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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ÓNUS DA PROVA DOS FACTOS LEGAIS DE RECUSA DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DILIGÊNCIA CONCRETA DE INSCRIÇÃO NO CENTRO DE EMPREGO
DEVER DE DILIGÊNCIA DO DEVEDOR NA PROCURA DE EMPREGO
Sumário
1. A decisão de recusa de exoneração de passivo restante sem a apreciação ou a verificação de um dos requisitos legais (do art.243º/1-a) do CIRE, ex vi do art.244º/2 do CIRE), não incorre em nulidade por falta absoluta de fundamentação, nos termos do art.615º/1-b) do CPC, mas em erro de julgamento de direito, invocável nos termos do art.639º do CPC. 2. Não estão verificados os requisitos para recusar a exoneração do passivo restante, por falta de procura ativa de trabalho e/ou por falta de prestação de informações sobre esta procura de emprego, que seja imputável ao insolvente a título de dolo ou negligência grave, e de forma adequada a causar prejuízos à insolvência, nos termos do art.243º/1-a), ex vi do art.244º/2 do CIRE, em referência ao art.239º/4-b) e d) do CIRE, em relação a período de cessão compreendido entre maio de 2020 e maio de 2023, quando: 2.1. O fiduciário (que apenas requereu a recusa 8 meses após o termo do período de cessão) ou os credores não juntaram prova para comprovar: a falta de procura ativa de trabalho pelo insolvente, de forma que lhe fosse censurável a título de dolo ou negligência grave, e causasse prejuízo aos créditos da insolvência; ou a apresentação de pedido oportuno pedido de esclarecimento pelo insolvente das diligências por si realizadas para obter emprego e rendimentos (nomeadamente com comprovação) e a falta de resposta deste ou de apresentação de resposta com elementos suficientes. 2.2. A falta de comprovação pelo insolvente de inscrição no centro de emprego pedida ao seu patrono a 09.06.2021 (cuja falta, por si só, não significa, que o insolvente não tenha feito procura ativa de trabalho por outra via para a satisfação da obrigação do art.239º/4-b) do CIRE): não foi invocada pelo fiduciário e pelos credores como fundamento de recusa antecipada de exoneração do passivo restante nos termos do art.243º/1-a) e 2 do CIRE, por inobservância do art.239º/4-b) ou d) do CIRE; não foi também objeto, por estes, de pedido de prestação de informação ou demonstração da inscrição, nos termos e com as cominações do art.243º/3 do CIRE; foi desatendida, também, em despachos do período de cessão (nos quais o Tribunal cumpridos os deveres do insolvente) e no parecer final do fiduciário que acompanhou ou período de cessão. 2.3. Os processos judiciais devem proteger a confiança e segurança jurídica dos interessados, sem práticas contraditórias, ambíguas ou intempestivas (arts.2º, 18º, 20º, 202º ss do CRP; arts.235º ss do CIRE; art.8º do CPC, ex vi do art.17º do CIRE).
Texto Integral
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte
ACÓRDÃO
I. Relatório:
Nos autos de insolvência, requeridos pelo devedor AA, nascido a ../../1960: 1. O requerente, no seu requerimento inicial de 19.01.2020, em que se apresentou à insolvência, requereu que lhe fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante. 2. A 18.05.2020, após transitar em julgado a sentença de insolvência de 23.01.2020, foi proferido despacho em relação ao pedido de exoneração do passivo restante, no qual: 2.1. Admitiu-se liminarmente a exoneração do passivo restante, decisão na qual: 2.1.1. Foi julgado provado:
«3) O insolvente é casado, vive com a mulher que também está desempregada; 4) Não têm rendimentos; 5) Após longo período de desemprego dedicou-se à exploração de um estabelecimento comercial – Café/snack-bar que encerrou; 6) Vive com ajuda de familiares nomeadamente o seu pai que cede gratuitamente a habitação e ajuda monetariamente; 7) Não tem antecedentes criminais.». 2.1.2. Determinou-se:
__ Na fundamentação, que «no período de cinco anos posteriores ao encerramento do presente processo, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir em montante mensal superior a 650,00€ seja cedido ao fiduciário.».
__ A final: «Em face do exposto, defere-se liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante de AA e, em consequência, (i) Fixa-se como rendimento indisponível, excluído do âmbito da cessão, o valor mensal de €650,00; (ii) Nomeia-se como fiduciário Dr. BB, administrador de insolvência nos autos.». 2.2. Declarou-se o encerramento do processo de insolvência, nos termos dos arts.230º/1-d) e 232º/1 e 2 do CIRE, e declarou-se a insolvência fortuita. 3. O Fiduciário apresentou os relatórios anuais do período de cessão, nos quais se procedeu à seguinte tramitação: 3.1. No 1º Ano de cessão: 3.1.1. O fiduciário apresentou o 1.º relatório a 11.06.2021, no qual:
a) Informou:
« O insolvente não entregou à M.I. nenhuma importância, até à data.
O Fiduciário solicitou junto do Instituto da Segurança Social os extratos das remunerações e/ou equivalência do insolvente, que se anexa.
Solicitou, ainda, junto do insolvente, através do seu Douto Mandatário, informação atualizada sobre o mesmo, nomeadamente, as cópias dos recibos de vencimento e da última declaração de IRS;
Conforme consta da resposta recebida, o insolvente encontra-se, atualmente, desempregado e não apresenta qualquer tipo de rendimento. Contudo, o Fiduciário já solicitou comprovativo de inscrição junto do Centro de Emprego.
Procedeu-se, nesta data, à notificação dos credores reconhecidos, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 240.º e 241.º do CIRE.».
b) Juntou documentos, entre os quais: b1) Correspondência entre o administrador e o patrono do insolvente:
__ Um email de 17.05.2021, enviado ao patrono do insolvente, no qual lhe pediu:
«-Todos os recibos de vencimento, desde Maio de 2020 até à presente data;
- Último IRS apresentado e respectiva nota de liquidação;
- Informação acerca da atual situação social, económica e financeira.».
__Um email do patrono do insolvente de 08.06,2021, no qual este declarou:
«Relativamente ao n/ cliente e insolvente AA o mesmo está sem emprego, no entanto devido à pandemia e aos problemas de saúde que o mesmo tem não estará inscrito no centro de emprego estando a viver da ajuda que os seus pais lhe prestam.
Relativamente ao IRS de 2020, ainda estará em tempo de ser apresentado pelo que não tem ainda o documento para ser junto.
Não tem recebido qualquer ajuda do estado ou subsídio, nem tem qualquer tipo de vencimento.
Estou ao dispor».
__ Um email de 09.06.2021, enviado ao patrono do insolvente, com a seguinte instrução:
«Deverá o S/ Constituinte, logo que possível, diligenciar pela inscrição junto do Centro de Emprego, uma vez que a procura de emprego é uma das obrigações a que os insolventes estão sujeitos, conforme o disposto no art.º 239.º, nº 4 do CIRE.
Pelo que, deve o Sr. AA diligenciar nesse sentido e demonstrar esse cumprimento nos autos.». b2) Informação do CDSS de 20.05.2021, a declarar que «o último registo reporta-se a novembro de 2019, como trabalhador Independente». 3.1.2. A 15.06.2021 foi proferido o seguinte despacho, notificado ao fiduciário por ato eletrónico de 16.06.2021:
«Considerando o relatório anual apresentado pelo fiduciário, ao abrigo do disposto no n.º2 do artigo 240.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março), verifica-se que do mesmo consta a informação de que o insolvente cumpriu os deveres que lhe estão adstritos em virtude da prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante, e não entregou ao fiduciário qualquer quantia.». 3.2. No 2º ano de cessão: 3.2.1. O fiduciário apresentou o 2.º relatório a 27.07.2022, no qual:
a) Informou:
« O insolvente não entregou à M.I. nenhuma importância, até à data.
O Fiduciário solicitou junto do Instituto da Segurança Social novo extrato das remunerações e/ou equivalência do insolvente, que se anexa.
Solicitou, ainda, junto do insolvente, através do seu Douto Mandatário, informação atualizada sobre o mesmo, nomeadamente, as cópias dos recibos de vencimento e da última declaração de IRS;
Verificada a resposta recebida, o insolvente continua desempregado e não apresenta qualquer tipo de rendimento, conforme documentos que se anexam.
Procedeu-se, nesta data, à notificação dos credores reconhecidos, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 240.º e 241.º do CIRE.».
b) Juntou documentos: b1) Correspondência com o patrono do insolvente: o email de 02.06.2022, a pedir ao patrono do insolvente os mesmos elementos pedidos no email de 17.05.2021, constante em III- 3.1.1.-b1) supra (os recibos de vencimento de 2022, o último IRS e informação da situação social, económica e financeira); o email de 07.07.2022 do patrono do insolvente, no qual declarou que este continua desempregado e juntou certidão das Finanças (sobre dispensa de apresentação de declaração de rendimentos de 2021) e da Segurança Social (a atestar que o beneficiário não recebe pensão, subsídio, complemento, prestação do Instituto de Segurança Social). b2) Informação do ISS, no qual este mantém a informação que «não consta com registo de remunerações, sendo o último registo como Trabalhador Independente e reporta-se a 2019-11.». 3.2.2. A 13.09.2022 foi proferido despacho, notificado ao fiduciário por ato eletrónico de 14.09.2022, que declarou:
«Foi junto o relatório anual.
Foram cumpridos os deveres, mas nada foi cedido.». 3.3. No 3º ano de cessão: 3.3.1. O fiduciário apresentou o 3.º relatório a 05.07.2023, no qual:
a) Informou:
« Por douta sentença proferida a 18/05/2020 foi concedida a exoneração do passivo ao insolvente e fixado como sustento mínimo do mesmo a quantia de € 650,00 mensais;
O insolvente não entregou à M.I. nenhuma importância, até à data.
