LEI DE SAÚDE MENTAL
TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO
INTERNAMENTO
DECISÃO
REVISÃO
AUDIÇÃO
INTERESSADO
Sumário

I - A audição a que alude o artigo 25º da Lei da Saúde Mental (Lei nº 35/2023, de 21/07) deve ter lugar presencialmente, não sendo a mesma facultativa, devendo as pessoas a intervir ser notificadas e convocadas para a sessão conjunta.
II - O cidadão sujeito a internamento para tratamento involuntário tem o direito fundamental de estar presente na sessão conjunta (arts. 5º e 8º da LSM) – devendo as demais pessoas com intervenção da mesma sessão estar, igualmente, presentes, apenas sendo ouvidas, excecionalmente, por meio de equipamento tecnológico (art. 22º, 2, aplicável por força do art. 25º, nº 6, da LSM)..

Texto Integral

Processo nº 13622/21.7T8PRT-A.P1

Data da decisão sumária: 10 de Março de 2025


Desembargador relator: Jorge M. Langweg


Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Criminal do Porto




Sumário:

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I - RELATÓRIO


1. Em 6 de Dezembro de 2024 foi proferido o despacho judicial com o seguinte teor:
«Como resulta do art. 25º nº5 da LSM impõe-se a audição do MP, da pessoa em tratamento, pessoa da sua confiança, defensor/mandatário, um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clinico – psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento.
A esta audição é aplicável o disposto no art. 22º nº2 do mesmo diploma legal.
Assim, deverão as mesmas, após notificação, indicar aos autos se têm algo a pronunciarem-se e/ou requerer para efeito da presente revisão ou se nada têm a requerer e/ou acrescentar ao que já resulta dos autos.
Em caso positivo, será agendada diligência para o efeito, com possibilidade de serem ouvidas por meio de equipamento tecnológico.»

2. Inconformado com a falta de marcação de audição presencial, que considera obrigatória, o Ministério Público interpôs recurso do despacho judicial, terminando a respetiva motivação com a formulação das seguintes conclusões:
«1. Em sede de revisão da decisão de tratamento involuntário, o Tribunal a quo indeferiu, ainda que tacitamente, a marcação de diligência com vista à audição das pessoas elencadas no art.º 25º, n.º 5 da (nova) Lei de Saúde Mental, considerando antes que a mesma só se justificaria, caso tais pessoas viessem acrescentar algo de relevante para o efeito.
Como se considerou no Acórdão proferido no processo 11168/22.5T8PRTA. P1 desse Venerando Tribunal (não publicado):
“Se o dito n.º 5 do artigo 25.º se bastasse com a mera audição escrita, na sequência de notificação para o efeito, não faria sentido o seu n.º 6 remeter para o aludido n.º 2 do artigo 22.º, o qual, além de estabelecer no seu n.º 1 a presença obrigatória de alguns dos intervenientes, diz que as outras pessoas podem ser ouvidas à distância” “não faria sentido que o psiquiatra subscritor do relatório de avaliação clinico-psiquiátrica, cuja audição a lei impõe (referido n.º 5 do art. 25.º), fosse ouvido por escrito, pois que o mesmo acabou de elaborar e subscrever um documento escrito - o relatório – onde fez constar o teor e conclusão da avaliação levada a cabo, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo 25.º”.
3. Por outro lado, como se considerou no Acórdão desse Venerando Tribunal, proferido no processo 1164/11.3TBPRT-A.P1, in www.dgsi.pt, relativamente ao direito da pessoa em tratamento involuntário em participar na revisão da decisão de tratamento, através da sua audição por Magistrado Judicial (art.º 8º, n.º 4, al. e), da Lei de Saúde Mental):
I- Tal opção do legislador visou impedir a possibilidade de uma certa passividade, ou mesmo rotina burocratizada, relativamente a pessoa muitas vezes incapaz de manifestar vontade própria, concretizando o que já antes resulta estatuído no art.º 8º da mesma Lei, isto é, que no âmbito de processo de tratamento involuntário, a pessoa necessitada de cuidados de saúde mental goza do direito especial de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre.
 IV- No tocante à audição em presença da pessoa necessitada de cuidados de saúde mental, a opção legislativa assim plasmada na nova Lei da Saúde Mental dá ainda cumprimento à Recomendação 818 (1977), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, dirigida ao Comité de Ministros, no seu ponto 17. iii., na qual se recomenda o convite aos governos dos Estados membros no sentido de diligenciarem para que as decisões dos tribunais não sejam tomadas com base apenas em relatórios médicos, mas que a pessoa doente, como qualquer outra pessoa, tenha o direito efetivo de ser ouvida. Não se vislumbrando como esse direito a ser ouvida possa ser efetiva e eficazmente exercido sem que ao mesmo tempo, como a lei claramente prevê, sejam também ouvidos os demais intervenientes, num procedimento que é conforme ao modelo misto, médico-judicial, adotado no regime legal em vigor, tal como já o era na Lei da Saúde Mental anterior, no qual se conjugam, na dinâmica própria que cada caso representa, as valências técnico-científicas dos médicos com as de índole normativa do juiz, a quem cabe o papel de garante dos direitos liberdades e garantias da pessoa necessitada de cuidados de saúde mental.
Termos em que, por desrespeitar aquela que nos parece ser a melhor interpretação do art.º 25º, n.º 5, da Lei de Saúde Mental, em conjugação com os outros dispositivos legais supra mencionados, se roga a revogação do despacho recorrido e a substituição por outro que designe data de diligência para a audição oral das pessoas ali especificadas, via webex, assim se fazendo Justiça.»

2. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo em separado e com efeito meramente devolutivo.
3. Não houve resposta ao recurso.
4. O Ministério Público, junto deste Tribunal, emitiu parecer, reiterando os termos da motivação do recurso e acrescentando, no essencial, o seguinte:
"(…)
Para além dos arestos citados nas doutas alegações de recurso em favor da tese recursiva, foi proferido e publicado o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Porto – T.R.P. de 13/11/2024 in www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve por ser auto explicativo e autossuficiente:
«I - A audição a que alude o art.º 25º da Lei da Saúde Mental (Lei nº 35/2023, de 21/07) deve ter lugar presencialmente, sendo orientada pelo princípio da oralidade e da imediação, onde a dialética que possa ou deva ser gerada com os intervenientes propicie a obtenção de novos ou mais esclarecedores elementos que poderão servir o mérito da decisão a proferir pelo juiz, para além dos que já resultem documentados no processo, nomeadamente do relatório de avaliação clinico-psiquiátrica.
II - A audição em presença, que se poderá realizar por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvidos a partir do seu local de trabalho o psiquiatra subscritor do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e os profissionais do serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido, além de resultar claramente imposta no texto da lei, com um sentido normativo alcançável por mera interpretação declarativa, justifica-se pela gravidade que representa a circunstância de estarem em causa direitos fundamentais, e relativamente a eles, desde logo, a restrição do direito à liberdade do requerido, pessoa que é portadora da necessidade de cuidados de saúde mental, e por outro lado também a necessidade de se acautelar a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais, do próprio ou de terceiros, com os quais a verificação ou a revisão dos pressupostos relativos ao tratamento involuntário previsto no art.º 15º do mesmo diploma pode decisivamente interferir, num contexto de complexidade material que, escapando ao saber exclusivo do juiz, concita ou impõe uma confluência de outros saberes, em cujo epicentro está a intervenção técnico-científica dos médicos-psiquiatras, cuja presença, assim como dos outros intervenientes, poderá melhor contribuir para o esclarecimento e sobretudo para a prestação de esclarecimentos entre si complementares sobre os factos relevantes para a decisão a proferir.
III- Tal opção do legislador visou impedir a possibilidade de uma certa passividade, ou mesmo rotina burocratizada, relativamente a pessoa muitas vezes incapaz de manifestar vontade própria, concretizando o que já antes resulta estatuído no art.º 8º da mesma Lei, isto é, que no âmbito de processo de tratamento involuntário, a pessoa necessitada de cuidados de saúde mental goza do direito especial de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre.
IV- No tocante à audição em presença da pessoa necessitada de cuidados de saúde mental, a opção legislativa assim plasmada na nova Lei da Saúde Mental dá ainda cumprimento à Recomendação 818 (1977), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, dirigida ao Comité de Ministros, no seu ponto 17. iii., na qual se recomenda o convite aos governos dos Estados membros no sentido de diligenciarem para que as decisões dos tribunais não sejam tomadas com base apenas em relatórios médicos, mas que a pessoa doente, como qualquer outra pessoa, tenha o direito efetivo de ser ouvida. Não se vislumbrando como esse direito a ser ouvida possa ser efetiva e eficazmente exercido sem que ao mesmo tempo, como a lei claramente prevê, sejam também ouvidos os demais intervenientes, num procedimento que é conforme ao modelo misto, médico-judicial, adotado no regime legal em vigor, tal como já o era na Lei da Saúde Mental anterior, no qual se conjugam, na dinâmica própria que cada caso representa, as valências técnico-científicas dos médicos com as de índole normativa do juiz, a quem cabe o papel de garante dos direitos liberdades e garantias da pessoa necessitada de cuidados de saúde mental».
Ora, pouco ou nada mais haverá a acrescentar aos arestos constantes das doutas alegações de recurso e ao que acabamos de citar, e para cuja leitura e reflexão remetemos.
Diremos apenas no essencial, espremendo argumentos, encurtando caminho e para o que ora interessa, (seguindo aqui e acolá o estudo realizado por CARLOS PINTO DE ABREU sobre a LEI 35/2023, DE 21 DE JULHO – A NOVA LEI DA SAÚDE MENTAL O PAPEL DO ADVOGADO de 21/12/2023 acessível in https://carlospintodeabreu.com/publicacoes/a-nova-lei-da-saude-mental/) a nova Lei da Saúde Mental aprovada e editada pela Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho alterou a legislação conexa, o Código Penal, o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e o Código Civil para além de ter revogado a Lei n.º 36/98, de 24 de julho.
