VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDAS DE COAÇÃO
FORTES INDÍCIOS
PROTEÇÃO
VÍTIMAS
Sumário

I- Sendo a ocorrência de indícios da prática de um crime uma condição sine qua non da aplicação de todas as medidas de coação, no que concerne à prisão preventiva, a lei é mais exigente, pois usa a expressão «fortes indícios» - os indícios só serão fortes, quando o seu grau de certeza acerca do cometimento do crime e da identidade do seu autor é próximo do que é exigido, na fase do julgamento, apenas com a diferença de que, aquando da aplicação da medida de coação, os elementos probatórios têm uma maior fragilidade, resultante da ausência de contraditório, da imediação e da oralidade, que são característicos da fase da discussão e julgamento da causa.
II- Nas declarações do arguido, que, sublinhamos, estão longe de ser coerentes, surpreende-se alguma candura, ao admitir ter batido na ofendida, ter-lhe dito que a matava e que atirava da janela abaixo, ter-lhe chamado “puta”, “vadia” ou ter dito que ela “não presta”, e reconhecendo ainda embriagar-se com frequência – mas o que resulta da globalidade do seu relato, é que o fez por estar convencido de que o seu comportamento está justificado, que tem o direito de assim atuar, e também, notoriamente, para procurar desresponsabilizar-se das agressões (em alternativa: ou foi agredido primeiro, ou estava bêbado). E isto, com todo o respeito por opinião contrária, não tem o efeito de tornar duvidosos os factos relatados no processo pela ofendida, para mais quando esta ainda não foi ouvida (nem vista) pelo Tribunal.
III- As medidas de coação propostas – de proibição de contactos com a vítima e de afastamento da residência desta – mostram-se adequadas a acautelar o mencionado perigo e salvaguardar os bens jurídicos postos em causa com a atuação do arguido, potenciando a proteção da vítima e a cessação da respetiva revitimização. Sendo adequadas, tais medidas são também necessárias, não se vendo outras que possam obstar à persistência da agressão.
IV- Conforme tem vindo a ser reconhecido, nomeadamente, nas instâncias internacionais, não é tolerável um padrão de passividade judicial em relação a alegações de violência doméstica (vd. acórdão do TEDH Durmaz v. Turquia, de 13.11.2014, § 65).

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No processo nº 892/23.5PISNT, a correr termos no Juízo de Instrução Criminal de Sintra (Juiz 2) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi o arguido AA, m. id. nos autos, submetido a 1º interrogatório judicial de arguido detido, em 13.03.2024, no termo do qual foi considerada indiciada a prática pelo arguido de crimes de ofensas à integridade física, p. e p. pelo artº143º, do CP e de ameaça p. e p. pelos artºs 153º e 155º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal, e determinada a restituição do arguido à liberdade, ficando a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito às obrigações decorrentes da prestação de Termo de Identidade e Residência.
Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público dela interpor recurso, pugnando pelo reconhecimento da indiciação da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal, e pedindo que ao arguido sejam impostas as medidas de proibição de contactar com a vítima, por qualquer meio, direta ou indiretamente, e proibição de permanecer e se aproximar da residência da vítima, sendo ambas as medidas monitorizadas por meio de controlo eletrónico.
Extraiu da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“3.1. Nos presentes autos o arguido AA foi sujeito a primeiro interrogatório judicial, nos termos do artigo 141.º do Código do Processo Penal, no dia 13 de março de 2024.
3.2. Após a tomada de declarações ao arguido, o Ministério Público promoveu a aplicação das medidas de coação de proibição de contactos com a vítima e proibição de permanecer e de se aproximar da residência da vítima, sendo ambas as medidas fiscalizadas por meio de vigilância eletrónica, a defesa do arguido concordou com a aplicação de tais medidas de coação.
3.3. O Mmo. Juiz de Instrução Criminal decidiu que o arguido ficaria apenas sujeito ao Termo de Identidade e Residência, por entender que não existem indícios fortes da prática pelo arguido dos factos que lhe estavam imputados, e que os factos integrarão apenas a prática de crime de ofensa à integridade física simples e um crime de ameaça agravada.
3.4. O Ministério Público não se conforma com a decisão judicial proferida pelo que recorre da mesma.
3.5. Entende a Recorrente que da análise conjunta e crítica de todos os elementos probatórios não existem dúvidas sobre a existência de fortes indícios sobre os factos imputados ao arguido.
3.6. Com efeito, o arguido assumiu determinados factos, mas, no geral, desresponsabilizou-se, demonstrando, nem sequer conseguir entender a gravidade dos seus atos, tendo-os assumido precisamente porque, de acordo com a sua versão, toda a sua atuação estava justificada pela atuação da vítima.
