esta encontrava-se a laborar, tendo sido a administradora da insolvência quem, em 13/02/2020 (e não em 12/02/2020, conforme se escreve no relatório a que alude o art. 155º do CIRE), encerrou o estabelecimento fabril, despedindo todos os seus trabalhadores, que a partir daí ficou efetivamente totalmente inativa, conforme foi pela própria administradora da insolvência confirmado e é corroborado por NN e pelas testemunhas LL e MM.
Todavia, conforme resulta da prova documental já acima identificada e analisada e foi confirmado pela administradora da insolvência a intenção daquela nunca foi vender/liquidar as máquinas das instalações fabris da devedora, mas vender essas instalações como um todo (máquinas e direito ao arrendamento do espaço onde essa unidade fabril se encontrava instalado) para que esta fosse reativada por quem as viesse a adquirir, como veio a acontecer, na sequência da transação que a massa insolvente veio a celebrar com a recorrida EMP02..., em que aquela unidade fabril foi reativada e laborou durante cerca de um ano/ano e meio até serem novamente encerradas pela EMP02... (encerramento este de que não cuidam os presentes autos).
Tal como decorre igualmente da prova documental acima identificada e analisada, a administradora da insolvência confirmou ter solicitado à recorrente EMP01... o NIB para depositar as rendas em atraso, e que esta não lhe forneceu aquele, pelo que logo que esta lhe forneceu o NIB, procedeu ao pagamento das rendas que se encontravam em atraso, em singelo, o que também se mostra concordante com o depoimento de parte prestado por II, legal representante da recorrida EMP02..., e é corroborado pelas duas cartas, datadas de 06 de setembro 2021, juntas aos autos a fls. 68 verso a 70, em que, na sequência da transação celebrada no apenso C, a administradora interpela, na primeira, a EMP01..., e na segunda, a presidente da administração daquela, dando-lhe conhecimento da transação celebrada e para que lhe fosse fornecido o IBAN a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito, e pelo teor das cartas datadas de 22 de setembro de 2021, juntas aos autos a fls. 26 a 28, enviadas pela EMP01..., uma à administradora da insolvência, e outra à EMP02..., onde, além do mais, acusa a receção daquelas cartas mas não fornece o IBAN que lhe fora solicitado.
A administradora da insolvência referiu ter acordado com a mandatária da recorrente EMP01..., Dra. JJ, que a massa insolvente pagaria as rendas que se venceram após a declaração da insolvência logo que a massa insolvente tivesse dinheiro, o que mereceu a concordância da EMP01..., o que tudo se mostra concordante com o facto desta ter aguardado, não exigindo à Massa Insolvente as rendas que se venceram após a declaração da insolvência, vindo apenas a fazê-lo na carta datada de 06 de setembro de 2021 (junta aos autos a fls. 26 verso e 27), por via de se encontrar em conflito com a Massa Insolvente devido à transação que esta celebrou com a recorrida EMP02... no apenso C, nos termos já supra enunciados.
Posto isto, pretende a recorrente que a facticidade julgada provada nos pontos 23º e 24º tem de ser julgada não provada e que, quanto à facticidade julgada provada no ponto 25º, apenas se impõe julgar como provada que a recorrida EMP02... depositou as rendas referentes aos meses de novembro e dezembro de 2021, isto porque, a carta de fls. 55 verso a 56, datada de 29 de setembro de 2021, que a EMP02... lhe remeteu, nunca foi por si recebida, mas foi devolvida à remetente (EMP02...) por não ter sido reclamada pela destinatária (EMP01...), e que a EMP02... não produziu qualquer prova nos autos quanto ao concreto envio de uma concreta comunicação, sendo o depoimento de parte prestado pelo legal representante da Ré totalmente impreciso e absolutamente vago.
Subsidiariamente, entende que se impõe aditar o teor do contrato de arrendamento quando ao que nele ficou convencionado quanto à forma como se processariam as comunicações entre senhoria (EMP01...) e arrendatária.
Sem razão, com exceção de que a facticidade julgada provada pela 1ª Instância nos pontos 23º, 24º e 25º não espelha a realidade ontológica efetivamente acontecida e que se verifica ocorrer o vício da deficiência do julgamento da matéria de facto realizada pela 1ª Instância quanto às cartas juntas aos autos a fls. 67 verso a 69 (a que alude a facticidade julgada provada no ponto 27º), mas cujo teor importa levar aos factos provados dado relevar para a decisão de mérito a proferir.
Conforme acima se demonstrou, a recorrida EMP02..., respondeu efetivamente à carta que a recorrente lhe enviou, datada de 06 de setembro de 2021 (junta a fls. 26 verso a 27 dos autos), por carta datada de 29 de setembro de 2021 (cfr. fls. 55 verso a 57), onde refere ter solicitado à administradora da insolvência para que lhe fosse fornecido o IBAN da EMP01..., e que esta última lhe comunicou que a EMP01... não lhe forneceu aquele - “(…) solicitamos à Exma. Senhora AJ que nos fornecesse o IBAN da V/ empresa a fim de proceder ao pagamento das rendas, tendo-nos sido informado que v/ Exas, não prestaram essa informação”.
Note-se que essa alegação da recorrida que se acaba de referir é corroborada pelo facto de nas cartas datadas de 06 de setembro de 2021, que a administradora da insolvência remeteu à recorrente EMP01... e à presidente da administração desta, juntas aos autos a fls. 68 a 69, aquela ter solicitado efetivamente que lhe fosse fornecido o IBAN - “Solicito ainda que me forneçam o v/IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito até ao momento, da responsabilidade da massa insolvente, sendo que a partir de agora tais rendas serão da responsabilidade da nova arrendatária”-, dado esse que, conforme se vê da leitura das cartas datadas de 22/09/2021, juntas a fls. 26 verso a 29 dos autos, que a EMP01... remeteu à administradora da insolvência e à recorrida EMP02..., respondendo àquela carta que a primeira lhe remetera, e foi confirmado pela administradora da insolvência e pelo legal representante da EMP02... em audiência final, aquele não lhes facultou, com o que naturalmente a EMP01... inviabilizou que as recorridas Massa Insolvente e EMP02... pudessem liquidar/pagar as rendas.
Conforme resulta do teor da carta datada de 05 de janeiro de 2022 (junta aos autos a fls. 204) e do mail de 11 de janeiro de 2022 (junto aos autos a fls. 198) e foi confirmado pela administradora da insolvência, a recorrente apenas lhe forneceu o IBAN da conta em que devia proceder ao depósito das rendas que se encontravam em atraso na dita carta datada de 05/01/2022, na sequência do que, aquela procedeu, de imediato, ao depósito dessas rendas que se encontravam em atraso, em singelo.
No que respeita à carta datada de 29 de setembro de 2021 (junta aos autos a fls. 55 a 57) que a recorrida EMP02... remeteu à recorrente EMP01..., em resposta à carta que esta lhe enviara, datada de 06 se setembro de 2021 (junta aos autos a fls. 55 a 57), é certo que, conforme sustenta a recorrente, essa carta não foi por si rececionada, acabando por ser devolvida à remetente (EMP02...) com a indicação de objeto não reclamado.
Contudo, conforme já acima demonstrado, essa carta não foi rececionada pela recorrente EMP01..., intencional e propositadamente, que se recusou, em termos materiais e fácticos, a recebê-la, na medida que essa carta foi remetida para a sede da EMP01..., que esta indicou na presente ação e nos autos de insolvência como sendo a sua sede e esta foi para onde a administradora enviou a carta a carta de fls. 68 verso, que foi por aquela rececionada. Acresce que o carteiro expediu por duas vezes avisos para que a EMP01... procedesse ao levantamento dessa carta. Deste modo, em face das regras do normal acontecer, não se descortina qualquer outra razão para a recorrente EMP01... não ter procedido ao levantamento daquela carta que não seja a sua conduta intencional em recusar o seu recebimento.
Destarte, na parcial procedência do fundamento de recurso acabado de apreciar, com vista a tornar a facticidade julgada provada nos pontos 23º, 24º e 25º conforme à realidade ontológica efetivamente verificada, e suprindo-se desde já os vícios da deficiência de que enferma o julgamento da matéria de facto, altera-se a facticidade neles julgada provada, e julga-se provada a seguinte facticidade: “23- Na sequência da transação a que se alude no ponto 9º dos factos provados, a administradora da insolvência enviou as cartas datadas de 06 setembro de 2021, juntas a fls. 68 verso a 69, a primeira à EMP01... (para o endereço: Avenida ..., ..., ... ...) e a segunda à atenção da presidente da administração desta, em que lhes comunicou o seguinte: “Na qualidade de Administradora da massa insolvente de EMP03..., S.A., no processo n.º 753/20.... (Apenso C) …, venho pelo presente informar V. Exas., na qualidade de Senhorios da Insolvente, que os termos da Transação efetuada entre a Massa Insolvente e a credora EMP02..., Lda., cujo Termo se encontra junto aos autos homologado por douta sentença, foi o estabelecimento da Insolvente entregue àquela credora no passado dia 03 do corrente. Assim, em virtude desta alteração da Arrendatária, deverão V. Exas, de ora em diante emitir os respetivos recibos de renda em nome de: EMP02..., Lda., sita na Rua ..., ..., ... ..., ..., contribuinte n.º ...89. Solicito ainda que me forneçam o V/IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito até ao momento, da responsabilidade da massa insolvente, sendo que a partir de agora tais rendas serão da responsabilidade da nova arrendatária”. “24- Na sequência da receção dessas cartas, a EMP01... remeteu à administradora da insolvência a carta datada de 22/09/2021, de fls. 28, e à EMP02... a carta datada de 22/09/2021, de fls. 26 verso e 27 (a que se alude no ponto 13º dos factos provados), em que lhes comunicou o seguinte: “A EMP01..., S.A., credora da insolvente EMP03..., S.A., vem pela presente informar V/ Exa. do seguinte: 1. Não obstante a Massa Insolvente ter, alegadamente na qualidade de arrendatária, celebrado com a credora EMP02..., Lda. (no apenso C do processo n.º 753/20....) uma transação que veio a ser objeto de homologação por sentença, a EMP01... não reconhece a existência, eficácia e validade de qualquer contrato de arrendamento pelas razões que, em sede própria, não deixará de pugnar. 2. A EMP01..., mediante a interposição de recurso de apelação da referida sentença homologatória, já manifestou a sua posição quanto à transação celebrada e respetiva homologação que considera serem ilegais, não reconhecendo a EMP02... como arrendatária, já que nenhum trespasse existiu. 3- De todo o modo, meramente à cautela e para a hipótese remota de se vir a considerar que o contrato de arrendamento se mantém válido e eficaz e/ou que o trespasse realizado é válido e eficaz, aproveitamos o ensejo para, desde já, fazer operar a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no incumprimento reiterado da obrigação do pagamento das rendas vencidas (há mais de 3 meses), nos termos do disposto nos arts. 1083º, n.º 1, n.ºs 3 e 4 do art. 1084º do Código Civil, o que constitui causa para despejo. 4. Encontram-se, neste momento, em mora as seguintes rendas: (Segue-se quadro em que se indica como estando em dívidas as rendas de março de 2020 a outubro de 2021, inclusive, num total de 82.243,60 euros, e em cuja fila mais à direita se indica o acréscimo de 20% sobre o valor daquelas rendas, num total de 16.448,72 euros). 5- A presente missiva e interpelação foi simultaneamente remetida para a Sra. Dra. CC, Administradora Judicial da insolvente EMP03... e para a EMP02..., Lda.”. 25- A Ré EMP02... respondeu a essa carta, mediante a carta datada de 29 de setembro de 2021, junta a fls. 55 verso a 56, que remeteu para a morada da EMP01... para onde a administradora da insolvência remetera a carta a que se alude no ponto 24º dos factos provados, e que é a sede que a EMP01... indicou na petição e nos autos de insolvência como sendo a sua sede, comunicando-lhe o seguinte: “Respondendo à V/ missiva datada de 22/09/2021, gostaríamos de esclarecer relativamente aos pontos 1 e 2 apesar de construírem considerações de direito que não dominamos, não podemos deixar de as considerar estranhas, atenta a celebração da transação efetuada com a MI, representada pela Exma. Senhora AJ a qual foi devidamente homologada por sentença do Tribunal de Comércio de VN Famalicão. Quanto ao ponto 3 não aceitamos a resolução pelo motivo da inexistência dos motivos indicados. Como V. Exas. saberão a transação prevê o pagamento das rendas, sendo que as vencidas até 6 de setembro de 2021, são da responsabilidade da MI e a partir dessa data são da N/responsabilidade. Já solicitamos à Exma. Senhora AJ que nos fornecesse o IBAN da V/empresa a fim de proceder ao pagamento das rendas, tendo-nos sido informado que V. Exas. não prestaram essa informação. Por outro lado, não nos parece ser de boa fé que V. Exas não tenham reclamado o pagamento das rendas desde março de 2020, à inquilina MI e venham agora fazê-lo, passados 18 meses à N/ sociedade e após a celebração da transação, sendo certo que e conforme informação prestada pela AI, as rendas vencidas até 6 de setembro de 2021, só não foram pagas porque V. Exas se recusaram a fornecer o IBAN”. 25A- A carta acabada de referir não foi levantada pela Autora EMP01..., apesar do carteiro a ter avisado por aviso emitidos em 20/10/2021 e 21/10/2021 para que procedesse ao seu levantamento, acabando por ser devolvida à remetente EMP02..., com a indicação de “objeto não reclamado”. 25B- No contrato celebrado entre a EMP01... e a EMP04..., em 1/05/2009, mediante o qual a primeira deu de arrendamento à última as instalações onde se situa a unidade fabril da devedora EMP03..., junto aos autos a fls. 64 verso a 67, ficaram convencionadas, além do mais, as seguintes cláusulas: “1. Objeto e Fim do Contrato (…) 1.2- O local arrendado destina-se exclusivamente ao fabrico de confeções, nomeadamente, a acabamento de malhas, tecidos e artigos têxteis e sua comercialização, não podendo ser utilizado para outros fins, nem sublocado ou cedido por qualquer outra forma, onerosa ou gratuitamente, no todo ou em parte, sem autorização escrita da Primeira Outorgante. (…) 7- Comunicações entre as Partes 7.1- Quaisquer comunicações a realizar no âmbito do presente contrato serão efetuadas por carta registada com aviso de receção, por telecópia ou correio eletrónico, confirmados por recibo de entrega, e ter-se-ão por realizadas, no caso de carta registada, na data da sua receção e, no caso de telecópia e do correio eletrónico, no momento da sua receção no posto do destinatário, se se verificar dentro das horas normais de expediente ou, em caso contrário, no primeiro dia útil seguinte. 7.2- Para efeito das comunicações a realizar ao abrigo do presente contrato são as seguintes as moradas, os números de fax e de Email dos Outorgantes: Senhorio: EMP01..., S.A. A/c: HH Morada: Lugar ..., ... ... Fax: Email: .... 25C- Em 20 de dezembro de 2016, a EMP01... e a EMP04... celebraram um aditamento ao contrato acabado de referir, em que alteraram a sua cláusula 3.1, para os termos que se seguem: “3.1- A renda anual devida é de 48.000,00 euros (quarenta e oito mil euros) e será paga, pela Segunda Outorgante à Primeira Outorgante em duodécimos mensais de 4.000,00 euros (quatro mil euros), a liquidar até ao dia 8 do mês anterior a que disser respeito, através de transferência bancária para a conta da Primeira Outorgante, com o IBAN ...05. 25D- A EMP01... recusou-se a levantar a carta identificada nos pontos 25º e 25º-A e a fornecer o IBAN à administradora da insolvência e à EMP02..., pelo que esta depositou as rendas de novembro e dezembro de 2021 na Banco 1...”. D.3.2- Pontos 27º e 28º da facticidade julgada provada
A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade: “27- O valor das rendas vencidas até à adjudicação do estabelecimento à EMP02... foi oferecido pela massa insolvente à A. tendo-lhe solicitado por duas vezes através de cartas registadas com A/R que informasse o seu IBAN”. “28- A A. não lhes respondeu por qualquer meio – fls. 68 verso, 69 e verso”.