O Fiduciário solicitou junto do insolvente, através do seu Douto Mandatário, informação atualizada sobre o mesmo, nomeadamente, as cópias dos recibos de vencimento e da última declaração de IRS;
Verificada a resposta recebida, o insolvente continua desempregado e não apresenta qualquer tipo de rendimento, conforme documentos que se anexam.
Pelo que, tendo o insolvente cumprido com o doutamente ordenado,nomeadamente, entregando os comprovativos dos seus rendimentos, entende oFiduciário que deverá ser concedida ao devedor, a exoneração do passivo restante.
Procedeu-se, nesta data, à notificação dos credores reconhecidos, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 240.º e 241.º do CIRE.».
b) Juntou como documentos: b1) Correspondência entre o fiduciário e o insolvente: email de 20.06.2023, em que aquele pediu ao patrono os mesmos elementos dos emails de 17.05.2021 e de 02.06.2022, constantes de III- 3.1.1.-b1) e 3.1.2.-b1) supra (os recibos de vencimento, o último IRS e informação da situação social, económica e financeira); email de 04.07.2023, em que este referiu que o insolvente e a mulher não recebem rendimentos e juntou certidão das Finanças (com dispensa de apresentação de declaração em 2022) e declaração da Segurança Social (com declaração que não foram registadas remunerações desde ../../2019). 3.3.2. A 11.07.2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Vi o relatório final. Pague-se ao fiduciário €150,00 a título de remuneração.
Cumpra o disposto no artigo 244.º do CIRE. Prazo: 5 dias.». 3.3.3. A 12.07.2023 foi cumprida a notificação ordenada, com o seguinte conteúdo:
«Fica V. Ex.ª notificado, na qualidade de Mandatário, relativamente ao processo supra identificado, de todo o conteúdo do despacho de que se junta cópia, e para, no prazo de 5 dias, se pronunciar, querendo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
Findo o prazo referido, o juiz decidirá nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artº 242º-A do CIRE, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor (nº 1 do artº 244º do CIRE).». 3.3.4. A 24.07.2023, o credor CC defendeu a não exoneração do passivo ou, subsidiariamente, a exclusão da exoneração do seu crédito, fundado na prática pelo devedor/insolvente de um ilícito criminal, nos seguintes termos:
«2. Isto porque, o insolvente violou logo na altura em que se apresentou à insolvência, o seu dever de se apresentar nos 6 meses seguintes à verificação do estado de insolvência, nos termos do artigo 238º n.º 1 alínea d) do CIRE.
3. O aqui insolvente durante todo este período de tempo nunca apresentou os rendimentos que aufere, nem o seu património, nem nunca disponibilizou nenhum rendimento disponível para liquidar qualquer prestação de dívida para com este credor, violando assim o definido no artigo 239º, nomeadamente o estatuído no n.º 4 alínea a, c) e e), do CIRE.
4. Acresce a este seu comportamento culposo o facto do requerente da sua insolvência ter sido o seu próprio pai o credor DD, que segundo informação dada por um vizinho informaram que este credor entretanto já faleceu.
5. O aqui devedor com o falecimento de seu pai, tornou-se herdeiro de um vasto património que o devedor ocultou ao não informar este tribunal e o Sr. Administrador da Insolvência.
6. Prejudicando assim todos os credores destes autos.
7. Na hipótese de ser concedido a exoneração do passivo restante ao aqui insolvente, o que só se concebe por exercício académico, sempre se dirá que para além da violação dolosa das suas obrigações durante o período da cessão, convém referir que relativamente a este credor a exoneração não pode abranger, atento o facto da divida aqui reclamada ter sido derivada de factos ilícitos criminais, e reclamados nessa qualidade, quando praticados pelo devedor, conforme é o caso da reclamação do aqui credor.
8. O Aqui credor tinha uma execução a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz ..., processo n.º 2325/19...., baseado num acórdão transitado em julgado que condenou o aqui devedor pelos factos ilícitos por si praticados, no âmbito de um crime. Junta / certidão desse acórdão.» (juntando certidão comprovativo de acórdão, transitado em julgado em 1999, comprovativo da condenação do insolvente no crime do art.210º do CP e na indemnização a lesado). 3.3.5. A 14.09.2023 foi ordenado o cumprimento do contraditório de III- 3.3.4. supra junto do fiduciário e do insolvente, após o que:
a) A 19.09.2023 o fiduciário pediu a sua substituição, deferida por despacho de 28.09.2023.
b) O insolvente: b1) A 21.09.2023 declarou apenas:
«- (…) cumpriu todas as obrigações que lhe foram fixadas sendo que todos os argumentos utilizados pelos credor não são fundamento para que lhe não seja concedida a exoneração final do passivo restante, nos limites e nas condições que estão previstas na Lei.- Assim e atento o exposto requer-se a V. Excia, que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante.». b2) A 22.09.2023 impugnou a alegação deduzida pelo credor, afirmando que o seu pai está vivo e não herdou qualquer património. 3.3.6. A 28.09.2023 foi proferido despacho a ordenar que o novo fiduciário, em 30 dias, apurasse se o insolvente escondeu ou omitiu a existência de qualquer património e se pronunciasse-se sobre a concessão ou não do beneficio da exoneração. 3.3.7. A 08.11.2023, após o fiduciário ter pedido a 25.10.2023 a junção de documentos, foi proferido despacho a ordenar ao insolvente a junção aos autos de:
«• Certidão de nascimento dos seus pais, no sentido de esclarecer a questão suscitada pelo credor CC; • Comprovativos de procura activa de emprego no decurso de todo o período de cessão – de Maio de 2020 a Abril de 2023.». 3.3.7. Após, o insolvente, a 25.10.2023, apresentou a certidão do assento de nascimento de ambos os pais (ainda vivos) e declarou:
«que os seus vários esforços para conseguir emprego não se materializaram em comprovativos uma vez que, não lhe foram solicitadas, nem foi informado de que teria de que teria alguma cominação o facto de não ter comprovativos dos seus esforços.». 3.3.8. A 21.11.2023, o Tribunal a quo pediu ao administrador da insolvência parecer final, tendo este:
a) A 07.02.2024 declarado que, face aos assentos de nascimento referidos em I-3.3.7. supra, que:
«é falsa a informação prestada pelo credor “CC” de que o devedor “…com o falecimento de seu pai, tornou-se herdeiro de um vasto património que o devedor ocultou ao não informar este tribunal e o Sr. Administrador da Insolvência”. Face ao exposto, não existe qualquer quinhão hereditário, por óbito dos pais do devedor, que possa ser apreendido a favor dos presentes autos.».
b) A 08.02.2024 apresentou parecer final, no qual: b1) Entendeu violadas as obrigações previstas nas alíneas b) e d) no nº 4 do artigo 239º do CIRE, de forma voluntária (depois do insolvente saber as obrigações que sobre o mesmo impendiam, em particular, após o email de 09.06.2020, cuja diligência pedida de inscrição no Centro de Emprego não foi comprovada) e com desencadeamento de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência. b2) Propôs que fosse recusada a exoneração do passivo restante:
«Posto isto, entende o signatário que, se encontram preenchidos os fundamentos previstos no nº 1 do artigo 243º do CIRE para a cessação antecipada do procedimento de exoneração pelo que, nos termos do nº 2 do artigo 244º do CIRE, é parecer do signatário que deve ser RECUSADO ao devedor o privilégio de Exoneração do Passivo Restante.». 3.3.9. Na sequência de I- 3.3.8. –b) supra:
a) A 15.02.2015 o insolvente declarou:
«- é com incredulidade que se teve conhecimento do requerimento apresentado pelo AI substituto que se deverá, certamente, dever, e só assim é possível entender, a um lapso de entendimento, afastando-se pois qualquer ato de mera maldade.
-É que o aqui insolvente esteve e foi acompanhado ao longo de todo o período de cessão de créditos pelo AI nomeado fiduciário no seu processo.
- E ao longo de todo esse tempo prestou todas as informações que lhe foram solicitadas e entregou tudo o que o AI fiduciário lhe exigiu.
- E em todos os anos o Sr. AI elaborou os respetivos relatórios e concluiu que o Insolvente cumpria as suas obrigações.
- Nunca foi informado de que estava em falta qualquer cumprimento das suas obrigações como insolvente.
E muito menos que pudessem colocar em causa a exoneração final do seu passivo.
Sendo inexplicável ser agora confrontado por um parecer como o que se teve agora e por casualidade conhecimento, realizado por alguém que não acompanhou o processo, não solicitou ao requerente o que quer que fosse, e ainda para mais que está em contradição com os relatórios anuais apresentados pelo fiduciário que acompanhou todo este processo.
Assim, e sem nos alongarmos, será da mais elementar justiça ser proferido despacho de exoneração final do passivo restante, o que se requer e espera de V. Excia.».
b) Após ter sido ordenado a 15.02.2024 o contraditório dos credores e deste ter sido cumprido, a 28.02.2024 o credor CC manteve a sua posição de recusa de exoneração, aderindo ao parecer do administrador e reiterando o seu requerimento antecedente. 3.3.10. A 11.03.2024 foi proferido despacho a convidar o insolvente a «esclarecer a razão pela qual não juntou comprovativo que atestasse a procuração activa de emprego, tal qual solicitado pelo anterior fiduciário.», após o que:
a) A 22.03.2024 o insolvente, em resposta a 3.3.10., declarou:
«vem dizer que o requerente é uma pessoa doente, causada essa doença por uma enorme depressão originada numa burla de que foi vitima, em que perdeu o seu património, factos aliás que o credor CC deve ter conhecimento.
- A partir dessa altura, o requerente ficou extremamente diminuído física e psicologicamente, sendo que no período da pandemia, para garantir a sua sobrevivência esteve efetivamente muito resguardado, em casa dos seus pais.