3.7. Saliente-se que o arguido tem uma estatura alta e é encorpado e afirmou que a vítima lhe dá pela altura do ombro, o que é revelador da grande diferença de estaturas, pelo que custa a crer que a vítima o agredisse da forma que o arguido quis fazer crer.
3.8. Acresce que o arguido quando prestou declarações e assumiu que tinha desferido uma bofetada na vítima, disse que o tinha feito porque, nessa ocasião, ele estava sentado na cama e a vítima estava a engomar roupa na cama e atingiu-o na perna com o ferro de engomar que estava quente, pelo que ele desferiu-lhe uma bofetada no rosto, tendo o arguido, no momento em que descrevia o que fez, levado o braço atrás para exemplificar como deferiu a bofetada, o que nos permite concluir que não foi uma bofetada ligeira, mas antes uma bofetada desferida por um indivíduo de estatura alta e forte que levou o braço atrás para ganhar força e desferir a bofetada. Pelo que mais uma vez acreditamos que o arguido sempre quis agredir a vítima com violência, com vista a magoá-la e humilhá-la e não com qualquer intenção de defesa ou retaliação.
3.9. Face ao exposto, concluímos que da análise conjunta e crítica de todos estes elementos, não existem dúvidas sobre a existência de fortes indícios sobre a totalidade dos factos imputados ao arguido e acima transcritos.
3.10. O Ministério Público entende que os factos imputados ao arguido e indiciados integram a prática de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal.
3.11. Nesta conformidade, considera a Recorrente que o Tribunal de Instrução Criminal de Sintra fez uma incorreta interpretação dos factos e da lei ao considerar que não existem fortes indícios da prática dos factos imputados ao arguido bem como da sua qualificação jurídica ao não os qualificar como crime de violência doméstica.
3.12. Por outro lado, a Recorrente discorda da adequação e suficiência da medida de coação a que o arguido ficou sujeito por decisão judicial de 13 de março de 2024, face ao elevado perigo de continuação da atividade criminosa.
3.13. O perigo de continuação da atividade criminosa é bastante intenso, pois o arguido continua a manter um vínculo com a vítima, com quem tem filhos menores em comum, pelo que os contactos entre ambos continuarão a existir.
3.14. Acresce que a vítima, por medo do arguido, fugiu da habitação comum para onde ainda não regressou por não se sentir segura na presença do arguido. Todavia, não tendo a vítima uma habitação para residir com os filhos, acreditamos que, mesmo com medo do arguido, acabará por regressar à habitação comum, existindo o sério risco do arguido voltar a praticar atos violentos idênticos ou mais gravosos que os atos já praticados.
3.15. Perante o exposto, cremos que a decisão recorrida é, no mínimo, temerária, ao fundamentar e fazer crer que o arguido também será uma vítima, e que a BB apresentou um depoimento pouco credível. Assim, considera a Recorrente que a decisão recorrida não protegeu a vítima e não acautelou o perigo que se faz sentir no caso concreto.
3.16. Nesta conformidade, considera a Recorrente que a medida de coação aplicada ao arguido não é suficiente, adequada e proporcional às necessidades cautelares que, no caso concreto, importa prevenir, e violam o disposto no artigo 200.º, n.º 1, alíneas a) e d), e artigo 204.º, alínea c), todos do Código de Processo Penal.
3.17. Pelo exposto, deverá o presente Recurso merecer provimento e considerar-se que existem fortes indícios da prática de todos os factos imputados ao arguido, os quais deverão ser qualificados como crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, bem como considerar-se que o perigo, em concreto, de continuação da atividade criminosa é bastante intenso.
3.18. Deverá ainda o presente Recurso merecer provimento e considera-se que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 200.º, n.º 1, alíneas a) e d), e 204.º, alínea c), todos do Código de Processo Penal, uma vez que a medida de coação aplicada ao arguido não é suficiente, adequada e proporcional às necessidades cautelares que, no caso concreto, importa prevenir, pelo que deverá ser determinada a aplicação ao arguido das medidas de coação de:
3.18.1. Proibição de contactar com a vítima, por qualquer meio, direta ou indiretamente; e
3.18.2. Proibição de permanecer e se aproximar da residência da vítima, sendo ambas as medidas monitorizadas por meio de controlo eletrónico.
Assim se fazendo JUSTIÇA”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
Tempestivamente, não foi apresentada resposta.
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Nesta Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, emitiu parecer, acompanhando a argumentação já apresentada na primeira instância e aditando:
“Com efeito, consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, identificou corretamente o objeto do recurso, argumentou com clareza e correção jurídica, o que merece o nosso total acolhimento.
Na verdade, afigura-se-nos que assiste inteira razão ao Ministério Público, uma vez que os factos, não só resultam claramente indiciados da conjugação das declarações da ofendida BB com os autos de notícia e fotografias constantes dos autos (que comprovam as agressões e afirmam a credibilidade de tais declarações) como integram indubitavelmente o aludido crime de violência doméstica e que se verifica de forma intensa e em concreto o perigo de continuação da atividade criminosa, perigo que manifestamente não de mostra acautelado com a simples aplicação de TIR (em violação do preceituado no art.º204.º, alínea c) do CPP).