Advoga a recorrente que a facticidade assim julgada provada tem de ser julgada não provada, isto porque “a Ré Massa Insolvente nenhuma prova fez de que tenha oferecido à Autora o pagamento das rendas – não arrolou uma só testemunha nos autos, nem requereu as declarações de parte; a Ré Massa Insolvente não provou que tivesse solicitado o IBAN, porquanto não juntou aos autos documento bastante para demonstrar que a carta que alega ter remetido à Autora chegou ao conhecimento desta”.
Subsidiariamente propugna que se impõe alterar a facticidade julgada provada no ponto 27º, o qual deve passar a constar da seguinte facticidade:“27- A Ré Massa Insolvente remeteu à Autora as missivas datadas de 06/09/2021 e 13/10/2021, juntas com a contestação da Ré Massa Insolvente”;que a facticidade julgada provada no ponto 28º tem de ser julgada não provada e, bem assim, que se impõe julgar como não provado que: “A Autora EMP01... tenha recebida as cartas referidas em 27 dos factos provados”.
Sem razão.
Que as cartas remetidas pela administradora da insolvência à recorrente EMP01... e à presidente da administração desta, datadas de 06 de setembro de 2021, juntas a fls. 68 verso a 69 dos autos (onde a administradora da insolvência expressamente as interpela, pedindo: “Solicito ainda que me forneçam o V/IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito até ao momento, da responsabilidade da massa insolvente, sendo que a partir de agora tais rendas serão da responsabilidade da nova arrendatária”) foram rececionadas pela recorrente EMP01... é confessado pela própria nas cartas de 22/09/2021, juntas aos autos a fls. 26 verso a 29, que esta remeteu às recorridas Massa Insolvente e EMP02..., e onde não indica o IBAN.
A recorrente EMP01... apenas vem a fornecer à administradora da Insolvência o IBAN onde as rendas em dívida deviam ser depositadas na carta datada de 05/01/2022, junta aos autos a fls. 204 a 205.
Termos em que, sem mais, por desnecessárias, considerações improcede este fundamento de recurso e, em consequência, mantém-se inalterada a facticidade julgada provada nos pontos 27º e 28º. D.3.3- Pontos 7º e 29º da facticidade julgada provada
Nos pontos 7º e 29º a 1ª instância julgou provada a matéria de facto que se segue: “7- A Sra. AI não procedeu ao pagamento de qualquer renda vencida após a declaração de insolvência até 11-1-2022, após a A. ter remetido por carta o seu NIB”. “29- A massa insolvente só pagou as rendas em atraso a 11-1-2022, após a A. lhe ter fornecido o IBAN”.
Pretende a recorrente que a prova produzida impõe que se altere a facticidade assim julgada provada nos seguintes termos:
“7- A Sra. AI não procedeu ao pagamento de qualquer renda vencida após a declaração de insolvência até 11/01/2022”.
“29- A massa insolvente só pagou as rendas em atraso a 11/01/2022, após ter recebido a carta que lhe foi dirigida pela Autora, datada de 05/01/2022, junta aos autos com o requerimento de 23/01/2023”. Para tanto argumenta que: “a Ré Massa Insolvente jamais alegou não dispor de um NIB para a realização do pagamento das rendas. O que a Ré Massa Insolvente alegou que foi que “na incerteza sobre qual o IBAN da Autora” solicitou a sua confirmação; a Ré Massa Insolvente na sua contestação juntou o aditamento ao contrato de arrendamento do qual consta expressamente o NIB para a realização do pagamento das rendas; no requerimento de 12.01.2023 a Massa Insolvente juntou aos autos o mail que alegadamente terá acompanhado pagamento das rendas realizado no dia 11.01.2022; e do doc. n.º 1 ora junto resulta que a Massa Insolvente há muito que dispunha do NIB da EMP01... para a realização do pagamento das rendas (documento cuja junção é admissível em virtude de o mesmo apenas se ter tornado necessário em virtude de o julgamento proferido na primeira instância, uma vez que o Tribunal recorrido, de forma surpreendentemente e, a nosso ver de forma ilegal, considerou acriticamente e aceitou sem qualquer reserva o depoimento prestado pela Sra. AI, olvidando tratar-se do depoimento de uma parte interessada e parcial e de um depoimento que não se mostra sustentado em qualquer outra prova suplementar)”.
Ao assim argumentar sem dúvida alguma que a recorrente EMP01... desvaloriza que, à data em que a devedora foi declarada insolvente, em 10/02/2020, esta tinha rendas em dívida há pelo menos vários meses e, bem assim, que o aditamento ao contrato de arrendamento celebrado entre a recorrente e a EMP01..., e a então EMP04..., onde estas alteraram a cláusula 3.1 do contrato de arrendamento que tinham celebrado, passando a prever que a renda seria paga através de transferência bancária para a conta da EMP01... com o IBAN ...05, data de 20/12/2016 (cfr. fls. 67 verso a 68 do processo físico), o que tudo era apto a criar na administradora da insolvência uma situação de incerteza sobre qual o IBAN da EMP01... onde devia depositar as rendas (conforme vem alegado pela recorrida Massa Insolvente no art. 22º da contestação – fls. 62 verso) e tivesse justificado que aquela tivesse solicitado à EMP01... e à presidente da administração desta, por cartas de 6 de setembro de 2021 (juntas ao processo físico a fls. 68 verso a 69) que lhe fornecesse “o v/ IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito até ao momento”.
A recorrente EMP01... desconsidera que, na sequência dessas cartas, não facultou efetivamente o IBAN à administradora da insolvência, nem à recorrida EMP02..., conforme é atestado pelo teor das cartas datadas de fls. 26 verso a 29.
Também desconsidera que apenas veio a facultar à administradora da insolvência o IBAN onde as rendas em atraso pela massa insolvente deviam ser depositadas por carta datada de 05/01/2022 (junta ao processo físico a fls. 204), levando a que, prontamente, a administradora tivesse depositado as rendas em dívida, em singelo.
E ignora ou desvaloriza que o IBAN que forneceu à administradora da insolvência na identificada carta de fls. 204, nada tem a ver com o número de IBAN que consta do aditamento ao contrato de arrendamento celebrado.
Destarte, longe da prova produzida impor a alteração da facticidade julgada provada pela 1ª Instância nos pontos 7º e 29º nos termos propugnados pela recorrente EMP01..., aquela prova impõe que se mantenha inalterada essa facticidade.
Contudo, porque esta facticidade não retrata a totalidade da realidade ontológica ocorrida, ordena-se o aditamento ao elenco dos factos provados da facticidade que se segue: 29.A- A administradora da insolvência solicitou na carta a que se alude no ponto 23º dos factos provados que a EMP01... lhe fornecesse o IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito dado encontrar-se num estado de incerteza sobre o qual o IBAN onde devia proceder a esse depósito decorrente de, à data da declaração da insolvência da devedora EMP03..., esta ter diversos meses de renda em atraso e face à data em que tinha sido celebrado o aditamento ao contrato de arrendamento a que se alude no ponto 25º-C dos factos provados. 29.B- O IBAN que a EMP01... indicou à administradora da insolvência na carta referida no ponto 7º dos factos provados e em que esta depositou o valor das rendas em atraso não corresponde ao IBAN que consta naquele aditamento ao contrato de arrendamento. D.4- Da extinção do arrendamento por denúncia tácita da administradora da insolvência D.4.1- Pontos 9º e 21º da facticidade julgada provada
O tribunal a quo julgou provado que: “9- A Sra. AI procedeu ao trespasse do estabelecimento comercial da insolvente, com o arrendamento na transação celebrada no apenso C”. “21- Da transação celebrada entre as RR. consta que a aquisição do estabelecimento integra todos os bens apreendidos para a massa insolvente, bem como a transferência do direito ao arrendamento, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à insolvente”.
Entende a recorrente que a facticidade acabada de referir tem de ser julgada não provada, isto porque: “a matéria em causa diz respeito à transação que foi celebrada nos autos de Apenso C e constitui uma conclusão de direito a extrair em sede de integração jurídica dos factos e não, como está bom de ver, de um facto que possa “resultar do depoimento da Sra. AI” ou do teor da transação. Caso assim não se entenda, a matéria de facto deve limitar-se aos factos suscetíveis de serem extraídos do documento, a saber: As partes declararam na transação celebrada no Apenso C que: A Ré [Massa Insolvente] aceita a proposta da Autora [EMP02...] para a aquisição do estabelecimento da insolvente, o que integra todos os bens apreendidospara a massa insolvente, nomeadamente as verbas 1 a 192, que aqui se juntam (doc. 1), bem como a transferência temporária e onerosa, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à devedora/insolvente da fração autónoma composta por edifício fabril (…) melhor descrito no contrato de arrendamento celebrado em 1-5-2009 entre a EMP01... (…) e a então arrendatária EMP04... (…), entretanto transmitido para a devedora EMP03... aqui Ré, cujo prazo inicial de 10 anos se renovou por igual prazo de 10 anos em 1-5-2019, sendo absolutamente essencial para a celebração desta transação a transmissão do locado e a manutenção do contrato de arrendamento nos termos o contrato existente”.
Mais uma vez sem razão. A expressão “trespasse do estabelecimento comercial” é uma expressão jurídica, mas trata-se de expressão que entrou na linguagem corrente das pessoas na sua vida quotidiana com um sentido equivalente ao jurídico. Acresce que essa expressão encontra-se concretizada na facticidade julgada provada no ponto 21º.
Assim, dúvidas não subsistem que o sentido de “trespasse do estabelecimento comercial” que é utilizada no ponto 9º dos factos provados tem o significado que, nos termos da transação celebrada entre a Massa Insolvente e a EMP02..., a primeira transferiu para a última todos os bens móveis apreendidos para a massa e que integravam (e integram) a unidade fabril da devedora à data em que aquela foi inativada, em 13/02/2020, pela administradora da insolvência e, bem assim, o direito de arrendamento sobre o espaço onde essa unidade industrial/fabril se encontrava (e encontra) instalada.
Decorre do que se vem dizendo, improceder o fundamento de recurso acabado de analisar.
Porém, verifica-se que a facticidade julgada provada nos identificados pontos 9º e 21º não reproduz na sua integralidade o teor da transação que foi celebrada entre a Massa Insolvente e a EMP02....
Por outro lado, verifica-se que a facticidade que foi julgada provada nos pontos 20º e 21º está em contradição com a julgada provada no ponto 10º.
Com efeito, no ponto 10º a 1ª Instância julgou provado que: “Desde a data do encerramento do estabelecimento da insolvente, o local arrendado passou a funcionar como armazém dos bens móveis da insolvente”, mas no ponto 21º julgou provado que: “Da transação celebrada entre as Rés consta que a aquisição do estabelecimento integra todos os bens apreendidos para a massa insolvente, bem como a transferência do direito ao arrendamento, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à insolvente”, e no ponto 20º julgou provado que, na sequência daquela transação: “A EMP02... reativou a unidade produtiva da ..., readmitindo trabalhadores, pondo as máquinas a funcionar e negociando com clientes e fornecedores, reativando o giro comercial”.
Ora, salvo o devido respeito por entendimento contrário, a circunstância de, a partir de 13/02/2020, o espaço onde se situava (e situa) aquela que foi a unidade fabril da devedora EMP03... “passar a funcionar como armazém dos bens móveis da insolvente” é contraditório com o facto de se ter dado como provado que, na sequência da transação celebrada, a EMP02... “reativou a unidade produtiva da EMP03..., (…) pondo as máquinas a funcionar (…)”, a não ser que essas máquinas que foram utilizadas até 13/02/2020 tivessem sido mantidas no interior do espaço (arrendado à EMP01...) em que essa unidade industrial se situava (e situa) prontas a que essa unidade fabril fosse reativada (e então, salvo melhor opinião, não se pode falar em “armazém”; que o espaço onde funcionava a unidade industrial, a partir de 13/02/2020 passou a servir de “armazém” ou que as máquinas que aí laboraram até 13/02/2020 passaram a estar “armazenadas” nesse espaço).
Acresce que a facticidade que a 1ª Instância julgou provada no ponto 12º não está em consonância com aquilo que foi efetivamente acordado entre as Rés Massa Insolvente e EMP02....
Destarte, com vista a eliminar a contradição e dissonância acabadas de referir e a tornar a facticidade julgada provada conforme à realidade ontológica efetivamente acontecida e aquilo que foi efetivamente acordado na transação (aliás, a prova do que ficou acordado na transação celebrada entre as recorridas EMP02... e Massa Insolvente tem de ser feita por prova documental, a qual consta do apenso C), ordena-se a: a- Eliminação da facticidade constante dos pontos 12º e 21º dos factos provados na sentença; b- Alteração do ponto 9º dos factos provados na sentença, o qual passa a constar da seguinte facticidade, que se julga provada: “9- Em 23/08/2021, no apenso C, entre as Rés Massa Insolvente e EMP02... foi celebrada a transação que se segue: “1- A Ré (Massa Insolvente) aceita a proposta da Autora (EMP02...) para aquisição do estabelecimento da Autora, o que integra todos os bens apreendidos para a massa insolvente, nomeadamente as verbas 1 a 192, que aqui se juntam (doc. 13), bem como a transferência temporária e onerosa, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à devedora/insolvente da fração autónoma composta por edifício fabril destinado a indústria de confeção com dois pisos e sótão, destinado a armazém e atividade industrial, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...24, inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o art. ...54, melhor descrito no contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2009 entre a EMP01..., S.A. e a então arrendatária EMP04..., S.A., entretanto transmitido para a devedora EMP03..., aqui Ré, cujo prazo inicial de 10 anos se renovou por igual prazo de 10 anos em 01/05/2019, sendo absolutamente essencial para a celebração desta transação a transmissão do locado e manutenção do contrato de arrendamento nos termos do contrato existente. 2- Nos termos do disposto no art. 1109º, n.º 3 do Código Civil, a Ré obriga-se a comunicar à senhoria EMP01... Imobiliária, S.A., a transferência do estabelecimento. 3- O preço a pagar por esta aquisição é de 500.000,00 (quinhentos mil) euros, não sujeito a IVA por força do n.º 4 do art. 3º do CIVA, a pagar por transferência bancária para a conta da Ré com o IBAN… 4- O pagamento será efetuado imediatamente após ser proferido o despacho/sentença de homologação. (…). 7- A Ré obriga-se a pagar as rendas em dívida, desde a data da insolvência ate á data em que for proferido o despacho de homologação, obrigando-se a Autora a pagar todas as demais, a partir dessa data”. c- Alteração do ponto 10º dos factos provados na sentença, o qual passa a constar da seguinte facticidade, que se julga provada: “10- Desde a data do encerramento da unidade fabril da devedora, o local em que este funcionava ficou fechado, com as máquinas e os restantes bens apreendidos para a massa insolvente, que constituíam o seu recheio, no interior dessa unidade fabril, aguardando que se conseguisse interessado na sua aquisição, a fim de reativar essa unidade fabril”. D.4.2- Ponto 16º da facticidade julgada provada
O tribunal a quo julgou provado o seguinte: “16- Se não fosse a transmissão do arrendamento para a EMP02..., esta não teria interesse na transação que celebrou no apenso C.
