É de conceder escusa a uma magistrada judicial que está designada para proceder ao julgamento, na qualidade de juíza adjunta, a realizar nuns autos em que o seu cônjuge é o magistrado do Ministério Público que proferiu a acusação.
Esta situação não está expressamente prevista nos impedimentos referidos no art.º 39º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, nem cabe na previsão do nº 3 do mesmo preceito legal, mas pode, na perspectiva do homem médio, gerar dúvidas sobre a imparcialidade da requerente.
A Juiz de Direito AA, adjunta no processo comum colectivo nº 908/21.0…, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de …, veio, ao abrigo do disposto nos arts.º 43º a 47º do Cód. Proc. Penal, solicitar a sua escusa de intervir no julgamento a realizar naqueles autos, por ter sido o seu cônjuge, BB, magistrado do Ministério Público a exercer funções na …ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de …, a proferir despacho de acusação, a 6/06/2024, contra o aí arguido, CC.
Por essa razão, entende que a sua intervenção no mesmo, a manter-se, é susceptível de ser considerada suspeita e criar desconfiança acerca da sua imparcialidade, mais não seja para o arguido.
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2. Os presentes autos mostram-se instruídos com todos os elementos para a decisão de mérito, não havendo, por isso, quaisquer diligências a realizar ou a promover.
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Foram colhidos os vistos.
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3. O objeto do presente incidente é a determinação da existência ou não de fundamentos que justifiquem a escusa da Juíza AA de intervir na audiência de julgamento no processo comum colectivo nº 908/21.0…, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de ….
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4. Fundamentação:
Consagra-se no art.º 203º da Constituição da República Portuguesa o princípio fundamental da independência dos Tribunais, aí se estabelecendo que: “ Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei “. Este princípio exige a independência e a imparcialidade dos juízes.
Em conformidade com esta exigência, estabelece-se no art.º 32º, nº 9 também da CRP o princípio do «juiz natural», o qual configura uma garantia fundamental do processo criminal e que visa assegurar o julgamento por um juiz aleatoriamente pré-determinado.
Porém, há situações em que a garantia da imparcialidade dos Tribunais pressupõe exceções ao princípio do «juiz natural», o qual só deve ser afastado quando se verifiquem circunstâncias claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz aleatoriamente pré-definido como competente para determinada causa deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.
Com vista à preservação da garantia constitucional de imparcialidade do juiz penal e da confiança dos sujeitos processuais e do público em geral nessa imparcialidade, o legislador estabeleceu diversos mecanismos, designadamente a estatuição de impedimentos do juiz, a determinação da competência para a intervenção em processo reenviado para novo julgamento, a recusa de juiz e a possibilidade de pedido de escusa previstos, respectivamente, nos arts.º 39º e 40º, 426º-A e 43º a 45º todos do Cód. Proc. Penal.
Quanto ao incidente de escusa de juiz, dispõe o art.º 43º do Cód. Proc. Penal o seguinte:
“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. (…)
4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2. (…) “
Assim, para sustentar a escusa do juiz é necessário apurar se:
- a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”; e
- essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
Só que a lei não define o que se deve entender por «motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade» do juiz que requer a sua escusa.
Para tanto, deverão ser alegados pelo requerente factos objetivos suscetíveis de preencher tais conceitos jurídicos.
Este incidente visa, como se referiu, assegurar as regras da independência e da imparcialidade do julgador, que são inerentes ao direito de acesso aos tribunais, constituindo ainda, no processo penal português, atenta a sua estrutura acusatória, uma dimensão importante dos princípios das garantias de defesa e do juiz natural, previstos nos arts.º 20º, nº 1 e 32º, nºs 1, 5 e 9 da Constituição da República Portuguesa.
Neste sentido, pode ler-se no Ac. do Tribunal Constitucional nº 935/96, in www.tribunalconstitucional.pt que: “ (…) Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis. Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao "administrar a justiça", actuem, de facto, "em nome do povo" (cfr. artigo 205º, nº 1, da Constituição)". (…) salienta Ireneu Barreto (cfr. Notas para um Processo Equitativo, Análise do Artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à Luz da Jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado nºs. 49/50, p.114,115): "A imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos".
No mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão datado de 22/01/13, proferido no processo nº 673/02.OTAVIS.C1- A.S1, in www.dgsi.pt, pela seguinte forma: “ O TC pronunciou-se pela primeira vez sobre a independência e imparcialidade dos juízes no seu Ac n.º 114/95, in DR, II Série, de 22.4.95, convocando a jurisprudência à luz do art.º 6.º n.º 1, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, segundo o qual qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, em prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, com o alcance de que, num estado de direito, o juiz que preside ao julgamento o faça com independência, ou seja à margem de quaisquer pressões, e imparcialidade, numa posição distanciada, acima dos interesses das partes, sendo desejável também que o povo, em nome de quem exerce a justiça, nele tenha confiança, surgindo aos olhos daquele o julgamento como objectivamente justo e imparcial, impondo-se a predefinição de um quadro legal orientado para tal finalidade, O cargo de juiz deve, pois, ser rodeado de cautelas para assegurar aqueles objectivos, para que a comunidade confie nele, pois que a confiança da comunidade nas suas decisões é essencial ao “ administrar a justiça em nome do povo “, nos termos do art.º 205.º, da CRP, como se anota no AC. do TC n.º 124/90, in DR, II Série, de 8.2.91, além de que só assim se materializa o direito constitucionalmente previsto dos cidadãos a um processo justo –art.º 32.º n.º 1, da CRP.