A evolução da sociedade e a crescente preocupação relativamente às causas e consequências das doenças do foro mental e às suas consequências individuais e colectivas impunham a alteração da lei de saúde mental aprovada pela Lei nº 36/98, de 24 de julho.
Não deixou de se ter no processo legislativo em consideração instrumentos supranacionais em areópagos universalmente consagrados, nomeadamente a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelas Nações Unidas em 2006, o Plano de Acção Global de Saúde Mental, aprovado pela Organização Mundial de Saúde em 2013, as Linhas de Acção Estratégica para a Saúde Mental e Bem-Estar, aprovadas pela União Europeia em 2016, e, ainda, o teor do Additional Protocol to the Convention on Human Rights and Biomedicine concerning the protection of human rights and dignity of persons with regard to involuntary placement and involuntary treatment within mental healthcare services, aprovado pelo Comité de Bioética do Conselho da Europa, em Novembro de 2021.
Ora, o artigo 5º da Lei da Saúde Mental – L.S.M. aprovada e editada pela Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (que sucedeu e revogou o anterior regime introduzido pela Lei n.º 36/98, de 24 de Julho) na sua alínea a) diz-nos que um dos objectivos de saúde mental é “promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental”.
Hodiernamente o pensamento critico mais actual considera que o doente mental tem direito à protecção assistencial e não perde os direitos de cidadania pois mantém, e devem ser-lhe especialmente reconhecidos, o direito à humanidade no tratamento, o direito à rigorosa e isenta avaliação clínico-psiquiátrica, o direito ao juiz e acesso aos tribunais, o direito à família, os direitos à não discriminação e de acesso aos melhores cuidados de saúde mentais disponíveis. Também não podemos olvidar a evidência tópica que as pessoas que possuem doenças mentais quase sempre estão expostas a uma maior vulnerabilidade, uma menor capacidade ou autonomia decisória e um menor discernimento, em suma numa situação de presumível indefesa. Porém, possuem iguais ou até acrescidos direitos do que o cidadão comum ou a generalidade das pessoas. Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “As bases da República são a dignidade da pessoa humana e a vontade popular. A dignidade da pessoa humana e a vontade popular estão organicamente ligadas, respetivamente, à garantia constitucional dos direitos fundamentais e ao sistema constitucional democrático.” GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada – Vol I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, página 198.
Também o n.º 2 deste artigo 15º da Lei da Saúde Mental – L.S.M. aprovada e editada pela Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (que sucedeu e revogou o anterior regime introduzido pela Lei n.º 36/98, de 24 de Julho) exige que a aplicação e manutenção do internamento involuntário passe pelos testes da imprescindibilidade e da proporcionalidade em sentido amplo, princípios fundamentais da intervenção, verificando-se, assim, em concreto, que estão também reunidos todos os pressupostos e, em particular, cumpridos os subprincípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade stricto sensu. Assim a lei actual acentuou a tónica e exige uma enorme responsabilidade de análise, ponderação e de aferição que não é meramente argumentativa ou retórica, mas construtiva ao nível dos factos, de conformação ao nível probatório e de exigência acrescida de intervenção por parte do tribunal, o ultimo reduto institucional com que o internado pode contar.
Assim impende sobre o juiz a obrigatoriedade de solicitar uma avaliação clínico psiquiátrica do requerido, que deve ser sucessivamente repetida para a decisão de manutenção/prorrogação, sendo que aquela é realizada por dois psiquiatras com a colaboração de outros profissionais da equipa multidisciplinar do serviço de saúde mental. Destacamos o facto de que, ao abrigo do n.º 6 do artigo 20º da Lei da Saúde Mental – L.S.M. aprovada e editada pela Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (que sucedeu e revogou o anterior regime introduzido pela Lei n.º 36/98, de 24 de Julho), “o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica fica subtraído da livre apreciação do juiz”. Numa das leituras que os textos legais consentem é possível retirar deste preceito que o juiz fica estritamente vinculado ao resultado cientifico da avaliação clínico-psiquiátrica. Porém, dir-se-á que só está vinculado ao juízo técnico da avaliação clínico-psiquiátrica, mas não aos factos ou pressupostos que lhe subjazem – Como de deixou escrito no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de Setembro de 2020 (Processo n.