Pretende a recorrente EMP01... que, em função da prova produzida, se impõe julgar a facticidade acabada de referir como não provada, isto porque: “a sua prova não resulta do teor da própria transação (conforme justificado pelo Tribunal); a sua prova não resulta de qualquer outra prova complementar que a Ré EMP02... tenha produzido nos autos (relembra-se, a Ré não produziu qualquer prova testemunha, não requereu qualquer depoimento de parte, nem requereu a prestação de declarações de parte); e compulsados os autos, verifica-se exatamente a prova do oposto, porquanto na audiência de julgamento de 27/10/2020, realizada no âmbito do Apenso C, a EMP02... apresentou uma proposta para a aquisição dos bens móveis objeto da resolução do negócio (sem incluir o direito ao arrendamento).
Novamente sem razão. Primo: basta a mera leitura da cláusula 1ª da transação celebrada em 23/08/2021, entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02... (cfr. apenso C) para se verificar que a primeira transferiu para a segunda não só o recheio das instalações fabris (bens apreendidos para a massa insolvente), como também o direito ao arrendamento onde essas instalações fabris se encontravam (e encontram) instaladas, e que a transferência desse direito ao arrendamento foi efetivamente essencial para a EMP02... celebrar a dita transação – “… sendo absolutamente essencial para a celebração desta transação a transmissão do locado e manutenção do contrato de arrendamento nos termos do contrato existente”. Secundo: Encontrando-se as instalações fabris da devedora inativas desde 13/02/2020, e pretendendo a EMP02... reativá-las, mal se compreende a alegação da recorrente EMP01... de que a transmissão de direito ao arrendamento não era essencial para aquela – como é que a EMP02... iria reativar a unidade fabril sem o direito ao arrendamento do espaço em que essa unidade fabril estava (e está) instalada? Tertio: Como acima se demonstrou, a administradora da insolvência encerrou as instalações fabris da devedora em 13/02/2020 a fim de liquidar/vender essas instalações fabris como um todo (todo o recheio das mesmas, incluindo o direito ao arrendamento do espaço em que essas instalações se encontravam – e encontram - instaladas), a fim de que essa unidade fabril viesse a ser reativada por quem a adquirisse, conforme, aliás, foi sempre do conhecimento da recorrente EMP01..., a qual, relembra-se foi notificada do teor do relatório a que alude o art. 155º do CIRE e de todos os atos processuais praticados ao longo do processo de insolvência e respetivos apensos.
Improcede este fundamento de recurso e, em consequência, mantém-se inalterada a facticidade julgada provada no ponto 16º. D.4.3 – Pontos 17º, 22º e 26º da facticidade julgada provada
A 1ª Instância julgou provada a facticidade que se segue: “17- O estabelecimento foi encerrado até decisão final sobre o destino a dar ao estabelecimento. 22- Com o encerramento do estabelecimento da insolvente a atividade industrial apenas ficou suspensa por um período de um ano e meio e com ela os negócios, a clientela e o giro comercial, até que fosse encontrada a solução jurídica para o destino da insolvente. 26- A AI encerrou o estabelecimento para preservar todo o imobilizado da insolvente, da qual faz parte o estabelecimento comercial como um todo, com o direito ao arrendamento incluso”.
Advoga a recorrente que:
“A redação do facto 17º deve ser alterada no seguinte sentido: O estabelecimento foi encerrado pela Sra. AI e não era intenção da MI reativá-lo; A redação do facto 22 deve ser alterada no seguinte sentido: Com o encerramento do estabelecimento da insolvente, este deixou de ter atividade, giro comercial, trabalhadores, clientes e fornecedores; O facto 26 deve ser eliminado”.
Para tanto argumenta: “atento o depoimento prestado pela Sra. AI - CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – quanto aos factos que lhe são desfavoráveis, os documentos constantes dos autos principais e a total ausência de prova complementar quanto aos factos alegados pela Ré MI e que lhe são favoráveis, resulta evidente que a resposta dada aos factos 17º, 22º e 26º não pode manter-se; dos autos resulta, pelo contrário, que o direito ao arrendamento não foi apreendido nos autos, não foi inventariado nos autos, não foi anunciado para venda nos autos e, nem sequer ao mesmo foi atribuído valor para efeitos de venda, pelo que mal ao andou o Tribunal ao julgar provado que do imobilizado “faz parte o estabelecimento comercial como um todo, com o direito ao arrendamento incluso”; do depoimento da Sra. AI resultou a confissão de que encerrou o estabelecimento e deixou de haver qualquer giro comercial (não havia clientes, não havia fornecedores, não havia trabalhadores, não havia atividade e não havia negócio) – cfr. depoimento prestado CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – minutos 04:00 e ss. a Sra. AI disse ainda expressamente que jamais reativou o estabelecimento porque não era esse o objetivo - depoimento prestado CC - depoimento prestado na audiência de 16.04.2026 - gravado nas rotações 14:29:57 a 15:19:14 – minutos 04:30 e ss…”.
Assiste parcial razão à recorrente nas críticas que faz ao julgamento da matéria de facto na medida em que a facticidade que foi julgada provada pela 1ª Instância nos pontos que estamos a analisar não traduz toda a realidade ontológica verificada.
Com efeito, quanto à materialidade fáctica em análise, a unidade fabril da devedora foi encerrada pela administradora da insolvência em 13/02/2020 e ficou totalmente inativa – sem qualquer atividade.
Também é certo que, conforme referiu a administradora da insolvência em audiência final, não era seu propósito (nunca o foi) que a Massa Insolvente retomasse a atividade dessa unidade fabril.
Todavia, como foi também referido pela administradora da insolvência e é corroborado pela prova documental acima já sobejamente identificada e analisada, nomeadamente, o teor do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, apesar daquela administradora não ter procedido à apreensão do direito de arrendamento onde essas instalações fabris se encontravam (e encontram) instaladas, foi sempre sua intenção liquidar/vender as mesmas como um todo, isto é, o recheio das instalações fabris e o direito ao arrendamento relativo ao espaço em que estas se encontravam (e encontram) instaladas, a fim de que a dita unidade fabril fosse reativada por quem a viesse a adquirir, do que tudo era do conhecimento dos credores da devedora, onde se inclui a recorrente EMP01..., a qual, reafirma-se, foi notificada daquele relatório e sempre esteve a par de tudo o quanto se passou no âmbito do processo de insolvência e seus apensos.
Na procedência parcial deste fundamento de recurso, com vista a tornar a facticidade julgada provada nos pontos 17º, 22º e 26º conforme à realidade ontológica efetivamente ocorrida/verificada, alteram-se esses pontos, os quais passam a constar da seguinte facticidade, que se julga provada: “17- A unidade fabril da devedora EMP03... foi encerrada em 13/02/2020, pela administradora da insolvência, ficando a mesma, desde esse dia, totalmente sem atividade, não sendo propósito da administradora que a Massa Insolvente retomasse a atividade dessa unidade fabril, mas que esta fosse vendida a quem pretendesse adquiri-la, a fim de a reativar, propósito esse que foi por ela manifestado no relatório junto aos autos de insolvência em 16/04/2020, e que foi notificado, nessa data, a todos os credores da devedora, onde se inclui a Autora EMP01.... 22- Com o encerramento da unidade fabril da devedora EMP03... em 13/02/2020, a referida unidade fabril ficou totalmente inativa durante um período de um ano e meio até que foi reativada pela EMP02.... 26- A administradora da insolvência encerrou aquela unidade industrial em 13/02/2020, para preservar todo o ativo imobilizado da devedora e manteve o arrendamento onde essa unidade fabril se encontrava instalado com o propósito descrito no ponto 17º.
D.4.4- Facticidade julgada não provada na alínea A
Pretende a recorrente que se altere a alínea A da facticidade julgada não provada no sentido de nela se passar a prever (como não provado) apenas o seguinte: “A Sra. AI considerou útil ou vantajoso para a massa manter o estabelecimento e o contrato de arrendamento e proceder à posterior venda do conjunto da universalidade de bens e direitos”.
Alega que nenhuma prova consta dos autos que permita concluir pela não prova da facticidade julgada não provada pela 1ª Instância, antes “pelo contrário, dos documentos dos autos resulta que o direito ao arrendamento não foi apreendido nos autos, não foi inventariado nos autos, não foi anunciado para venda nos autos e, nem sequer ao mesmo foi atribuído valor para efeitos de venda (conforme confessou a Sr.ª no seu depoimento)”.
Sem razão.
Conforme resulta do que acima já se expôs e que aqui se dá por reproduzido (pelo que nos abstemos de repetir aquilo que sobejamente já se disse e repetiu por múltiplas vezes), apesar do direito ao arrendamento relativo ao espaço onde se encontrava (e encontra) instalada a unidade fabril da devedora EMP03... não ter sido apreendido para a massa insolvente, foi sempre intenção da administradora da insolvência proceder à liquidação/venda dessa unidade fabril como um todo, isto é, vender o recheio desta, juntamento com o direito de arrendamento em que essa unidade se encontrava instalada para que quem a adquirisse a reativasse.
Acresce que toda a atividade que foi desenvolvida ao longo do processo de insolvência foi precisamente nesse sentido, onde essa unidade fabril acabou por ser vendida à recorrida EMP02... precisamente como um todo, na sequência da transação que celebrou em 23/08/2020, com a recorrida Masse Insolvente no âmbito do apenso C.
Aliás, relembra-se à recorrente EMP01... que, no despacho proferido em 29/06/2020, nos autos de insolvência, o juiz ordenou à administradora da insolvência para “abrir o competente apenso, informando os proponentes para aquisição do estabelecimento para apresentarem propostas através do site e-leilões”, e que, nessa sequência, em 06/07/2020, esta juntou requerimento em que solicitou a junção aos autos do anúncio de venda “do estabelecimento na modalidade de leilão eletrónico”, e que em anexo a esse requerimento juntou o dito anúncio, em que se anuncia a “venda de unidade fabril de confeção seamless” (cfr. apenso de liquidação – apenso E).
E relembra-se à recorrente EMP01... que, na sequência da notificação em 16/04/2020, do relatório elaborado pela administradora da insolvência a que alude o art. 155º do CIRE, a mesma ficou necessariamente a ter conhecimento que a unidade fabril da devedora EMP03... iria ser vendida (como o foi) como um todo, ou seja, recheio e direito ao arrendamento do espaço em que essa unidade fabril se encontrava (e encontra) instalada.
Improcede este fundamento de recurso e, em consequência, mantém-se inalterada a facticidade julgada não provada na alínea A.
D.4.5- Facticidade julgada provada nos pontos 18º e 20º
A 1ª Instância julgou provado que: “18- A A. não exigiu a entrega do local arrendado invocando a resolução do contrato de arrendamento com o não pagamento das rendas antes da carta de 22-9-2021”. “20- A EMP02... reativou a unidade produtiva da EMP03... readmitindo trabalhadores, pondo as máquinas a funcionar e negociando com clientes e fornecedores, reativando o giro comercial”.
Pretende a recorrente que a prova produzida não consente que se tivesse julgado essa concreta facticidade como provada, advogando que os depoimentos de parte prestados pela administradora da insolvência e pelo legal representante da EMP02..., na medida em que não são respaldados por outros elementos de prova, não podem servir para que se julgue provada essa concreta facticidade – a propósito do que já nos pronunciamos supra, no sentido de que assim não é – e, bem assim que os documentos juntos aos autos principais com os requerimentos de 17/07/2020 e 02/03/2021 infirmam essa facticidade.
Sem razão.
Com efeito, a facticidade julgada provada tem total respaldo na prova documental junta aos autos, acima já identificada e sobejamente analisada, a qual confirma a versão dos factos apresentada pela administradora da insolvência e pelo legal representante da EMP02..., conforme supra também já se demonstrou.
Deve assim, improceder este fundamento de recurso e, em consequência, mantém-se inalterada a facticidade julgada provada nos pontos 18º e 20º.
D.4.6- Facticidade julgada não provada nas alíneas B, C e D.
A 1ª Instância julgou não provada a seguinte materialidade fáctica: “B- Que a A. EMP01... aceitou uma denúncia tácita do contrato de arrendamento pela Sra. AI, Dra. CC”. “C- Que a conduta da Sra. AI gerou na EMP01... a convicção de que o contrato de arrendamento se mostrava extinto e a expectativa de lhe ser restituído o imóvel”. “D- Que por causa dessa convicção a EMP01... considerou desnecessário proceder à prévia e formal resolução do contrato de arrendamento”.
Pretende a recorrente que as mencionadas alíneas carecem de ser eliminadas do elenco dos factos julgados não provados na sentença, dado não conterem qualquer facticidade, mas apenas “versam sobre conclusões jurídicas que o tribunal há-de extrair dos factos e documentos dos autos”.
Sem razão.
Por factos materiais entende-se as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas e das coisas; neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior diretamente captáveis pelas perceções (pelos sentidos) do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo[35].
E são esses factos materiais que são suscetíveis de serem julgados provados ou não provados na sentença.
Ora, saber se a recorrente EMP01... “aceitou” (ou não) a pretensa denúncia tácita do contrato de arrendamento; se a conduta da administradora da insolvência “gerou” (ou não) a convicção na EMP01... de que o contrato de arrendamento se mostrava extinto e, bem assim, “a expectativa” (ou não) de que o imóvel lhe iria ser restituído, bem como se “por causa dessa convicção” (ou não) a EMP01... considerou desnecessário proceder à prévia e formal resolução do contrato de arrendamento, são factos do foro interno da EMP01..., isto é, da vida psíquica e emocional dos legais representantes dessa sociedade.
Daí que, contrariamente ao pretendido pela recorrente, as alíneas B, C e D da facticidade julgada não provada pelo tribunal a quo integra matéria de facto e não matéria conclusiva e/ou de direito.
A não prova desta concreta facticidade resulta demonstrada em face de tudo o quanto supra já se disse, pelo que bem andou a julgadora a quo em julgar esta concreta facticidade como não provada.
Na improcedência do fundamento de recurso acabado de analisar mantêm-se inalteradas as alíneas B, C e D da facticidade julgada não provada pela 1ª Instância. D.5- Do vício da deficiência do julgamento da matéria de facto
Finalmente, imputa a recorrente o vício da deficiência ao julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, pretendendo que, por se mostrar essencial para a decisão de mérito a proferir na presente ação, se impõe aditar ao elenco dos factos provados na sentença recorrida a seguinte facticidade: “31- A Autora EMP01... e a Ré Massa Insolvente celebraram, em momento posterior à declaração de insolvência, o contrato de arrendamento datado de 01/05/2009 e, bem assim, o aditamento celebrado a 20/12/2016, ambos juntos aos autos com a contestação da Ré Massa Insolvente” “32- O imóvel encontrava-se fechado há mais de um ano, uma vez que nele não era exercida qualquer atividade industrial”
A propósito da primeira matéria que a recorrente pretende ver aditada alega que: “Por ser essencial à decisão dos autos a prova do teor do contrato de arrendamento e respetivo aditamento (cuja prova resulta dos documentos juntos autos pela Ré MI na sua contestação e não colocada em crise pelas partes), deve ser aditado à matéria de facto o seguinte facto:
31. A Autora EMP01... e a Ré Massa Insolvente celebraram, em momento posterior à declaração de insolvência, o contrato de arrendamento datado de 01.05.2009 e, bem assim, o Aditamento celebrado a 20.12.2016, ambos juntos aos autos com a contestação da Ré Massa Insolvente”.
Acontece que o único contrato de arrendamento que foi junto aos autos pela recorrida Massa Insolvente em anexo à contestação foi o contrato de arrendamento que foi celebrado em 1/05/2009, entre a recorrente EMP01... com a então EMP04..., mediante o qual a primeira deu de arrendamento o espaço onde se encontra instalado a unidade fabril da devedora EMP03... (cfr. fls. 53 verso a 67) e, bem assim, o aditamento que celebraram a esse contrato, em 20/12/2016 (cfr. fls. 67 verso e 68), cujo clausulado relevante para a decisão de mérito a proferir na presente ação já foi levado ao elenco do factos provados na sentença sob sindicância.