- Contudo, como aliás explicou ao Sr. A.I. e fiduciário que o acompanhou ao longo de todo o processo de insolvência e este teve perfeito conhecimento desse facto, e também por isso pugnou para que lhe fosse concedido a exoneração final do seu passivo, sempre procurou ativamente empregos, sem prejuízo de que devido à sua idade, dificuldades físicas que tem, e a sua pouca qualificação profissional não ter efetivamente conseguido qualquer emprego, até este momento.
De todo o modo, mesmo que conseguisse um emprego, e uma vez que, na melhor das hipóteses, auferiria o valor equivalente a um salário mínimo, nada ficando assim para distribuir pelos seus credores, também nenhum prejuízo lhes causou, pelo que, como é hoje o entendimento dos Tribunais superiores, para situações semelhantes, e seguindo o parecer do A.I. e fiduciário que o acompanhou ao longo de todo o período de cessão, deve ser-lhe concedido o despacho final de exoneração do seu passivo, o que se requer, mais uma vez, a V. Excia.».
b) A 28.03.2024 o credor CC impugnou os factos do requerimento do insolvente (informando que o vê em cafés e shoppings), defendeu que este não juntou prova comprovativa dos mesmos e que se ganhasse o salário mínimo nacional haveria dinheiro a entregar à insolvência face ao rendimento fixado para a sua sobrevivência de apenas € 650, 00. 3.3.11. A 01.04.2024 o insolvente declarou «juntar nomes de algumas das várias empresas / potenciais empregadores que ao longo do período da exoneração procurou e tentou que o empregassem – doc. nº. 1 a 8.» (documentos estes com carimbos de empresas, com uma rubrica sobre as mesmas, aposta em folhas em branco). 3.3.12. A 16.04.2024 o Tribunal a quo ordenou «Notifique o fiduciário e os demais credores do teor das justificações apresentadas e, após, conclua, para prolação de decisão final de exoneração.», após o que:
a) O administrador da insolvência, a 24.04.2024, declarou:
«1. Por requerimento de 1 de Abril de 2024 o devedor juntou aos autos oito folhas onde apenas consta um carimbo e uma assinatura em cada uma dessas folhas, sem qualquer texto escrito ou sequer data, tendo indicado que ao longo do período de exoneração procurou emprego junto das mesmas;
2. Ora, no entendimento do signatário e salvo melhor opinião em contrário, um simples carimbo numa folha não comprova, por si só, a procura de emprego e muito menos que essa procura se reporte ao período de exoneração que decorreu entre Maio de 2020 e Abril de 2023. Face ao exposto, o signatário mantém o seu entendimento de que deve ser RECUSADO ao devedor o privilégio de Exoneração do Passivo Restante, conforme já exposto no parecer quanto à concessão deste privilégio junto aos autos em 8 de Fevereiro de 2024 (com a ref.ª ...72).».
b) O credor CC, a 02.05.2024, pediu a recusa da exoneração do passivo restante, declarando reiterar o que disse a 28.03.2024 e aderir à posição do Senhor Administrador. 4. A 14.05.2024 foi proferida decisão de recusa da exoneração do passivo restante («Assim, ao abrigo do disposto no artigo 244.º, n.º 1 e n.º 2 do CIRE, decide-se não conceder a exoneração de passivo restante ao insolvente.»), com base numa fundamentação pela qual, após um enquadramento legal, se fez a seguinte subsunção dos factos ao direito:
«Ora, no caso presente, o despacho que autorizou o período de cessão determinou a cessão do rendimento disponível determinado nos termos do artigo 239.º, n.º 3, do CIRE.
Nos presentes autos, foi fixado como rendimento indisponível excluído do âmbito da cessão, o valor mensal de €635. Para além disso, foi expressamente consignado que “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.”
Verifica-se, contudo, que ao longo dos três anos de cessão o insolvente manteve-se numa situação de desemprego, não apresentando qualquer comprovativo ou demonstração de uma procura diligente de profissão remunerada.
Para além disso, tendo sido notificado para juntar comprovativo da sua inscrição no centro de emprego, não juntou qualquer comprovativo, nem justificação para a não inscrição.
Percorrendo os autos, constata-se apenas que, por email datado de 20 de maio de 2021 (ref. ...98), endereçado pelo mandatário do insolvente ao fiduciário foi explicado que “Relativamente ao n/ cliente e insolvente AA o mesmo está sem emprego, no entanto devido à pandemia e aos problemas de saúde que o mesmo tem não estará inscrito no centro de emprego estando a viver da ajuda que os seus pais lhe prestam”, tendo o fiduciário insistido com a inscrição, referindo: “Deverá o S/ Constituinte, logo que possível, diligenciar pela inscrição junto do Centro de Emprego, uma vez que a procura de emprego é uma das obrigações a que os insolventes estão sujeitos, conforme o disposto no art.º 239.º, nº 4 do CIRE.”
Desde esse momento e até ao final do período de cessão, nada mais foi junto ou alegado pelo insolvente quanto à procura diligente de profissão ou quanto à realização de quaisquer concretas diligências para a obtenção de emprego.
Notificado para esclarecer a situação, o insolvente voltou a alegar que não juntou comprovativos que atestasse a procura efetiva de emprego por sofrer de uma depressão e se encontrar física e psicologicamente limitado. Posteriormente juntou uma lista de carimbos de empresas que alega constituírem “potenciais empregadores que ao longo do período da exoneração procurou e tentou que o empregassem”.
Ora, cumpre em primeiro lugar constatar que nenhuma das alegações se encontra sustentada por qualquer prova, ainda que indiciário. Nem a situação de doença se encontra instruída com qualquer suporte documental de natureza clínica, nem a procura de emprego tem qualquer comprovativo (sendo que a mera junção de carimbos de empresas não é apta a provar qualquer conduta, minimamente ativa ou diligente por parte do insolvente na busca de emprego).
Para além disso, constata-se que as linhas de argumentação se excluem mutuamente: se por um lado o insolvente afirma não ter procurado emprego em razão de sofrer de uma doença física e psicologicamente limitativa, por outro afirma que procurou que as referidas empresas o empregassem (note-se aliás, que alguns dos carimbos, cuja legibilidade não é total, aparecem repetidos, sem qualquer associação a nome, representante legal ou data).
Por tudo o exposto, é forçoso concluir que o insolvente incumpriu dois dos deveres que lhe são legalmente impostos, nos termos do art.º 239, n.º 4, alíneas b) e d), e que igualmente se encontravam expressamente consignados em sede de despacho inicial.
E tal como já se antecipou, um dos fundamentos para a recusa da exoneração do passivo restante é a violação dolosa ou com grave negligência dos deveres impostos nos termos do art.º 239, n.º 4 do CIRE.
Nos presentes autos, é forçoso concluir que o insolvente o fez de forma gravemente negligente, na medida em que, para além de se tratar de um dever legalmente previsto, expressamente consignado no despacho inicial, foi ainda objeto de uma insistência por parte do fiduciário, ainda no primeiro ano de cessão. Não tendo cumprido o que lhe era requerido pelo fiduciário – a mera inscrição no centro de emprego – o insolvente foi depois totalmente omissivo, durante três anos, quanto à prestação de qualquer informação ao fiduciário ou ao tribunal quanto a uma procura ativa de emprego.
Note-se ainda que tal inscrição no centro de emprego – que nos presentes autos não foi realizada – corresponderia ainda assim a um limiar mínimo de proatividade e não à previsão legal do legislador, correspondente a uma verdadeira postura proativa por parte do insolvente em procurar reunir os prossupostos para o já referido “fresh start”.
Assim, exemplifica a jurisprudência do Tribunal da Relação de Évora: “ (…)– Ac. T.R. Évora, 15-04-2021, Rel. Vítor Sequinho, Proc. 414/15.1T8OLH.E1, www.dgsi.pt
No mesmo sentido decidiu também já o Tribunal da Relação de Guimarães: «(…).» - Ac T. R. Guimarães, 05-11-2020, Rel. José Dias, Proc.1565/14.5TTBGMR.G1, www.dgsi.pt Por tudo o exposto, é forçoso concluir que o insolvente incumpriu de forma gravemente negligente dois dos deveres impostos, eximindo-se de forma reiterada e ao longo dos três anos a uma procura ativa de emprego remunerado e, consequentemente, mantendo-se omissivo de qualquer prestação de informações ao fiduciário e ao tribunal quanto a quaisquer diligências realizadas para a obtenção de emprego. Em suma, encontra-se preenchido o disposto no art.º 243, n.º 1, al. a) do artigo 243.º, com reporte ao artigo 239.º, n.º 4, alíneas b) e d), ambos do CIRE.». 5. O insolvente interpôs recurso de apelação da decisão de I-4 supra, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso versa sobre o despacho sob a referência n.º ...60 que decidiu não conceder a exoneração do passivo restante ao insolvente;
2. Sem que nada o justificasse, o fiduciário – nomeado apenas ao terminar o período de cessão de créditos e sem que nunca o fiduciário que acompanhou o processo tenha colocado em causa a concessão de tal benefício –, e o credor CC pugnaram pela recusa da exoneração do passivo restante;
3. Fundamentando que o Insolvente teria herdado um vasto património por sucessão hereditária de seu pai (ref.ª ...21), o que é absolutamente falso;
4. Por seu turno, fundamentou o fiduciário que o Insolvente teria incumprido as obrigações impostas durante o período de cessão, nomeadamente as alíneas b) e d) do artigo 239.º n.º 4 do CIRE: a procura diligente de profissão remunerada e a informação ao tribunal e ao fiduciário das diligências realizadas para a obtenção de emprego (ref.ª ...72), tese com a qual o Tribunal a quo veio a concordar, não concedendo ao insolvente a exoneração do passivo restante.
5.Não estão preenchidos os pressupostos necessários para que a recusa da exoneração do passivo restante tenha lugar.
