RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
FRAUDE NA OBTENÇÃO DE SUBSÍDIO OU SUBVENÇÃO
DUPLA CONFORME
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
INADMISSIBILIDADE
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
JUROS DE MORA
CONTAGEM DOS JUROS
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I - Tendo os arguidos sido condenados pela prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio agravado, previsto e punido pelos artigos 2.º, 8.º, alínea f), 36.º n.º 1, alíneas b) e c), n.ºs 2, 4 e 5 alínea a), do DL 28/84 de 20 de Janeiro, em penas inferiores a oito anos de prisão, verificando-se in casu “dupla conforme” e “dupla conforme in mellius, nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, al. b), 400.º, n.º 1, alíneas e), e f), 420.º, n.º 1 e 414.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, é de rejeitar os recursos por aqueles interpostos, no que respeita à matéria criminal (penas principais e penas acessórias).
II - Pese embora o pedido de indemnização cível deduzido no processo penal goze de autonomia (art.º 400.º n.º 3 do CPP), sendo-lhe aplicáveis os pressupostos gerais de recorribilidade (art.º 629.º do CPC) e na ausência de norma especifica, nos termos do art.º 4.º do CPP, sendo-lhe também aplicáveis os pressupostos do recurso de revista e da “dupla conforme” (art.º 671.º n.ºs 1 e 3, do CPC), não se pode olvidar que nos situamos em sede de processo penal, impondo-se respeitar o que neste âmbito foi decidido. Com efeito,
III - Mediante o exercício da acção cível o que está em causa no processo penal é o conhecimento pelo tribunal de factos que constam da acusação e do respectivo pedido de indemnização que, consequentemente, são coincidentes no que refere á caracterização do acto ilícito. Assim, a tramitação probatória é a mesma no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, pelo que se considera não ser admissível a impugnação que pretenda colocar em causa a matéria de facto que suporta a responsabilidade penal.
IV - Não sendo admissíveis os recursos na sua vertente penal, não há que apreciar o alegado erro de direito probatório material suscitado pelos recorrentes, por via do qual pretendiam os mesmos que se procedesse à alteração da matéria de facto fixada (dando-se como não provada a transferência do subsídio pelo recorrido), e consequentemente se decretasse a sua absolvição.

Texto Integral


Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório

1.1. Em processo comum, com intervenção do tribunal singular, na Comarca da Guarda, Juízo de Competência Genérica de ... - Juiz ..., pela prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio agravado, previsto e punido pelos artigos 2.º, 8.º, alínea f), 36.º, n.º1, alíneas b) e c), n.º 2, n.º 4 e n.º 5 alínea a), do Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, foram os arguidos AA, BB, CC, DD, EE, e FF submetidos a julgamento. O “Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P.”, (IFAP,IP) deduziu pedido de indemnização contra os arguidos, pedindo a sua condenação no pagamento do montante de 207.700,95 euros (correspondendo 195.434,60 euros ao subsídio co-financiado comunitariamente indevidamente recebido, e 20.325,20 euros a juros à taxa legal, contados desde o dia 25.12.2015 até 30.6.2021), acrescido de juros legais vincendos até efectivo pagamento. E requereu ainda que, no caso de condenação dos arguidos em pena de prisão suspensa na sua execução, esta seja condicionada ao pagamento ao IFAP,I.P. das quantias em que venham a ser condenados.

Teve lugar a audiência de julgamento.

Proferida sentença, nela se finalizou com o seguinte dispositivo:

“a) Absolver as arguidas BB, CC e DD da prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 2.º, 8.º, alínea f), 36.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, n.º 4 e n.º 5, alínea a), do Decreto Lei 28/84 de 20 de Janeiro.

b) Condenar os arguidos AA, EE e FF pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 2.º, 8.º, alínea f), 36.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, n.º 4 e n.º 5, alínea a) do Decreto Lei 28/84 de 20 de Janeiro, respectivamente, nas penas principais de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, 3 (três) anos de prisão e 3 (três) anos de prisão.

c) Suspender a pena de 3 (três anos) e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido AA, por igual período de tempo, subordinada ao cumprimento do seguinte dever:

- Entregar ao Demandante (IPAF) a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) até ao terminus do período da suspensão da execução da pena.

d) Suspender a pena de 3 (três anos) de prisão aplicada ao arguido EE, por igual período de tempo, subordinada ao cumprimento do seguinte dever:

- Entregar ao Demandante (IPAF) a quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros) até ao terminus do período da suspensão da execução da pena.

e) Suspender a pena de 3 (três anos) de prisão aplicada ao arguido FF, por igual período de tempo, subordinada ao cumprimento do seguinte dever:

- Entregar ao Demandante (IPAF) a quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros) até ao terminus do período da suspensão da execução da pena.

f) Condenar os arguidos AA, EE e FF [também] nas penas acessórias de privação do direito a subsídios ou subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, respectivamente, pelos períodos de 3 (três) anos, 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e na publicidade da decisão condenatória.

a) Condenar os arguidos AA, EE e FF nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça a pagar por cada um dos arguidos condenados em 2,5UC.

b) Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização cível deduzido pelo “Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P.” e, em consequência:

- Absolver as arguidas/demandadas BB, CC e DD dos pedidos contra si deduzidos.

- Condenar os arguidos/demandados AA, EE e FF a pagar ao Demandante a quantia de 187.375,75€ (cento e oitenta e sete mil, trezentos e setenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida das quantias devidas a título de juros de mora calculados à taxa legal e contados desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil; absolvendo-se os arguidos do demais peticionado

c) Condenar a demandante e os demandados/arguidos AA, EE e FF nas custas cíveis do processo na proporção dos respectivos decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que os mesmos possam, eventualmente, beneficiar”.

Inconformados com esta decisão dela recorreram para a Relação os arguidos EE e FF.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra foi decidido:

“a) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelos arguidos FF e EE e, em consequência, decidem reduzir para 1 ano e 6 meses o período da pena acessória de privação do direito a subsídios e subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, aplicada ao arguido EE;

b) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, IP (IFAP, IP) e, em consequência, decidem:

▪ revogar a sentença recorrida na parte em que condenou os arguidos a pagar juros de mora contados desde a notificação para contestar o pedido de indemnização civil;

▪ condenar os arguidos a pagar juros de mora contados desde 25.12.2015.

No mais, mantém-se a sentença recorrida”.

1.2. Inconformados com esta decisão dela recorrem os arguidos EE e FF, concluindo a sua motivação nos seguintes termos:

A. Dá-se por reproduzida, por facilidade e economia processuais, a factuologia considerada – provada e não provada – indicada nas alegações sob as rubricas DOS FACTOS PROVADOS e DOS FACTOS NÃO PROVADOS, sem prescindir do alegado nos pontos 59 a 61 e conclusões CC a EE.

B. A sentença proferida nos autos de processo comum 129/17.6..., do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo de Competência Genérica de ... – Juiz ..., resultou, entre outros, na condenação dos recorrentes pela prática, em co-autoria e na forma consumada de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 2.º, 8.º, alínea f), 36.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, n.º 4 e n.º 5, alínea a) do Decreto-Lei n.º 28/84 de 20, de Janeiro nas penas principais de 3 (três) anos de prisão, suspensas na sua execução por igual período de tempo, subordinadas ao cumprimento do dever de entregar EUR. 15 000,00 ao Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, IP (doravante, para todos os efeitos, “IFAP, IP”) até ao terminus do período de execução das penas e no pagamento ao demandante IFAP da quantia de EUR. 187 375,75, acrescida das quantias devidas a título de juros de mora calculados e contados desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil; Adicionalmente, foi também proferida decisão de condenação dos arguidos nas penas acessórias de privação do direito a subsídios ou subvenções outorgadas por entidades ou serviços públicos pelos períodos de dois anos e seis meses e na publicidade da sentença condenatória.

C. Os recorrentes, por não concordarem com a sentença, interpuseram recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, o qual concedeu parcial provimento ao recurso interposto e, em consequência, decidiu, apenas, reduzir para 1 ano e 6 meses o período da pena acessória de privação do direito a subsídios e subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, aplicada ao recorrente EE.

D. Também o IFAP interpôs recurso para o Tribunal a quo e, para o que aqui releva, com o fundamento de não concordância da condenação dos recorrentes no pagamento dos juros contados, “apenas”, desde a data em que foram notificados para contestar o pedido de indemnização civil, tendo o Tribunal a quo concedido, igualmente, parcial provimento ao mesmo e, em consequência, revogou a sentença proferida em 1.ª Instância na parte em que os recorrentes foram condenados a pagar juros de mora contados desde a notificação para contestar o pedido de indemnização civil, alterando tal segmento decisório por condenação no pagamento de juros de mora contados desde 25.12.2015, data essa bastante anterior à notificação para contestação do PIC, o que acarreta, em concomitância, uma alteração da decisão em manifesto desfavor dos ora recorrentes, na medida em que o quantum de juros devidos por estes aumentou consideravelmente quando comparado com a decisão proferida em 1.ª Instância.