A recorrente EMP01... e a recorrida Massa Insolvente, salvo o devido respeito, não celebraram qualquer contrato de arrendamento, nomeadamente, em momento posterior à declaração da insolvência da devedora EMP03..., a qual foi declarada insolvente em 10/02/2020 (cfr. autos de insolvência).
Não se verifica, pois, o vício da deficiência que a recorrente assaca ao julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo.
Quanto à segunda matéria que a recorrente pretende ver aditada alega que: “Do depoimento prestado pelo legal representante da Ré - BB, depoimento prestado na audiência de 10.03.202, gravado nas rotações 10:50:37 a 11:33:04, minutos 24:00 e ss. – resultou confessado que o imóvel se encontra fechado há mais de um ano, uma vez que no imóvel não é exercida qualquer atividade, pelo que deve ser aditado à matéria de facto provado, a seguinte matéria: 32 – O imóvel encontra-se fechado há mais de um ano, uma vez que nele não é exercida qualquer atividade industrial”.
Salvo o devido respeito por entendimento contrário, BB, legal representante da recorrida EMP02..., em sede de depoimento de parte, não disse (logo não confessou) que a unidade fabril da devedora estava encerrada há mais de um ano quando foi reativada pela EMP02...; o que afirmou foi que, “quando fez o negócio com a massa” da devedora a unidade fabril “não estava a laborar, não tinha trabalhadores”. E quando questionado sobre se a EMP03... estava parada há ano e meio, respondeu desconhecer esse facto.
Logo, BB não confirmou a facticidade que a recorrente pretende ver aditada ao elenco dos factos julgados provados na sentença.
Todavia, cumpre referir que essa facticidade já se encontra englobada na facticidade julgada provada no ponto 22º (“22- Com o encerramento da unidade fabril da devedora EMP03... em 13/02/2020, a referida unidade fabril ficou totalmente inativa durante um período de uma ano e meio até que foi reativada pela EMP02...”).
Improcede o vício da deficiência que a recorrente EMP01... assaca ao julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância. D.6- Alteração oficiosa do ponto 6º da facticidade julgada provada.
A matéria de facto julgada provada no ponto 6º na sentença recorrida não se encontra conforme ao teor do anúncio que foi junto pela administradora da insolvência, em 06/07/2020, ao apenso E.
Porque se trata de matéria que apenas pode ser provada através de prova documental, mais concretamente pelo anúncio que se encontra junto a esse apenso E, impõe-se alterar oficiosamente essa facticidade, de modo a torná-la concordante com o teor daquele documento.
Nessa sequência, ordena-se oficiosamente a alteração da facticidade julgada provada no ponto 6º, o qual passa a constar da seguinte matéria de facto, que se julga provada: “6- A 06/07/2020, a administradora da insolvência juntou aos autos (apenso E), o anúncio da venda do ativo da insolvência, o qual consta do seguinte teor: “(…) venda de estabelecimento de unidade fabril de confeção seamless. Empresa vertical com tecelagem, termofixação, tinturaria com laboratório, zona de confeção, acabamento e embalamento. Venda de lote composto por empilhadores, veículos e vestuário diferente (…)”.
*
Face às múltiplas alterações introduzidas à matéria de facto julgada provada e não provada pela 1ª Instância, a facticidade julgada provada relevante para a decisão de mérito a proferir na presente ação é a que se segue:
1- Entre o dia 28-10-2019, em que foi nomeada AJP, e 20-1-2020, altura em que foi remetido aos autos requerimento informando não haver plano de recuperação, correu termos o processo especial de revitalização da sociedade EMP03..., S.A., n.º 6405/19...., do Juiz ..., deste Tribunal, tendo posteriormente sido proferida sentença de declaração de insolvência a 10-2-2020.
2- No dia 13-2-2020 a AI, Dra. CC, procedeu ao encerramento da atividade da insolvente, cessando o processo produtivo.
3- Para o efeito desligou o sistema informático da insolvente.
4- E procedeu ao despedimento de todos os trabalhadores da insolvente sem prestar qualquer aviso prévio.
5- A AI, Dra. CC, nunca procedeu à apreensão do estabelecimento ou direito ao arrendamento sobre o imóvel edifício fabril descrito na CRP ..., ..., propriedade da EMP01... - certidão predial, relatório 155º, de 6-4-2020, com inventário do ativo, auto de apreensão de 14-9-2020.
6- A 06/07/2020, a administradora da insolvência juntou aos autos (apenso E), o anúncio da venda do ativo da insolvência, o qual consta do seguinte teor: “(…) venda de estabelecimento de unidade fabril de confeção seamless. Empresa vertical com tecelagem, termofixação, tinturaria com laboratório, zona de confeção, acabamento e embalamento. Venda de lote composto por empilhadores, veículos e vestuário diferente (…)”.
7- A Sra. AI não procedeu ao pagamento de qualquer renda vencida após a declaração de insolvência até 11-1-2022, após a A. ter remetido por carta o seu NIB.
8- À data do encerramento da atividade da insolvente esta já não tinha tesouraria, sendo que o valor das encomendas existentes era insuficiente para suportar as despesas correntes da insolvente.
9- Em 23/08/2021, no apenso C, entre as Rés Massa Insolvente e EMP02... foi celebrada a transação que se segue: “1- A Ré (Massa Insolvente) aceita a proposta da Autora (EMP02...) para aquisição do estabelecimento da Autora, o que integra todos os bens apreendidos para a massa insolvente, nomeadamente as verbas 1 a 192, que aqui se juntam (doc. 13), bem como a transferência temporária e onerosa, em conjunto com a exploração do estabelecimento industrial que pertencia à devedora/insolvente da fração autónoma composta por edifício fabril destinado a indústria de confeção com dois pisos e sótão, destinado a armazém e atividade industrial, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...24, inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o art. ...54, melhor descrito no contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2009 entre a EMP01..., S.A. e a então arrendatária EMP04..., S.A., entretanto transmitido para a devedora EMP03..., aqui Ré, cujo prazo inicial de 10 anos se renovou por igual prazo de 10 anos em 01/05/2019, sendo absolutamente essencial para a celebração desta transação a transmissão do locado e manutenção do contrato de arrendamento nos termos do contrato existente. 2- Nos termos do disposto no art. 1109º, n.º 3 do Código Civil, a Ré obriga-se a comunicar à senhoria EMP01... Imobiliária, S.A., a transferência do estabelecimento. 3- O preço a pagar por esta aquisição é de 500.000,00 (quinhentos mil) euros, não sujeito a IVA por força do n.º 4 do art. 3º do CIVA, a pagar por transferência bancária para a conta da Ré com o IBAN… 4- O pagamento será efetuado imediatamente após ser proferido o despacho/sentença de homologação. (…). 7- A Ré obriga-se a pagar as rendas em dívida, desde a data da insolvência ate á data em que for proferido o despacho de homologação, obrigando-se a Autora a pagar todas as demais, a partir dessa data”.
10- Desde a data do encerramento da unidade fabril da devedora, o local em que esta funcionava ficou fechado, com as máquinas e os restantes bens apreendidos para a massa insolvente, que constituíam o seu recheio, no interior dessa unidade, aguardando que se conseguisse interessado na sua aquisição, a fim de reativar essa unidade fabril.
11- A 27-8-2021 foi homologada por sentença a transação celebrada entre a massa insolvente da EMP03... e a EMP02....
13- Por carta datada de 22-9-2021, que aqui se dá por integralmente reproduzida, a EMP01... comunicou à EMP02... que fazia operar a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no incumprimento reiterado da obrigação de pagamento das rendas vencidas há mais de três meses, nos termos do disposto nos artigos 1083º, n.ºs 1, 3 e 4 e artigo 1084º do Código Civil, o que constitui causa para despejo.
14- Tal missiva foi simultaneamente remetida para a Dra. CC, administradora judicial da insolvente e para a EMP02..., Lda.
15- A EMP02... não entregou o locado.
16- Se não fosse a transmissão do arrendamento para a EMP02..., esta não teria interesse na transação que celebrou no apenso C.
17- A unidade fabril da devedora EMP03... foi encerrada em 13/02/2020, pela administradora da insolvência, ficando a mesma, desde esse dia, totalmente sem atividade, não sendo propósito da administradora que a Massa Insolvente retomasse a atividade dessa unidade fabril, mas que esta fosse vendida a quem pretendesse adquiri-la, a fim de a reativar, propósito esse que foi por ela manifestado no relatório junto aos autos de insolvência em 16/04/2020, e que foi notificado, nessa data, a todos os credores da devedora, onde se inclui a Autora EMP01....
18- A A. não exigiu a entrega do local arrendado invocando a resolução do contrato de arrendamento com o não pagamento das rendas antes da carta de 22-9-2021.
19- A A. remeteu a 17-10-2019 carta à então arrendatária EMP03..., propondo a atualização do valor das rendas – fls. 54 dos autos.
20- A EMP02... reativou a unidade produtiva da EMP03... readmitindo trabalhadores, pondo as máquinas a funcionar e negociando com clientes e fornecedores, reativando o giro comercial.
22- Com o encerramento da unidade fabril da devedora EMP03... em 13/02/2020, a referida unidade fabril ficou totalmente inativa durante um período de um ano e meio até que foi reativada pela EMP02....
23- Na sequência da transação a que se alude no ponto 9º dos factos provados, a administradora da insolvência enviou as cartas datadas de 06 setembro de 2021, juntas a fls. 68 verso a 69: a primeira à EMP01... (para o endereço: Avenida ..., ..., ... ...); e a segunda à atenção da presidente da administração desta, em que lhes comunicou o seguinte:
“Na qualidade de Administradora da massa insolvente de EMP03..., S.A., no processo n.º 753/20.... (Apenso C) …, venho pelo presente informar V. Exas., na qualidade de Senhoria da Insolvente, que os termos da Transação efetuada entre a Massa Insolvente e a credora EMP02..., Lda., cujo Termo se encontra junto aos autos homologado por douta sentença, foi o estabelecimento da Insolvente entregue àquela credora no passado dia 03 do corrente.
Assim, em virtude desta alteração da Arrendatária, deverão V. Exas, de ora em diante emitir os respetivos recibos de renda em nome de: EMP02..., Lda., sita na Rua ..., ..., ... ..., ..., contribuinte n.º ...89.
Solicito ainda que me forneçam o V/IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito até ao momento, da responsabilidade da massa insolvente, sendo que a partir de agora tais rendas serão da responsabilidade da nova arrendatária”.
24- Na sequência da receção dessas cartas, a EMP01... remeteu à administradora da insolvência a carta datada de 22/09/2021, de fls. 28, e à EMP02... a carta datada de 22/09/2021, de fls. 26 verso e 27 (a que se alude no ponto 13º dos factos provados), em que lhes comunicou o seguinte:
“A EMP01..., S.A., credora da insolvente EMP03..., S.A., vem pela presente informar V/ Exa. do seguinte:
1. Não obstante a Massa Insolvente ter, alegadamente na qualidade de arrendatária, celebrado com a credora EMP02..., Lda. (no apenso C do processo n.º 753/20....) uma transação que veio a ser objeto de homologação por sentença, a EMP01... não reconhece a existência, eficácia e validade de qualquer contrato de arrendamento pelas razões que, em sede própria, não deixará de pugnar.
2. A EMP01..., mediante a interposição de recurso de apelação da referida sentença homologatória, já manifestou a sua posição quanto à transação celebrada e respetiva homologação que considera serem ilegais, não reconhecendo a EMP02... como arrendatária, já que nenhum trespasse existiu.
3- De todo o modo, meramente à cautela e para a hipótese remota de se vir a considerar que o contrato de arrendamento se mantém válido e eficaz e/ou que o trespasse realizado é válido e eficaz, aproveitamos o ensejo para, desde já, fazer operar a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no incumprimento reiterado da obrigação do pagamento das rendas vencidas (há mais de 3 meses), nos termos do disposto nos arts. 1083º, n.º 1, n.ºs 3 e 4 do art. 1084º do Código Civil, o que constitui causa para despejo.
4. Encontram-se, neste momento, em mora as seguintes rendas: (Segue-se quadro em que se indica como estando em dívidas as rendas de março de 2020 a outubro de 2021, inclusive, num total de 82.243,60 euros, e em cuja fila mais à direita se indica o acréscimo de 20% sobre o valor daquelas rendas, num total de 16.448,72 euros).
5- A presente missiva e interpelação foi simultaneamente remetida para a Sra. Dra. CC, Administradora Judicial da insolvente EMP03... e para a EMP02..., Lda.”.
25- A Ré EMP02... respondeu a essa carta, mediante a carta datada de 29 de setembro de 2021, junta a fls. 55 verso a 56, que remeteu para a morada da EMP01... para onde a administradora da insolvência remetera a carta a que se alude no ponto 24º dos factos provados, e que é a sede que a EMP01... indicou na petição e nos autos de insolvência como sendo a sua sede, comunicando-lhe o seguinte:
“Respondendo à V/ missiva datada de 22/09/2021, gostaríamos de esclarecer relativamente aos pontos 1 e 2 apesar de construírem considerações de direito que não dominamos, não podemos deixar de as considerar estranhas, atenta a celebração da transação efetuada com a MI, representada pela Exma. Senhora AJ a qual foi devidamente homologada por sentença do Tribunal de Comércio de VN Famalicão.
Quanto ao ponto 3 não aceitamos a resolução pelo motivo da inexistência dos motivos indicados. Como V. Exas. saberão a transação prevê o pagamento das rendas, sendo que as vencidas até 6 de setembro de 2021, são da responsabilidade da MI e a partir dessa data são da N/responsabilidade. Já solicitamos à Exma. Senhora AJ que nos fornecesse o IBAN da V/empresa a fim de proceder ao pagamento das rendas, tendo-nos sido informado que V. Exas. não prestaram essa informação.
Por outro lado, não nos parece ser de boa fé que V. Exas não tenham reclamado o pagamento das rendas desde março de 2020, à inquilina MI e venham agora fazê-lo, passados 18 meses à N/ sociedade e após a celebração da transação, sendo certo que e conforme informação prestada pela AI, as rendas vencidas até 6 de setembro de 2021, só não foram pagas porque V. Exas se recusaram a fornecer o IBAN”.
25A- A carta acabada de referir não foi levantada pela Autora EMP01..., apesar do carteiro a ter avisado por aviso emitidos em 20/10/2021 e 21/10/2021 para que procedesse ao seu levantamento, acabando por ser devolvida à remetente EMP02... com a indicação de “objeto não reclamado”.
25B- No contrato celebrado entre a EMP01... e a EMP04..., em 1/05/2009, mediante o qual a primeira deu de arrendamento à última as instalações onde se situa a unidade fabril da devedora EMP03..., junto aos autos a fls. 64 verso a 67, ficaram convencionadas, além do mais, as seguintes cláusulas:
“1. Objeto e Fim do Contrato
(…)
1.2- O local arrendado destina-se exclusivamente ao fabrico de confeções, nomeadamente, a acabamento de malhas, tecidos e artigos têxteis e sua comercialização, não podendo ser utilizado para outros fins, nem sublocado ou cedido por qualquer outra forma, onerosa ou gratuitamente, no todo ou em parte, sem autorização escrita da Primeira Outorgante.
(…)
7- Comunicações entre as Partes
7.1- Quaisquer comunicações a realizar no âmbito do presente contrato serão efetuadas por carta registada com aviso de receção, por telecópia ou correio eletrónico, confirmados por recibo de entrega, e ter-se-ão por realizadas, no caso de carta registada, na data da sua receção e, no caso de telecópia e do correio eletrónico, no momento da sua receção no posto do destinatário, se se verificar dentro das horas normais de expediente ou, em caso contrário, no primeiro dia útil seguinte.