6.O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 5708/16.6T8GMR.G1, cujo relator foi o Sr. Desembargador Fernando Barroso Cabanelas, dispõe “Com efeito, não basta a violação das obrigações impostas pelo artigo 239º, nº1, para considerar haver fundamento automático para recusa da exoneração do passivo. Ao invés, é imprescindível a tríplice verificação, portanto cumulativa, dos seguintes pressupostos: o referido elemento objetivo traduzido na violação de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artº 239; um nexo causal consistente na circunstância de dessa violação decorrer um prejuízo efetivo para a satisfação dos créditos da insolvência; e, por último, um elemento subjetivo traduzido na prática do referido comportamento inadimplente com dolo ou negligência grave”.
7. O despacho de recusa da exoneração do passivo restante não pode ser decretado automaticamente, dependendo da verificação de três pressupostos:
a. Um elemento objetivo, o Insolvente ter violadoalguma das obrigações decorrentes do artigo 239.ºCIRE.
b. Um elemento subjetivo, o Insolvente ter atuado comdolo ou negligência grave.
c. O nexo causal, a conduta violadora ter provocado umprejuízo efetivo para os credores.
8. A fundamentação do Tribunal a quo, focou-se, quase exclusivamente, no primeiro destes pressupostos, o elemento objetivo;
9. Não é possível defender que o Insolvente atuou com culpa ou sequer negligência grave, ainda para mais se atendermos que o período de cessão de créditos decorreu em plena pandemia com todas as dificuldades que para uma pessoa doente, como é o recorrente, acarretou;
10. Sendo igualmente indefensável que tal conduta tenha lesado de forma relevante os interesses do credor, que nenhum prejuízo sofreu. Atenta a falta de qualificação do insolvente, o melhor que conseguiria auferir seria um montante equivalente ao salário mínimo, o que nenhum valor traria ao seu credor (o qual como alega também nenhum prejuízo sofre com a concessão da exoneração do passivo do recorrente);
11. O insolvente está a passar um longo período com uma doença do foro psíquico, concretamente, uma depressão. Doença que, se seguirmos o critério de um homem médio o impede de procurar diligentemente, uma vez que se encontra fisicamente impedido, e tudo a ocorrer também no período de plena pandemia.
12. Contudo, compreendendo o Insolvente a necessidade de demonstrar ao fiduciário e ao Tribunal que se encontrava realmente dedicado nos deveres que lhe foram impostos, foi realizando o esforço heroico de se deslocar a essas entrevistas.
13. O que provou através da junção de carimbos das empresas a que se deslocou, todos assinados pelas possíveis entidades empregadoras.
14. O Tribunal a quo afirmou que estas linhas de argumentação se excluem mutuamente, referindo, “se por um lado o insolvente afirma não ter procurado emprego em razão de sofrer de uma doença física e psicologicamente limitativa, por outro afirma que procurou que as referidas empresas o empregassem”.
15. O douto Tribunal a quo, certamente por lapso, fez uma errada interpretação das palavras do Insolvente, não existindo qualquer contradição.
16. Como se pode verificar no requerimento do Insolvente (ref.ª n.º ...43), apesar das suas limitações decorrentes da referida depressão, “sempre procurou ativamente empregos”, nunca tendo o Insolvente afirmado que não se encontrava à procura de emprego devido à sua doença, mas apenas referiu que esta limita muito a sua capacidade de desempenhar a tarefa de procurar emprego, inexistindo qualquer contradição na argumentação do Insolvente.
17. Não obstante, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão com base nesta suposta contradição, que é inexistente, sendo que, ainda que por mero lapso, extrapolou o sentido das palavras do Insolvente…
18. O esforço que o Insolvente realizou para, apesar do seu estado de saúde, se apresentar às entrevistas de trabalho, terá necessariamente de ser considerado uma procura de profissão. Uma vez que, atenta a sua situação, o esforço desempenhado pelo Insolvente foi e continua a ser muito superior ao do homem médio, ainda que, porventura, se traduza em menos tentativas.
19. Por outro lado, o Tribunal a quo afirma “Nos presentes autos, é forçoso concluir que o insolvente o fez de forma gravemente negligente, na medida em que, para além de se tratar de um dever legalmente previsto, expressamente consignado no despacho inicial, foi ainda objeto de uma insistência por parte do fiduciário, ainda no primeiro ano de cessão. Não tendo cumprido o que lhe era requerido pelo fiduciário – a mera inscrição no centro de emprego – o insolvente foi depois totalmente omissivo, durante três anos, quanto à prestação de qualquer informação ao fiduciário ou ao tribunal quanto a uma procura ativa de emprego”.
20. O Tribunal não valora na sua decisão a concreta situação do Insolvente, que, como se procurou demonstrar, se encontra debilitado, nem o período de pandemia em que se vivia e que muito limitava os serviços públicos.
21. Em vez de valorar a concreta situação do Insolvente, o Tribunal estabelece como “limiar mínimo de proatividade” a “inscrição no centro de emprego”, de nada valendo o facto de o Insolvente ter logrado deslocar-se a diversas entrevistas de emprego, apesar do seu estado de saúde.
22. Utilizando a mesma bitola para comparar o esforço deste homem que se encontra deprimido com o de tantos outros que, felizmente, não se encontram nesse estado.
23. Por fim, entendemos que o Tribunal a quo não fez qualquer referência ao nexo de causalidade, que, como decorre da jurisprudência desta Relação, é um pressuposto necessário para a recusa da exoneração do passivo restante e que faz incorrer o próprio despacho no vicio da nulidade, por falta de fundamentação.
24. O despacho não menciona sequer qualquer dano efetivo que as alegadas violações das obrigações por parte do Insolvente tenham causado no Credor.
25. E a verdade é que sempre seria impossível demonstrar qualquer prejuízo. Como referiu o Insolvente (ref.ª ...43) “De todo o modo, mesmo que conseguisse um emprego, e uma vez que, na melhor das hipóteses, auferiria o valor equivalente a um salário mínimo, nada ficando assim para distribuir pelos seus credores, também nenhum prejuízo lhes causou (…)”.
26. Por todo o exposto, andou mal o Tribunal a quo ao decidir não conceder ao Insolvente a exoneração do passivo restante, que, além do mais violou por erro de interpretação o disposto nos artºs. 239º. do CIRE, pelo que a decisão em causa deverá ser revogada e substituída por uma que lhe conceda a exoneração do passivo restante, pois só assim se fará a tão necessária Justiça!». 6. O credor CC respondeu ao recurso, defendendo a decisão recorrida. 7. O recurso foi admitido a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo da decisão recorrida.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do Código de Processo Civil, doravante CPC.
Definem-se como questões a decidir, por ordem de precedência lógica: 1. Se a decisão recorrida encerra de nulidade por falta de fundamentação (conclusão 23). 2. Se a decisão recorrida enferma de erro de direito, por não estarem verificados os requisitos legais para a recusa da exoneração do passivo restante (enunciados pelo recorrente/insolvente: de violação da obrigação de procura ativa de emprego, face à procura de emprego documentada; de imputação da mesma a titulo de dolo ou negligência grave, face às doenças do insolvente e à pandemia; do desencadeamento pela mesma de um prejuízo para os credores da insolvência, nomeadamente face ao valor que poderia o insolvente receber de salário) (conclusões 5 a 22, 24 a 26).
III. Fundamentação:
1. Matéria de facto relevante para apreciar a decisão recorrida:
Julgam-se provados os atos processuais relatados em I supra, face à força probatória dos atos eletrónicos (art.132º do CPC; Portarias nº280/13, de 26.08. e 209/17 de 13.07, nas redações atualizadas).
2. Apreciação jurídica das questões a decidir: 2.1. Arguição de nulidade da decisão: 2.1.1. Enunciação dos fundamentos do recurso do recorrente:
O recorrente defendeu que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação, por entender que a mesma não fez referência à verificação do nexo de causalidade entre o facto que imputa ao recorrente e o dano/prejuízo efetivo para os credores (conclusão 23). 2.1.2. Regime jurídico aplicável:
A sentença é nula quando «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.», nos termos do art.615º/1-b) do CPC.
Esta falta de especificação de fundamentos refere-se aos deveres de fundamentação previstos no regime legal, nos quais: na norma geral do art.154º do CPC define-se, sob a epígrafe «Dever de fundamentar a decisão», que «1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.»; na norma especial do art.607º/3 a 4 do CPC, aplicável às sentenças, define-se que, após o relatório e a definição das questões a decidir, segue-se a sua fundamentação de facto e de direito- «3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. 4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.».
A Doutrina e a Jurisprudência têm entendido, de forma não controversa: que esta falta de fundamentação que conduz à nulidade deve ser absoluta e não apenas deficiente ou medíocre[i]; que aplica-se sobretudo à falta de fundamentação de direito, uma vez que a insuficiência de fundamentação da decisão da matéria de facto pode ser suprida nos termos do regime legal expresso do art.662º/1-d) do CPC; que esta falta de fundamentação não se confunde com um erro de julgamento, quer seja erro de facto (invocável nos termos do art.640º do CPC ou art.663º/2 do CPC, em referência ao art.607º/4 do CPC), quer se trate de erro de direito, invocável nos termos do art.639º do CPC, erros esses a apreciar no mérito dos recursos. 2.1.3.Apreciação da situação em análise:
Examinando a decisão recorrida (em particular na fundamentação final transcrita em I-4 supra), em confronto com o fundamento de recurso (referido em III- 2.1.1. supra, em referência a I-5 supra) e o regime de direito aplicável (referido em III-2.1.2. supra), verifica-se que a decisão recorrida não padece de qualquer vício de nulidade, nos termos do art.615º/1-b) do CPC.
Por um lado, a decisão dispõe de fundamentação. Assim, independentemente do acerto ou do erro da mesma na aplicação do direito (apenas apreciável como erro de julgamento nos termos do art.639º do CPC), não é possível considerar que a decisão não tem fundamentação, muito menos de forma absoluta.
