IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
Sumário

(da inteira responsabilidade do relator)
I. Nos termos do art.º 170º do Cód.Penal, a formulação de propostas de teor sexual pode assumir a forma verbal, gestual, escrita ou qualquer outra forma de comunicação que não implique contato físico.
II. A configuração típica do acto exige a utilização de um tipo de linguagem (ou outra forma de expressão) baixa, ostensivamente sexual, rude, com aptidão para ferir a liberdade da vítima em termos sexuais, no sentido de que se sente invadida na sua privacidade sexual sem ter possibilidade ou capacidade de rejeitar um comportamento que lhe é imposto por terceiro.
III. A sucessão das mensagens “Mansa foto”; “Pra mim confiar em vc”; “Me mansa foto de corpo inteiro”; “Que ai ta ligo” objectivamente analisada, não contém nenhuma conotação sexual, nem implícita nem explicita, pois não tem a ela associada qualquer elemento que imediatamente sugestione que pretende ter cariz sexual, dado não ter sido antecedida ou sucedida por outras mensagens que a possam caracterizar como tal.
IV. Mas mesmo que se entendesse que após o início da conversa, de acordo com as regras da normalidade, se sucederiam pedidos de cariz sexual, ainda assim estaríamos no domínio da tentativa, cuja punibilidade se mostra excluído do tipo legal, previsto no art.170º do Cód. Penal.

Texto Integral

Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 203/22.7PCOER, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Oeiras - Juiz 3, em que é arguido AA, melhor identificado nos autos, foi proferida sentença, no qual se decidiu [transcrição]:
“(…)
Absolver o arguido AA da prática em autoria material e na forma consumada de um crime de importunação sexual e um crime de aliciamento de menores. (…)”
»
I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
(…)
II - Conclusões
1- São as conclusões que limitam o objecto do recurso, nos termos do art.º 403º e 412º, n.º 1 in fine do Código de Processo Penal e conforme jurisprudência dominante a pacífica.
2- O erro de julgamento sobre a matéria de facto ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que tenha sido feita a prova em audiência de julgamento de que tal facto realmente ocorreu; ou pelo contrário – que é o que sucede nos presentes autos – quando se dá por não provado um facto que face à prova produzida deveria ter sido considerado provado.
3- Entende o Ministério Público que os factos 13 a 15, 17, 18 (com excepção de levar a vítima a encontrar-se consigo), 19 e 20 da acusação deviam ter sido dados como provados, tendo sido incorrectamente julgados os pontos b) a g) da matéria de facto considerada como não provada (com excepção de que o arguido agiu com intenção de levar a vítima a encontrar-se consigo).
4- Consequentemente, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impunha a condenação do arguido pelo crime de importunação sexual agravado, p. e p. pelo artigo 170º e 177º, n.º 1 c), ambos do Código Penal.
5- Para tanto, deviam ter sido atendidos os seguintes depoimentos da ofendida BB na sessão de julgamento de 16/10/2024, entre as 09:56:20 e as 10:05:00 (disse, em suma, disse que conhecia o arguido, que este sabia a sua idade, que estabeleceu com a mesma uma conversa de teor sexual, pedindo-lhe fotografias de corpo inteiro e perguntando se estava sozinha em casa, e que, por receio do arguido, acabou por bloquear o contacto deste e telefonar de imediato aos seus pais) e do pai da ofendida, CC, na sessão de julgamento de 16/10/2024, entre as 10:05:48 e as 10:09:03 (referiu, em suma, que o arguido frequentava a casa da ofendida e que sabia a idade desta, tendo cortado relações com o arguido após os factos dos autos).
6- Apesar de atribuir inteira credibilidade à versão da ofendida, a douta sentença considerou que os factos provados não eram suficientes para integrar a prática, pelo arguido, de um crime de importunação sexual.
7- Não podemos concordar uma vez que a conversa escrita entabulada pelo arguido insere-se, a nosso ver, na formulação de propostas de teor sexual dirigidas a esta vítima, menor de idade.
8- Com efeito, o arguido, usando o seu perfil na rede social Instagram, iniciou uma conversa com a ofendida, sabendo que a mesma era menor de idade, aliciando-a a remeter fotografias de corpo inteiro e a realizar videochamadas, pretendendo saber e confirmar se menor estava sozinha em casa, tudo sob o falso pretexto entregar um presente ao pai desta.
9- Foi precisamente pelo facto de se sentir importunada na sua sexualidade que a ofendida BB, à data com 14 anos de idade, bloqueou o contacto com o arguido.
10- Ao bloquear o contacto do arguido, a ofendida não o fez apenas e tão só para impedir qualquer outra conduta deste, mas sim porque os actos praticados pelo arguido já importunavam e prejudicavam a ofendida no desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente na esfera sexual.
11- Tratou-se, manifestamente, de uma acção com conotação sexual, que suscitou na ofendida fundado receio da prática subsequente de um acto sexual, razão pela qual aquela terminou a videochamada e bloqueou os contactos do arguido.
12- A conduta do arguido insere-se num dos vários fenómenos associados à violência sexual praticada contra crianças e jovens, o grooming online (ou aliciamento/ assédio online), que se inicia, regra geral, através de uma abordagem não-sexual, para, nomeadamente, incentivar a criança ou jovem a produzir e enviar conteúdos de natureza íntima.