E. Entendem os recorrentes que o Tribunal a quo não avaliou nem decidiu correctamente as questões de Direito suscitadas, relevadas e aplicáveis, alterando a decisão proferida em 1.ª Instância em manifesto desfavor dos recorrentes o que, desde logo, legitima o direito a recorrer do Acórdão ora colocado em crise;

F. Os recorrentes deveriam, outrossim, serem absolvidos, in totum, do PIC contra no PIC e respectiva procedência padece de erro de Direito probatório material por ofensa de uma disposição expressa de Lei que exige certa e determinada espécie de prova para a existência do facto.

G. Também constitui objecto do presente recurso, a alteração da decisão proferida em 1.ª Instância relativa ao pagamento dos juros e respectiva contabilização, ou seja, a decisão por parte do Tribunal a quo de condenar os recorrentes no pagamento dos juros se contabilizarem desde 25.12.2015 (e não apenas desde a notificação para contestar o PIC – tal como tinha entendido o Tribunal de 1.ª Instância).

H. É jurisprudência assente que o pedido de indemnização civil enxertado no processo penal é autónomo em relação a este, pelo que em caso de inadmissibilidade do recurso quanto à matéria penal (art.º 400.º n.º 3, do CPP), são de aplicar, subsidiariamente, as normas do processo civil quanto ao recurso restrito à matéria civil, nomeadamente a aplicação dos pressupostos da sua admissibilidade em geral (art.º 629.º, n.º 1, do CPC), dos pressupostos de admissibilidade da revista e da dupla conformidade (art.º 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC) e, por fim, dos pressupostos revista excepcional (art.º 672.º do CPC).

I. O “IFAP” deduziu pedido de indemnização civil contra os recorrentes, invocando a factualidade descrita em sede de acusação pública mais alegando, em suma, que, como consequência directa, necessária e adequada do comportamento dos recorrentes, este alegadamente sofreu danos de natureza patrimonial, num montante global EUR. 207 700,95 (duzentos e sete mil e setecentos euros e noventa e cinco cêntimos.

J. O Tribunal de 1.ª instância condenou os recorrentes a pagar ao Demandante a quantia de EUR. 187 375,75 (cento e oitenta e sete mil, trezentos e setenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida das quantias devidas a título de juros de mora calculados à taxa legal e contados desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil.

K. O “IFAP”, inconformado com a sentença, interpôs recurso para o Tribunal a quo, a peticionar a revogação da sentença proferida pela 1.ª Instância e, em consequência, ser proferido acórdão que determinasse a condenação dos recorrentes no pagamento dos juros contados desde 30.09.2014, data do recebimento da quantia de EUR. 187 375,75, nos termos dos artigos 805.º n.º 2, alínea b), 806.º, números 1 e 2 e 559.º todos do Código Civil.

L. O Tribunal a quo decidiu, embora erradamente, que assistia razão ao “IFAP” quando defendia que os juros não podiam ser contabilizados a partir da notificação do pedido de indemnização civil que sucedeu em 09.05.2022, mas antes calculados desde 25.12.2015.

M. Quer o Tribunal de 1.ª Instância quer o Tribunal a quo incorreram, nas respectivas decisões, em patente erro de direito probatório material, por ofensa de uma disposição expressa de lei que exige certa e determinada espécie de prova para a existência do facto.

N. Perante o Tribunal a quo, foi alegado – e objecto de recurso – pelos recorrentes que não tinha ficado provada a transferência bancária, dado que, dos autos, apenas constam documentos da lavra do “IFAP”, fls. 116 e 117, os quais são manifestamente inaptos a demonstrar qualquer transferência de fundos e/ou ordem de pagamento de qualquer outra natureza, os quais foram inclusivamente impugnados em sede de contestação (cfr. art. 6.º da dita peça processual).

O. Sublinhe-se que tais documentos, uma vez que são da autoria do próprio demandante IFAP, apenas terão valor probatório naquilo que seja contrário aos respectivos interesses do mesmo, tudo nos termos e para os efeitos do art.º 376.º n.º 2 do Código Civil, o que desde já se invoca.

P. Resulta da Portaria nº 289-A/2008, de 11 de Abril, mais concretamente do seu art. 21.º que: “Os pagamentos dos apoios são efectuados pelo IFAP, I. P., por transferência bancária, para a conta referida na alínea i) do n.º 1 do artigo 9.º, nos termos das cláusulas contratuais, no prazo máximo de 10 dias úteis após a emissão da autorização de despesa.” (destaque nosso).

Q. Também o contrato celebrado entre a sociedade “Q..., Lda.”, e o “IFAP”, junto a fls. 116, na Cláusula B7, estipula que: “Os pagamentos são efectuados pelo IFAP por transferência bancária para a conta indicada neste contrato, sem prejuízo do disposto no n.º1 do art.º 2.º do Decreto Lei n.º 37-A2008, de 5 de Março”.

R. Significa isto que, quer a Lei quero contrato acima referido, exigem para a prova do pagamento, de modo único e exclusivo, que esta seja feita impreterivelmente por meio do respectivo comprovativo de transferência bancária, ao mesmo tempo que o art.º 376.º, n.º 2do Código Civil nega qualquer efeito probatório aos documentos juntos aos autos por parte do “IFAP” com o fito de tentar demonstrar que tais pagamentos foram realizados.

S. Esta limitação de efeito probatório (art.º 376.º, n.º 2 do Código Civil) a que se soma a exigência decorrente do previsto no art.º 21.º da Portaria 289-A/2008 determina, em que por um lado a prova dos pagamentos apenas poderá ser feita com base na junção de um documento bancário que titule a concretização dessa transferência; e por outro, que os documentos juntos pelo “IFAP” apenas poderão produzir efeitos probatórios em tudo o que seja contrário aos seus próprios interesses isto é, nenhum efeito probatório produzem contra os ora recorrentes.

T. Bem sabendo o Tribunal a quo que aquele documento só por si não fazia prova da transferência bancária decidiu conjugá-lo com outro meio de prova, mais concretamente através do relatório elaborado pela técnica da Polícia Judiciária (doravante designada por PJ).

U. O Tribunal a quo, para a sua decisão, baseou-se num documento lavra do “IFAP” em conjugação com um relatório que constitui, nada mais nada menos, do que um suposto relato em segunda mão (“depoimento indirecto por escrito”) de um alegado quadro do “IFAP”,sendo deconcluir-se,ademais, que a própria PJ,para a elaboração do seu relatório, fez-se valer do mesmo documento junto a fls. 116 e 117, cuja inaptidão probatória já se deixou devidamente assinalada, daí que um e outro adrede valham zero.

V. Resulta do art.º 364.º do Código Civil que: “Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.”; por outro lado, o disposto no art.º 376.º, n.º 1 e 2 do Código Civil dita que os “factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante”.

W. Urge ressalvar que relatório da PJ não pode ser tido como prova pericial, o que se demonstra pelo facto do seu autor ter prestado declarações, em sede de julgamento, como testemunha e não como perito. Além disso, a perícia tem regras processuais próprias, nomeadamente o facto de nas perícias singulares, o perito ser nomeado pelo julgador (e não pelo MP) e, bem assim, o direito da parte contrária contribuir para o objecto da perícia.

X. Por isso, também o Tribunal a quo para o seu juízo decidendi apoiou-se num meio de prova que não era juridicamente admissível, sendo, pelo menos, insuficiente, uma vez que a declaração apenas se podia provar por documento específico, in casu, através de um documento bancário que concretizasse a exacta transferência do dinheiro para a produção dos efeitos probatório dos alegados pagamentos objecto dos presentes autos (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 6637/19.7T8LSB.L1-4, relatora CELINA NÓBREGA, de 16.12.2020, disponível em www.dgsi.pt).

Y. Como já alegamos, o art.º 21.º da Portaria nº 289-A/2008 dita: “Os pagamentos dos apoios são efectuados pelo IFAP, I. P., por transferência bancária, para a conta referida na alínea i) do n.º 1 do artigo 9.º, nos termos das cláusulas contratuais, no prazo máximo de 10 dias úteis após a emissão da autorização de despesa.” bem como o contrato celebrado entre a “Q..., Lda.” e o “IFAP”, fls. 83 verso, na Cláusula B7, diz-nos que: “Os pagamentos são efectuados, pelo IFAP, por transferência bancária para a conta indicada neste contrato (…)”.