Por outro lado, a prolação de uma decisão de recusa de exoneração do passivo restante ao abrigo do art.243º/1-a), ex vi do art.244º/2 do CIRE, sem a apreciação da verificação do requisito do nexo de causalidade exigido pela norma, ou sem a demonstração da sua ocorrência (através de factos provados ou presumidos judicialmente, nos termos do art.351º do CC), a existir, não corresponde a fundamento de nulidade do art.615º/1-b) do CPC mas a erro de direito, a apreciar nos termos do art.639º do CPC, ex vi do art.17º do CIRE.
Pelo exposto, julga-se improcedente a arguição de nulidade da sentença recorrida. 2.2. Arguição de erro da decisão recorrida: 2.2.1. Enunciação dos fundamentos da decisão e do recurso do recorrente:
A sentença recorrida fundamentou a recusa da exoneração do passivo restante (art.243º/1-a), ex vi do art.244º do CIRE) na violação das obrigações do art.239º/4-b) e d) do CIRE (de procurar diligentemente uma profissão quando estiver desempregado e de informar o fiduciário e o tribunal das diligências realizadas para a obtenção de emprego, quando lhe for solicitado), de forma gravemente negligente, por entender: que estas obrigações estavam transcritas no despacho liminar de admissão da exoneração do passivo restante; que o fiduciário, na sequência da explicação do patrono do insolvente de 20.05.2021, advertiu-o que deveria fazer a inscrição no centro de emprego; que, desde esse momento até ao termo da cessão, nada foi juntou ou alegado pelo insolvente quanto à procura diligente de profissão ou quanto à realização de diligências concretas para obtenção de emprego (nem no liminar mínimo de proatividade da inscrição em centro de emprego pedida pelo fiduciário); que o insolvente, notificado para esclarecer a situação, invocou o sofrimento de doenças (que não documentou) e, após, juntou uma lista de carimbos repetidos de empresas, junto das quais, alegou, que procurou que o empregassem (não totalmente legíveis, sem data e sem associação dos mesmos a representante legal), declarações estas que, para além da falta de prova são contraditórias entre si.
O recorrente defendeu que a decisão recorrida é errada, por não estarem verificados os requisitos legais de que depende a recusa da exoneração do passivo restante, por considerar: que não há violação da obrigação de procura ativa de emprego, face à procura de emprego por si documentada (com carimbos de entidade patronal); que a falta invocada pelo tribunal não seria imputável título de dolo ou de negligência grave, face às doenças do insolvente e à pandemia; que essa falta não teria desencadeado um prejuízo para os credores da insolvência, nomeadamente face ao valor que poderia o insolvente receber de salário caso trabalhasse (conclusões 5 a 22, 24 a 26). 2.2.2. Regime jurídico aplicável: 2.2.2.1.Exoneração do passivo restante e obrigações do devedor após o despacho liminar:
O incidente de exoneração de passivo restante, regulado nos arts.235º ss do CIRE, foi introduzido pelo DL nº53/2004, de 18.03., que aprovou o CIRE. O preambulo deste diploma explica esta introdução:
«No tratamento dispensado às pessoas singulares, destacam-se os regimes da exoneração do passivo restante e do plano de pagamentos.
45 - O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.» (bold aposto por esta Relação).
Neste regime, e neste contexto, prevê-se que apósproferido despacho liminar de admissão do incidente de exoneração do passivo restante, o insolvente fica obrigado, no período de cessão (5 anos quando foi proferido o despacho liminar destes autos, mas reduzido a 3 anos pela entrada em vigor das alterações aos arts.235º ss do CIRE, introduzidas pela Lei nº9/2022, de 11.01, face ao arr.10º/3 das mesmas ), e com vista a obter o beneficio da exoneração de pagamento das dívidas não pagas: a entregar ao fiduciário o rendimento disponível que venha a auferir, deduzido daquele que é indisponível (art.239º/2 e 3) do CIRE); a cumprir deveres acessórios de conduta prescritos por lei: «a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.» (art.239º/4-a) a e) do CIRE). 2.2.2.2. Cessação antecipada e despacho final da exoneração após o período de cessão: A. Na pendência do período de cessão, o CIRE prevê a possibilidade de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, nos seguintes termos: « 1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respetiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência. ». Por um lado, esta norma prevê que pode e deve ser recusada a exoneração do passivo restante quando ocorrer algum dos fundamentos previstos nas als. a), b) ou c) do nº1 do art.243º do CIRE:
a)Quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º do CIRE, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;» (obrigações essas expostas em III- 2.1. supra).
b)Quando se apurar que existe alguma das circunstâncias que, nos termos das als. b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, teriam levado ao indeferimento liminar do requerimento de exoneração («1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; (…) e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;», normas estas do Código Penal respeitantes, nos arts.227º, 227º-A, 228º e 229º, aos crimes de Insolvência Dolosa, de Frustração de Créditos, Insolvência Negligente, Favorecimento de Credores), se a referida circunstância apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente.
c) Quando a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Esta decisão, todavia, apenas pode ser tomada: a requerimento de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência (se estiver ainda em funções) ou do fiduciário (caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor), apenas apresentável nos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, requerimento no qual o requerente deve oferecer logo a respetiva prova; e após audiência contraditória o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência (que não forem requerentes), no caso dos fundamentos do art.243º/1-a) e b) do CIRE ( (art.243º/1, 2 e 3- 1ª parte do CIRE). Por outro lado, a referida norma prevê ainda que deve ser sempre recusada ao devedor/insolvente a exoneração do passivo restante quando, no contexto de pendência do incidente em curso de cessação antecipada de exoneração do passivo restante pelas razões do art.243º/1-a) ou b) do CIRE, o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las (obrigações estas que, por sua vez, estão em coerência com a obrigação de informação prevista no art.239º/4-d)-2ª parte do CIRE). B. No termo do período de cessão, o art.244º do CIRE prevê que «1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor. 2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.».
Assim, decorrido o período de cessão, o Juiz, após audiência contraditória, pode, numa das três decisões possíveis (concessão, prorrogação do período de cessão ou recusa de concessão), recusar a concessão da exoneração do passivo restante, mediante a verificação dos mesmos requisitos de que teria dependido a sua cessação antecipada, prevendo-se na atual redação:
Para esta decisão de recusa de exoneração, Ana Prata defende que apenas podem ser utilizados os elementos que já constem do processo:
«Chegado o procedimento a este momento, a decisão será em princípio tomada no sentido da concessão da exoneração do passivo restante do devedor. Só assim não será se constar do processo algum elemento que justifique decisão em sentido contrário; outros factos conhecidos do fiduciário ou de algum credor devem ser trazidos ao processo em momento e termos diversos, de acordo com o artigo 243º, com vista à cessação antecipada do procedimento.
Assim, neste momento final, no sentido de uma decisão de não concessão apenas relevam factos já constantes do processo, podendo o juiz decidir oficiosamente com base nesses elementos, ou em factos, trazidos pelo fiduciário ou pelos credores, que tenham sido conhecidos por estes até há menos de um ano, desde que seja imediatamente oferecida toda a prova, sem necessidade de diligências adicionais (art.243º, nº2).»[ii] (prazo este referido em relação a redação então vigente, anterior à introduzida pela Lei nº9/2022, de 11.01, Lei esta que reduziu o prazo do art.243º/2 do CIRE de 1 ano para 6 meses). 2.2.2.3. Aplicação do regime legal referido em III-2.2.- 2.2.2.2. supra: A. Repartição geral do ónus de alegação e de prova (regra e inversão):
O CIRE, como o regime legal de 2.1. ilustra, não fez depender a concessão da exoneração do passivo restante, em primeira linha, do ónus de alegação e de prova pelo devedor/insolvente dos factos que ilustrem o cumprimento dos deveres que ficou obrigado a cumprir no período de cessão, nos termos do art.239º/2 a 4 do CIRE, como se tratassem de factos constitutivos do direito à obtenção de um fresh start através da exoneração do passivo restante, nos termos dos arts.5º/1 do CPC e 342º/1 do CC, como o poderia ter feito.
O CIRE, pelo contrário, optou por repartir o ónus de prova em referência ao interesse na recusa da exoneração do passivo restante (embora com um estabelecimento de um mecanismo moderador deste ónus e responsabilizador do insolvente).
Por um lado, onerou o credor, o administrador ou o fiduciário (com poderes de fiscalização atribuídos pela comissão de credores) com o ónus de alegar e provar os factos impeditivos da concessão de exoneração do passivo restante, determinantes: da sua cessação antecipada (art.243º do CIRE); ou da recusa de concessão da exoneração do passivo restante (art.244º, em referência ao art.243º, do CIRE).
Neste sentido pode ver-se, entre a Doutrina e Jurisprudência: Marco Carvalho Gonçalves refere «recai sobre o fiduciário e/ou sobre os credores o ónus da alegação e da prova do incumprimento culposo, pelo devedor, das obrigações que sobre ele impendiam para que pudesse beneficiar da exoneração do passivo restante, atenta a circunstância de se tratarem de factos impeditivos desse direito»[iii]; o Ac. RG de 05.11.2020, proferido no processo nº1565/14.5TTBGMR.G1, relatado por José Dias, sumariou «1. O ónus da alegação e da prova da verificação dos factos legais de recusa da exoneração do passivo restante (que são os mesmos que fundamentam a cessação antecipada do procedimento de exoneração, taxativamente enunciados no art. 243º, n.º 1 do CIRE), impendem sobre o fiduciário e os credores da insolvência, aquando da sua notificação para se pronunciarem sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º, n.º 1 do CIRE) ou, no silêncio destes, é o tribunal que terá de coligir elementos de prova que lhe permitam concluir pela prova de facticidade da qual decorra encontrarem-se preenchidos os requisitos legais de recusa da exoneração.»; o Ac. RP de 07.06.2021, proferido no processo nº930/15.5T8VNG.P1, relatado por Fernanda Almeida, sumariou «(…). II – Para recusar a exoneração com o fundamento referido I, nos termos do art. 244.º CIRE, deve o tribunal verificar se o devedor incumpriu a obrigação de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira ou a obrigação de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património; se o fez com dolo ou negligência grave; se assim prejudicou a satisfação dos créditos sobre a insolvência. III – Tratando-se de factos impeditivos do direito do devedor à dita exoneração, é sobre o fiduciário ou sobre os credores requerentes de tal recusa que recai o ónus de alegação fundamentada e prova da violação e circunstancialismo exigidos referidos em II. (…)»); o Ac. RL de 11.07.2024, relatado por Amélia Sofia Rebelo, proferido no processo nº3064/19.0T8BRR.L1-1, sumariou «II–Os pressupostos da cessação antecipada e da recusa da concessão da exoneração previstos pelos arts. 243º e 244º constituem requisitos negativos por impeditivos da concessão da exoneração, pelo que esta será concedida, exceto se dos autos resultarem elementos de facto suscetíveis de preencherem os pressupostos para a sua recusa, recaindo sobre o interessado na recusa o ónus de alegar e demonstrar os respetivos pressupostos.».