7.2- Para efeito das comunicações a realizar ao abrigo do presente contrato são as seguintes as moradas, os números de fax e de Email dos Outorgantes:
Senhorio: EMP01..., S.A.
A/c: HH
Morada: Lugar ..., ... ...
Fax:
Email: ....
25C- Em 20 de dezembro de 2016, a EMP01... e a EMP04... celebraram um aditamento ao contrato acabado de referir, em que alteraram a sua cláusula 3.1, para os termos que se seguem:
“3.1- A renda anual devida é de 48.000,00 euros (quarenta e oito mil euros) e será paga, pela Segunda Outorgante à Primeira Outorgante em duodécimos mensais de 4.000,00 euros (quatro mil euros), a liquidar até ao dia 8 do mês anterior a que disser respeito, através de transferência bancária para a conta da Primeira Outorgante, com o IBAN ...05.
25D- A EMP01... recusou-se a levantar a carta identificada nos pontos 25º e 25º-A e a fornecer o IBAN à administradora da insolvência e à EMP02..., pelo que esta depositou as rendas de novembro e dezembro de 2021 na Banco 1....
26- A AI encerrou o estabelecimento para preservar todo o imobilizado da insolvente, da qual faz parte o estabelecimento comercial como um todo, com o direito ao arrendamento incluso.
27- O valor das rendas vencidas até à adjudicação do estabelecimento à EMP02... foi oferecido pela massa insolvente à A. tendo-lhe solicitado por duas vezes através de cartas registadas com A/R que informasse o seu IBAN.
28- A A. não lhes respondeu por qualquer meio – fls. 68 verso, 69 e verso.
29- A massa insolvente só pagou as rendas em atraso a 11-1-2022, após a A. lhe ter fornecido o IBAN.
29.A- A administração da insolvência solicitou na carta a que se alude no ponto 23º dos factos provados que a EMP01... lhe fornecesse o IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito dado encontrar-se num estado de incerteza sobre o qual o IBAN onde devia proceder a esse depósito decorrente de, à data da declaração da insolvência da devedora EMP03..., esta ter diversos meses de renda em atraso e face à data em que tinha sido celebrado o aditamento ao contrato de arrendamento a que se alude no ponto 25º-C dos factos provados.
29.B- O IBAN que a EMP01... indicou à administradora da insolvência na carta referida no ponto 7º dos factos provados e em que esta depositou o valor das rendas em atraso não corresponde ao IBAN que consta naquele aditamento ao contrato de arrendamento.
*
E julga-se não provada a seguinte matéria fáctica:
A- Que a Sra. AI não considerou útil ou vantajoso para a massa manter o estabelecimento e o contrato de arrendamento e proceder à posterior venda do conjunto da universalidade de bens e direitos.
B- Que a A. EMP01... aceitou uma denúncia tácita do contrato de arrendamento pela Sra. AI, Dra. CC.
C- Que a conduta da Sra. AI gerou na EMP01... a convicção de que o contrato de arrendamento se mostrava extinto e a expectativa de lhe ser restituído o imóvel.
D- Que por causa dessa convicção a EMP01... considerou desnecessário proceder à prévia e formal resolução do contrato de arrendamento.
E- Que o pagamento da renda pela EMP02... devia ser realizado na sede da EMP01... através de cheque.
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E- Do mérito E.1- Cessação do contrato de arrendamento por denúncia tácita operada pela administradora da insolvência.
A recorrente EMP01... instaurou a presente ação em 18/10/2021, pedindo, a título principal, que se declarasse que a administradora da insolvência denunciou tacitamente o contrato de arrendamento que tinha celebrado, em 1/05/2009, com a então sociedade EMP04..., S.A., mediante o qual lhe cedeu o gozo temporário de um edifício fabril destinado à indústria de confeção, sito em ..., ..., para que esta aí exercesse exclusivamente a atividade de fabrico de confeção, mediante a obrigação de lhe pagar uma renda mensal, e cuja posição contratual foi, entretanto, transferida para a sociedade EMP03..., S.A., que foi declarada insolvente, por sentença proferida em 10/02/2020, e que, por via disso, se declarasse a ilegalidade do contrato de trespasse celebrado entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02..., em 23/08/2021, no âmbito da transação que celebraram no apenso C, e aí homologado por sentença transitada em julgado e, em consequência, se condenasse as últimas a restituir-lhe o arrendado e, bem assim, a indemnizá-la pelo atraso na restituição, correspondente ao valor da renda elevado para o dobro.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º, n.º 1 do CIRE).
A finalidade do processo de insolvência é, assim, a satisfação dos interesses dos credores do devedor, o que pode ser alcançado por dois meios alternativos: a liquidação do património do devedor que constitui a massa insolvente, com a posterior repartição do produto da venda/liquidação desse património pelos credores; ou a opção por meios alternativos à liquidação e que permitam a recuperação da totalidade ou de parte da empresa do devedor/insolvente, de modo a que possa manter-se em atividade no mercado, gerando postos de trabalho, produção e riqueza, meio este que, aliás, é compreensivelmente eleito pelo legislador como sendo o preferencial.
Nos casos em que a devedora tenha um estabelecimento comercial ou industrial, este, enquanto organização, complexo ou unidade económica, integrado por elementos corpóreos e incorpóreos interligados intimamente entre eles, com vista à realização de uma função e uma destinação económica específica, quer esse estabelecimento comercial ou industrial funcione em prédio propriedade do devedor, ou em prédio que tenha sido por ele tomado de arrendamento, e quer os credores optem pela recuperação desse estabelecimento ou pela sua liquidação, o CIRE procura sempre salvaguardar o estabelecimento comercial ou industrial enquanto universalidade de direitos (universitas iuris).
Por isso, nos casos em que os credores optem pela liquidação do património do devedor como meio de melhor satisfazerem os seus interesses, nos casos em que a massa insolvente seja integrada por um estabelecimento comercial ou industrial, o art. 162º, n.º 1 do CIRE privilegia a venda desse estabelecimento como um todo, a não ser que não existam propostas satisfatórias para a aquisição daquele ou se reconheça vantagem na liquidação ou na alienação separada de certas partes do mesmo.
E com vista à proteção do estabelecimento comercial ou industrial que integre a massa insolvente, compreende-se que, nos casos em que este funcione em prédio arrendado, se determine, no art. 108º, n.º 1 do CIRE, que a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior.
Não será assim se o locado se destinar à habitação do devedor/insolvente, hipótese essa sobre que versa o n.º 2, daquele art. 108º, mas que aqui nos abstemos de tratar e analisar dada a sua irrelevância para o caso dos autos.
Assim, e no que aos presentes autos respeita, estando o estabelecimento industrial da devedora EMP03... instalado em prédio que esta tinha tomado de arrendamento à recorrente EMP01..., cumpria ao administrador da insolvência, nos termos da previsão do art. 108º, n.º 1, optar por denunciar (ou não) esse contrato de arrendamento, com um pré-aviso de 60 dias, salvo se nos termos da lei ou do contrato celebrado estivesse previsto um prazo de pré-aviso inferior àquele.
Caso o administrador da insolvência opte pela denúncia do contrato de arrendamento onde o estabelecimento industrial está instalado, naturalmente que põe termo ao mesmo ao entregar as instalações ao senhorio, privando-o de um dos elementos organizativos mais relevantes necessários à sua laboração – o edifício onde esse estabelecimento se encontra instalado, sem o qual naturalmente fica privado de condições para continuar a laborar e exercer a sua atividade económica, gerando postos de trabalho, produzindo bens e gerando riqueza.
No caso do administrador da insolvência optar por não denunciar o contrato de arrendamento, este mantém-se em vigor e as rendas que se vençam após a declaração da insolvência, nos termos do art. 51º, n.º 1, al. f) do CIRE, são dívidas da massa insolvente[36], cumprindo, por isso, ao administrador da insolvência proceder ao seu pontual pagamento logo que se vençam, conforme é determinado pelo n.º 3 do art. 172º do CIRE.
Pretende a recorrente EMP01... que a administradora da insolvência denunciou tacitamente junto daquela o contrato de arrendamento onde se encontrava (e encontra) instalado o estabelecimento industrial da devedora EMP03... e que, por isso, o contrato de trespasse desse estabelecimento que veio a ser celebrado entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02... é ilegal.
Como é sabido, a denúncia é uma forma de extinção dos contratos de execução duradoura sem prazo, que opera pela comunicação de uma das partes à outra de que não deseja a manutenção do contrato[37].
A denúncia reconduz-se, assim, a uma declaração negocial em que uma das partes do contrato, em contratos de prestação duradoura, manifesta à outra que não pretende a renovação ou a continuação do contrato.
Enquanto declaração negocial, a denúncia, nos termos do art. 217º do CC, pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação de vontade; é tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
Pode-se assim dizer que é tácita a declaração negocial emanada pelo declarante que possa ser inferida/extraída de um comportamento (ativo e/ou omissivo) daquele e que, à luz do critério de um declaratário médio que se encontrasse na posição do real declaratário e de acordo com as regras ou usos normais da vida, levem a que se conclua que, com toda a probabilidade, aquele quis emitir uma declaração negocial com um determinado sentido declarativo[38].
Com interesse escreve Mota Pinto que a declaração negocial é tácita “quando do seu conteúdo direto se infere um outro, isto é, quando se destina a um certo fim, mas implica e torna cognoscível, a latere, um autorregulamento sobre outro ponto – em via oblíqua, imediata, lateral”. E acrescenta: “(…) a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido de autorregulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade. Em conformidade com o critério de interpretação dos negócios jurídicos consagrado no Código Civil (art. 236º), deve entender-se que a concludência dum comportamento, no sentido de permitir concluir «a latere» um certo sentido negocial, não exige a consciência subjetiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que, objetivamente, de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante”[39].
Revertendo ao caso dos autos, tendo a devedora EMP03... sido declarada insolvente, em 10/02/2020, no dia 13/02/2020 a administradora da insolvência dirigiu-se à unidade fabril daquela, onde despediu todos os trabalhadores, desligou todas as máquinas que nela se encontravam a funcionar e encerrou essa unidade fabril, ficando desde então a mesma totalmente inativa, com as instalações fechadas, somente com o que era o seu recheio no seu interior (que foi apreendido a favor da massa insolvente), sem qualquer atividade (cfr. pontos 1º a 4º, 10º, 17º e 22º dos factos apurados).
A administradora da insolvência apenas procedeu à apreensão a favor da massa insolvente do recheio daquela unidade fabril, não tendo procedido à apreensão do direito ao arrendamento do espaço em que esta se encontrava instalada, e não procedeu ao pagamento de quaisquer rendas que se venceram após a declaração da insolvência até 11/01/2021 (cfr. pontos 5º e 7º dos factos apurados).
Acontece que, contrariamente ao pretendido pela recorrente, a circunstância de a administradora da insolvência não ter pago pontualmente as rendas que se venceram após a declaração da insolvência da EMP03..., à medida que estas se foram vencendo, e de ter, naquele dia 13/02/2020, parado com a laboração desse estabelecimento fabril, mantendo-o totalmente inativo desde então, com as instalações encerradas, não permite a quem quer que seja de são raciocínio (declaratário médio) que se encontrasse na posição da recorrente EMP01... (real declaratária) e que se deparasse com aquela conduta da administradora da insolvência inferir dela que esta quis denunciar o contrato de arrendamento em que essa unidade fabril estava (e está) instalada.
A semelhante entendimento opõe-se a circunstância da administradora da insolvência não ter entregue as instalações à senhoria (EMP01...), antes mantendo-as ocupadas com aquele que era o recheio da unidade fabril em causa.
Reafirma-se, para que se pudesse concluir que a administradora da insolvência denunciou tacitamente o contrato de arrendamento, atento o critério de um declaratário médio, que se encontrasse na posição da EMP01... e segundo os usos normais da vida, era necessário que a administradora da insolvência tivesse, pelo menos, desocupado o espaço arrendado à EMP01... onde a devedora EMP03... teve em laboração o seu estabelecimento fabril até ao dia 13/02/2020, o que não foi o caso.
Pelo contrário, a partir de 13/02/2020, aquelas instalações permaneceram ocupadas com aquele que era o recheio do dito estabelecimento industrial, necessário à sua reativação, o que tudo era inclusivamente apto a que qualquer declaratário médio que se encontrasse na posição da EMP01... e se deparasse com a mencionada conduta da administradora da insolvência a inferir que esta pretendia que a Massa Insolvente, ou terceiro que viesse a adquirir aquele estabelecimento industrial, reativasse a sua laboração.
Acresce referir que, qualquer denúncia tácita do identificado contrato de arrendamento ficou em definitivo arredada quando se vem a constar que, sendo a recorrente EMP01... (senhoria) credora da devedora, esta foi notificada, em 16/02/2020, do teor do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, em que a administradora da insolvência manifesta, de modo inequívoco, ser seu propósito que o identificado estabelecimento fabril fosse vendido, a fim de ser reativado por quem o viesse adquirir (cfr. ponto 17º dos factos apurados) e, bem assim, quando a recorrente se deparou com o anúncio de venda do ativo da devedora, junto pela administradora da insolvência em 06/07/2020, ao apenso de liquidação (apenso E), em que era anunciada a “venda da unidade fabril” (cfr. ponto 6º dos factos provados).
Finalmente, cumpre referir que, ao enviar as cartas datadas de 22/09/2021, às recorridas Massa Insolvente e EMP02..., resolvendo aquele contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento das rendas (cfr. ponto 24º dos factos apurados), foi a própria recorrente EMP01... quem afastou a possibilidade de a administradora da insolvência ter denunciado tacitamente aquele contrato de arrendamento perante si.
Resulta do que se vem dizendo que, ao julgar improcedente o pedido principal, a 1ª Instância não incorreu em nenhum dos erros de direito que são assacados pela recorrente à sentença recorrida em que assim se decidiu.
E.2- Da ilegalidade do trespasse.
A título subsidiário, a recorrente pediu que se declarasse ilegal o trespasse do estabelecimento industrial da devedora EMP03..., celebrado por transação outorgada entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02..., no âmbito do apenso C e aí homologado por sentença transitada em julgado, por à data da celebração dessa transação inexistir qualquer estabelecimento industrial suscetível de ser então trespassado.
O contrato de arrendamento é aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (art. 1022º do CC).
O primeiro elemento essencial do contrato de arrendamento é, portanto, a obrigação que impende sobre o senhorio de proporcionar a outrem (o arrendatário) o gozo de um prédio urbano. Essa obrigação é de conteúdo positivo, conforme decorre do art. 1031º do CC, em que se elencam como obrigações do senhorio a de: a) entregar ao locatário a coisa locada; b) e a de assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que a coisa se destina.
O segundo elemento essencial do contrato de arrendamento é o carácter temporário do gozo proporcionado ao arrendatário sobre a coisa.
E o terceiro elemento essencial à caracterização do contrato de arrendamento é a retribuição (a renda). O contrato de arrendamento é um contrato oneroso e sinalagmático, em que, como contrapartida das prestações do senhorio, impende sobre o arrendatário a obrigação de lhe pagar a renda convencionada (art. 1038º, al. a) do CC).
O contrato de arrendamento, conforme decorre do que se vem dizendo, é um contrato bilateral, oneroso, sinalagmático e de execução duradoura.
Acresce que, em relação à pessoa do arrendatário, o contrato de arrendamento é um contrato intuitu personae, na medida em que obrigando-se o senhorio a proporcionar ao arrendatário o gozo sobre uma coisa, naturalmente que para ele não é indiferente o estilo de vida, cuidados, hábitos de higiene, etc. que julga serem inerentes à pessoa a quem faz o arrendamento, além de que não lhe é indiferente os meios económicos e as garantias patrimoniais que essa pessoa lhe oferece.