Z. Em menagem a uma interpretação sistemática, germânicamente coerente do ordenamento jurídico português, tendo o legislador empregue elemento literal em tudo equivalente no disposto no art.º 150.º do CPT, no art.º 21.º da Portaria 289-A/2008, e tendo as partes convencionado no contrato o mesmo critério na Cláusula B7 (fls. 83 verso) ressalta à evidência que foi, justamente, intenção do legislador e das próprias partes salvaguardar e reforçar que a prova dos pagamentos feitos num e noutro caso fosse feita por prova idónea para o efeito, isto é, através de documento emitido por entidade bancária que atestasse a transferência dos montantes.

AA. Se é certo que no art.º 607.º do CPC vigora o princípio da liberdadedejulgamento ou da prova livre, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto na decorrência da convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, o mesmo não acontece se a lei, ou a convenção das partes, exigir formalidade probatória especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

BB. Segundo o princípio da prova legal o julgador tem de sujeitar a apreciação das provas às regras ditadas pela Lei que lhes designam o valor e a força probatória e é neste circunspecto que este Colendo Tribunal adquem terá queactuar,através dos seus poderes correctivos que permitirão, quanto à decisão da matéria de facto aqui relatada, verificar se os princípios legais foram, ou não, no caso concreto violados, que consubstanciam efectivos erros de direito cometidos na fixação da prova realizada em juízo, sendo que nesta óptica, afinal, sempre se está no âmbito da competência própria Supremo Tribunal de Justiça, tal como decorre expressamente do art.º 674.º, n.º 3 do CPC (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 3282/17.5T8STB.E2.S1, relatora ANA PAULA BOULAROT, de 22.02.2022, disponível em www.dgsi.pt).

CC. Assim, dúvidas não restam que encontrando-se os autos desertos de qualquer prova relativa aos pagamentos alegados pelo “IFAP”, leva a que não se possa dar como provado os valores peticionados em sede de pedido de indemnização civil, devendo o facto 27 DADO COMO PROVADO, passar parcialmente para os factos NÃO PROVADOS com a seguinte redacção: “Que após o envio pelo arguido AA das facturas bem como dos autos de medição elaborados pela empresa representada pelos arguidos FF e EE e pela “B..., Lda.”, no valor global de €488.586,50, conseguiu, dessa forma, que o IFAP, a 30 de Setembro de 2014, transferisse o montante da quantia global de €195.434,60 correspondente a 40% do valor das facturas apresentadas pelos arguidos) para a conta ...40, titulada pela “Q..., Lda.”.

DD. A outra parte deste facto deverá manter-se nos factos provados com a seguinte redacção: “O arguido AA enviou as referidas facturas bem como os autos de medição elaborados pela empresa representada pelos arguidos FF e EE, no valor global de €488.586,50.”.

EE. In limite, deverá o Colendo Tribunal ad quem ordenar ao Tribunal a quo que, face ao juízo e decisão a proferir quanto à impossibilidade jurídica de atender aos meios de prova que o mesmo atendeu, altere a matéria de facto nos termos e com a redacção supra identificada.

FF. Em face disto, os recorrentes devem ser absolvidos do pedido de indemnização civil em que foram condenados.

GG. Subsidiariamente, o que se só se concebe apenas por mero dever de patrocínio, deverá ser proferido Acórdão que revogue a decisão recorrida e que condene os recorrentes no pagamento dos juros a contar desde a data em que foram notificados para contestar o pedido de indemnização civil.

HH. A restituição prevista no art.º 39.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro é uma consequência jurídica do crime e, simultaneamente, de uma sanção civil, consistente na perda de um benefício, uma vez que não resulta da norma a obrigação da restituição com juros e, como tal, a computação dos ditos basear-se-á na mora dos devedores, ora recorrentes, nos termos do art.º 805.º do Código Civil (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/02, o qual, a contrario, dispõe que, quando não há qualquer actualização à data da decisão, como foi o caso, os juros de mora contam-se, apenas, a partir da citação, in casu, da notificação para contestação do PIC por banda dos ora recorrentes na qualidade processual de demandados.

II. Acresce, ainda, que não resulta dos factos provados que tenha havida alguma interpelação aos recorrentes, estranhos à celebração do contrato com o “IFAP”, para pagarem tais quantias, por isso na inexistência de qualquer acto de liquidação antecipatório pormeio de uma meramente eventual interpelação do demandantecivil aos ora recorrentes, nem sequer tinham estes conhecimento do valor líquido da qual o demandante se arrogava credor.

JJ. Como tal, e justamente em menagem ao disposto no art.º 805.º, n.º 3 in fine, a notificação dos demandados para contestar o pedido de indemnização cível e às taxas legais desde então em vigor e vincendos até efectivo e integral pagamento (cfr. artigos 556.º n.º 2, 559.º n.º 1, 804.º, 805.º alínea a), 806.º n.º 1 e 559.º n.º 1, todos do Código Civil e Portarias em vigor nas respectivas datas no que contende com a taxa de juro aplicável) configura o dies a quo da contagem dos juros e não qualquer outra data anterior.

KK. Atento o que vai dito, mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, impondo-se que este Tribunal ad quem, in limite, revogue o Acórdão recorrido e o substitua por outro que determine que a contagem dos juros de mora devidos pelos ora recorrentes apenas se iniciou com a notificação destes para contestar o PIC deduzido pelo demandante IFAP, ou seja, no dia 09.05.2022.

LL. Por outro lado, para efeitos de congruência entre a decisão do pedido de indemnização civil e a do âmbito criminal deve esta ser revogada com a consequente absolvição dos recorrentes do crime em que foram condenados, na medida em que deixam de subsistir motivos para a sua condenação.

MM. Tudo ponderado revela o desajuste da decisão, entendendo-se que foram violadas, entre outras, as normas ínsitas nas disposições do artigos 364.º, 376.º n.º 2, 393.º e 805.º, n.º 3 todos do Código Civil, art.º 21.º da Portaria nº 289-A/2008, de 11 de Abril e art.º 607.º do CPC.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE OPRESENTERECURSOSER JULGADOPROCEDENTE POR PROVADO E, EM CONSEQUÊNCIA:

A. SEREM OS RECORRENTES ABSOLVIDOS DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL;

B. CUMULATIVAMENTE, SEREM OS RECORRENTES ABSOLVIDOS DA PRÁTICA DO CRIME E DAS RESPECTIVAS SANÇÕES ACESSÓRIAS;

C. SUBSIDIARIAMENTE, SER REVOGADA A DECISÃO DO TRIBUNAL A QUO QUE CONDENOU OS RECORRENTES A PAGAREM JUROS DE MORA A CONTAR DE 25.12.2015 E ALTERÁ-LA POR OUTRA QUE CONDENE OS RECORRENTES A PAGAR OS JUROS DE MORA A CONTAR DA DATA DE 09.05.2022, OU SEJA, DESDE A DATA EM QUE FORAM NOTIFICADOS PARA CONTESTAR O PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL.

1.3. O Ministério Público respondeu ao recurso, nos seguintes termos:

“O presente recurso restringe-se a matéria cível. Assistente/demandante e demandados estão representados nos autos pelos seus ilustres mandatários judiciais.

Não cumpre ao Ministério Público tomar posição quanto à questão de naturezacívelem debate, uma vez que neste domínio inexiste decisão que tenha interesse em contradizer ou impugnar, carecendo por isso de interesse em agir. Vossas Excelências apreciarão e decidirão como for de Justiça”.

1.4. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Procurador - Geral Adjunto emitiu douto parecer, com o seguinte conteúdo:

“ (…) De acordo com o art.º 432.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do art.º 400.º.

Ora, segundo preceitua o art.º 400.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância.

Conforme previamente referido, os recorrentes EE e FF foram condenados na 1.ª instância pela prática, em coautoria, de um crime de fraude na obtenção de subsídio (art.º 36.º, n.ºs 1, als. b) e c), 2, 4 e 5, al. a), do Decreto-Lei 28/84 de 20 de janeiro), nas penas individuais de 3 anos de prisão, suspensas na execução por igual período de tempo subordinada ao cumprimento do dever de entregarem 15.000 euros ao IFAP, IP, até ao final do período da suspensão, e, acessoriamente, nas penas de privação do direito a subsídios ou subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos pelo período de 2 anos e 6 meses e na publicidade da decisão condenatória.

O Tribunal da Relação de Coimbra reduziu a duração da pena acessória de privação do direito a subsídios e subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos aplicada ao arguido EE para 1 ano e 6 meses e, no que à parte criminal respeita, manteve em tudo o mais a sentença do Juízo de Competência Genérica de ....

À vista dos artigos 400.º, n.º 1, al. e), e 432.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, temos, assim, por certo que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra é irrecorrível e que, como tal, o recurso deve ser sumariamente rejeitado nessa parte (artigos 414.º n.º s 2 e 3, 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. b), todos do Código de Processo Penal).