Por outro lado, o CIRE moderou este difícil ónus que impôs ao credor, administrador ou fiduciário, através da previsão: da possibilidade do Tribunal poder pedir esclarecimentos concretos ao insolvente sobre os termos de cumprimento dos deveres de que estava incumbido, ou de o convocar para audiência, no âmbito das diligências de apuramento das invocadas violações do art.243º/1-a) e b) do CIRE (em coerência também com o previsto no art.239º/4-d)-2ª parte do CIRE); da definição de um ónus do devedor/insolvente, neste caso, prestar os esclarecimentos que lhe forem pedidos ou comparecer à convocatória, sob pena de, não o fazendo, ser recusada a exoneração do passivo restante, nos termos do art.243º/3 do CIRE.
Sobre a recusa de exoneração neste caso, pode ver-se, nomeadamente: Luís Carvalho Fernandes e João Labareda refere que «constitui, quando se verifiquem estas situações, uma sanção para o comportamento indevido do devedor.»[iv]; o Ac. RL de 24.01.2024, proferido no processo nº2821/15.0T8BRR.L1-1, relatado por Fátima Reis Silva, sumariou «4 - A segunda parte do nº 3 do art.º 243º do CIRE constitui uma causa autónoma de cessação antecipada e de recusa de exoneração que não se subsume aos requisitos previstos no nº1 do mesmo preceito. Trata-se de uma sanção para o exonerando que se coloca em situação de não permitir sequer que se averiguem os referidos requisitos: violação das obrigações dolosa ou cometida com negligência grave e causa de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.»; o Ac. RL de 11.07.2024, relatado por Amélia Sofia Rebelo, proferido no processo nº3064/19.0T8BRR.L1-1, concluiu no sumário, a este propósito, que «III–Ciente da dificuldade de prova dos pressupostos do incumprimento das obrigações idóneo a fundamentar a recusa, a lei estabelece sobre o devedor o ónus de comprovar o seu cumprimento através da prestação das informações que concretamente e para esse efeito lhe sejam solicitadas nos termos do art, 243º, nº 3. IV–O incumprimento desse específico dever de informação, e sem motivo razoável que o justifique, constitui fundamento de recusa da exoneração que, nesse caso, prescinde da demonstração do prejuízo para os credores, que se pode considerar como legal e implicitamente presumido, e que mais não consubstancia do que uma situação de inversão do ónus da prova, nos termos previstos pelo art. 344º, nº 2 do Código Civil.». B. Concretização da repartição do ónus de alegação e prova:
No caso particular de ser pedida a recusa da exoneração do passivo restante de acordo com o fundamento previsto na al. a) do nº1 do art.243º do CIRE:
a) Cabe àquele que pedir a recusa da concessão da exoneração a alegação e a prova: dos factos que integrem o incumprimento dos deveres prescritos no art.239º do CIRE; dos factos passíveis de imputar o incumprimento em causa a ato doloso ou com grave negligência do insolvente, sem prejuízo da possibilidade de presunção judicial dos mesmos pelos demais factos provados (art.351º do CC); dos factos integrativos do nexo de causalidade, que permitissem concluir que, devido aos factos violadores dos deveres, ocorreu um prejuízo dos créditos sobre a insolvência.
b) Cabe ao devedor/insolvente: b1) Exercer o contraditório de 1 supra, no qual pode invocar, nomeadamente, que o requerimento de recusa antecipada foi apresentado depois de extinto o prazo de 6 meses desde o conhecimento ou do dever de conhecimento do fundamento (prazo este que o Ac. RC de 29.09.2022, proferido no processo nº4832/19.8T8CBR.C1, relatado por Paulo Correia, qualificou como prazo de caducidade nos termos dos arts.298º/2, 328º ss e 333º do CC); produzir contraprova da prova produzida, nos termos do art.346º do CC. b2) Prestar a informação concreta ou documento ou comparecer a audiência, caso tenha sido notificado para tal nos termos do art.243º/3 do CIRE (nomeadamente a requerimento do requerente da recusa de exoneração), sob pena de não o fazendo sem motivo razoável, ser-lhe imediatamente recusada a exoneração.
A jurisprudência, em situações em que a recusa de exoneração do passivo restante foi pedida com fundamento na inobservância das obrigações previstas no art.239º/4-b) e/ou d) do CIRE («b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; (…) d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança (…)de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;»), tem sublinhado, nomeadamente:
__ A necessidade de apreciar a invocada inobservância, em referência às características pessoais e concretas do insolvente. A este propósito, pode ver-se o Ac. RG de 09.11.2023, proferido no processo nº5712/19.2T8VNF.G1, relatado por Maria João Matos, onde se defendeu: a necessidade de definir o grau da obrigação de obtenção de rendimento face à situação concreta do devedor/insolvente («Precisa-se, porém, que na concreta extensão e no concreto conteúdo desta obrigação de aquisição de rendimento há que ter em conta as circunstâncias pessoais do devedor, sejam as pertinentes à sua pessoa (v.g. idade, estado de saúde, habilitações académicas, formação profissional), sejam as pertinentes ao seu agregado familiar (v.g. existência e composição do mesmo).»); a oneração do requerente da recusa com o ónus de alegação e prova dos factos que tornem exigível a obtenção de rendimento de trabalho quando os factos provados e notórios forem diminuidores desse grau de exigibilidade - «Acresce, e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, que no caso dos autos importa atender à idade da Insolvente mulher (hoje, com 60 anos de idade), às suas habilitações académicas (inferiores ao hoje obrigatório 12.º ano de escolaridade), à sua formação profissional (cabeleireira, sector onde particularmente se assistiu a uma diminuição da procura de serviços com, e desde, a pandemia de Covid 19, e em que os preços dos serviços prestados têm descido, pelo aumento da oferta, nomeadamente mercê da imigração destes profissionais) e ao apoio que tem de prestar ao seu filho (portador de uma incapacidade de 68%).| Assim, se é facto público e notório a falta de mão de obra no nosso país, importa que se dilucide em que particulares sectores; e que se demonstre que a Insolvente mulher tinha aptidão para a colmatar (já que, em muito deles, ser-lhe-iam exigidas competências - nomeadamente, tecnológicas e informáticas - que muito dificilmente possuiria, pela idade e pela formação escolar que previsivelmente lhe terá sido ministrada).».
__ A necessidade do requerente da recusa provar os três requisitos do art.243º/2-a) do CIRE. No Ac. RG de 05.11.2020, proferido no processo nº1565/14.5TTBGMR.G1, relatado por José Dias, apesar de se ter entendido que a procura ativa de trabalho não se basta com a inscrição no centro de emprego, considerou todavia: «3- Para que se recuse a exoneração do passivo restante com fundamento no incumprimento pelo devedor da obrigação de procura diligente de emprego é necessário que o fiduciário ou os credores da insolvência aleguem e provem que: a) o devedor desempregado não procurou ativamente profissão remunerada durante o período de cessão; b) o incumprimento dessa obrigação é imputável ao devedor a título de dolo ou de negligência grave; e c) que em consequência desse incumprimento resultou prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, ou que, no silêncio do fiduciário ou dos credores da insolvência, o tribunal recolhe elementos de prova que lhe permitam concluir pela verificação desses três requisitos legais cumulativos para recusar a exoneração».
__ A insuficiência da simples falta de inscrição no IEFP para preencher os três requisitos do art.243º/2-a) do CIRE, em referência ao art.239º/4-b) e d) do CIRE, e o valor de informações prestadas sobre a procura ativa de trabalho e documentos da Autoridade Tributária e Segurança Social:
*
No Ac. RG de 30.01.2020, proferido no processo nº644/14.3TBVVD.G2, relatado por Ana Cristina Duarte, foi considerado:
«são requisitos dessa recusa a violação dolosa ou com negligência grave dos deveres do devedor, por um lado, e o consequente prejuízo para os credores, por outro.
Porém, no caso presente, o despacho recorrido, além de se limitar genérica e vagamente, a fundamentar a cessação antecipada nas informações prestadas pela Srª Fiduciária relativas à não inscrição do devedor no IEFP e na previsão normativa da alínea b), do nº 4, do artº239º, nada consubstancia quanto aos requisitos de actuação dolosa ou gravemente negligente impostos pelo apontado artº 243º, nº 1, al. a), do CIRE, nem quanto ao prejuízo para os credores que possa resultar da atuação do devedor.
Não basta a simples verificação de violação dos deveres impostos ao devedor no decurso do período de exoneração do passivo restante; antes tal incumprimento tem de ser doloso ou com grave negligência –neste sentido veja-se, entre outros, o Acórdão deste Tribunal da Relação de 04/05/2017, processo n.º 3931/10.6TBBCL.G1 (António Sobrinho), inwww.dgsi.pt.