13- O arguido aliciou a ofendida, menor de 14 anos de idade, que conhecia, a remeter fotografias de corpo inteiro e a realizar videochamadas e não tinha qualquer motivo para o fazer que não fosse com intuitos lascivos, como fez.
14- O arguido agiu com, pois, dolo direto (cf. art.º 14.º, n.º 1, do Código Penal). Daí a conduta do arguido ter preenchido o tipo objetivo e subjetivo do crime de importunação sexual agravado (em razão da idade da vítima), consumando-o.
15- As necessidades de prevenção geral a satisfazer com sua punição, visando o reforço da consciência jurídica comunitária na validade e efetividade das normas jurídicas violadas, são muito elevadas, porquanto é um ilícito que vem sendo crescentemente cometido, muito por causa da utilização das redes sociais, e gera muita insegurança e intranquilidade na sociedade.
16- As necessidades de prevenção especial a satisfazer com a sua punição, visando a ressocialização do arguido, são elevadas porquanto consta do seu Certificado de Registo Criminal várias condenações anteriores (foi já condenado em penas de multa e em penas de prisão suspensas na sua execução, por crimes de diferente natureza), sendo pessoa socialmente inserida (é casado, reside com a mulher e um filho de 2 anos, vive em casa arrendada pela qual paga uma renda mensal de € 550,00, é condutor de tuk-tuk, auferindo cerca de € 900,00 mensais e reside em Portugal há 4 anos), consome produtos estupefacientes e não reconhece o desvalor da sua conduta nem mostrou arrependimento.
17- A culpa do arguido é intensa, atendendo a que agiu gratuitamente e dum modo obstinado com dolo direto. A intensidade da ilicitude da sua conduta é, atento o desvalor da ação e do resultado, elevada, considerando que agiu contra menor de 14 anos, fazendo uso da internet, e não assumiu a prática dos factos.
18- Cremos que uma pena de multa já não satisfaz as necessidades de prevenção geral e especial; por se entender que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, entende o Ministério Público que deverá ser aplicada ao arguido uma pena de 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 18 meses, devendo a mesma, por se considerar conveniente e adequado, ser condicionada a regime de prova, atento o disposto nos artigos 50.º, n.º 1, 2, 53.º e 54.º, todos do Código Penal.
19- Caso assim não se entenda, deverá o arguido ser condenado em pena de multa, próxima do seu limite máximo, designadamente 120 dias, à taxa diária de € 7,00, perfazendo assim o total de € 840,00, a que corresponde, eventualmente e em caso de incumprimento, uma pena de prisão subsidiária de 80 (oitenta) dias - cf. artigo 47º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
Deste modo, entendemos que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, determinando-se a condenação do AA, nos apontados termos ou, assim não se entendendo, deverá revogar-se a sentença recorrida e determinar-se a sua substituição por outra que condene o arguido nesses mesmos termos.
Vossas Excelências não deixarão, porém, de fazer a habitual JUSTIÇA!
(…)
*
O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido em 19/12/2024, com os efeitos de subir nos próprios autos e imediatamente, mas com efeito não suspensivo, conforme correcção efectuado ao abrigo do disposto no art.º 414º nº3 do Código Processo Penal.
*
I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, o arguido não respondeu ao recurso apresentado.
*
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
*
I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao dito parecer.
*
I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3.
*
II.2- Apreciação do recurso
Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões decidendas a apreciar são as seguintes:
a) Se a sentença recorrida se encontra ferida de erro de julgamento (art.º 412º, nº 3, do CPP), impugnando o recorrente os factos dados como não provados sob os pontos 13 a 15, 17, 18 (com excepção de levar a vítima a encontrar-se consigo), 19 e 20 da acusação - pontos b) a g) da matéria de facto considerada como não provada - que, no seu entendimento, deveriam ter sido dados como provados.
b) Da verificação dos elementos constitutivos do crime de importunação sexual agravado, p. e p. pelo artigo 170º e 177º, n.º 1 c), ambos do Código Penal.
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, de forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.
Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]:
a. É a seguinte a matéria de facto considerada como provada pelo tribunal singular em 1ª Instância:
(…)
III. D O S F A C T O S
Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão:
BB, nasceu a ... de ... de 2007 e tinha à data dos factos 14 anos de idade.
2)O arguido, AA, nasceu a ... de ... de 1988 e tinha à data dos factos 33 anos de idade.
3)O arguido é detentor de uma conta e perfil público na rede social Instagram com o nome de utilizador “...”, com o ID ..., alojado no URL https://www.instagram.com....
4)No dia ... de ... de 2022, pelas 07h50, o arguido acedeu, na rede social Instagram, ao perfil da vítima “...”, com o nome de ecrã “BB” e nessa ocasião, o arguido iniciou uma conversa com a menor ofendida, BB, através de mensagens enviadas na referida rede social.
5)O arguido começou por questionar o número da menor ofendida, dirigindo-lhe as seguintes perguntas: “Qual seu numero”; “Vc tem aula hj”, dizendo-lhe a seguir “Queria deixa uma surpresa pro seu pai não queria que soubesse”.
6)Momentos depois, o arguido dirige à vítima as seguintes mensagens, em forma de pergunta: “Quem ta ai”, “Ta so”; “Seu pai e sua mae já foi trabalhar”; “Si eu pedir segredo vc guarda”; “Já que ta so posso ligar de vidii” (“vídeo”).
7)Quando a ofendida lhe disse estava sozinha, o arguido dirige-lhe as seguintes mensagens: “Ta no qaurto”; “Mansa uma foto sua”, “Pea mim poder rw ligar”.