Isto quanto à reivindicada absolvição do crime (além da síntese final v. ainda a conclusão LL. do recurso).

Quanto à matéria relacionada com a condenação no pedido de indemnização civil e a data inicial da contabilização dos respetivos juros, entendemos, tal como o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, que nos falece interesse em tomar posição porquanto o Ministério Público não representa o demandante civil (IFAP, IP)”.

1.4. Foi observado o art.º 417.º n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.

1.5. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação (artigos 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal - CPP), as questões que se colocam à apreciação deste tribunal são as seguintes:

- Se os arguidos devem ser absolvidos do crime pelo qual foram condenados e das respectivas penas acessórias;

- Se os arguidos devem ser absolvidos do pedido de indemnização cível;

- Se os arguidos devem ser absolvidos do pagamento dos juros de mora;

Subsidiariamente

- Se os arguidos devem apenas ser condenados a pagar juros de mora a contar de 09.05.2022.

3. Fundamentação de Facto

3.1. Encontram-se provados os seguintes factos:

1. Os arguidos AA e BB foram sócios e gerentes da sociedade comercial “Q..., Lda.”, pessoa colectiva n.º ...56, desde a sua constituição a 16.11.1997 até 25.11.2013, voltando a exercer os cargos de gerentes a partir de 30.11.2016 e até à sua dissolução, encerramento da liquidação e cancelamento da matrícula ocorrido em 21.08.2018.

2. Entre 25.11.2013 e 30.11.2016 foram sócias e gerentes da mencionada sociedade comercial as arguidas CC e DD, filhas dos arguidos AA e BB.

3. Entre 25.11.2013 e 30.11.2016, os arguidos AA e BB continuaram a exercer, juntamente com a arguida CC, a gerência da “Q..., Lda.”, nomeadamente, dando ordens aos funcionários, contactando clientes, celebrando contratos de fornecimento de leite com pastores, pagando contas e cobrando créditos da empresa.

4. Os arguidos EE e FF foram sócios e gerentes da sociedade comercial “BR..., Lda.” desde a sua constituição a 10 de Dezembro de 1993 até à sua dissolução, encerramento da liquidação (em processo de declaração de insolvência decretada por sentença proferida a 23 de Dezembro de 2011 e transitada em julgado a 2012) e cancelamento da matrícula ocorrido a 14 de Agosto de 2015.

5. Em 14.12.2009, a sociedade comercial “Q..., Lda.”, representada pelo arguido AA, candidatou-se a um subsídio do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P. (IFAP) no âmbito do projecto de desenvolvimento rural (PRODER), o qual estava dotado de meios financeiros de natureza pública, com vista à criação de uma unidade de fabrico de queijo de ovelha e requeijão, por forma a promover a competitividade da empresa, sua inovação e desenvolvimento empresarial, ao abrigo da Portaria nº289-A782008, de 4 de Abril.

6. A criação da unidade de fabrico correspondia a um montante de investimento elegível de €2.525.900,50 correspondente a um subsídio de €1.008.745,20 por parte do IFAP, ou seja, de 40% do investimento global.

7. O arguido AA sabia que a sociedade de que era gerente não tinha capacidade financeira para um investimento daquele montante, ainda que com comparticipação de dinheiros públicos.

8. A “Q..., Lda.” apresentava problemas de tesouraria que se arrastavam desde, pelo menos, desde o ano de 2010 que se agudizou, no ano de 2011.

9. Ficou previsto o pagamento prestacional do subsídio, pelo IFAP, em três (3) tranches, até ao final de cada ano de 2010, 2011 e 2012, sendo que a execução material da unidade de fabrico deveria ocorrer até 31.12.2011.

10. Para tanto, foi celebrado e assinado o contrato de financiamento em 21.09.2010, do qual resultava várias obrigações para a “Q..., Lda.”, nomeadamente:

- Aumento de capital próprio no valor de €705.279,00 até ao último pedido de pagamento;

- Aumento de capitais permanentes no valor de €729.327,00 até ao primeiro pedido de pagamento;

- Licenciamento industrial aprovado até ao último pedido de pagamento;

- Dar início e concluir a execução física da obra, no prazo máximo de 6 a 24 meses, respectivamente, contado a partir da assinatura do contrato de financiamento;

- Os pedidos de pagamento ao IFAP deveriam ser apresentados eletronicamente tendo por base as despesas efectivamente realizadas e pagas;

- Aplicar integralmente o apoio para os fins para que foi concedido, cumprindo pontualmente as obrigações previstas no contrato de financiamento;

- Comunicar à autoridade de gestão, por escrito, no prazo de 10 dias sobre a sua ocorrência, sobre todos os factos susceptíveis de interferir na normal execução da operação nos termos aprovados.

11. Para cumprimento das referidas obrigações, os arguidos AA e BB realizaram um aumento de capital, registado em 30.11.2010, no valor global de €200.000,00 através de suprimentos, passando a deter cada um dos sócios uma quota no valor de €102.500,00 cada um.

12. De igual modo, em 16.5.2011, os arguidos AA e BB voltaram a realizar um aumento do capital da empresa, desta feita com entrada de dinheiro, no valor global de €445.000,00, passando a deter cada um uma quota de €325.000,00.

13. O valor de €445.000,00 apenas foi registado em conta de caixa, não tendo entrado qualquer montante nas contas bancárias da empresa por parte dos aqui arguidos AA e BB.

14. Os arguidos AA e BB contraíram, a título pessoal, um empréstimo bancário junto do banco Caixa Agrícola no valor global de €200.000,00 destinado a financiar investimentos, por escritura realizada em 28.6.2011.

15. Em 2 de Março de 2012, através de escritura pública, os arguidos AA e BB, contraíram novo empréstimo, a título pessoal, no valor de €70.000,00 junto da Caixa Agrícola com vista ao financiamento de investimentos.

16. Sucede que, os empréstimos contraídos a título pessoal pelos arguidos AA e BB não eram suficientes para o investimento global a que se propuseram, o que era do seu conhecimento.

17. Assim como a situação financeira da “Q..., Lda.” não permitia qualquer investimento daquela envergadura, o que era do conhecimento do arguido AA desde que apresentou, em representação da sociedade, a candidatura ao IFAP.

18. A sociedade BR..., Lda., gerida pelos arguidos FF e EE, foi a empresa contratada pelo arguido AA, para proceder à construção da referida unidade fabril, tendo apresentado ao IFAP os orçamentos realizados por aquela.

19. Sabendo da incapacidade da “Q..., Lda.” para realizar a obra, o arguido AA, ao invés de desistir do projecto, decidiu, mesmo assim, iniciar a obra.

20. E, como sabia que só receberia o valor do subsídio se apresentasse ao IFAP os documentos comprovativos das despesas com as obras, o arguido AA solicitou aos arguidos FF e EE para que a empresa que representavam emitissem facturas de trabalhos não realizados, por forma a que recebessem mais dinheiro do que aquele que efectivamente pagaram, plano a que os arguidos FF e EE aderiram.

21. Para tanto, os arguidos FF e EE, como representantes da sociedade BR..., Lda., na concretização do plano gizado com o arguido AA, elaboraram autos de medição e emitiram facturas de trabalhos de construção que não realizaram, conforme infra se discriminará:

A)

- No que diz respeito à estrutura da edificação, foram elaborados autos de medição que não correspondem aos valores contratados e facturados, ou seja, nos autos de medição nºs 2, 3, 5 e 6 foi apresentada a construção de 770,70 m3, sendo que o valor contratual foi de €550m3;

- Os autos de medição nº 3 e 5 apresentam uma duplicação da quantidade de construção prevista e contratualizada de 50 m3, no total de 100 m3.

- Os autos de medição nº 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 preveem um valor unitário contratual de €75 euros/m2, encontrando-se o valor unitário contratual de €25/m2.

- A soma das quantidades facturadas nos autos de medição nºs 3, 4, 5 e 6 foi de 1.577,00 m2, sendo que as quantidades facturadas nos autos de medição nºs 7, 8 e 9 foi de 1.603,50 m2, sendo que o trabalho contratualizado foi de 1800,00 m2.

B)

No que diz respeito aos pavimentos exteriores, cujo trabalho não foi executado na obra, correspondente ao auto de medição nº6 e aos autos 7, 8 e 9, sendo o valor unitário contratual de €2,00/m2, foi apresentado nos autos 6, 7 e 8 um valor unitário de €8,60/m2 e no auto 11 de €2,00/m2.