Ora, a factologia apurada nos autos, não permite concluir que o devedor tenha incumprido de forma dolosa ou gravemente negligente aquela obrigação. Veja-se que o devedor já se encontrava desempregado à data em que foi proferido o despacho liminar de exoneração do passivo restante e tal facto não obstou à prolação desse despacho. Por outro lado, a requerente da cessação antecipada não faz qualquer prova da atuação dolosa ou gravemente negligente e, muito menos, do prejuízo para os credores, considerando que o devedor se encontra exactamente nas mesmas circunstâncias que conduziram à exoneração, sendo certo que a Sra. Administradora (actual fiduciária) deu parecer positivo à exoneração. Por outro lado, não decorre da simples falta de inscrição no IEFP, que o devedor não tenha procurado emprego ou que tenha recusado desrazoavelmente algum emprego para que seja apto. Nenhum destes factos foi alegado, quando é certo que é ao requerente da cessação antecipada que cabe alegar e oferecer a prova correspondente – artigo 243.º, n.º 2 do CIRE.».
* No Ac. RG de 15.02.2024, proferido no processo nº180/18.9T8MDR.G2 e relatado pela aqui relatora, foi sumariado:
«Tendo sido proferida decisão que julgou assente que o insolvente tem a inscrição no IEFP anulada desde 2016 e que não procedeu a nova inscrição depois, esta omissão é insuficiente para preencher o ónus de alegação e de prova do credor da violação do art. 239º/4-b) do CIRE, ex vi do art.243º/1-a) e do art.244º do CIRE:
a) Por a falta de inscrição do Centro de Emprego, depois da anulação da inscrição em 2016, não permitir: provar ou presumir judicialmente que o insolvente não realizou quaisquer outras diligências de procura ativa de emprego, que afirmou ter realizado, numa omissão que lhe fosse imputável a título de dolo ou negligência grave e que causasse prejuízo à insolvência; considerar, ainda que se considerasse isoladamente como uma omissão de diligência gravemente negligente, que esta causou um prejuízo à insolvência, por o insolvente estar desempregado desde 2011, a anulação da inscrição no Centro de Emprego ter ocorrido em 2016, datas estas anteriores à declaração da insolvência.
b) Por a falta de pedido do credor de notificação do insolvente para proceder ao esclarecimento sobre as diligências concretas por si realizadas para procurar emprego, como poderia ter feito, e a falta de ordem do Tribunal nesse sentido, não permitir equacionar: nem uma recusa do insolvente de prestação da informação para que fosse notificado, em moderação da dificuldade do ónus de prova do credor; nem, consequentemente, a operância da sanção da recusa da exoneração com base nesse fundamento, nos termos do art.243º/3 do CIRE.».
*
No Ac. RL de 11.07.2024, proferido no processo nº 3064/19.0T8BRR.L1-1, relatado por Amélia Sofia Rebelo, foi considerado e sumariado:
«V– O que resulta das als. a) e d) do nº 4 do art. 239º do CIRE é que, por iniciativa ou mote próprio do devedor, este só está onerado a informar dos rendimentos auferidos, da mudança de domicílio e de condições de emprego, pelo que óbvio é que esse dever de informação (por iniciativa do devedor) só existe quando aufere rendimentos, muda de domicílio ou de condições de trabalho. VI–Outras informações pertinentes ao período de cessão só são devidas prestar se e quando solicitadas pelo fiduciário ou pelo tribunal. VII–As declarações/informações de ausência de rendimentos do devedor certificadas pela Autoridade Tributária e pela Segurança Social são idóneas a documentar esse facto, recaindo sobre o fiduciário e sobre os credores o ónus de alegar e provar que, apesar de não declarados ao Estado, o devedor auferiu rendimentos durante o período de cessão. VIII–A falta de inscrição no Centro de Emprego (ou ausência de manutenção dessa inscrição) não permite sem mais presumir que o devedor, que na Segurança Social e na Autoridade Tributária consta sem rendimentos, não cumpriu o ónus de procurar exercer atividade remunerada, já que a procura ativa de emprego também é demonstrada por outras vias, como por exemplo, comprovativo de envio de candidaturas espontâneas e resposta a anúncios de emprego. IX–Demonstrada a ausência de procura ativa de emprego pelo devedor, mais se impõe demonstrar que por isso prejudicou a satisfação dos créditos sobre a insolvência, o que impõe demonstrar, pelo menos com um juízo de forte probabilidade, que se assim se dispusesse teria granjeado uma atividade remunerada e que, granjeando-a, esta lhe permitiria auferir rendimento de valor superior ao fixado como o necessário à sua subsistência e do respetivo agregado familiar e/ou dos que de si legalmente dependem.». C. Proteção de confiança e segurança jurídica:
A aplicação do regime legal exposto, lido de acordo com os princípios da tutela da confiança e da segurança jurídica que os Tribunais devem proteger através dos processos judiciais (arts. 2º, 18º, 20º, 202º ss da Constituição da República Portuguesa; 8º do CPC, ex vi do art.17º do CIRE; art.227º do CC, ex vi do art.295º do CC), torna também exigível que: na tramitação do incidente de recusa de exoneração do passivo restante não sejam praticados atos contraditórios entre si; as faltas do insolvente, tal como os pedidos de esclarecimentos e de comprovação dos atos dirigidos ao mesmo, sejam feitas de forma tempestiva, coerente e consequente. 2.2.3. Apreciação da situação em análise:
A decisão recorrida, como se referiu em III- 2.2.1. supra, recusou a exoneração do passivo restante, nos termos do art.243º/1-a), ex vi do art.244º do CIRE, por entender que o insolvente violou com negligência as obrigações do art.239º/4-b) e d) do CIRE, nas quais consta, no que aqui releva:
a) A obrigação do insolvente exercer uma profissão remunerada e, em caso de desemprego, de procurar ativamente tal profissão (na al. b) do nº4 do art.239º do CIRE).
b) A obrigação do insolvente informar o fiduciário e o tribunal, em 10 dias, das diligências realizadas para obtenção de emprego, quando lhe forem solicitadas (al. d) do nº4 do art.239º do CIRE).
Apesar destas obrigações que cabia ao insolvente observar no período de cessão constarem efetivamente da fundamentação de direito do despacho liminar de admissão da exoneração do passivo restante de 18.05.2020, notificado ao insolvente e que este tinha obrigação de conhecer (conforme o Tribunal a quo referiu na decisão recorrida), importa apreciar se os atos processuais provados (III-1, em referência a I supra), lidos de acordo com regime de direito aplicável (III-2.2.2. supra), permitem recusar a exoneração do passivo restante, nos termos do art.243º/1-a), ex vi do art.244º/2 do CIRE, em referência ao art.239º/4-b) e d) do CIRE. 2.2.3.1. Numa primeira abordagem, apreciar-se-ão os atos e as omissões da pendência do período de cessão de 3 anos: Por um lado, os atos processuais documentam, efetivamente, uma inobservância do insolvente duma diligência aconselhada pelo fiduciário:
a) O fiduciário, nas diligências com vista à apresentação do relatório do 1º relatório do período de cessão, convidou o insolvente, por email de 09.06.2021 remetido ao seu patrono, a diligenciar pela inscrição no centro de emprego e a demonstrar a mesma nos autos.
b) O insolvente não juntou aos autos, por sua iniciativa, qualquer documento comprovativo de satisfação desta diligência de inscrição no Centro de Emprego. Por outro lado, porém, os atos processuais provados demonstram também que a omissão do insolvente juntar aos autos o documento referido no email de 09.06.2021 não desencadeou qualquer iniciativa processual das partes até maio de 2023 e os atos processuais praticados no processo são adequados a poder presumir-se que a falta fora relevada. De facto:
a) As partes com legitimidade para pedir a recusa antecipada da exoneração do passivo restante nos termos do art.243º do CIRE (o administrador/ fiduciário e os credores): a1) Não formularam qualquer pedido de recusa de exoneração do passivo restante, em particular, com base na falta de demonstração da diligência concreta de inscrição no Centro de Emprego sugerida pelo fiduciário ao patrono do insolvente a 09.05.2021, ou na falta geral de procura ativa de emprego, nos termos do art.243º/1-a) e 2 do CIRE, em referência ao art.239º/4-b) e d) do CIRE. a2) Não pediram, nesse contexto, a notificação do insolvente para prestar informações concretas sobre as diligências realizadas para a procura de emprego e/ou para demonstrar a inscrição no Centro de Emprego indicada pelo fiduciário a 09.06.2021, nos termos e com as advertências de recusa da exoneração por falta de colaboração, nos termos do art.243º/2 e 3 do CIRE.
b) O fiduciário, apesar de conhecer o seu email de 09.05.2021 e a falta de demonstração nos autos da sua satisfação: não voltou a pedir ao insolvente a informação ou o comprovativo da satisfação desta orientação nos dois anos subsequentes de 2022 e de 2023 (como atestam não apenas os relatórios de 27.07.2022 e de 05.07.2023, mas também os emails juntos com os mesmos- I- 3.2. e 3.3. supra, nos quais o documento não foi pedido); declarou mesmo, findo o período de cessão de 3 anos, que o insolvente cumpriu os deveres que estava obrigado (em particular por lhe haver apresentado os comprovativos de falta de rendimentos, através de declarações do ISS e da Autoridade Tributária) e que lhe deveria ser concedida a exoneração do passivo restante (I-3.3.1. supra).
c) O Tribunal a quo, em despachos por si proferidos: a 15.06.2021, após o 1º relatório, considerou que o mesmo informava o cumprimento pelo insolvente dos «deveres que lhe estão adstritos em virtude da prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante»; a 13.09.2022, após o 2º relatório, afirmou «Foram cumpridos os deveres». 2.2.3.2. Numa segunda abordagem, apreciar-se-ão os atos praticados após o termo do período de cessão:
Por um lado, aquando do cumprimento do contraditório do art.244º/1 do CIRE, prévio ao despacho final da exoneração do passivo restante: os autos dispunham apenas dos elementos apreciados em III-2.2.3.1. supra; nenhum dos credores pediu a recusa da exoneração do passivo restante nos termos do art.239º/4-b) e d) do CIRE, que fundamentou a decisão recorrida (tendo apenas o credor CC/aqui recorrido pedido a 24.02.2023 a recusa ao insolvente da exoneração do passivo restante, mas por inobservância das obrigações diferentes- as previstas no art.239º/4-a), c) e e) do CIRE- e por ser titular de uma herança- III-3.3.4. supra).