8)O arguido insistiu várias vezes para a vítima enviar uma foto sua, através das seguintes expressões: “Manda foto”; “Confiança”.
9)A menor acedeu a esse pedido do arguido e enviou-lhe uma foto de rosto, tendo o arguido retorquido “Isso não e no quarto?”, interpelando-a de seguida com a mensagem: “Manda mas uma foto de corpo inteiro”, “Que ai vou te ligar”.
10)O arguido reiterou o pedido para que a vítima lhe envie uma fotografia de corpo inteiro, dirigindo-lhe as seguintes expressões: “Mansa foto”; “Pra mim confiar em vc”; “Me mansa foto de corpo inteiro”; “Que ai ta ligo”.
11) No mesmo dia, e na mesma circunstância, o arguido estabeleceu uma ligação de videochamada com a menor ofendida, em que esta lhe exibiu rosto.
12) O arguido quis e obteve, através do sistema informático, fotografia da menor.
13)O arguido encontra-se no estado civil de casado, reside com a esposa e um filho de dois anos.
14)O arguido vive em casa arrendada, pela qual paga mensalmente a quantia de €550,00.
15)O arguido é …, auferindo mensalmente a quantia de €900,00.
16)O arguido encontra-se em Portugal há quatro anos.
17)No âmbito do Processo N.º 514/22.1PHLRS, que correu termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Loures, foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado em 30 de Setembro de 2022, pela prática, em 1 de Junho de 2022, de um crime de desobediência na pena de sessenta dias de multa à taxa diária de €5,00, bem como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de quatro meses.
18)No âmbito do Processo N.º 166/22.9PQLSB, que correu termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Loures, foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado em 30 de Setembro de 2022, pela prática, em 24 de Julho de 2022, de um crime de desobediência na pena de cinquenta dias de multa à taxa diária de €5,00, bem como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de três meses.
19)No âmbito do Processo N.º 1461/22.2GLSNT, que correu termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Sintra, foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado em 17 de Maio de 2023, pela prática, em 29 de Outubro de 2022, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dezoito meses, bem como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de oito meses.
20)No âmbito do Processo N.º 679/22.2PWLSB, que correu termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Lisboa, foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado em 22 de Maio de 2023, pela prática, em 19 de Agosto de 2022, de um crime de desobediência na pena de dois meses de prisão, substituída por sessenta dias de multa à taxa diária de €5,00, bem como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de cinco meses.
21)No âmbito do Processo N.º 722/22.5SXLBS, que correu termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Lisboa, foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado em 9 de Junho de 2023, pela prática, em 4 de Outubro de 2022, de um crime de furto na pena de setenta dias de multa à taxa diária de €5,00.
22)No âmbito do Processo N.º 883/23.6PHLRS, que correu termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Loures, foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado em 18 de Março de 2024, pela prática, em 25 de Agosto de 2023, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de nove meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos e cem dias de multa à taxa diária de €6,00, bem como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de um ano. (…)
*
b. São os seguintes os factos dados como não provados pelo tribunal de 1ª Instância:
(…)
Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa. Designadamente não se logrou provar que:
a) Que a menor ofendida lhe exibiu parte da sua perna, com roupa.
b) Como resultado das condutas do arguido, a vítima sentiu-se incomodada e ofendida na sua dignidade.
c)O arguido sabia que as mensagens supra consistiam em propostas de teor sexual, e ainda assim, quis remetê-las à vítima, tal como efetivamente o fez, conhecendo que as mensagens continham conteúdo ofensivo e intrusivo, apto a perturbar, ofender e incomodar a menor ofendida.
d) Ao praticar os atos acima descritos, o arguido sabia e estava consciente de que a vítima, BB, era menor de idade, por à data dos factos, ter catorze anos e que, por esse motivo, não tinha capacidade e discernimento necessários a uma livre decisão.
e)Sabia o arguido que era maior e que utilizava tecnologias de informação e de comunicação com o objetivo de levar a vítima a encontrar-se consigo e a praticar atos de natureza sexual, que só não logrou concretizar porquanto a menor se apercebeu das intenções do arguido, e o bloqueou na rede social Instagram.
f) Com as condutas descritas, o arguido sabia que prejudicava a menor ofendida na sua autodeterminação sexual e no desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente na esfera sexual.
g) Em todas as circunstâncias, o arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida.
(…)
c. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo tribunal de 1.ª Instância:
(…)
O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto, valorando a prova produzida e examinada em audiência da forma que, abaixo, se discrimina.
Julgamos que não se mostra controvertida a troca de mensagens na rede social Instagram entre a ofendida, menor de 14 anos, e o perfil “…”, com o ID ..., alojado no URL https://www.instagram.com.../, nos moldes exactos em que dão como provados; isso resulta de fls. 13 a 17.
E ainda que o perfil “…” não seja imediatamente associável ao arguido, o próprio admitiu em julgamento que lhe pertence, não contestando que as mensagens foram daí remetidas para a ofendida.