22. Em suma, a obra construída não corresponde aos autos de medição e facturação constantes dos autos 1 a 13 apresentados pela “Q..., Lda.” ao IFAP – cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido – tendo sido apenas efectivamente construídos, por referência ao orçamento de fls. 1665 e seguintes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:

- O estaleiro (€1.450,00);

- O movimento de terras (€6.000,00);

- As sapatas isoladas (ensoleiramento geral - €108.075,00);

- Os pilares em elevação (€10.000,00);

- As lajes fungiformes e escadas (€135.000,00);

- As paredes exteriores (€13.598,00);

- As paredes interiores (€2.190,00);

- Execução de reboco e esboço com acabamento a areado fino em paredes exteriores, incluindo a montagem de andaimes (€9.000,00);

- Escavação em abertura de acesso ao edifício, com largura de 6 metros (€1.000,00);

- Fornecimento e aplicação de tout venant em camada única de 0,30 cm, incluindo compactação (€1.200,00);

- Fornecimento e aplicação de lancil de passeio (€1.800,00);

- Escavação de terras para criação de duas lagoas (€7.875,00);

No valor global de €297.188,00.

23. Atendendo ao valor total facturado de €345.000,00, subsiste o montante de €48.812,00 que foi facturado, mas não executado em obra.

24. Tal facturação excedente foi solicitada pelo arguido AA ao arguido EE e FF, com o propósito de assim conseguir um valor superior a receber da comparticipação do IFAP, tendo aqueles arguidos, enquanto representantes da sociedade comercial “BR..., Lda.” aceitado facturar aquele montante a mais, acabando por descrever nos autos de medição e facturas emitidas quer trabalhos que não realizaram quer valor unitários que não correspondiam ao orçamentado e contratado.

25. Por falta de dinheiro para continuar a obra, a edificação da unidade fabril de queijos parou definitivamente no ano 2011.

26. Ainda assim, em Agosto de 2014, o arguido AA, não obstante saber que não possuía dinheiro para continuar com a obra da unidade fabril, que se encontrava abandonada desde o ano 2011, decidiu apresentar ao IFAP todas as facturas que tinham na sua posse respeitantes à obra, incluindo as que previam trabalhos não realizados ou repetidos, com o objectivo de receber a comparticipação que aquele Instituto lhes concederia para o projecto a que se sociedade se candidatou.

27. Na concretização desse desígnio, o arguido AA enviou as referidas facturas bem como os autos de medição elaborados pela empresa representada pelos arguidos FF e EE, no valor global de €488.586,50, conseguindo dessa forma que o IFAP, a 30 de Setembro de 2014, transferisse o montante da quantia global de €195.434,60, correspondente a 40% do valor das facturas apresentadas pelos arguidos, para a conta ...40, titulada pela “Q..., Lda.”

28. Das facturas apresentadas pelo arguido AA, €345.000,00 correspondem a facturas emitidas pela empresa “BR..., Lda.”, representada pelos arguidos FF e EE, onde se inclui o montante facturado de obra não realizada no valor de €48.812,00.

29. Os arguidos AA, FF e EE ao pactuarem a elaboração de facturas com valores superiores aos das obras efectivamente realizadas, agiram com o propósito de que tais documentos fossem apresentados ao IFAP, com vista a receber a comparticipação do subsídio a que a sociedade comercial “Q..., Lda.” se candidatou, como efectivamente veio a suceder, o qual de outra forma não seria atribuído no valor em que o foi, à custa do correspondente prejuízo patrimonial do Estado, através de erros e enganos em que o fez cair.

30. O arguido AA, no seu próprio interesse e da sociedade de que era gerente, agiu com o propósito concretizado de apresentar tais documentos ao IFAP, ciente de que os mesmos eram determinantes para o pagamento do valor do subsídio por parte do IFAP à sociedade de que era gerente, ocultando que a obra estava parada desde 2011 e que não possuía capacidade financeira para continuar e acabar o projecto a que se tinham proposto, e que de outra forma não conseguiriam obter, visando, deste modo, obter, no âmbito do contrato que a sociedade de que era gerente celebrara, um montante de subsídio superior ao que efectivamente teria direito, como conseguiu.

31. Os arguidos AA, FF e EE estavam cientes que os dados constantes das facturas eram essenciais na quantificação do apoio financeiro a atribuir à sociedade comercial “Q..., Lda.” pelo IFAP.

32. Os arguidos FF e EE, no seu interesse e da sociedade “Q..., Lda.”, agiram com o propósito concretizado de produzir documentos, cujo teor sabiam não corresponder à verdade, ciente de que tais documentos eram determinantes para o pagamento do valor do subsídio superior ao que aquela sociedade tinha direito a receber, o que de outra forma esta não teria conseguido obter.

33. Actuaram ainda os arguidos AA, FF e EE, por si e em representação das sociedades comerciais de que eram gerentes, no propósito concretizado que as facturas e autos de medição falsos justificativos do direito à comparticipação a atribuir pelo IFAP, obtendo por essa via um subsídio do Estado Português, que de outra forma não receberiam.

34. Os arguidos FF e EE sabiam que ao emitir a emissão de facturas com os valores dos trabalhos não realizados contribuiriam para o recebimento do subsídio correspondente a esses valores, plano a que aderiram.

35. Os arguidos AA, FF e EE agiram de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

36. Por sentença proferida a 20 de Janeiro de 2017, transitada em julgado, no processo que correu termos neste Juízo (Juiz ...) sob o n.º 8/17.7..., foi declarada a insolvência de “Q..., Lda.”, tendo os autos prosseguido para liquidação do activo, tendo sido paga ao IFAP, em sede de rateio final, a quantia total de 8.058,85€ (oito mil e cinquenta e oito euros e oitenta e cinco cêntimos).

37. Os arguidos AA, BB, CC, EE e FF não têm antecedentes criminais registados.

38. Por sentença proferida a 11 de Julho de 2017, transitada em julgado a 26 de Setembro de 2017, no processo comum singular que correu termos neste Juízo (Juiz ...) sob o n.º261/16.3... a arguida DD foi condenada pela prática, a 4 de Julho de 2016, de um crime de ofensa à integridade física previsto e punido pelo artigo 143º do Código Penal na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 6,00€, perfazendo a quantia de 480,00€; pena que veio a ser declarada extinta pelo cumprimento.

39. O arguido AA encontra-se reformado, sendo beneficiário de uma pensão no valor mensal de 461,85€, e vive com a esposa co-arguida BB em casa cedida por terceiro, não contribuindo com qualquer montante para as despesas da habitação. O arguido é proprietário de 30 ovelhas. O arguido tem o 4º ano de escolaridade.

40. A arguida BB encontra-se reformada, sendo beneficiária de uma pensão no valor mensal de 437,73€.

41. A arguida CC está desempregada, sendo beneficiária de subsídio de desemprego no montante mensal de 509,31€. A arguida vive com o seu filho menor e com o seu companheiro – que aufere a quantia mensal de 1.300,00€ – em casa arrendada pelo valor mensal de 400,00€, tendo a seu cargo as despesas relativas ao fornecimento de electricidade, água e gás no montante global mensal de 100,00€. A arguida tem o 12º ano de escolaridade.

42. A arguida DD é sócia gerente da sociedade “N..., Lda.”, auferindo a quantia mensal de 600,00€, e vive com os pais, contribuindo com o pagamento das despesas da habitação. A arguida tem o 12.º ano de escolaridade.

43. O arguido EE é mecânico de camiões, auferindo a quantia mensal de 2.800,00€, auferindo a sua esposa, enquanto empregada de limpeza, a quantia mensal de 2.000,00 €. O arguido vive em casa própria com a esposa e o maior filho de ambos, estudante, tendo a seu cargo a prestação relativa ao empréstimo à habitação contraído que se cifra no valor mensal de 1.970,00€. O arguido e a esposa são proprietários de um veículo automóvel da marca BMW, série 3, do ano de 2016 e de um veículo automóvel da marca Opel, modelo Adam, do ano de 2019, tendo, ainda, a seu cargo a prestação referente ao empréstimo contraído para aquisição das duas viaturas no valor mensal global de 685,00€. O arguido tem o 9º ano de escolaridade.

44. O arguido FF trabalha na construção civil, auferindo a quantia mensal de 2.500,00€, auferindo a sua esposa, enquanto secretária, a quantia mensal de 2200,00 €. O arguido vive com a esposa e os dois filhos menores do casal em casa arrendada pelo valor mensal de 1.600,00€, cifrando-se as despesas com o fornecimento de electricidade, água e gás no valor médio mensal de 300,00€. O arguido é propriedade de um prédio urbano sito na Bélgica, tendo a seu cargo a prestação relativa ao empréstimo mensal contraído que se cifra no valor mensal de 1360,00€. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade.