º 4908/18.9T8OER.L1-3): “Se por um lado é à medicina que incumbe exclusivamente o diagnóstico da doença, distúrbio, ou perturbação susceptíveis de integrar o conceito de anomalia psíquica, que constitui um dos pressupostos cumulativamente exigidos pelo art.º 12º para a sujeição de alguém a internamento compulsivo (e também a tratamento compulsivo ambulatório, em face do que dispõe o art.º 33º), já a aferição da sua natureza grave, da existência do nexo causal entre o estado psíquico incapacitante e a situação de perigo (concreto, atual e, no internamento urgente, iminente) para bens jurídicos próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial de relevante valor, bem como a recusa do internando a submeter-se ao tratamento necessário, é totalmente jurisdicional. Pese embora, a decisão final seja da exclusiva competência de um juiz, este não pode decretar o internamento compulsivo se a opinião médica for contrária.”5.
Porém, há mais vida para além da estatística processual e os tribunais não se podem escudar na desculpa fácil de a diligência processual de audição presencial para a revisão da medida se lhes afigurar potencialmente inútil pois da consulta dos autos resulta que «tudo-está-na-mesma-e-não-sofreu-evolução» ou que a referida diligencia dependa exclusivamente do impulso das partes.
Também o contraditório real e efectivo não se satisfaz com uma mera notificação que é um acto processual despido de humanidade, oralidade e de imediação. A simples notificação apesar de, em abstrato, diminuir a taxa de presumível indefesa do internado, não se revela um acto suficiente e adequado para “in loco” e de forma sensorial, apreciar o estado de saúde mental do internado.
Uma coisa é ler um relatório ou consultar um processo físico ou por via eletrónica, outra bem diferente é ver e ouvir o internado, testemunhando directamente o seu aparente estado mental. Foi este contacto presencial em imediação e oralidade que a Lei da Saúde Mental – L.S.M. aprovada e editada pela Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (que sucedeu e revogou o anterior regime introduzido pela Lei n.º 36/98, de 24 de Julho) quis uma vez que se encontram em causa os direitos fundamentais individuais do internado.
Assim após ter recebido o ultimo relatório da avaliação clínico-psiquiátrica para efeitos de revisão da medida, o tribunal recorrido deveria notificado as partes envolvidas para a realização de uma sessão conjunta, sendo assim convocados o requerido, a pessoa de confiança, o defensor ou mandatário constituído, o Ministério Público e um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico psiquiátrica e todos, no decurso da diligência, em imediação comunicante aferir e o juiz decidir se justifica a prorrogação ou manutenção da medida.
O artigo 22º n.º 1 da Lei da Saúde Mental – L.S.M. aprovada e editada pela Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (que sucedeu e revogou o anterior regime introduzido pela Lei n.º 36/98, de 24 de Julho) diz-nos que é obrigatória a presença do defensor ou mandatário constituído e do Ministério Público. Por sua vez, o n.º 2 dispõe que “as pessoas notificadas e convocadas para a sessão conjunta podem ser ouvidas por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvidos a partir do seu local de trabalho o psiquiatra subscritor do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e os profissionais do serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido”. Esta audição à distância tem de ser considerada como excepção e não a regra pela importância dos princípios da proximidade e da imediação, não podendo o juiz dispensa-la, por norma, ou só em casos excecionais o poderá fazer6.
Esta obrigatoriedade legal de presença em imediação e proximidade entre o tribunal e o internado foi violada pelo despacho recorrido, omitindo o tribunal uma diligência fulcral, inafastável e essencial, atentando gravemente aos princípios da participação activa e do contraditório efectivo, do acesso ao juiz e a um processo justo e equitativo. Com efeito, um dos direitos do requerido quando este se encontra em tratamento involuntário, é de participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre.
Na conformidade do que vem sido dito e essencialmente pelo exposto, tudo visto, analisado e ponderado, sem necessidade de ulteriores ou mais apuradas considerações, não obstante a penhorada deferência e elevadíssimo respeito que devemos sempre assumir por opinião diferente e do qual os nossos adversários opinativos são seguramente credores, evitando inúteis e fastidiosas repetições, o recurso merece provimento, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine a audição dos intervenientes enunciados no artigo 25.º, n.º 5, em sessão conjunta a realizar com observância do disposto no artigo 22.º, n.º 2, ambos da Lei da Saúde Mental – L.S.M. aprovada e editada pela Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho (que sucedeu e revogou o anterior regime introduzido pela Lei n.º 36/98, de 24 de Julho).