O que nega é que tenha enviado as mensagens à ofendida, referindo que era consumidor de estupefacientes, sendo frequente penhorar o seu telemóvel para obter dinheiro para comprar drogas e que, nesta data, terá entregue o telemóvel para esse efeito, desconhecendo o que terão feito com o mesmo. Já a ofendida, ao confirmar as mensagens trocadas, esclarece o contexto, informando ainda que conhece o arguido por ser amigo de longa data de seu pai, o que o arguido confirmou; assim, não temos dúvidas da versão da ofendida, quando refere que, no momento da videochamada, viu a cara do arguido, assim como parece clara a implausibilidade da versão trazida pelo arguido – desde logo porque muito parca em pormenores - que ao penhorar o seu telemóvel deixaria livre o acesso às suas redes sociais por desconhecidos. Assim, repita-se; fazemos fé na versão da ofendida de que contactou com o arguido neste dia.
Contudo, é a própria a referir que se limitou a enviar-lhe uma fotografia do seu rosto quando este lhe pediu uma foto de corpo inteiro, tendo bloqueado o contacto pouco tempo depois; assim, por razões que explanaremos em sede de direito, parece claro do teor da conversa, que se se limitou àquilo que a ofendida descreveu e que transparece das mensagens, que esta não foi aliciada para qualquer encontro visando a prática de actos sexuais, não foram praticados perante ela actos de carácter exibicionista, formuladas propostas de teor sexual ou foi constrangida a contacto de natureza sexual.
Concedemos que o arguido, ciente da idade da menor, é profundamente desadequado ao pedir-lhe uma fotografia de corpo inteiro e a dirigir-se à mesma deste modo velado, mas, sem mais, não podemos concluir por este pedido que visava importuná-la sexualmente ou aliciá-la para acto sexual. Não podemos negar, com segurança, que a conversa não pudesse encaminhar-se para esses propósitos, mas a sageza da menor em proteger-se e em terminar de imediato a conversa evitou, na verdade, que esta pudesse escalar para temas sexuais. Compreendemos também o seu incómodo, razão pela qual de imediato bloqueou o contacto, mas não cremos que tenha havido qualquer cariz sexual na troca de mensagens mantida, motivo pelo qual se impõe a absolvição do arguido.
As condições pessoais do arguido resultaram apuradas mercê das suas declarações; relativamente aos seus antecedentes criminais, o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
(…)
d. É como segue o enquadramento jurídico–penal dos factos que vem efectuado pelo tribunal em 1.ª Instância:
(…)
O arguido encontra-se acusada da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de importunação sexual agravada, previsto e punido pelos artigos 170.º e 177.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal um crime de crime de aliciamento de menores para fins sexuais, previsto e punido pelo artigo 176.º-A do Código Penal, a que corresponde pena de prisão até um ano.
Analisaremos em conjunto ambas as incriminações pois que, e adiantando, improcederá a imputação ao arguido por ausência de condutas (activas ou omissivas) de cariz sexual.
De acordo com o artigo 170.º do Código Penal “quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” Já o artigo 176.º-A do Código Penal dispõe que “quem, sendo maior, por meio de tecnologias de informação e de comunicação, aliciar menor, para encontro visando a prática de quaisquer dos atos compreendidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º e nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo anterior, é punido com pena de prisão até 1 ano.”
Cuidaremos de descrever todas as possibilidades previstas pelo tipo, por forma a exclui-las, uma a uma. A respeito do crime de importunação sexual, é certo que a lei não tipificou os meios do exibicionismo, contactos de natureza sexual ou quais as propostas de teor sexual. Assim, os actos exibicionistas pressupõem condutas ou gestos com significado sexual, inferido das circunstâncias em que o crime é cometido, sendo certo que pode não envolver contacto físico com a vítima. Constrangimento a contacto de natureza sexual, implica, também troca de palavras, gestos grosseiros de natureza sexual, ameaças ou insinuações dirigidos à vítima que a levem a um acto sexual. Por fim, a formulação de propostas de teor sexual exige convite, oferta ou sugestão a um acto de natureza sexual, podendo ser feita de forma verbal, gestual, escrita ou qualquer outra forma de comunicação que não implique contacto físico. Ora, uma vez mais, não cremos que pedir uma fotografia de corpo inteiro da ofendida, nunca pedindo uma fotografia de nu – nunca se sugerindo, sequer, durante a insistência, que esta esteja nua, por exemplo, nem este pedido se subentenda da conversa estabelecida – e recebendo uma fotografia de metade do rosto da mesma, não configura sequer uma sugestão de convite a acto de natureza sexual. Em suma, não cremos que tenha havido qualquer comportamento activo ou omissivo do arguido que, objectivamente, assuma natureza, conteúdo ou significado directa ou indirectamente relacionado com a esfera da sexualidade, pelo que improcede a imputação ao arguido da prática de um crime de importunação sexual.
De igual sorte e por motivos idênticos falece a imputação do crime de aliciamento de menor, pois que estabelecido que a conversa não teve qualquer cariz sexual, por maioria de razão, em momento algum, como transparece da leitura das mensagens, aliciou a ofendida para encontro visando acto sexual de relevo ou procurando utilizá-la, ou à sua fotografia, para fins pornográficos.
Assim sendo, impõe-se, sem mais, a absolvição do arguido de ambos os crimes imputados.
(…)
»
II.4- Apreciemos, então, as questões a decidir.
a) Se a sentença recorrida se encontra ferida de erro de julgamento (art.º 412º, nº 3, do CPP), impugnando o recorrente os factos dados como não provados sob os pontos 13 a 15, 17, 18 (com excepção de levar a vítima a encontrar-se consigo), 19 e 20 da acusação - pontos b) a g) da matéria de facto considerada como não provada - que, no seu entendimento, deveriam ter sido dados como provados.