É por isso que, nos termos do art. 1038º, al. b) do CC, é obrigação do arrendatário não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, exceto se a lei o permitir ou o locador o autorizar.
Um dos casos em que a lei permite excecionalmente que o arrendatário ceda a sua posição contratual no contrato de arrendamento sem ter necessidade de obter autorização do senhorio é a do trespasse de estabelecimento comercial ou industrial (art. 1112º, n.º 1, al. a) do CC).
A dispensa dessa autorização tem em vista a proteção do estabelecimento comercial ou industrial objeto do contrato de trespasse no caso daquele se situar em prédio arrendado, em que a não concessão daquela autorização para que o contrato de arrendamento do espaço onde se encontra instalado o estabelecimento fosse transmitido para o trespassário inviabilizaria a celebração do contrato ou levaria à destruição do estabelecimento.
Com efeito, sendo o estabelecimento comercial ou industrial uma estrutura que do ponto de vista material e jurídico assume natureza unitária (uma universalidade de direitos, segundo a doutrina tradicional), integrada por uma pluralidade de coisas corpóreas (móveis e/ou imóveis, incluindo as próprias instalações, etc.) e incorpóreas (marcas, insígnias, patentes, direitos de crédito, direitos reais, fator humano, etc.) organizado pelo comerciante ou pelo industrial em nome individual ou por uma sociedade, com vista ao exercício de certo ramo de atividade comercial ou industrial[40], para obtenção do lucro, aquele, não só constitui uma verdadeira universitas iuris, como, podendo ser objeto de relações jurídicas, nos termos do art. 202º, n.º 1 do CC, é tido como constituindo uma “coisa”.[41].
E é precisamente para proteger essa “coisa”, ou seja, o estabelecimento comercial ou industrial, enquanto complexo ou agregado unitário de bens corpóreos e incorpóreos, organizados de forma coesa pela sua função e destino comuns, que quando aquele se encontra instalado em espaço arrendado, no caso de trespasse, a lei dispensa a autorização do senhorio para que o contrato de arrendamento se transfira para o trespassário.
Acontece que a lei não fornece o conceito de trespasse.
A doutrina e a jurisprudência têm procurado deduzir o conceito de trespasse, quer dos revogados arts. 1118º do CC e 115º do RAU, quer do atual art. 112º, n.º 2 do CC.
Segundo Vaz Serra, “o que é essencial para haver trespasse (…) é que se transmita o estabelecimento como universalidade, isto é, como complexo ou unidade económica, como um todo destinado ao fim próprio dessa unidade”[42].
Na mesma linha escrevem José António de França Pitão e Gustavo França Pitão que “para haver trespasse do estabelecimento comercial ou industrial é necessário que a titularidade do estabelecimento seja transmitida a terceiro, designadamente, por venda ou dação em pagamento. E para que haja transmissão do arrendamento do prédio onde o estabelecimento trespassado esteja instalado é necessário que a transmissão da fruição do prédio seja acompanhada da transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento e que, uma vez transmitido o gozo do local arrendado, não passe a exercer-se nele outro ramo de comércio ou indústria ou, de um modo geral, não lhe seja dado outro destino”. Adiantam que, “embora o Código Civil não defina trespasse, como já se disse, podem descortinar-lhe dois elementos essenciais: a) Exercício, no prédio, do mesmo ramo de comércio ou indústria; b) Transmissão global ou unitária, a título definitivo, do conjunto de instalações, utensílios mercadorias ou outros elementos corpóreos ou incorpóreos que integram o estabelecimento (v.g., a clientela)”[43].
Resulta do que se vem dizendo, em suma, que o contrato de trespasse “é aquele por via do qual se transmite definitivamente, em princípio, a título oneroso, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado. Trata-se, no fundo, de um contrato de compra e venda de um estabelecimento comercial ou industrial, suscetível de envolver o contrato de arrendamento do prédio em que ele esteja instalado”[44].
Note-se, porém, que para haver trespasse, sendo o estabelecimento comercial ou industrial mutável, a sua composição no momento da celebração do contrato de trespasse não tem de ser a mesma que tinha imediatamente antes na esfera jurídica do trespassante, na medida em que as partes podem acordar em transferir a organização sem determinados bens. Essencial é que sejam transmitidos ao adquirente pelo trespassante os elementos essenciais à existência e ao funcionamento do estabelecimento. E também não é necessário que, na altura da celebração do contrato de trespasse, o estabelecimento esteja em funcionamento, mas sim que se encontrem reunidas as condições para que entre em funcionamento.
Neste sentido escreve-se no acórdão do STJ, de 28/10/2002, que: “para se falar em trespasse não é necessário que a transferência abarque todos os elementos que, na altura, integram o estabelecimento. É, assim, admissível o trespasse parcial, desde que os elementos transmitidos tenham autonomia funcional, ou seja, desde que a transmissão abranja aquele mínimo de elementos essenciais à existência e ao funcionamento do estabelecimento – Rui Alarcão, “Sobre a Transferência da Posição do Arrendatário no caso de Trespasse”, págs. 19, 20 e Ac. STJ. de 28/03/2002, BMJ, 495º, 301. Por outro lado, também não se torna necessário à noção de trespasse que, aquando do respetivo contrato, o estabelecimento se encontre a funcionar. O que releva é que estejam reunidas as condições para esse funcionamento – Ac. STJ. de 01/0372011, Agravo n.º 463/00 – 2ª Seção”[45].
Assentes nas premissas que se acabam de referir, descendo ao caso concreto, pretende a recorrente EMP01... que tendo a administradora da insolvência, em 13/02/2020, despedido todos os funcionários da devedora EMP03..., e tendo, nesse mesmo dia, encerrado o estabelecimento industrial desta, deixando-o totalmente inativo e fechado, deixou de existir a partir desse dia qualquer estabelecimento industrial suscetível de ser trespassado.
Conclui que o pretenso contrato de trespasse daquele estabelecimento industrial, celebrado pelas recorridas Massa Insolvente e EMP02..., por via da transação que celebraram, em 23/08/2021, no apenso C, e aí homologada por sentença transitada em julgado, é ilegal, estando-se antes perante a cedência da posição contratual que a devedora ocupava, enquanto arrendatária, no âmbito da qual aquela cedeu à última, mediante renda, o espaço em que aquele estabelecimento industrial esteve instalado até ao dia 13/02/2020, que é ilegal devido a não ter sido por si autorizada.
Sem razão.
É certo que, no dia 13/02/2020, a administradora da insolvência despediu todos os trabalhadores do estabelecimento industrial da devedora EMP03..., encerrou a atividade deste e encerrou as instalações em que se encontrava instalado, em cujo interior deixou apenas o recheio desse estabelecimento.
Destarte, como bem diz a recorrente, a partir do dia 13/02/2020, o estabelecimento industrial da devedora EMP03... deixou de ter qualquer atividade, ficando totalmente inativo, ficando a aguardar que surgisse interessado na sua aquisição e reativação (cfr. pontos 1º a 4º, 10º, 17º, 22º e 26º dos factos apurados).
Todavia, diversamente do pretendido pela recorrente, não é necessário que aquele esteja permanentemente em funcionamento, posto que, se assim fosse, não seria possível encerrá-lo para férias, obras, por morte do seu proprietário até que os respetivos herdeiros se entendessem, ou, em caso de insolvência, até que os credores decidissem o destino a dar ao estabelecimento, etc.
Acresce que, conforme resulta do acima exposto, para que ocorra trespasse válido de estabelecimento comercial ou industrial não é necessário, por um lado, que se transmitam para o trespassário todos os elementos corpóreos e incorpóreos que o constituem e integram enquanto estrutura unitária destinada ao fim próprio dessa unidade, bastando que se transmita para aquele o conjunto dos elementos essenciais que permitam identificar e caracterizar esse estabelecimento enquanto unidade económica que lhe faculte prosseguir o fim que até então prosseguia.
E, por outro lado, também não é necessário que, no momento da celebração do contrato de trespasse, o estabelecimento comercial ou industrial dele objeto se encontre em efetivo funcionamento, mas antes que estejam reunidas as condições (corpóreas e incorpóreas) para que o mesmo possa entrar em funcionamento.
Ora, no caso em análise, apesar de, no dia 13/02/2020, a administradora da insolvência ter despedido todos os trabalhadores da devedora EMP03... e ter procedido ao encerramento da atividade do estabelecimento industrial desta, ficando o mesmo, a partir dessa data, totalmente inativo, verifica-se que aquela não denunciou o contrato de arrendamento do espaço onde esse estabelecimento industrial se encontrava (e encontra instalado).
Aquela encerrou essas instalações, mas deixou todo o recheio que integrava o estabelecimento industrial no seu interior, ou seja, os elementos que eram necessários à sua reativação, como se veio a verificar, dado que, na sequência da transação que veio a ser celebrada entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02..., no âmbito do apenso C, mediante o qual a primeira transmitiu para a segunda a propriedade sobre esse estabelecimento industrial, esta reativou-o (cfr. pontos 10º e 20º dos factos provados).
Por conseguinte, apesar de inativo desde 13/02/2020, o estabelecimento industrial da devedora EMP03... continuou a manter a sua estrutura unitária, enquanto conjunto de elementos corpóreos e incorpóreos necessários ao exercício da atividade de confeção têxtil seamless, atividade essa que a recorrida EMP02... prosseguiu quando o reativou.
Daí que, contrariamente ao pretendido pela recorrente, à data em que foi celebrada a transação entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02..., mediante a qual a primeira trespassou o estabelecimento industrial que fora da devedora EMP03... para a última, não só esse estabelecimento industrial continuava a ter existência jurídica e material, enquanto complexo ou unidade económica, organizado como um todo, destinado à prossecução da sua atividade industrial (confeção da artigos têxteis “seamless”, ou seja, artigos têxteis sem costura), como aquele contrato de trespasse juridicamente válido não estava dependente da autorização da senhoria EMP01....
De resto, a sufragar-se o entendimento da recorrente EMP01..., resultariam totalmente frustradas as finalidades prosseguidas pelo legislador com o processo de insolvência, quando anuncia que o mesmo visa a satisfação dos interesses dos credores do devedor e quando, inclusivamente, privilegia a recuperação da empresa integrada na massa insolvente do devedor em detrimento da sua liquidação (art. 1º, n.º 1 do CIRE) e quando, inclusivamente, no caso de liquidação de estabelecimento comercial ou industrial que integre a massa insolvente privilegia a venda deste “como um todo” (art. 162º, n.º 1 do mesmo diploma).
Com efeito, num caso como o dos autos, em que se verifica que, em 13/02/2020 (data do encerramento da atividade do estabelecimento industrial da devedora EMP03...), a devedora já não tinha tesouraria, sendo o valor das encomendas existentes insuficiente para suportar as despesas correntes daquela (cfr. ponto 8º dos factos apurados), nada mais restava à administradora da insolvência e aos credores que não fosse: ou prosseguir com a atividade da unidade industrial daquele estabelecimento industrial, mas, a ser assim, não se sabe com que meios para suportar as despesas correntes daí advenientes (por inexistentes); ou então, como foi o caso dos autos, paralisar a sua laboração, deixando o estabelecimento industrial no estado em que se encontrava de modo a que essa atividade pudesse ser reativada por quem o viesse a adquirir. Mas, neste caso, na perspetiva da recorrente, deixaria de existir estabelecimento industrial, no que não se consente.
Resulta do excurso antecedente, não só que à data da celebração da transação entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02... continuava a existir o estabelecimento industrial da devedora, como também que, mediante a transação que celebraram, a primeira trespassou à segunda validamente esse estabelecimento industrial, pelo que, ao julgar improcedente o pedido subsidiário formulado pela recorrente que se acaba de apreciar e analisar, a sentença recorrida não padece de nenhum erro de direito que esta lhe assaca. E.3- Da resolução do contrato de arrendamento com fundamento na utilização do arrendado para fim diverso do convencionado e por não uso do estabelecimento industrial
Pretende a recorrente que se declare resolvido o contrato de arrendamento do espaço em que se encontrava (e encontra) instalado o estabelecimento industrial da devedora EMP03... com fundamento na utilização desse espaço para uso diverso daquele para que o deu de arrendamento e por não uso do mesmo.
Nos termos do n.º 1 do art. 1072º do CC, o arrendatário deve usar efetivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de o utilizar por mais de um ano.
Todavia, segundo o n.º 2 da disposição vinda a referir, o não uso pelo arrendatário é lícito: a) em caso de força maior ou de doença; b) se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais, do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto; c) se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano; d) se a ausência se dever à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade igual ou superior a 60%, incluindo a familiares.
Decorre do que se vem dizendo que, sendo uma das obrigações do arrendatário não aplicar a coisa para fim diverso daquele a que se destina (art. 1038º, al. c) do CC), sempre que o arrendatário dê ao arrendado um uso diverso daquele que foi convencionado no contrato de arrendamento celebrado, ou, na ausência de convenção, que não seja o uso normal/natural a que destina o arrendado, nos termos do art. 1083º, n.ºs 1 e 2, al. c) do CC, o mesmo confere ao senhorio o direito potestativo a resolver o contrato de arrendamento celebrado, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio.
No caso sobre que versam os autos, de acordo com a cláusula 1.2 do contrato de arrendamento celebrado pela recorrente EMP01... e a então sociedade arrendatária EMP04..., o espaço em que o estabelecimento industrial da devedora se encontra instalado foi arrendado pela primeira exclusivamente para o fabrico de confeção (cfr. ponto 25.B da facticidade apurada).
Sustenta a recorrente que, ao ter encerrado aquele estabelecimento industrial em 13/02/2020, deixando-o totalmente inativo e ao ter deixado no seu interior o recheio daquele (máquinas e restantes itens necessários ao seu funcionamento) a administradora deu um uso contrário àquele para o qual deu esse espaço de arrendamento à devedora EMP03..., na medida em que, em vez de no arrendado ser exercida a atividade de confeção, aquele passou a servir de espaço de armazenamento dos bens apreendidos a favor da massa insolvente.
Sem razão, na medida em que, conforme flui da facticidade apurada, os bens que foram deixados pela administradora da insolvência no interior do espaço que a EMP01... arrendou à devedora EMP03... e em que funciona aquele que foi o estabelecimento industrial desta são o recheio desse mesmo estabelecimento industrial e são necessários à sua reativação.
Não se trata, pois, de uma situação em que a administradora da insolvência tivesse dado ao espaço arrendado um uso distinto daquele que foi convencionado no contrato de arrendamento, mas de uma situação de não uso do arrendado para o fim para o qual a recorrente EMP01... o deu de arrendamento – para que nele fosse exclusivamente exercida a atividade de fabrico de confeções, nomeadamente, acabamento de malhas, tecidos e artigos têxteis.
Destarte, nada temos a censurar à sentença recorrida quando julgou improcedente a pretensão resolutiva do contrato de arrendamento formulada pela recorrente EMP01... com fundamento em pretenso uso diverso do arrendado em relação ao que fora convencionado no contrato de arrendamento.
Todavia, conforme decorre do que se vem dizendo, o arrendado onde se encontra instalado o estabelecimento industrial esteve sem ser usado durante um período de um ano e meio até ser reativado pela recorrida EMP02... (cfr. ponto 22º dos factos provados), o que confere à recorrente EMP01... o direito a resolver o contrato de arrendamento (art. 1083º, n.ºs 1 e 2, al. d) do CC)[46], não fora a circunstância de ao exercer esse direito resolutivo com esse fundamento, apenas em 18/10/2021 (data em que instaurou a presente ação), a recorrente tê-lo feito numa situação de manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Concretizando
Como é sabido, o instituto do abuso de direito encontra-se previsto em termos amplos pelo legislador português no art. 334º do CC e visa obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que confere um direito subjetivo a uma determinada pessoa perante um determinado devedor, na normalidade das situações seria ajustada, mas numa específica situação da relação jurídica estabelecida entre credor/devedor se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante[47].