5. Não houve qualquer resposta ao recurso.
6. Cumpre proceder ao exame preliminar e, sendo caso disso, proferir decisão sumária (artigo 417º, 1 e 6, do Código de Processo Penal).




II - FUNDAMENTAÇÃO

Sendo o recurso manifestamente procedente, este Tribunal limitar-se-á a especificar, de forma sumária, os fundamentos da sua decisão (artigos 417º, nº 6, al. d), do Código de Processo Penal).
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina[1] e a jurisprudência[2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal (CPP), que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
Cumpre, ora, identificar a questão emergente da conclusão do recorrente:
- Erro em matéria de direito: a audição a que alude o artigo 25º da Lei da Saúde Mental (Lei nº 35/2023, de 21/07) deve ter lugar presencialmente, não sendo a mesma facultativa.
Nos termos do disposto no artigo 428° do Código de Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito.
Cumpre apreciar e decidir sumariamente.
Constitui entendimento pacífico na escassa jurisprudência[3] publicada dos tribunais superiores, resultando a solução evidente perante a letra e segundo o espírito da lei, que a audição a que alude o artigo 25º da Lei da Saúde Mental (Lei nº 35/2023, de 21/07) deve ter lugar presencialmente, não sendo a mesma facultativa.
Concretizando:
A - Da obrigatoriedade da revisão da decisão de internamento:
O artigo 25º, nº 2, Lei da Saúde Mental (LSM), aprovada pela Lei n.º 35/2023 de 21 de Julho, estatui que a revisão da decisão de internamento para tratamento involuntário é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido.
B – Do procedimento:
Para esse efeito, o serviço de saúde mental envia ao tribunal, até 10 dias antes da data calculada para a revisão obrigatória, um relatório de avaliação clínico-psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, com a colaboração de outros profissionais do respetivo serviço (nº 4 do mesmo artigo).
No entanto, não basta tal informação de especialidade médica psiquiátrica, devendo ter lugar, obrigatoriamente, a audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento (nº 5, ainda do mesmo artigo).
Quanto ao modo concretização de tal audição, o número 6 do mesmo artigo remete para o estatuído no n.º 2 do artigo 22.º.
Segundo esta norma, “as pessoas notificadas e convocadas para a sessão conjunta podem ser ouvidas por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvidos a partir do seu local de trabalho o psiquiatra subscritor do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e os profissionais do serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência do requerido”.
Até esta audição à distância tem de ser considerada como exceção e não a regra pela importância dos princípios da proximidade e da imediação, não podendo o juiz, sequer, dispensá-la, por norma, ou só em casos excecionais o poderá fazer.
A audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento deve, assim, ser efetuada presencialmente, ou, excecionalmente, por meio de equipamento de comunicação digital.
Recorde-se, ainda, que o artigo 5º da LSM define que um dos objetivos da política de saúde saúde mental é “promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental”.[4] Ora, o artigo 8º da LSM estabelece como direito especial da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental, em processo de tratamento involuntário, o de “Participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre”. Trata-se de um direito fundamental do cidadão sujeito a tratamento involuntário, que não pode ser postergado. Sublinhe-se: o cidadão sujeito a internamento para tratamento involuntário tem o direito fundamental de estar presente na sessão conjunta – devendo as demais pessoas com intervenção da mesma sessão estar, igualmente, presentes -.