Como decorre do disposto no art.º 428º do Cód. de Processo Penal, as Relações, em sede de recurso, conhecem de facto e de Direito.
Como é consabido, a decisão da matéria de facto em sede de recurso pode ser sindicada por duas vias alternativas:
– no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º/2 do Cód. de Processo Penal, a que se convenciona chamar de revista alargada,
– ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º nº3/4/6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art.º 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Cód. de Processo Penal.
A questão agora nesta parte suscitada pelo recorrente gravita, como se disse, no âmbito do segundo dos caminhos expostos.
Vem, nesta parte, o Ministério Público fundamentalmente impugnar o exercício de julgamento da matéria de facto por parte do tribunal a quo.
O erro de julgamento, consagrado no artigo 412º nº3 do Cód. de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, ampliando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Cód. de Processo Penal – isto é, nesta situação o recurso quer reapreciar concretos segmentos de prova produzida em primeira instância, havendo assim que a reproduzir tale quale em segunda instância, por forma a apreciar da verificação da específica deficiência suscitada.
Notar–se–á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art.º 412º nº 3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar :
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados,
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,
c) as provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação [não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos], pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes [n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal]4.
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
Em suma, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas [específicas] que impõem decisão diversa da recorrida, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as [se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados] ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos [quando na ata da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens].
“Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente [sublinhado nosso]. (Acórdão do TRL, desta 5.ª Secção, datado de 16-11-2021, Processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5).
In casu, entende o recorrente que o tribunal a quo não deveria ter dado como não provado os factos vertidos sob os pontos 13 a 15, 17, 18 (com excepção de levar a vítima a encontrar-se consigo), 19 e 20 da acusação, os quais deviam ter sido dados como provados, tendo sido incorrectamente julgados os pontos b) a g) da matéria de facto considerada como não provada (com excepção de que o arguido agiu com intenção de levar a vítima a encontrar-se consigo).
Vejamos os referidos factos que o recorrente entende que deveriam ter sido dados como provados, cumprindo o primeiro dos requisitos, acima enunciados:
13- Como resultado das condutas do arguido, a vítima sentiu-se incomodada e ofendida na sua dignidade.
14- O arguido sabia que as mensagens supra consistiam em propostas de teor sexual, e ainda assim, quis remetê-las à vítima, tal como efetivamente o fez.
15- Conhecendo que as mensagens continham conteúdo ofensivo e intrusivo, apto a perturbar, ofender e incomodar a menor ofendida.
17- Ao praticar os atos acima descritos, o arguido sabia e estava consciente de que a vítima, BB, era menor de idade, por à data dos factos, ter catorze anos e que, por esse motivo, não tinha capacidade e discernimento necessários a uma livre decisão.
18- Sabia o arguido que era maior e que utilizava tecnologias de informação e de comunicação com o objetivo de levar a vítima a praticar atos de natureza sexual, que só não logrou concretizar porquanto a menor se apercebeu das intenções do arguido, e o bloqueou na rede social Instagram.
19- Com as condutas descritas, o arguido sabia que prejudicava a menor ofendida na sua autodeterminação sexual e no desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente na esfera sexual.
20- Em todas as circunstâncias, o arguido atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida.
É certo que o tribunal recorrido, ciente da convicção que formou que as mensagens em causa não tinham conotação sexual, “conciliou” a matéria de facto à decisão de direito que iria tomar, concluindo pela não prova de alguns segmentos que se afiguram resultar provados, tendo em conta a prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a transcrição dos depoimentos efectuado pelo recorrente.
Não há dúvidas que a menor se sentiu incomodada pelo teor das mensagens que lhe foram enviadas, tanto que a partir de certo momento entendeu cessar o contacto.
Veja-se o depoimento da mesma:
Interveniente (8:16) O que é que sentiu?
Ofendida (8:18) Eu senti estranho. Primeiro ele pediu a foto, depois eu mandei a metade da cara e eu acho que era só depois, não lembro tão bem, só depois que pediu do corpo todo, depois eu já senti estranho.
Do mesmo modo, resultou ainda da prova produzida, mormente do depoimento da vítima e de seu pai – CC, que o arguido sabia a idade daquela, dado que frequentador da casa onde a mesma habitava, por relação de amizade com a família, tendo participado nas festas comemorativas dos aniversários.
Deste modo, a prova produzida em audiência de julgamento determina que os factos b) e d) da matéria de facto não provada deverão ser dados como provados, nos seguintes termos:
b)- Como resultado das condutas do arguido, a vítima sentiu-se incomodada e ofendida na sua dignidade.
d)- Ao praticar os atos acima descritos, o arguido sabia e estava consciente de que a vítima, BB, era menor de idade, por à data dos factos, ter catorze anos e que, por esse motivo, não tinha capacidade e discernimento necessários a uma livre decisão.
No entanto, tais factos são inócuos para a decisão da causa, dado não coincidirem com o cerne da questão.
O que verdadeiramente o recorrente pretende é que as mensagens enviadas pelo arguido à menor sejam caracterizadas enquanto propostas de teor sexual (pontos c), e) e f) dos factos não provados.
Mas a verdade é que, nessa sua discordância, não indicou qualquer prova que não tenha sido tomada em conta na decisão recorrida, nem apontou a tais elementos de prova conteúdo diverso do considerado no acórdão, antes se propondo discutir o modo como se formou a convicção do Tribunal a quo, sobrepondo a sua interpretação da prova àquela que foi a do Tribunal recorrido. Limitou-se, deste modo, a discordar da avaliação da prova feita pelo julgador, nomeadamente no que se refere às ilações extraídas dos depoimentos ouvidos no julgamento.