3.2. Factos Não Provados

Não se provou que:

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos que, nessa qualidade, se descreveram supra, designadamente:

a) Entre 25.11.2013 e 30.11.2016, a arguida DD exerceu, de facto, as funções de gerente da “Q..., Lda.”, nomeadamente, dando ordens aos funcionários, contactando clientes, celebrando contratos de fornecimento de leite com pastores, pagando contas e cobrando créditos da empresa.

b) A sociedade comercial “Q..., Lda.” foi representada também pela arguida BB aquando da apresentação da candidatura referida em 5. dos factos provados.

c) A arguida BB sabia que a sociedade de que eram gerente não tinha capacidade financeira para um investimento do montante referido em 6. dos factos provados, ainda que com comparticipação de dinheiros públicos.

d) Os problemas de tesouraria da “Q..., Lda.” agudizaram-se na sequência de um problema na produção de 70 toneladas de queijo, que teve que ser destruída, criando um grande prejuízo à sociedade “Q..., Lda.”, que nunca conseguiu recuperar.

e) A arguida BB contratou a empresa BR..., Lda. para proceder à construção da referida unidade fabril, tendo apresentado ao IFAP os orçamentos realizados por aquela.

f) Sabendo da incapacidade da “Q..., Lda.” para realizar a obra, a arguida BB, ao invés de desistir do projecto, decidiu, mesmo assim, iniciar a obra.

g) Como sabia que só receberia o valor do subsídio se apresentassem ao IFAP os documentos comprovativos das despesas com as obras, a arguida BB solicitou aos arguidos FF e EE para que a empresa que representavam emitissem facturas de trabalhos não realizados, por forma a que recebessem mais dinheiro do que aquele que efectivamente pagaram.

h) A facturação excedente referida em 23. dos factos provados foi solicitada pela arguida BB aos arguidos EE e FF.

i) Por acordo com o arguido AA, as arguidas BB, CC e DD decidiram apresentar ao IFAP todas as facturas que tinham na sua posse respeitantes à obra, incluindo as que previam trabalhos não realizados ou repetidos, com o objectivo de receberem a comparticipação que aquele Instituto lhes concederia para o projecto a que a sociedade se candidatou, não obstante saberem que não possuíam dinheiro para continuar com a obra da unidade fabril, que se encontrava abandonada desde o ano 2011.

j) Na concretização desse desígnio, as arguidas BB, CC e DD enviaram as referidas facturas bem como os autos de medição elaborados pela empresa representada pelos arguidos FF e EE, no valor global de €488.586,50.

k) Ao pactuar com a elaboração de facturas com valores superiores aos das obras efectivamente realizadas, a arguida BB agiu com o propósito de que tais documentos fossem apresentados ao IFAP, com vista a receber a comparticipação do subsídio a que a sociedade comercial “Q..., Lda.” se candidatou, como efectivamente veio a suceder, o qual de outra forma não seria atribuído no valor em que o foi, à custa do correspondente prejuízo patrimonial do Estado, através de erros e enganos em que o fez cair.

l) As arguidas BB, CC e DD, nos seus próprios interesses e da sociedade de que eram gerentes, agiram com o propósito concretizado de apresentar tais documentos ao IFAP, cientes de que os mesmos eram determinantes para o pagamento do valor do subsídio por parte do IFAP à sociedade de que eram gerentes, ocultando que a obra estava parada desde 2011 e que não possuíam capacidade financeira para continuar e acabar o projecto a que se tinham proposto, e que de outra forma não conseguiriam obter, visando, deste modo, obter, no âmbito do contrato que a sociedade de que eram gerentes celebrara, um montante de subsídio superior ao que efectivamente teria direito, como conseguiram.

m) As arguidas BB, CC e DD estavam cientes que os dados constantes das facturas eram essenciais na quantificação do apoio financeiro a atribuir à sociedade comercial “Q..., Lda.” pelo IFAP.

n) Actuaram, ainda, as arguidas BB, CC e DD, por si e em representação das sociedades comerciais de que eram gerentes, no propósito concretizado que as facturas e autos de medição falsos justificativos do direito à comparticipação a atribuir pelo IFAP, obtendo por essa via um subsídio do Estado Português, que de outra forma não receberiam.

o) As arguidas BB, CC e DD agiram de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

4. O Direito

4.1. De os arguidos deverem ser absolvidos do crime pelo qual foram condenados e das respectivas penas acessórias

Pretendem os arguidos a sua absolvição como autores de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 2.º, 8.º, alínea f), 36.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.ºs 2 4 e 5, alínea a) do DL 28/84 de 20 de Janeiro.

Segundo o art.º 399.º do CPP, “ É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.

Prescreve, por seu turno, o art.º 400.º do mesmo diploma:

“1- Não é admissível recurso:

(…)

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, excepto no caso de decisão absolutória de 1.ª instância;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

Determina o art.º 432.º

“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

(…)

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

(…)”

Prescreve, por sua vez, o art.º 434.º o seguinte:

“O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º.”

Como resulta dos autos, para o que ora releva, na sentença de 1.ª instância foi decidido o seguinte:

“Condenar os arguidos (…) EE e FF, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 2.º, 8.º, alínea f), 36.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, n.º 4 e n.º 5, alínea a) do Decreto Lei 28/84 de 20 de Janeiro, respectivamente, nas penas principais de (….) 3 (três) anos de prisão e 3 (três) anos de prisão.

(…)

Suspender a pena de 3 (três anos) de prisão aplicada ao arguido EE, por igual período de tempo, subordinada ao cumprimento do seguinte dever:

Entregar ao Demandante (IPAF) a quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros) até ao terminus do período da suspensão da execução da pena.

Suspender a pena de 3 (três anos) de prisão aplicada ao arguido FF, por igual período de tempo, subordinada ao cumprimento do seguinte dever:

- Entregar ao Demandante (IPAF) a quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros) até ao terminus do período da suspensão da execução da pena.

Condenar os arguidos (…) EE e FF [também] nas penas acessórias de privação do direito a subsídios ou subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, respectivamente, pelos períodos de (…) 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e na publicidade da decisão condenatória.

Condenar os arguidos (…), EE e FF nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça a pagar por cada um dos arguidos condenados em 2,5UC.

(…)”

No acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Coimbra foi decidido o seguinte:

“a) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelos arguidos FF e EE e, em consequência, decidem reduzir para 1 ano e 6 meses o período da pena acessória de privação do direito a subsídios e subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, aplicada ao arguido EE;

(…)

No mais, mantém-se a sentença recorrida”.

A propósito da presente questão, importa desde já afirmar que do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não resulta existência de quaisquer dos vícios a que alude o n.º 2, do artigo 410.º .

Acresce que nos termos prescritos no citado art.º 400.º n.º 1 alíneas e) e f), apenas é admissível o recurso de acórdão da Relação relativamente a crimes aos quais tenha sido aplicada pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”, e de decisão da Relação relativamente a crimes cuja pena seja superior 8 anos, em caso de “dupla conforme”.

Considerando as normas legais supra referidas, ao Supremo Tribunal de Justiça, compete-lhe apenas, salvo os casos expressamente previstos na lei, conhecer da aplicação do direito, não podendo sindicar a valoração das provas que já foi feita na 1.ª instância e confirmada no Tribunal da Relação, sob pena de proceder a um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto, em clara violação do artigo 434.º (Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 17.01.2019, proc. 1700/15.6PYLSB.L1.S1, de 11.01.2018, proc. 396/16.2JAPRT.S1 e de 16.02.2017, proc. 480/12.1PATVD.S1, in www.dgsi.pt).

In casu, o Tribunal da Relação de Coimbra não efetuou qualquer alteração dos pressupostos a partir dos quais a 1.ª instância aplicou as penas principais e as penas acessórias, exceto no que respeita à pena acessória aplicada ao arguido EE, tendo reduzido para 1 ano e 6 meses o período da pena acessória de privação do direito a subsídios e subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, ocorrendo assim, a chamada (confirmação “in mellius”).

A propósito dessa temática consignou-se no Acórdão do STJ, de 26.01.2022, proc. 47/17.8GAALQ.L1.S1 que “(…) havendo decisão confirmatória da relação – dupla conforme, incluindo a confirmação in mellius (condenação em pena menos grave) –, só há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão; neste caso, o objeto de conhecimento do recurso limita-se às questões que se refiram a condenações em pena superior a oito anos, seja esta uma pena parcelar ou uma pena única, mas exigindo-se sempre que sejam superiores a oito anos [neste sentido, para além dos acórdãos mencionados pelo Ministério Público, refletindo jurisprudência constante, podem ver-se, entre os mais recente, os acórdãos de 10.3.2021, Proc. 330/19.8GBPVL.G1.S1 (Nuno Gonçalves), de 11-03-2021, Proc. 809/19.1T9VFX.E1.S1 (Helena Moniz) e de 13-08-2021, Proc. 4070/16.1JAPRT.G1.S1 (Conceição Gomes)].