A imparcialidade e objectividade do juiz assumem a natureza de um dever éticosocial; estando ausentes o juiz pode –deve mesmo –ser declarado “ judex inhabilis ( Ac. Do TC n.º 135/88 , do TC , in DR II Série , de 8.9.88 . A imparcialidade e objectividade exigidas para se dizer o direito é tanto a subjectiva como a objectiva.
À luz de um critério subjectivo, de um “teste subjectivo “, no dizer de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 232, o que importa é indagar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal na causa; o que o juiz pensa no seu foro íntimo em determinada circunstância é uma vertente da imparcialidade que se presume até prova em contrário, mas a aferição daquele dever comporta, ainda numa óptica objectiva, a que o comportamento do juiz deve ser submetido do ponto de vista daquilo que o cidadão comum pensa da latitude e conformação de tal dever, devendo ser recusado todo o juíz de que se possa temer uma falta de imparcialidade para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos, escreveu-se naquele Ac. n.º 114/95 .”
Quanto ao que se deve entender por motivo suficiente para o afastamento de um juiz, decidiu-se no Ac. do STJ de 12.11.2020 (in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:9560.14.8TDPRT.C.G1.A..9F) que:
“ Para afastar o juiz natural não basta um qualquer motivo que alguém possa ter como susceptível de afectar a sua imparcialidade, antes importa que o mesmo seja sério e grave no contexto de uma determinada situação concreta.
Conforme assinalado no cit. Ac. do STJ de 09.11.2011 “os motivos sérios e graves adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador hão-se, pois, resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador”.
O fundamento da escusa deve, pois, ser objectivado numa razão séria e grave da qual resulte inequivocamente um estado de forte desconfiança sobre a imparcialidade do julgador.
A este propósito refere também Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, 1974, pág. 320, que: “ (…)pertence pois a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera [de pura objectividade e de incondicional juridicidade] não (…) enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possam criar nos outros a convicção de que ele a perdeu”.
A imparcialidade deve, assim, ser apreciada de acordo com um teste subjetivo e um teste objetivo.
O primeiro visa apurar se o juiz revela ter um interesse pessoal no destino da causa ou algum preconceito sobre o mérito da mesma.
Por sua vez, o teste objetivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade.
No caso em apreço, compulsados os elementos constantes dos autos, verifica-se que o magistrado do Ministério Público que proferiu a acusação no processo comum colectivo nº 908/21.0…, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de …, é cônjuge da Juíza requerente da escusa, a qual está designada para proceder ao julgamento a realizar naqueles autos, na qualidade de juíza adjunta.
A situação em apreço não está expressamente prevista nos impedimentos referidos no art.º 39º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, nem cabe na previsão do nº 3 do mesmo preceito legal.
Também não está em causa a existência de um qualquer interesse pessoal da requerente no desfecho do processo nº 908/21.0…, o que aliás decorre manifestamente do seu pedido de afastamento do julgamento do mesmo.
Porém, é compreensível que qualquer interveniente processual e a comunidade em geral possam ter dúvidas sobre a imparcialidade de alguém que viva debaixo do mesmo teto, em comunhão de vida, com a pessoa que efectuou a investigação criminal nos mesmos autos e proferiu a acusação do arguido, efectuando um juízo de probabilidade de, em julgamento, lhe poder vir a ser aplicada uma pena.
Tal circunstância pode efectivamente, na perspectiva do homem médio, gerar dúvidas sobre a imparcialidade da requerente, quer por suspeita de que o seu cônjuge lhe poderá ter relatado os factos, quer por suspeita de que o mesmo possa vir a influenciar o seu juízo sobre a prova de tais factos em julgamento.
No mesmo sentido se decidiu no Acórdão do STJ datado de 5/12/24, proferido no processo nº184/12.5TELSB.L1-A.S1, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se poder ler que:”(…) II – O casamento, ainda que dissolvido, e bem assim a vida (presente ou passada) em condições análogas às dos cônjuges, são valorados em sede de regime de impedimentos, conforme previsto no artigo 39.º, n.º1, do CPP, no que respeita às relações do juiz com o arguido, ofendido ou pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil. A relação conjugal entre quem deve julgar e o magistrado do Ministério Público que exerce funções no processo não está expressamente prevista no artigo 39.º, n.º1, do CPP – e também não se enquadra na previsão do n.º3 do mesmo artigo -, mas não temos dúvidas de que, em termos gerais, tal situação poderá, na observação do homem médio, ser tida como potencialmente influenciadora da decisão, o que dependerá, porém, da análise das circunstâncias de cada caso.(…)”.
A fim de que a Justiça se exerça de forma séria e completamente isenta e imparcial, cumpre evitar todas as situações em que se possa formar uma dúvida, ainda que mínima, sobre a isenção, a seriedade e a imparcialidade do julgador.
Em face do exposto, entende-se ser de deferir o pedido de escusa formulado nos presentes autos.
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5. DECISÃO:
Por tudo o exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em deferir o pedido de escusa da Juiz de Direito AA, adjunta no processo comum colectivo nº 908/21.0…, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de …, ficando a mesma dispensada de intervir no julgamento naqueles autos.
Sem custas.
Évora, 25 de Março de 2025
(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)
Carla Francisco
(Relatora)
Anabela Simões Cardoso
Jorge Antunes
(Adjuntos)