Ao recuperar o depoimento da ofendida, indicando alguns trechos do mesmo, em parte alguma indica quais os segmentos que o tribunal recorrido não teve em conta, ou que impunham decisão diversa.
Aliás, ao atentar-se na fundamentação da sentença, logo se retira que foi valorado o referido depoimento, ao referir-se “Assim, repita-se; fazemos fé na versão da ofendida de que contactou com o arguido neste dia. Contudo, é a própria a referir que se limitou a enviar-lhe uma fotografia do seu rosto quando este lhe pediu uma foto de corpo inteiro, tendo bloqueado o contacto pouco tempo depois; assim, por razões que explanaremos em sede de direito, parece claro do teor da conversa, que se se limitou àquilo que a ofendida descreveu e que transparece das mensagens, que esta não foi aliciada para qualquer encontro visando a prática de actos sexuais, não foram praticados perante ela actos de carácter exibicionista, formuladas propostas de teor sexual ou foi constrangida a contacto de natureza sexual.
E aqui reside a verdadeira divergência do recorrente, no que concerne à análise da prova produzida em audiência, que não radica na valoração incorrecta do depoimento da ofendida, mas na interpretação das mensagens juntas aos autos.
O que realmente o recorrente coloca em causa, numa leitura própria, é de que as mensagens dirigidas pelo arguido se enquadram em propostas de teor sexual dirigidas a esta vítima, menor de idade.
Na verdade, a ofendida em momento algum do seu depoimento tece qualquer apreciação ao carácter sexual ou não das mensagens recebidas, mas mesmo que o fizesse em nada alteraria, a conclusão que o tribunal deveria atingir, face ao seu conteúdo, porquanto estamos perante juízo conclusivo e de direito.
Vejamos as mensagens em causa:
5) O arguido começou por questionar o número da menor ofendida, dirigindo-lhe as seguintes perguntas: “Qual seu numero”; “Vc tem aula hj”, dizendo-lhe a seguir “Queria deixa uma surpresa pro seu pai não queria que soubesse”.
6)Momentos depois, o arguido dirige à vítima as seguintes mensagens, em forma de pergunta: “Quem ta ai”, “Ta so”; “Seu pai e sua mae já foi trabalhar”; “Si eu pedir segredo vc guarda”; “Já que ta so posso ligar de vidii” (“vídeo”).
7)Quando a ofendida lhe disse estava sozinha, o arguido dirige-lhe as seguintes mensagens: “Ta no qaurto”; “Mansa uma foto sua”, “Pea mim poder rw ligar”.
8)O arguido insistiu várias vezes para a vítima enviar uma foto sua, através das seguintes expressões: “Manda foto”; “Confiança”.
9)A menor acedeu a esse pedido do arguido e enviou-lhe uma foto de rosto, tendo o arguido retorquido “Isso não e no quarto?”, interpelando-a de seguida com a mensagem: “Manda mas uma foto de corpo inteiro”, “Que ai vou te ligar”.
10)O arguido reiterou o pedido para que a vítima lhe envie uma fotografia de corpo inteiro, dirigindo-lhe as seguintes expressões: “Mansa foto”; “Pra mim confiar em vc”; “Me mansa foto de corpo inteiro”; “Que ai ta ligo”.
11) No mesmo dia, e na mesma circunstância, o arguido estabeleceu uma ligação de videochamada com a menor ofendida, em que esta lhe exibiu rosto.
12) O arguido quis e obteve, através do sistema informático, fotografia da menor.
Sobre o que pode ser entendido sobre propostas de teor sexual, seguimos aqui o entendimento de José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro (in Crimes Sexuais, 2ª ed., pag.158 e 159): “A alteração de 2015 introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, acrescentou como modalidade do crime a "formulação de propostas de teor sexual". A formulação de propostas de teor sexual pode assumir a forma verbal, gestual, escrita ou qualquer outra forma de comunicação que não implique contato físico.
As propostas de caráter sexual que consubstanciam o tipo de crime, para que respeitem os princípios da necessidade e fragmentariedade do Direito Penal, não podem, no entanto, identificar-se com meras grosserias. A dimensão da «gravidade» que a proposta tem que assumir, em concreto, decorre do art.º 40.º da Convenção de Istambul segundo o qual está em causa um "comportamento indesejado de natureza sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o intuito ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo".
A configuração típica do ato deve, por isso sustentar-se na utilização de um tipo de linguagem (ou outra forma de expressão) baixa, ostensivamente sexual, rude, com aptidão para ferir a liberdade da vítima em termos sexuais, no sentido de que se sente invadida na sua privacidade sexual sem ter possibilidade ou capacidade de rejeitar um comportamento que lhe é imposto por terceiro. Terá que ser assim uma linguagem ou expressão gráfica com aptidão para a importunar, e que conduza a essa efetiva importunação sexual (crime de resultado). Recorde-se que o bem jurídico protegido é ainda a liberdade e autodeterminação sexual e não qualquer outro. Palavras, atos ou sugestões que atentem contra a honra e consideração da vítima configuram outros tipos criminais.”