A confirmação “in mellius” integrando um juízo confirmativo é relevante para os efeitos da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º e garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art.º 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (Cfr. artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP).

Tem sido jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que uma confirmação “in mellius” da condenação em primeira instância cabe ainda dentro do conceito de “dupla conforme” pressuposto pelo artigo 400.º, n.º 1, al. f). Assim, como se afirmou no Acórdão de 26-02-2014, proc. 851/08.8TAVCT.G1.S1, “a confirmação não significa nem exige a coincidência entre as duas decisões. Pressupõe apenas a identidade essencial entre as mesmas, como tal devendo entender-se a manutenção da condenação do arguido, no quadro da mesma qualificação jurídica, e tomando como suporte a mesma matéria de facto.” E esta confirmação admite “a redução da pena pelo tribunal superior; ou seja, haverá confirmação quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado.”

Refira-se ainda, conforme assinalado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2022, proc. 1735/16.1T9STB.E1.S1 e constitui jurisprudência assente deste Alto Tribunal que relativamente à alínea f), do n.º 1, do art.º 400.º, do CPP, torna-se necessária a verificação de dois requisitos cumulativos para que os acórdãos condenatórios proferidos pela Relação sejam irrecorríveis, a saber: que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação confirme a decisão proferida em 1ª Instância (situação de dupla conforme), e que a pena de prisão aplicada não seja superior a 8 anos. Com efeito, com a alteração do art.º 400.º do CPP (introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro), o legislador pretendeu reduzir a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça relativamente aos acórdãos proferidos, em recurso pela Relação, constituindo jurisprudência sedimentada que ocorrendo “dupla conforme” e tendo sido aplicadas várias penas, por crimes em concurso, que foram objecto da aplicação de uma pena única em cúmulo jurídico (nos termos do art.º 77.º do Código Penal), só será admissível recurso para este Supremo Tribunal quanto à pena única que for superior a 8 anos de prisão e quanto aos crimes punidos também com penas desta dimensão.

Destarte, o recurso não só não é admissível quanto às penas propriamente ditas não superiores a 8 anos de prisão, como também em relação a todas as questões com elas conexas e com os respetivos crimes, designadamente as nulidades, os meios de prova, as inconstitucionalidades, bem com o a qualificação jurídica dos factos ou forma do seu cometimento. (…)

O Tribunal Constitucional também já se pronunciou sobre esta questão e decidiu, no seu Acórdão 186/2013, “não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal”, “na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão”.

Como tem sido reiteradamente afirmado, o regime de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça efetiva a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, enquanto componente do direito de defesa em processo penal (Vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora 4.ª Edição 2007, Vol. I, pág. 516. E também Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição da República Portuguesa Anotada” Almedina. Tomo I, 2005, pág. 355), sendo a mesma reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos fundamentais (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas, e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, do Conselho da Europa), que, na sua formulação, deixam aos Estrados-Partes margem de conformação nesta matéria (Vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-12-2021, proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1, www.dgsi.pt).

Tratando-se de jurisprudência uniforme e reiterada deste Supremo Tribunal, da qual não se vê razão para divergir, rejeitam-se os recursos interpostos arguidos EE e FF, por inadmissibilidade legal, no que respeita à matéria criminal (penas principais e penas acessórias), uma vez que há “dupla conforme” e “dupla conforme in mellius, nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, al. b), 400.º, n.º 1, alíneas e), e f), 420.º, n.º 1 e 414.º, n.º 2, todos do CPP.

4.2. De os arguidos deverem ser absolvidos do pedido de indemnização cível

Invocam os arguidos que o pedido de indemnização cível enxertado no processo penal é autónomo em relação a este, pelo que em caso de inadmissibilidade do recurso quanto à matéria penal (art.º 400.º n.º 3 do CPP) são de aplicar subsidiariamente as normas do processo civil, nomeadamente os pressupostos da admissibilidade geral, da admissibilidade da revista, da dupla conformidade e os pressupostos da revista excepcional. Pugnam os arguidos pela sua absolvição do pedido de indemnização cível uma vez que o acórdão recorrido padece de erro de direito probatório material por ofensa de disposição expressa da lei que exige certa espécie de prova (art.º 376.º n.ºs 1 e 2 e 364.º do Código Civil).

Vejamos,

Segundo o disposto no art.º 71.º do CPP, por força do princípio da adesão aí consagrado, “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

Determina o art.º 400.º , do mesmo diploma legal;

“ (…)

2- Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”.

Prescreve, por sua vez, o art.º 129.º do Código Penal, que “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

Como decorre do citado art.º 71.º, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem como seu fundamento a prática de um crime, isto é, assenta na prática de conduta criminosa – o que determina a existência do princípio da adesão.

Mediante a consagração do princípio da adesão resolvem-se no processo penal todas as questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes sem necessidade de recorrer a outros mecanismos. Por outro lado, ganha-se manifesta economia processual, não necessitando os interessados de despender mais custos quando é certo o tribunal com competência para conhecer do crime oferece as mesmas garantias em termos de julgamento da matéria (civil) que se encontra intimamente ligada ao crime.

Subjazem ainda a tal solução razões de prestígio institucional, que poderiam ser postas em causa caso ocorressem julgados contraditórios acerca do ilícito criminal a julgar, um no foro criminal com determinado sentido e outro no foro cível, eventualmente em termos opostos. Como explica Germano Marques da Silva, (…) o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso da absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 211.02.2015, proc. 28/07.0TAPRD.P2.S1).

Assim, em caso de pedido cível, importará aquilatar se o mesmo é superior à alçada do tribunal recorrido, e se a decisão é desfavorável para os recorrentes em valor superior a metade desta alçada como resulta do art.º 629.º do Código de Processo Civil- CPC (“1- O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”).

Para além disso, ainda na sequência da referida autonomia de que goza o pedido de indemnização cível no processo penal, na ausência de norma especifica, nos termos do art.º 4.º do CPP, importará averiguar se ocorrem os pressupostos de aplicação do recurso de revista e da dupla conforme previstos no art.º 671.º do CPC “1- Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos (…)

3- Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância”.

Esse tem sido o entendimento uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, como sucede, entre outros, nos Acórdãos de 07.09.2016, proc. 56/10.0GARMR.E1.S1, de 11.02.2016, proc. 4632/09.3TDLSB.L1.S1, de 19.12.2018, proc. 179/12.3TDLSB.L2.S1, de 30.05.2018, proc. 3292/13.1TASXL.L1.S1, de 24.08.2017, de 17.01.2019, proc. 1700/15.6PYLSB.L1.S1, de 04.12.2019, proc. 354/13.9IDAVR.P2. S1 e de 19.02.2020, proc. 368/15.4T9SCR.L1. S1, disponíveis in www.dgsi.pt.

O Tribunal Constitucional também já se pronunciou julgando não inconstitucional a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal (Acórdão 442/2012, de 26 de Setembro, in DR, 2.ª Série, de 16.11.2012).

Em tais situações haverá ainda de atentar no art.º 44.º n.º 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), onde se prevê que em matéria cível, “a alçada dos tribunais da Relação é de € 30000,00”, sendo que o valor mínimo da sucumbência, para efeito de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em matéria cível, relativamente a uma decisão proferida por um tribunal da Relação, seja em processo civil, seja do pedido cível deduzido em processo penal, é de € 15.000,01.

No presente caso, uma vez que o pedido cível deduzido contra os arguidos pelo IFAP, IP, foi de € 207.700,95, tendo estes sido condenados em € 187.375,75, sendo certo que os juros vencidos e vincendos na pendência da causa não relevam para a determinação do valor da causa, nem podem ser tidos em conta para achar o valor da sucumbência com vista a apurar se a decisão é recorrível ou não (Vd. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20.09.2023, proc. 1268/06.4TBEPS.G1.S1 e de 14.12.2006 proc. 06S2573, in www.dgsi.pt), sempre haveria de se considerarem verificados os requisitos gerais de recorribilidade, referentes à alçada e à sucumbência relativamente à matéria do pedido cível.

E, estando em causa decisão de final que conheceu do mérito da causa, também estão verificados os requisitos do recurso de revista a que acima se fez referência.

Relativamente à “dupla conforme”, esta verifica-se quando se está perante decisões idênticas em ambas as instâncias, que não diferem uma da outra, e sem fundamentação essencialmente diferente. O instituto da “dupla conforme”, enquanto fundamento de irrecorribilidade, baseia-se na constatação de que a concordância de duas instâncias quanto ao mérito da causa é factor indiciador do acerto da decisão, sendo que esta regra foi instituída com o objectivo de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e de acentuar as suas funções de orientação e uniformização da jurisprudência (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-11-2016, proc. 5778/13.9TBMTS.P1.S1).