Só assim se assegura a efetividade do princípio do contraditório, sobretudo, da pessoa diretamente afetada pela decisão a tomar pelo tribunal.
Por outro lado, neste procedimento o tribunal não tem um papel meramente passivo na sessão conjunta, devendo apurar, mesmo oficiosamente, o verdadeiro estado da pessoa internada, tal como resulta do princípio geral enunciado no art. 19º e do estatuído no art. 21º, nº 2, da LSM, revelando-se assim a sessão conjunta de vital importância para, mediante o benefício da imediação e da oralidade, entre todos os presentes, o tribunal poder diligenciar nmo sentido de apurar o verdadeiro estado clínico-psiquiátrico atual da pessoa internada, beneficiando da sua audição.
Por todas as razões expostas, o tribunal não pode prejudicar os objetivos da Lei de Saúde Mental, postergar o direito fundamental da pessoa internada a estar presente na sessão conjunta e de ter as restantes pessoas elencadas na lei para estarem presente na aludida sessão, de modo a permitir, mediante a necessária oralidade e imediação, apurar os factos relevantes à revisão da decisão de internamento.
Estando a pessoa internada

Das custas:

Sendo o recurso julgado provido, sem oposição, não há lugar ao pagamento de custas (artigo 513º, 1, a contrario sensu, do CPP).

III – DISPOSITIVO

Pelos motivos concretizados na fundamentação que antecede:
- Decide-se julgar manifestamente provido o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que designe data para a realização da sessão conjunta, mediante audição pessoal do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento para o julgamento, a qual poderá ser realizada via Webex ou outro sistema de comunicação digital de imagem e voz, caso se revele necessário (artigos 22º, número 2 e 25º, números 5 e 6 da LSM).

- Sem custas.


Tribunal da Relação do Porto, na mesma data.






Porto, 10/3/2025.

Jorge M. Langweg

___________________________________________
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[3] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, proferidos nos processos nº 11168/22.5T8PRT-A.P1 (citado no doutro parecer), 1164/11.3TBPRT-A.P1, de 13 de Novembro de 2024, (publicado em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/1aada5d13a7c0b8280258be80033af02?OpenDocument) e, sobre a mesma questão analisada à luz de legislação anterior, já o entendimento era idêntico: acórdão do Tribunal da Relação do Porto de Junho de 2019 (Processo n.º 674/16.0T8OVR-Q.P1)
[4] Tais objetivos encontram ainda respaldo na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelas Nações Unidas em 2006, o Plano de Acção Global de Saúde Mental, aprovado pela Organização Mundial de Saúde em 2013, as Linhas de Acção Estratégica para a Saúde Mental e Bem-Estar, aprovadas pela União Europeia em 2016, e, ainda, o teor do Additional Protocol to the Convention on Human Rights and Biomedicine concerning the protection of human rights and dignity of persons with regard to involuntary placement and involuntary treatment within mental healthcare services, aprovado pelo Comité de Bioética do Conselho da Europa, em Novembro de 2021.