Conforme se refere no Ac.RL de 19/12/2023, proc.95/22.6T9MFR.L1-5:
No juízo a tecer acerca da relevância jurídico criminal da conduta, há que considerar a natureza subsidiária do direito penal, decorrente do princípio da necessidade enquanto matriz orientadora em matéria de direitos fundamentais, e erigida esta a princípio jurídico-constitucional, com assento no preceito geral contido no art.º 18, nº 2 da Lei Fundamental.
Decorrendo de tal natureza subsidiária um princípio de intervenção mínima do direito penal, ou última ratio da intervenção da jurisdicidade, significa isso que não deve tal intervenção ocorrer quando seja possível proteger o bem jurídico – com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares. Tem, por conseguinte, que haver um mínimo de significado da conduta, um mínimo de gravidade, uma ressonância ético-social censurável, para que se considere ter a mesma alcançado o patamar da tipicidade e para se lhe conferir dignidade penal.
Deste modo, não são penalmente relevantes a mera lesão da susceptibilidade pessoal, a indelicadeza, a grosseria, a falta de educação. Uma conduta pode ser censurável em termos éticos, ou deontológicos, ou disciplinares e não ser censurável em termos penais.
O critério a utilizar para aferir do carácter atentatório da liberdade sexual das propostas de carácter sexual é, por conseguinte, o da sua gravidade, atento o disposto no art.º 18º da CRP e considerando as circunstâncias do caso concreto, a idade da vítima, os usos do lugar, as realidades sociais, das conceções dominantes e da própria evolução dos costumes e tendo como matriz interpretativa o disposto no art.º 40 da Convenção de Istambul.
Descendo ao caso concreto, o que se retira das mensagens enviadas, de relevo, é tão só o arguido a solicitar o envio de “foto de corpo inteiro” à ofendida.
Esta mensagem, objectivamente analisada, não contém nenhuma conotação sexual, nem implícita nem explicita, pois não tem a ela associada qualquer elemento que imediatamente sugestione que pretende ter cariz sexual, dado não ter sido antecedida ou sucedida por outras mensagens que a possam caracterizar como tal.
Não solicita que a vítima esteja nua, ou indica alguma zona do corpo que este devesse fotografar e que tenha conotação sexual.
Não tece qualquer comentário ao destino pretendido pela foto, ou qual o efeito que poderá a mesma provocar nele.
Aliás, a sucessão das mensagens é “Mansa foto”; “Pra mim confiar em vc”; “Me mansa foto de corpo inteiro”; “Que ai ta ligo”.
A caracterização de uma mensagem, enquanto contendo teor sexual, tem de resultar da análise da mesma ou do enquadramento do seu envio, necessitando de conter expressões que tenham a ver com a esfera sexual do destinatário, ou em última instância do emitente.
E não é pelo facto de a ofendida ter abruptamente interrompido a chamada, afirmando receio, que se podem caracterizar as mensagens como tendo cariz sexual, como sustenta a recorrente, porquanto não é a reacção da vítima que permite a caracterização da proposta, devendo a mesma ser analisada objectivamente.
Aliás, in casu, a vítima apenas afirma estranheza face à interpelação, mas não mais que isso:
Interveniente (8:16) O que é que sentiu?
Ofendida (8:18) Eu senti estranho. Primeiro ele pediu a foto, depois eu mandei a metade da cara e eu acho que era só depois, não lembro tão bem, só depois que pediu do corpo todo, depois eu já senti estranho.
Nesta parte, o que o recorrente verdadeiramente pretende é contrapor a sua posição à prova que foi produzida em audiência de julgamento, é fazer vingar a sua própria leitura da referida prova, insurgindo-se contra o facto de o Tribunal ter considerado assente os factos como o fez.
No fundo, limita-se a relatar a divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, mas sem nunca os contrapor ou escalpelizar.
E face ao que vimos expondo, não se pode deixar de concluir pelo acerto do tribunal recorrido da decisão da matéria de facto provada e não provada sobre tal segmento fundamental:
Segundo o mesmo: “assim, por razões que explanaremos em sede de direito, parece claro do teor da conversa, que se se limitou àquilo que a ofendida descreveu e que transparece das mensagens, que esta não foi aliciada para qualquer encontro visando a prática de actos sexuais, não foram praticados perante ela actos de carácter exibicionista, formuladas propostas de teor sexual ou foi constrangida a contacto de natureza sexual.
Concedemos que o arguido, ciente da idade da menor, é profundamente desadequado ao pedir-lhe uma fotografia de corpo inteiro e a dirigir-se à mesma deste modo velado, mas, sem mais, não podemos concluir por este pedido que visava importuná-la sexualmente ou aliciá-la para acto sexual. Não podemos negar, com segurança, que a conversa não pudesse encaminhar-se para esses propósitos, mas a sageza da menor em proteger-se e em terminar de imediato a conversa evitou, na verdade, que esta pudesse escalar para temas sexuais. Compreendemos também o seu incómodo, razão pela qual de imediato bloqueou o contacto, mas não cremos que tenha havido qualquer cariz sexual na troca de mensagens mantida, motivo pelo qual se impõe a absolvição do arguido.”