Uma vez que as decisões proferidas por ambas as instâncias podem ser compostas por diversos segmentos decisórios distintos, uns favoráveis e outros desfavoráveis, o conceito de dupla conforme previsto no art.º 671º, n.º 3, do CPC, deve ser aferido separadamente em relação a cada um deles (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.09.2016, proc. 14633/14.4T2SNT.L1.S1).

No presente caso, o Tribunal da Relação confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão da 1.ª instância na parte em que esta condenou os arguidos a pagar ao demandante a título de indemnização cível a quantia de €187.375,75, pelo que neste segmento decisório verifica-se dupla conforme. O mesmo não sucedendo no segmento decisório referente aos juros de mora, já que na 1.ª instância foram os arguidos condenados a pagar ao demandante aquela quantia acrescida dos juros de mora “calculados à taxa legal e contados desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização”, tendo o Tribunal da Relação condenado os arguidos a pagar ao demandante “juros de mora contados desde 25.12.2015.

Adianta-se que para se afastar a figura “dupla conforme,” impeditiva do recurso de revista, não basta que o acórdão da Relação confirme por unanimidade a decisão da 1.ª com fundamentação diferente. Exige-se que essa diferença seja essencial. Ou seja, a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação deve ter assentado em termos radicais ou profundamente inovatórios; em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada. Sendo que o aditamento de um segundo argumento pela Relação para confirmar as razões do entendimento plasmado em 1.ª instância, não preenche o requisito constante no art.º 671.º n.º 3, do CPC, da “fundamentação essencialmente diferente” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-03-2017, proc. 568/11.6TCFUN.L1-A.S1).

Compete às instâncias a fixação da matéria de facto e ao Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista, apenas conhecer da matéria de direito, com excepção das situações previstas no art.º 674.º n.º 3, do CPC (“O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”), ou seja, quando ocorra ofensa do direito probatório material.

A jurisprudência vindo a explicitar o conteúdo decorrente do art.º 674.º n.º 3, do CPC, no sentido de que apesar de o Supremo Tribunal de Justiça se tratar de um Tribunal de revista, “em que a sua competência está confinada “prima facie” às questões de direito, isso não impede que possa sindicar a forma e o modo como as instâncias procederam à aplicação das normas de direito probatório e de que se serviram para obtenção dos juízos e veredictos que alcançaram por efeito da mesma” (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.05.2017, proc. 5164/07.0TTLSB-B.L1.S1. E também os seus acórdãos de 13.01.2015, proc. 219/11.9TVLSB.L1.S1 e de 07.02.2017, proc. 3071/13.6TJVNF.G1).

Mas se isto é assim no (puro) domínio do processo civil, não se pode olvidar que nos situamos em sede de processo penal, impondo-se respeitar o que neste âmbito foi decidido. Com efeito, mediante o exercício da acção civil o que está em causa no processo penal é o conhecimento pelo tribunal de factos que constam da acusação e do respectivo pedido de indemnização e que, consequentemente, são coincidentes no que refere á caracterização do acto ilícito. Assim, a tramitação probatória é a mesmo no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, pelo que se considera não ser admissível a impugnação que pretenda colocar em causa a matéria de facto que suporta responsabilidade penal. O atributo próprio do pedido cível formulado será, pois, o conhecimento e a definição do prejuízo reparável (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2015, proc. 28/07.0TAPRD.P2.S1). A propósito do pedido cível invocam os arguidos, como se disse, a existência de erro de direito probatório material por ofensa de uma disposição expressa da lei que exige certa e determinada espécie de prova para a existência do facto, pretendendo, desse modo, que se altere o n.º 27 dos factos provados, de modo a que passe a constar como não provado que “Que após o envio pelo arguido AA das facturas bem como dos autos de medição elaborados pela empresa representada pelos arguidos FF e EE e pela “B..., Lda.”, no valor global de 488.586,50, conseguiu, dessa forma, que o IFAP, a 30 de Setembro de 2014, transferisse o montante da quantia global de €195.434,60 correspondente a 40% do valor das facturas apresentadas pelos arguidos) para a conta ...40, titulada pela “Q..., Lda.”. Dando-se como facto provado que: “O arguido AA enviou as referidas facturas bem como os autos de medição elaborados pela empresa representada pelos arguidos FF e EE, no valor global de €488.586,50”. Isto é, pretendem os arguidos com essa alteração da matéria de facto que os autos fiquem desertos de prova no que se refere aos pagamentos alegados pelo IFAP, IP, devendo os mesmos ser absolvidos.

Importa, contudo, frisar que o crime de fraude de obtenção de subsídio ou subvenção previsto no artigo 36.º do DL 28/84, de 20 de Janeiro, “consuma-se com a disponibilização ou entrega do subsídio ou subvenção ao agente” (Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2006, de 23.11.2005, in DR I Série, de 4 de Janeiro de 2006). Ora, se porventura se viesse a dar como não provada a transferência da verba de 195.434,60 euros, pelo IFAP, IP, tal significaria, pura e simplesmente, contrariar e esvaziar de sentido o que foi considerado em sede de matéria penal – onde essa transferência foi considerada provada e com base nela e nos demais elementos do tipo, foram os arguidos condenados pela prática do aludido crime.

Relembra-se que os arguidos foram condenados pela prática de crime de fraude na obtenção de subsídios, p. e p. pelos artigos 2.º, 8.º alínea f), 36.º n.º 1, alíneas b) e c), n.ºs 2, 4, e 5 do DL 28/84, de 20 de Janeiro, nas penas supra referidas, sendo que relativamente a esta vertente da condenação, como acima se expôs, o presente recurso interposto pelos arguidos não é admissível.

Assim sendo, não há que abordar a sobredita matéria que se mostra claramente prejudicada.

4.3. De os arguidos deverem ser condenados nos juros de mora apenas desde a data em que foram condenados para contestar o pedido cível

Sustentam os arguidos que a condenação nos juros de mora deve contar-se desde a data em que foram notificados para contestar o pedido de indemnização cível, visto não ter havido qualquer interpelação aos recorrentes para pagarem tais quantias, nem qualquer acto antecipatório de liquidação. Salvo devido respeito, não lhes assiste razão. A este respeito subscreve-se o entendimento vertido no acórdão recorrido que se encontra em sintonia com o que tem sido sufragado por este Supremo Tribunal de Justiça em casos similares (crime de fraude de obtenção de subsídio). Com efeito, como se fez constar do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2016 (Sumário), proc. 621/06.8TAPRG.P1.S1, in www.dgsi.pt.

I - De acordo com o art.º 39.º do DL 28/84, de 20-01 o tribunal deverá decretar a devolução da quantia ilicitamente recebida quando estiver em causa a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo art.º 36.º do citado diploma legal, tratando-se de uma consequência jurídica do crime e simultaneamente de uma sanção civil, consistente na perda de um benefício que gera a obrigação de restituição deste.

II - Não estando inscrita no mencionado art.º 39.º do referido diploma legal a obrigação de pagamento de juros, a origem dessa obrigação apenas se poderá filiar numa constituição em mora relevante nos termos do art.º 805.º do CC pois que os juros moratórios exercem a função de indemnização pelo retardamento de uma prestação pecuniária (art.º 806.º, n.º 1, do CC), sendo assim, devidos a título de indemnização.

III - Para efeitos do disposto no art.º 803 do CC, estaremos perante uma obrigação ilíquida quando a indefinição do valor da obrigação resulta da circunstância de não terem ainda ocorrido ou serem desconhecidos de alguma das partes algum ou alguns dos factos que são necessários para o apuramento e conhecimento desse valor.

IV - Filiando-se a responsabilidade do arguido numa obrigação pecuniária inerente a um subsídio que recebeu e que se demonstrou que não deveria ter recebido inexiste qualquer situação de indeterminabilidade e, pelo contrário, e, tal como se evidencia dos autos, o arguido desde a eclosão dos factos sabia que tinha recebido uma quantia certa e determinada e que não era devida, pelo que, os juros devem ser computados desde o momento em que as quantias foram colocadas na disponibilidade do arguido e não desde a data em que o arguido foi notificado para contestar o pedido de indemnização civil respeitante àqueles danos. (Sublinhados nossos).

Com base no referido entendimento, devem, pois, os juros de mora sobre a quantia em causa, ser contabilizados não desde a data da notificação para contestar o pedido cível (09.05.2022), mas antes desde 25.12.2015, data a partir da qual foram peticionados pelo demandante IFAP, IP.

Improcede, assim, a presente questão.

5. Decisão

Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso dos arguidos e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos arguidos, com taxa de justiça em 6 UC

Lisboa, 2025.03.20

(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pela relatora e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.º 94.º n.ºs 2 e 3 do CPP)

Albertina Pereira (Relatora)

João Rato (1.º Adjunto)

Agostinho Torres (2.º Adjunto)