O instituto do abuso do direito configura uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador visa obtemperar à injustiça chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade, isto é, em que se visa dar remédio à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido a uma determinada pessoa, numa particular situação em que esse exercício ocorre.[48]
No abuso de direito não se trata da violação de um direito de outrem, ou da ofensa a uma norma tuteladora de um interesse alheio, mas do exercício anormal do direito por parte do seu titular, que o exerce em termos considerados clamorosamente reprovados pela ordem jurídica, na medida em que, embora o exerça respeitando a estrutura formal daquele, atentas as situações particulares do caso concreto em que o exerce, viola a afetação substancial, funcional ou teleológica do mesmo, de modo que se impõe considerar que esse exercício, por referência ao quadro concreto em que é exercido, é ilegítimo[49], impondo-se neutralizar a conduta do titular do direito em causa, declarando-a ilícita, com as consequências de todo o ato ilegítimo, máxime, em sede indemnizatória.
Para que essa neutralização do exercício do direito seja determinada importa, porém, enfatizar ser necessário que o titular do direito o exerça em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante, de acordo com uma conceção objetiva. Daí que, para que ocorra uma situação de abuso de direito não é necessário que o titular tenha a consciência de que no exercício do direito que lhe assiste está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa, bastando que exceda em termos objetivos esses limites, atento o padrão do homem médio, de são critério (bonuspater familiae) que se encontrasse na concreta situação em que se encontra.
Destarte, sendo a conceção de abuso de direito adotada pelo legislador a objetiva, na sua concretização impõe-se atender, de modo especial, às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade à data do exercício do direito em causa, o que exige que se apele às considerações políticas, sociológicas, históricas e culturais vigentes naquela concreta comunidade e específico momento histórico em que o direito é exercido.
O instituto do abuso de direito pressupõe, portanto, que o direito por parte de quem o exerce existe efetivamente na sua esfera jurídica, mas que o modo como é exercido ofende, em termos objetivos e clamorosos os sentimentos de justiça socialmente dominantes atentas as específicas circunstâncias em que aquele é exercido e assenta no princípio geral de que “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”[50].
Na tipologia do abuso de direito sobressai o denominado venire contra factum proprium, modalidade essa que se verifica, de um modo geral, quando o titular de um direito visa mediante o exercício daquele fazer “extinguir certa relação subjetiva, recorrendo ao direito de anular, resolver, revogar ou denunciar o negócio que lhe serviu de fonte, depois de fazer ver à parte contrária (…) que não exerceria tal direito”[51]– cfr. Antunes Varela, “ Centros Comerciais “, pág. 90.
O venire contra factum proprium reconduz-se em o titular de um direito ter assumido uma conduta geradora no devedor da legítima confiança de que aquele não exerceria o direito em causa, vindo a trair essa confiança ao exercê-lo, contrariando o comportamento que antes assumira.
Na mencionada modalidade de abuso de direito reprova-se a conduta de quem assume comportamentos contraditórios, resumindo-se o abuso de direito na modalidade vinda a referir à ideia de que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio ato/comportamento, assentando, por isso, o abuso numa estrutura que pressupõe duas condutas da parte do titular do direito, ambas lícitas, ainda que assumidas em momentos temporais distintos, em que a primeira conduta (factum proprium) é contrariada pela segunda (venire contra)[52].
De acordo com Batista Machado, são pressupostos do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium: a- a verificação de uma situação objetiva de confiança: a conduta de alguém que possa ser entendida como vinculante em relação a uma situação futura; b- o investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento: a outra parte, com base na situação criada, organiza planos de vida de que surgirão danos se a sua confiança legítima lhe vier a ser frustrada; e c- a boa fé da contraparte que confiou: nos casos de divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, a contraparte só é merecedora de proteção jurídica se estiver de boa fé (por desconhecer aquela divergência) e tiver agido com cuidado e precaução usuais ao tráfico jurídico[53].
Regressando ao caso em análise, em 13/02/2020, a administradora da insolvência deslocou-se ao estabelecimento industrial da devedora EMP03..., despediu os trabalhadores, cessou o processo produtivo, encerrou as instalações em que esta laborava, deixando no seu interior o recheio que nele existia, que veio a apreender para a massa insolvente, sem que, contudo, tivesse apreendido o direito ao arrendamento do espaço em que aquele estabelecimento industrial estava (e está) instalado (cfr. pontos 2º a 5º dos factos apurados).
Não obstante, era propósito da administradora da insolvência conseguir interessado na compra daquele estabelecimento industrial, a fim de que fosse reativado, o que foi por ela manifestado aos credores da devedora no relatório a que alude o art. 155º do CIRE, que juntou ao processo de insolvência em 16/04/2020, notificado aos credores da devedora nessa mesma data, onde se conta a recorrente EMP01... (cfr. pontos 10º e 17), que assim ficou ciente de quais as concretas intenções da administradora da insolvência.
Em 06/07/2020, a administradora da insolvência juntou ao apenso de liquidação (apenso E) o anúncio para venda da massa insolvente, onde era publicitada a venda do estabelecimento industrial da devedora (cfr. ponto 6º dos factos provados).
A administradora da insolvência, apesar de não ter denunciado junto da EMP01... (senhoria) o contrato de arrendamento do espaço em que o estabelecimento industrial estava (e está instalado), mantendo-o fechado, com o respetivo recheio no seu interior, não pagou as rendas à EMP01... que se venceram após a declaração da insolvência da devedora (cfr. ponto 7º dos factos apurados).
Não obstante, a EMP01... nunca exigiu da administradora da insolvência o pagamento das rendas em dívida, nem procedeu à resolução do contrato de arrendamento com esse fundamento (cfr. ponto 18º dos factos apurados), vindo-o apenas a fazer quando, na sequência da transação que foi celebrada entre as recorridas Massa Insolvente e EMP02..., em 23/08/2021, no âmbito do apenso C, e aí homologada por sentença transitada em julgado, em que a primeira trespassou à última aquele estabelecimento industrial da EMP03..., e na sequência das cartas datadas de 06 de setembro de 2021, que a administradora lhe enviou e à sua presidente da administração, comunicando-lhe o trespasse, através de cartas de 22 de setembro de 2021, que enviou à administradora da insolvência e à EMP02..., alegando não reconhecer a existência, eficácia e validade do contrato de arrendamento, nem do trespasse, não reconhecer a trespassária como sua arrendatária e, à cautela, resolveu o contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento das rendas (cfr. pontos 9º, 11º, 23º e 24º dos factos apurados).
Na dita carta a recorrente EMP01... não alegou como fundamento da resolução do contrato de arrendamento o não uso do arrendado, vindo-o apenas a fazer no âmbito da presente ação instaurada em 18/10/2021.
Em suma, decorre do que se vem dizendo que, apesar de ter conhecimento, pelo menos, a partir da notificação, em 16/04/2020, do relatório da administradora da insolvência que o estabelecimento industrial da devedora estava totalmente inativo desde 13/02/2020, e que era intenção daquela proceder à sua venda a quem estivesse interessado, a fim de o reativar, e de todas as diligências que nesse sentido foram efetuadas no âmbito do processo de insolvência e, inclusivamente, que a administradora da insolvência não lhe pagava as rendas desde a declaração, em 10/02/2020, da insolvência da EMP03..., a recorrente nunca exigiu o pagamento dessas rendas, nem se insurgiu contra o não funcionamento do estabelecimento industrial, vindo-a apenas a fazer no âmbito da presente ação, quando a trespassária EMP02..., na sequência do trespasse, reativou o estabelecimento industrial, com o que contrariou toda a sua conduta anterior, agindo em situação de flagrante abuso de direito, na modalidade de venire factum proprium, que se impõe neutralizar.
Destarte, resulta do exposto que, com a presente fundamentação, impõe-se confirmar a sentença recorrida quando julgou improcedente o pedido de resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não uso do arrendado.
E.4- Da resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento de rendas
Finalmente, pretende a recorrente que se julgue resolvido o contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento de rendas.
Constituindo uma das principais obrigações do arrendatário o pagamento da renda acordada (al. a), do art. 1038º do CC), o não pagamento desta, encargos ou despesas que decorram por conta do arrendatário, nos termos do n.º 3 do art. 1083º do mesmo Código, torna inexigível àquele a manutenção da relação contratual, conferindo-lhe o direito potestativo a resolver o contrato de arrendamento.
Para o efeito, o senhorio terá de comunicar ao arrendatário a sua intenção de proceder à resolução do contrato, onde fundadamente invoque o incumprimento (art. 1084º, n.º 2 do CC), ou seja, especificando os meses cuja renda se encontra em mora e indicando o montante de renda e indemnização em dívida (art. 1041º, n.º 1 do CC), ficando sem efeito a resolução do contrato se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês, sem prejuízo do arrendatário apenas poder fazer uso da referida faculdade uma única vez, com referência a cada contrato (art. 1084º, n.ºs 3 e 4 do mesmo diploma).
O direito do senhorio a resolver o contrato de arrendamento com fundamento em mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda extingue-se, por caducidade, decorridos que sejam três meses (art. 1085º, n.º 3 do CC).
No caso dos autos, tendo a devedora EMP03... sido declarada insolvente em 10/02/2020, não tendo a administradora da insolvência denunciado o contrato de arrendamento relativo ao espaço em que se encontrava instalado aquele que foi o seu estabelecimento industrial, impende sobre a massa insolvente pagar pontualmente as rendas que se venceram após a declaração da insolvência mal ocorra o seu vencimento, nos termos dos arts. 45º, n.º 1, al. f) e 172º, n.º 3 do CIRE.
Por sua vez, tendo a Massa Insolvente trespassado o estabelecimento industrial à recorrida EMP02..., a obrigação de pagar as rendas que se venceram após a receção pela recorrente EMP01... das cartas datadas de 06 de setembro de 2021 (em que a administradora da insolvente a notificou e à sua presidente do trespasse - cfr. ponto 23º dos factos apurados), passou a impender sobre a trespassária EMP02....
Acontece que a administradora da insolvência nunca pagou as rendas que se venceram após a declaração da insolvência da devedora, em 10/2/2020, vindo apenas a fazê-lo a 11/01/2022, após a recorrente EMP01... lhe ter remetido o seu NIB relativo à conta em que pretendia que as rendas em mora fossem depositadas.
A EMP01... também não exigiu à Massa Insolvente que pagasse as rendas em mora ou invocou a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento das rendas antes da carta datada de 22/09/2021 (cfr. pontos 7º, 29º e 18º dos factos apurados.
Com efeito, na sequência da carta datada de 06 de setembro de 2021, que a administradora da insolvência remeteu à recorrente EMP01... e à presidente da administração desta, comunicando-lhe o trepasse do estabelecimento industrial da devedora para a recorrida EMP02..., por cartas datadas de 22 de setembro de 2021, remetidas pela EMP01... para a administradora da insolvência e para a EMP02..., comunicou-lhes não reconhecer a existência, eficácia e validade do contrato de arrendamento, nem do contrato de trespasse e, à cautela resolveu o contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento das rendas de março de 2020 a outubro de 2021, inclusive (cfr. pontos 23º e 24º dos factos apurados).
Sucede que, o direito da recorrente a resolver o contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento das rendas dos meses de março de 2020 a abril de 2021, inclusive, encontrava-se extinto por caducidade, nos termos do art. 1085º, n.º 3 do CC.
E quanto às rendas em mora relativas ao mês de maio de 2021 e as que se venceram nos meses subsequentes ocorre mora da própria recorrente EMP01..., posto que, ao não fornecer à administradora da insolvência e à recorrida EMP02... o IBAN da conta bancária onde pretendia que estas depositassem as rendas impediu-as, por culpa exclusivamente sua, da possibilidade de depositarem as rendas, não lhe assistindo o direito a resolver o contrato de arrendamento com esse fundamento, tal como foi decidido pela 1ª Instância.
Advoga a recorrente que não é assim, isto porque o número do IBAN em que as rendas tinham de ser depositadas consta da cláusula 3.1 do aditamento ao contrato de arrendamento, o que é um facto (cfr. ponto 25-C dos factos apurados).
Todavia, a recorrente EMP01... não podia ignorar, nem ignorava, que o aditamento ao contrato de arrendamento em que as rendas passaram a ser depositadas por transferência bancária para a conta cujo IBAN se encontra identificado naquele aditamento, data de 20/12/2016, pelo que era natural que entre a celebração desse aditamento e 06 de setembro de 2021, em que, por cartas que lhe foram remetidas, mais à sua presidente da administração, pela administradora da insolvência solicitando que lhe fosse fornecido “o V/IBAN, a fim de proceder ao pagamento das rendas em débito até ao momento, da responsabilidade da massa insolvente”, podiam ter ocorrido mudanças ao nível do IBAN da conta que se encontrava identificada no aditamento ao contrato de arrendamento, que fossem desconhecidas da administradora, tanto mais que antes de ter sido declarada insolvente, em 10/02/2020, a EMP03... devia à EMP01... vários meses de renda, e também não desconhecia, nem podia desconhecer que desde a declaração da insolvência a administradora da insolvência não tinha procedido ao pagamento de rendas, pelo que era natural e normal que a administradora da insolvência estivesse num estado de incerteza, como efetivamente se encontrava (cfr. ponto 29-A dos factos apurados), sobre o número de conta onde devia depositar as rendas em mora.
De resto, independentemente do que se acaba de referir, os padrões mínimos de boa fé que devem presidir ao comportamento das partes na execução das relações contratuais que entre elas existam impunham que, perante as cartas datadas 06 de setembro de 2021, em que a administradora da insolvência solicitava que lhe fosse fornecido o IBAN para proceder ao depósito das rendas em mora, a EMP01... lhe tivesse prontamente fornecido essa informação, o que não fez.
O que se acaba de referir é por maioria de razão aplicável à recorrida EMP02..., na medida em que, enquanto trespassária, tendo aquela acabado de ingressar na posição de arrendatária na relação contratual existente entre a EMP01... e a Massa Insolvente da anterior arrendatária (EMP03...), naturalmente que o seu estado de incerteza quanto à conta onde devia depositar as rendas era superior ao que afligia a administradora da insolvência, pelo que, perante o teor da carta datada de 29 de setembro de 2021, que a EMP02... lhe remeteu, as exigências mínimas de boa-fé impunham que a EMP01... tivesse fornecido à sua nova arrendatária (EMP02...) o NIB da conta onde pretendia que as rendas fossem depositadas, o que não fez.
Note-se, por último, que o estado de incerteza da administradora da insolvência e da EMP02... sobre o IBAN da conta onde deviam depositar as rendas era tanto mais justificado quanto é certo que o IBAN que acabou por ser fornecido pela EMP01... à administradora da insolvência não corresponde ao que consta do aditamento ao contrato de arrendamento (cfr. ponto 29-B dos factos apurados).
Advoga a recorrente EMP01... que o teor da carta que lhe foi enviada pela recorrida EMP02... não lhe é oponível uma vez que não a recebeu, nem esta foi remetida para a direção que consta da cláusula 7ª do contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2019.
Efetivamente, no contrato de arrendamento que a EMP01... celebrou com a EMP04... em 01/05/2009, ficou estipulado o modo e endereços como se processariam as comunicações entre senhoria (EMP01...) e arrendatária.