E igualmente com acerto entende que a consideração de algo como proposta sexual, implica um juízo de direito, e logo remete para o segmento do enquadramento jurídico onde refere:
“A respeito do crime de importunação sexual, é certo que a lei não tipificou os meios do exibicionismo, contactos de natureza sexual ou quais as propostas de teor sexual. Assim, os actos exibicionistas pressupõem condutas ou gestos com significado sexual, inferido das circunstâncias em que o crime é cometido, sendo certo que pode não envolver contacto físico com a vítima. Constrangimento a contacto de natureza sexual, implica, também troca de palavras, gestos grosseiros de natureza sexual, ameaças ou insinuações dirigidos à vítima que a levem a um acto sexual. Por fim, a formulação de propostas de teor sexual exige convite, oferta ou sugestão a um acto de natureza sexual, podendo ser feita de forma verbal, gestual, escrita ou qualquer outra forma de comunicação que não implique contacto físico. Ora, uma vez mais, não cremos que pedir uma fotografia de corpo inteiro da ofendida, nunca pedindo uma fotografia de nu – nunca se sugerindo, sequer, durante a insistência, que esta esteja nua, por exemplo, nem este pedido se subentenda da conversa estabelecida – e recebendo uma fotografia de metade do rosto da mesma, não configura sequer uma sugestão de convite a acto de natureza sexual. Em suma, não cremos que tenha havido qualquer comportamento activo ou omissivo do arguido que, objectivamente, assuma natureza, conteúdo ou significado directa ou indirectamente relacionado com a esfera da sexualidade, pelo que improcede a imputação ao arguido da prática de um crime de importunação sexual.”
E aqui entramos já na segunda questão decidenda:
b) Da verificação dos elementos constitutivos do crime de importunação sexual agravado, p. e p. pelo artigo 170º e 177º, n.º 1 c), ambos do Código Penal
Reiteramos as considerações já acima tecidas, e que impossibilitam a subsunção do comportamento do arguido ao tipo legal do crime de importunação sexual, p. e p. pelo art.º 170º e 177º nº 1 al.c) do Cód.Penal.
Como escreveram José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro (in Crimes Sexuais, 2ª ed., pag.149 e 152), em anotação a este normativo:
Pretendeu-se, desde o primeiro momento, criminalizar todas as condutas que implicam desprezo pela vontade do sujeito que é contrária à ingerência de um terceiro na sua esfera sexual. Ou seja, não se dá ao sujeito passivo a oportunidade de manifestar a sua vontade sobre o ato sexual em que se viu envolvido.” (…) Trata-se, ainda assim, de uma criminalização que se encontra no limite da dignidade do bem jurídico tutelado. A exigência de uma proposta concreta de teor sexual limita, no entanto, o âmbito da criminalização”.
Segundo Maria do Carmo Silva Dias, in “Repercussões da Lei nº 59/2007, de 4/9 nos “crimes contra a liberdade sexual”, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, CEJ, ponto 2: “protege-se penalmente em princípio a dimensão negativa - porque mais carecida de protecção - mas, o legislador deve ter o cuidado de, ao maximizar a tutela do bem jurídico por essa via (negativa), não acabar por limitar ou restringir de forma excessiva a liberdade sexual na sua dimensão positiva”.
Trata-se de crime de dano, ou seja, de um crime cuja realização tem como consequência a lesão efetiva do bem jurídico e também de um crime de resultado, ou seja, de um crime para cuja concretização se exige que se tenha realizado o resultado proibido por lei: uma efetiva importunação de outrem.
Mas para que se tenha por preenchido o elemento objectivo do tipo convocado, é necessário que o arguido tenha praticado perante a vítima atos de caráter exibicionista, formulado propostas de teor sexual (introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto) ou constrangido a vítima a contacto de natureza sexual (introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro).
Foi o que não se provou na presente situação.
Mas não podemos deixar de salientar o quão desapropriado o comportamento do arguido se afigura, mesmo analisado em termos objectivos, dado que afastado das normas societárias que deverão sempre reger os contactos com menores de idade por parte de adultos.
E é também evidente que, face aos contornos da conversa entre arguido e vítima, sempre ficará a dúvida do que se poderia seguir, caso esta não tivesse interrompido a chamada, e tivesse acedido aos pedidos do arguido.
Mas mesmo que se entendesse que após o início da conversa, de acordo com as regras da normalidade, se sucederiam pedidos de cariz sexual, ainda assim estaríamos no domínio da tentativa, cuja punibilidade se mostra excluído do tipo legal, previsto no art.170º do Cód. Penal.
Conforme referem José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro (in Crimes Sexuais, 2ª ed., pag.161), “O crime apenas se consuma com a prática de actos exibicionistas, o contacto sexual ou formulação de propostas de teor sexual, não sendo a tentativa punível (art.23º nº1 do Cód.Penal).”
Face ao exposto, bem andou o tribunal recorrido ao absolver o arguido do referido crime.
Improcede assim, nesta parte, o recurso interposto pelo Ministério Público.
»
III- DISPOSITIVO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em conformidade:
1º. Altera–se a matéria de facto provada e não provada considerada em sede de sentença, nos termos e no sentido consignados no ponto II – 4 a) da presente decisão;
2º. No mais, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Sem custas, por delas ser isento o recorrente.
Notifique nos termos legais.
»
Lisboa, 25 de Março de 2025
(O presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art.º 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Os Juízes Desembargadores,
João Grilo Amaral
Alda Tomé Casimiro
Rui Coelho
_______________________________________________________
1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de .../.../2010 e .../.../2010, in http://www.dgsi.pt.
2. FF, Direito Processual Penal Português, vol. 3, ..., 2015, pág.335; GG e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de .../.../1995, publicado no DR/I .../.../1995.
4. Conforme acórdão do ..., n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de ... de ... de 2012.