Por outro lado, apenas após já ter sido exercido o contraditório do art.244º/1 do CIRE e de terem decorrido mais de 8 meses do termo do período de cessão, foi suscitada a violação pelo insolvente das obrigações do art.239º/4-b) e d) do CIRE e foram pedidos esclarecimentos sobre a mesma (ambos ocorridos pela primeira vez no processo). De facto, depois do Tribunal a quo ter pedido um parecer final ao novo fiduciário (nomeado em substituição daquele que acompanhou o período de cessão), na sequência de investigação de factos distintos alegados pelo credor CC (e não acolhidos na decisão recorrida):
a) O novo fiduciário apresentou um parecer a 08.02.2024, no qual propôs a recusa da exoneração do passivo restante por entender que o insolvente não cumpriu a diligência pedida pelo antigo fiduciário ao seu patrono a 09.06.2021 e que não demonstrou a procura ativa de emprego no período da cessão, nos termos do art.239º/4-b) e d) do CIRE.
b) O tribunal a quo, por despacho de 11.03.2024, convidou o insolvente a esclarecer a «razão pela qual não juntou comprovativo que atestasse a procuração activa de emprego, tal qual solicitado pelo anterior fiduciário.», sem o convidar a esclarecer as diligências concretas realizadas para a procura de emprego e a juntar prova concreta das mesmas.
c) O insolvente, no contraditório de 15.02.2024 ao parecer referido em a) supra e na resposta de 22.03.2024 a b) supra (complementada a 01.04.2024): c1) Insurgiu-se contra a oportunidade e o conteúdo do parecer do fiduciário, por entender (e conforme se denota nos autos em I supra): que nunca foi informado de qualquer falta de cumprimento de obrigações, e que pudessem gerar a recusa de exoneração; que prestou sempre ao fiduciário que o acompanhou na pendência do período de cessão todas as informações que lhe foram pedidas. c2) Alegou e declarou: que teve limitações de saúde e esteve resguardado na altura de pandemia, conforme explicara ao anterior fiduciário, de forma atendida por este; que, apesar das limitações de saúde, da sua idade e da pouca qualificação profissional, fez procura ativa de emprego junto de entidades que, em requerimento posterior de 01.04.2024, declarou pretender identificar algumas das entidades junto das quais realizou a tal procura de emprego, com referência a folhas anexas com carimbos e rúbricas (5 carimbos de empresas, nos quais estavam identificadas firmas, moradas e/ou telefones; com rubricas sobre 4 carimbos e uma assinatura num dos carimbos, correspondente à identidade do empresário), declaração esta e documentos que não foram impugnados como falsos (nem pelo credor, nem pelo fiduciário), tendo apenas o fiduciário entendido que as simples folhas em branco com carimbos de empresas não comprovavam a procura ativa de emprego entre maio de 2020 e abril de 2023. 2.2.3.3. Ora, a ocorrência dos atos referidos em III- 2.2.3.2. supra, conjugada com o exposto em III- 2.2.3.1. supra e com o ónus de alegação e prova que cabe às partes, não permite julgar verificados os pressupostos de que depende a recusa da exoneração do passivo restante
Por um lado, quanto à diligência concreta de inscrição no centro de emprego:
a) A falta de comprovação pelo insolvente de inscrição no centro de emprego depois da notificação de 09.06.2021, ocorrida no período de cessão: não foi invocada pelo fiduciário e pelos credores como fundamento de recusa antecipada de exoneração do passivo restante nos termos do art.243º/1-a) e 2 do CIRE, por inobservância do art.239º/4-b) ou d) do CIRE; não foi também objeto, por estes, de pedido de prestação de informação ou demonstração da inscrição, nos termos e com as cominações do art.243º/3 do CIRE; foi desatendida, também, em despachos proferidos pelo Tribunal a quo durante o período de cessão (de afirmação de cumprimento dos deveres) e no parecer final do fiduciário que acompanhou o período de cessão.
b) A falta de inscrição no Centro de Emprego, ainda que se possa presumir ter ocorrido em todo o período de cessão, não significa, por si, que o insolvente não tenha feito procura ativa de trabalho por outra via para a satisfação da obrigação do art.239º/4-b) do CIRE, sendo que cabia ao fiduciário ou credores: ter demonstrado esta falta de procura ativa de trabalho pelo insolvente; ou, subsidiariamente, face à dificuldade da prova do facto negativo, ter suscitado que este esclarecesse as diligências por si realizadas para esse efeito (nomeadamente com comprovação), nos termos e com cominações do art.243º/3 do CIRE.
Por outro lado, quanto à obrigação geral de procura ativa de emprego/trabalho:
a) O fiduciário e o credor não juntaram prova da inobservância da obrigação pelo insolvente, e por dolo ou negligência grave, e de forma adequada a causar prejuízo aos créditos da insolvência, conforme decorre do seu ónus de alegação e prova.
b) O fiduciário ou o Tribunal a quo nunca notificaram o insolvente, na pendência (nos termos e com as cominações do art.243º/3 do CIRE) ou no termo do período de cessão de rendimentos, para informar e identificar as diligências concretas por si realizadas para obter trabalho e/ou para juntar prova das mesmas; o insolvente, de qualquer forma, por sua iniciativa (uma vez que apenas foi notificado para explicar porque não juntou comprovativo de procura de trabalho pedida pelo antigo fiduciário, que apenas pode ser interpretada em referência ao único email de 09.06.2021) referiu ter feito procura ativa de emprego junto de entidades, em relação às quais declarou identificar exemplificativamente cinco (referidas na 2ª parte de c) de III-2.2.3.2. supra), informações estas que permitiriam sempre ao fiduciário e aos credores investigar a sua veracidade ou falsidade. Assim, não se pode julgar que as informações dadas por iniciativa do insolvente corresponderam a afirmações insuficientes ou violadoras do dever de informação e de colaboração que lhe tivesse sido pedido que observasse.
Assim, os factos apurados, e já apreciados, não são suficientes para considerar preenchidos os três requisitos de que o art.243º/1-a) do CIRE, ex vi do art.244º do CIRE, em referência ao art.239º/4-b) e d) do CIRE, faz depender a recusa de exoneração do passivo restante. Isto é, não são suficientes para demonstrar:
a) Que o insolvente (com idade de 60 a 63 anos no período de cessão de rendimentos): não fez procura ativa de trabalho no período da cessão de maio de 2020 a maio de 2023, em violação da obrigação do art.239º/4-b) do CIRE; ounão informou as diligências que fez para procurar trabalho, em resposta a pedido de informação concreto nesse sentido que lhe tivesse sido previamente solicitado pelo fiduciário ou pelo Tribunal a quo, nos termos do art.239º/4-d) do CIRE.
b) Que as omissões de a) supra lhe eram imputadas a título de dolo ou negligência grave.
c) Que as omissões referidas em a), qualificadas nos termos referidos em b), causaram prejuízos aos créditos sobre a insolvência (ou eram aptas a causar esses prejuízos, por se poder presumir que o insolvente, face à sua idade e competências, se tivesse observado a procura de trabalho, teria encontrado e teria obtido rendimentos superiores a € 650, 00 por mês, que poderiam ter sido entregues à fidúcia).
Para além desta falta de prova supra enunciada, conhece-se apenas que o insolvente esteve desempregado desde 2019 (com dispensa de apresentação de declaração de rendimentos à Autoridade Tributária) e que apresentou ao fiduciário as informações e documentos por si pedidos para comprovar rendimentos ou falta deles.
Desta forma, tendo terminado o período de cessão, não havendo condições para recusar a exoneração do passivo restante (art.243º/1-a), b) ou c) do CIRE, ex vi do art.244º do CIRE), nem tendo sido pedida a prorrogação do período de cessão (art.242º-A do CIRE), deve ser concedida a exoneração do passivo restante, nos termos do art.244º do CIRE e com os efeitos do art.245º do CIRE.
Procede, assim, o recurso de apelação, com razões parcialmente distintas das conclusões de recurso.
IV. Decisão:
Pelo exposto, as Juízes desembargadoras da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam, julgando procedente o presente recurso: 1. Revogar a decisão recorrida. 2. Conceder ao insolvente a exoneração do passivo restante.
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Custas pelo recorrido (art.527º/1 do CPC).
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Guimarães, 20 de março de 2025
Elaborado, revisto e assinado eletronicamente pelo coletivo de Juízes
Alexandra Viana Lopes
Maria Gorete Morais
Susana Raquel Sousa Pereira
[i] Vide, v.g.:
- Rui Pinto e jurisprudência por este citada in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II- Julho de 2018, Almedina, notas 2 e 5-II ao art.615º do CPC, págs.178 e 179.
- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, Almedina, nota 3 ao art.615º, pág.736.
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, proferido no processo nº7095/10.7TBMTS.P1.S1, disponível in dgsi.pt. [ii] Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, in Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Setembro de 2013, anotação 3 ao art.244º, pág. 676. [iii] Marco Carvalho Gonçalves, in Processo de Insolvência e Processos Pré- Insolvenciais, Almedina, 2023, Capitulo XXI, anotações 1.9 e 1.10, págs.651 ss, 655. [iv] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3ª Edição, 2015, anotação 6 ao art.243º do CIRE, pág.868.