A carta de 29 de setembro de 2021 que a EMP02... enviou à EMP01... não foi enviada para a direção que consta na dita cláusula do contrato de arrendamento celebrado, mas foi enviada para o endereço para onde a administradora da insolvência remetera a carta de 06 de setembro de 2021, comunicando à EMP01... a celebração do contrato de trespasse, que esta confessadamente rececionou. E essa carta foi enviada pela EMP02... para aquela que é a direção que a EMP01... indicou nos presentes autos e, bem assim, nos autos de insolvência, como sendo a sua sede (cfr. ponto 25º dos factos apurados), pelo que vir a recorrente EMP01... invocar o argumento de que a carta em referência não foi remetida para a morada que consta do contrato de arrendamento atenta gravemente contra a boa-fé, consubstanciando indiscutível abuso de direito.
Por último, é certo que a carta que lhe foi remetida pela EMP02... não foi recebida pela recorrente EMP01..., por culpa exclusivamente sua, que se recusou a proceder ao seu levantamento, apesar do carteiro a ter avisado por avisos emitidos em 20/10/2021 e 21/10/2021 para que procedesse ao seu levantamento (cfr. pontos 25-A e 25-D dos factos apurados), pelo que, nos termos do art. 224º, n.º 2 do CC, aquela tem-se por notificada do seu teor.
Aqui chegados, na improcedência de todos os erros de direito que a recorrente assaca à sentença recorrida quando julgou improcedente o pedido de resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não pagamento de rendas, impõe-se julgar este fundamento de recurso improcedente.
Resulta do exposto improcederem todos os fundamentos de recurso aduzidos pela recorrente, impondo-se julgar o recurso improcedente e, em consequência, sem prejuízo das alterações introduzidas ao julgamento da matéria de facto nela efetuado, confirmar a sentença recorrida com a presente fundamentação.
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V- Decisão
Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar o recurso improcedente e, em consequência, sem prejuízo das alterações introduzidas ao julgamento da matéria de facto nela efetuado supra identificadas, confirmam a sentença recorrida com a presente fundamentação.
Mais acordam em não admitir a sua junção aos autos pela recorrente dos documentos juntos com as alegações de recurso e, após trânsito, ordenam o seu desentranhamento do processo e devolução à apresentante (recorrente), que vai condenada em uma UC de taxa de justiça pelo incidente anómalo que gerou ao juntar aqueles documentos aos presentes autos fora do condicionalismo legal do art. 651º, n.º 1
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Custas do recurso pela recorrente que nele ficou “vencida” dado que a decisão de mérito se manteve inalterada (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 20 de março de 2025
José Alberto Moreira Dias – Relator
Maria Gorete Morais – 1ª Adjunta
Rosália Cunha – 2ª Adjunta
[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396. [2] Paula Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2013, Almedina, págs. 340 e 341.
No mesmo sentido de que o encerramento da discussão em 1ª Instância é o limite máximo até ao qual o art. 423º, n.º 3 do CPC, consente a junção aos autos de documentos, verificados que estejam os requisitos legais que enuncia, vide Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, pág. 352, nota 829.
Ainda Pais de Amaral, “Direito Processual Civil”, 2106, 12ª ed., pág. 320. [3] Acs. STJ., de 13/02/2007, Proc. 06A4496 e RC., de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG-G1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venha a citar, sem menção em contrário. [4] Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro de 2014, Ediforum, pág. 515. [5] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., pág. 341. [6] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 229. [7] Acs. STJ., de 18/01/2005, Rev. n.º 3689/04-4ª, Sumários, jan./2005; de 18/04/2006, Proc. 06A844. [8] Paulo Ramos de Faria e Ana Luís Loureiro, ob. cit., pág. 341 [9] Ac. RG., de 19/06/2014, Proc. 36/12.9TBEPS-A.G1, em que se expende que: “A junção de documentos apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam”.
Ac. STJ., de 26/09/2012, Proc. 174/08.TTVFX.L1.S1: “A possibilidade de junção de documentos com a alegação de recurso de apelação, não se tratando de documento ou facto superveniente, só existe para aqueles casos em que a necessidade de tal junção foi criada, pela primeira vez, pela sentença da primeira instância. A decisão de 1ª instância pode criar, pela primeira vez, tal necessidade quando se tenha baseado em meios probatórios não oferecidos pelas partes, ou quando se tenha fundado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes, justificadamente, não contavam”.
Ac. RC., de 18/11/2014, Proc. 628/13.9TBGRD.C1. [10] Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, págs. 266 a 271 [11] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 747. [12] Paulo Pimenta, ob. cit., págs. 280 a 281, em que se escreve que: “O objeto do litígio é definido em face dos pedidos (das pretensões formuladas) e corresponde ao thema decidendum. Visto que esta operação de identificação apenas ocorre nas ações que devam prosseguir, é evidente que só há a considerar as pretensões (pedidos) que permaneçam em controvérsia. A identificação do objeto do litígio na fase intermédia do processo corresponde antecipar para este momento processual aquilo que, até agora e nos diplomas anteriores, só surgia na sentença, sendo salutar e proveitoso, quer para as partes, quer para o juiz, esta sinalização depois de finda a etapa dos articulados. Este ato terá a virtualidade de, em devido tempo, focar os intervenientes processuais no enquadramento jurídico da lide”.
No mesmo sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 723, em que referem que o objeto do litígio consiste na identificação, “através de uma formulação genérica, de pendor jurídico, à semelhança do que ocorre na sentença, do thema decidendum”, o qual “é definido em face dos pedidos deduzidos (das pretensões formuladas” e cuja formulação “serve da baliza aos temas da prova, levando a que se exclua toda a matéria que não revele concreto interesse para a decisão para a decisão do caso”.
Ainda, José Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 198, em que escreve que a “identificação do objeto do litígio, consiste na enunciação dos pedidos deduzidos (objeto do processo) sobre os quais haja controvérsia”. [13] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 724; Paulo Pimenta, ob. cit., pág. 281; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, volume 2ª, 3ª ed., Almedina, págs. 669 a 670: “Ao exigir a enunciação dos temas da prova, não pretendeu o legislador que o juiz elencasse factos descritos segundo a perspetiva sobre a distribuição do ónus da prova, mas apenas questões genéricas (por exemplo, saber se certo contrato foi celebrado ou saber qual o contraente que não cumpriu as obrigações dele decorrentes, caso o autor tenha alegado factos que consubstanciam a celebração de certo contrato ou uma parte o seu incumprimento pela outra), que podem ser formuladas mediante o uso de qualificações jurídicas e que têm como referência a causa de pedir e as exceções alegadas pelas partes (embora com estas não se confundam, na medida em que não são factos concretos). Diversamente da prova, que tem como objeto factos, dos articulados, que cumprem a função de alegação de factos, e da decisão de facto, que inclui todos os factos relevantes para a decisão da causa, a enunciação dos temas da prova não tem em vista (embora também não vede) uma listagem de factos, ainda que principais, mas de questões formuladas de modo abrangente, que orientem a posterior produção de prova, sem todavia a condicionar ou restringir” (sublinhado nosso).
Ac. R.L., de 23/04/2015, Proc. 185/14.9TBRG.L1-2: “No Novo Código de Processo Civil, na enunciação dos temas da prova, não está em causa a quesitação de cada um dos factos controvertidos, mas tão-somente apontar genericamente a controvérsia entre as partes sobra as matérias principais, deixando para a decisão sobre a matéria de facto a descrição dos factos que, relativamente a cada grande tema, tenham sido provados ou não provados”. [14] Ac. STJ., de 16/06/2016, Proc. 3296/11.8TBLE.E1.S1. [15] Acs. STJ., de 30.11.2021, Proc. 1854/13.6TVLSB.L1.S1; RG, de 01.02.2018, Proc. 1806/17.7T8GMR-C.G1; de 04.10.2018, Proc. 4981/15.1T8VNF-A.G1; de 07.02.2019, Proc. 5569/17.8T8BRG.G1 (de que fomos relator); de 09.01.2023, Proc. 487/22.0T8VCT-A.G1; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 735; e Rui Pinto, “Os Meios Reclamatórios Comuns da Decisão Civil (artigos 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10. [16] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 726, nota 17. [17] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, ob. cit., pág. 294, em que refere que no caso de ser exigida “a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo”, impõe-se que o tribunal de recurso ordene essa ampliação. “Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes”. [18] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 293. [19] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 541: “O facto é pessoal quando é conhecido pela parte, trate-se de ato por ela própria praticado, ou praticado com a sua intervenção, de ato de terceiro perante ela praticado (incluindo as declarações escritas de que tenha sido destinatário) ou de mero facto ocorrido na sua presença. Facto de que a parte deve ter conhecimento é aquele que é de presumir que ela tenha conhecido, pois o termo “deve” que consta do artigo tem o sentido de juízo de probabilidade psicológica e não de conduta ética”. [20] Acs. STJ., de 2/10/2003, Proc. 03B1909; de 30/05/2013, Proc. 2531/05; de 18/06/2013, Proc. 752/2001; Sumários, 2013, pág. 211; RP., de 22/05/1995, CJ., 1995, t. 3º, pág. 221; RC., de 16/12/2009, Proc. 5/06.8TBMLD.C1; R.L., de 25/03/2010, Proc. 665/08.5TYLSB-A.L1-6; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 547, notas 1 e 2. [21] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 540, nota 3; Manuel Domingues de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 249: “Depoimento de parte, quando não resulte em confissão. É um simples elemento probatório a apreciar segundo o prudente arbítrio do julgador – uma prova livre, portanto (art. 361º do CC). Mas, neste plano, pode ter valor probatório decisivo – até mesmo, por vezes, quando não prestado perante o próprio tribunal que julga a causa e só chegando ao conhecimento dele através do seu relato escrito. Os modos do depoente e as entrelinhas do respetivo depoimento, mesmo quando verbalizado, podem, v.g., convencer plenamente o tribunal da insinceridade das suas negações (e portanto, normalmente, da veracidade das opostas afirmações da contraparte)”.
Acs. STJ., de 16/03/2011, Proc. 237/04.3TCGMR.S1: O depoimento de parte é de certo uma via de conduzir à confissão; todavia mostra-se ultrapassada a conceção restritiva de tal depoimento vocacionado exclusivamente àquela obtenção, já que o mesmo tem um campo de aplicação muito mais vasto. Assim sendo, o juiz no depoimento de parte, em termos gerais, não está espartilhado pelo escopo da confissão, podendo ali colher ainda elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da livre apreciação da prova”; de 04/06/2015, Proc. 3852/09.5TJVNF.G1.S1; RC., de 12/04/2011, Proc. 737/09T6AVR-B.C1 [22] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit., págs. 549 e 550, notas 2 e 3. [23] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de processo Civil”, ob. cit., pág. 385. [24] José Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 278. [25] Ac. R.G., de 03/05/2018, Proc. 4891/17.8YIPRT.G1 (de que fomos relator, tese que há muito abandonamos); R.P., de 04/02/2019, Proc. 999/15.2T8PVZ.P1; de 20/11/2014, Proc. 1878/11.8TBFPR.P2; RL. de 01/03/2018, Proc. 1770/06.8TVLSB-B.L1-2; RE., de 17/01/2019, Proc. 800/17.2T8STR-E1. [26] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 552; Acs. STJ., de 07/02/2019, Proc. 2200/108.6TBFAF-A.G1.S1; RG., de 04/04/2019, Proc. 1012/15.5T8VRL-AV.G1; de 13/09/2018, Proc. 159/17.8T8FAF.G1. [27] António Abrantes Geraldes, “Recursos…”, ob. cit., pág. 153. [28] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 797. [29]António Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 228. [30] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 798, nota 8. [31] Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1. [32] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 153 e 290; Acs. R.G., de 29/10/2020, Proc. 2163/17.7T8VCT.G1; de 28/09/2023, Proc. 3343/19.6T8VNF-F.G1. [33] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 797, nota 4. [34]Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609. [35] Ac. STJ. de 09/03/2003, Proc. 03B1816. [36] Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, vol. I, 4ª ed., Almedina, pág. 281. [37] Ana Prata, “Dicionário Jurídico”, vol. I, 5ª ed., Almedina, pág. 463. [38] Acs. STJ., de 09/ 04/06/1998, BMJ, 477º, pág. 414; de 09/07/2014, Proc. 299709/11, Sumários, 2014, pág. 427; de 24/10/2000, CJ/STJ, 2000, t. 3º, pág. 93, em que se expende: “A declaração tácita resulta de um comportamento concludente – aquele que, considerando todas as circunstâncias, não deixa fundamento razoável para dúvidas. Este comportamento concludente deve ser avaliado pela perspetiva interpretativa de um declaratário normal colocado na posição do declaratário real”. [39] Carlos Alberto da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 425. [40] Ana Prata, ob. cit., pág. 610.
Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, Universidade de Coimbra, 1973, vol. I, págs. 210 e 220, em que refere: “Economicamente (o estabelecimento mercantil) apresenta-se-nos como uma unidade, um organismo – tanto o estabelecimento dos comerciantes em nome individual como o das sociedades. É um complexo de elementos heterogéneos (…) complementares uns em relação aos outros. Mas não consiste na simples soma ou pluralidades desses elementos, os quais não representam, no seu conjunto, um mero agregado de bens sem uma função ou destino específico, antes se estruturam e articulam num todo. Há uma força de coesão que os solda intimamente uns aos outros – a sua comum função e destinação económica. O estabelecimento comercial é uma organização, não uma simples pluralidade de bens. (…). O estabelecimento comercial apresenta-se com um aglomerado de elementos com uma função e uma destinação económica específica”.
Na mesma linha, Orlando de Carvalho, “Direito das Coisas (Do Direito das Coisas em Geral), Coimbra 1977, pág. 196: “O estabelecimento comercial ou industrial é uma organização concreta de fatores com valor de posição no mercado, organização, portanto, que, concreta como é, exige um complexo de elementos ou meios em que a mesma radica e que a tornam reconhecível”. [41] Ac. STJ., de 06/04/2006, Proc. 06B336. [42]Vaz Serra, RLJ, 102º, pág. 102. [43] José António de França Pitão e Gustavo França Pitão, “Arrendamento Urbano Anotado”, 3ª ed., Quid Juris, pág. 461. [44] Ac. STJ., de 08/05/2008, Proc. 08B1182. [45] Ac. STJ., de 28/02/2002, Proc. 03B680. [46] Ac. STJ., de 30/11/202010, Proc. 2192/06.6TVPRT.P1.S1, em que se decidiu: “A declaração de insolvência e a subsequente apreensão dos bens da falida para a respetiva massa não impede o funcionamento do estabelecimento instalado no locado, pois, através do administrador judicia, o estabelecimento em causa pode manter-se em atividade – art. 81º, n.º 4 do CIRE. Por isso, o encerramento do prédio locado, se tiver durando mais de um ano, dará direito à resolução a pedido do senhorio, se que a alegação da arrendatária de que tal encerramento se deveu à declaração de falência do arrendatário tenha relevância para integrar uma exceção ao direito do senhorio de causa de força maior, prevista na parte final da al. h) do n.º 1 do art. 64º do RAU”.
No mesmo sentido, Ac. R.L., de 04/05/1975, BMJ, n.º 247, pág. 208. [47] Ac. STJ. de 15/03/2013, Proc. 600/06.5TCGMR.G1.S1, in base de dados da DGSI. [48] Manuel de Andrade, “Teoria Geral das Obrigações”, 1958, pág. 63. [49] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, pág. 563. [50] Coutinho de Abreu, in “Do Abuso de Direito”, pág. 55. [51] Antunes Varela, in “Centros Comerciais”, pág. 90. [52] Ac. STJ. de 05/06/2018, Proc. 1085/15.9TCBR-A.C1.S1, in base de dados da DGSI. [53] Batista Machado, “Obra Dispersa”, vol. I, págs. 416 e segs.
Na mesma linha, Menezes Cordeiro, in “Revista da Ordem dos Advogados”, ano 58, julho de 1998, pág. 964, onde escreve que são quatro os pressupostos da proteção da confiança ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”: 1º- uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2º- uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3º- um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam num injustiça clara; 4º- uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”.