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Pelo exposto, somos do parecer de que o recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª Instância deve ser julgado procedente e, consequentemente, o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que considere suficientemente indiciada a prática pelo arguido do crime de violência doméstica, e que aplique as medidas de coação de proibição de contactos com a vítima, quer direta, quer indiretamente, e de proibição de permanecer e de se aproximar da residência da vítima e devendo tais medidas ser fiscalizadas por meio de vigilância eletrónica.”
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II. Objeto do recurso
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Considerando os termos em que o Digno recorrente estruturou o respetivo recurso, importa apreciar a suficiência dos indícios apresentados ao Tribunal a quo, designadamente, na perspetiva de os factos indiciados integrarem, ou não, o crime de violência doméstica, e a necessidade de imposição de medidas de coação diversas do TIR, que vêm reclamadas no recurso.
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III. Da decisão recorrida
iii.1. É do seguinte teor o despacho proferido após o primeiro interrogatório judicial do arguido:
“I – Pressupostos legais da detenção
O arguido foi detido fora de flagrante delito.
A detenção foi legal porque efectuada nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 254º e 257º, do CPP, por mandados de detenção emitidos por entidade competente para o efeito face ao crime e circunstâncias indiciadas, tendo sido cumpridos os requisitos formais.
Foi respeitado o prazo de 48 horas para a apresentação do arguido a este JIC, nos termos do disposto no art.º 254º, do CPP.
Foram integralmente comunicados e explicados ao arguido os direitos referidos no nº 1, do art.º 61º, do CPP, bem como dos factos que concretamente lhe são imputados, as circunstâncias de tempo, lugar e modo e os elementos do processo que os indiciam.
II – Factos indiciados, mas não fortemente indiciados
Considero os factos que motivaram a apresentação do arguido a este interrogatório indiciados, mas não fortemente indiciados.
III – Factos não indiciados
Não há factos não indiciados.
IV – Enquadramento jurídico das circunstâncias de facto indiciadas
Os factos concretamente indiciados, mas não fortemente indiciados, poderão ser susceptíveis de integrar a prática pelo arguido de crimes de ofensas à integridade física, p. e p. pelo artº143º, do CP e de ameaça p. e p. pelos artºs 153º e 155º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal.
De facto, o crime previsto no art.º 152º, do Código Penal, pressupõe uma relação de ascendente do agressor sobre a vítima, que em concreto não se verifica como adiante se especificará.
Dispõe o art.º 152º, do Código Penal, sob a epígrafe “Violência doméstica”:
Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquico, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(...)
É punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Conforme se vem afirmando na jurisprudência dos Tribunais Superiores, “o art.º 152.º, do CP, no seu nº 2, pune a actuação de quem infligir ao cônjuge maus tratos físicos ou morais, e a sua redacção teve como propósito a eliminação de algumas dúvidas que doutrinariamente tinham surgido na interpretação do art.º 153.º, do CP de 1982, e que conduziram a ter-se discutido se, no crime de maus tratos a cônjuge, fazia ou não parte do tipo uma certa habitualidade ou repetição de condutas ofensivas à da integridade física ou moral do consorte ofendido, embora, a final, se tivesse fixado a jurisprudência no sentido de que, mesmo com a redacção de 1982, a referida figura criminal se poderia verificar com uma única agressão, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse fazer qualificar como tal.
A actual redacção, por consequência, mais não significa, no caso concreto, do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos.
Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido art.º 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente.” – Ac. do STJ de 13/11/1997, sumariado por LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, 3ª edição, pág. 303, o qual mantém plena actualidade como, por todos se poderá verificar no Ac. do STJ de 12/03/2009, publicado em www.dgsi.pt/jstj.nsf, onde, de novo, se debateu a questão do suposto requisito da “reiteração”.
Na verdade, como resulta quer do elemento teleológico como da letra da citada lei criminal e vem traduzido nos citados arestos, o elemento diferenciador entre a generalidade dos crimes contra as pessoas e este específico tipo penal, não está na questão da reiteração ou habitualidade, requisito que o art.º 152º, na actual redacção faz questão de, desde logo, afastar.
A conduta típica integradora do tipo objectivo da previsão do art.º 152º, embora possa consistir num único acto, similar ou passível de absorver por consumpção as demais previsões penais que versam crimes contra as pessoas, deverá aditar algo mais a essas previsões.
Isto é, a gravidade da conduta deverá aportar uma nítida degradação da pessoa humana, física ou psicologicamente – nisto consistindo tratar com crueldade, humilhando... – assim extravasando a mera ofensa à integridade física ou injúria e acarretando, no plano subjectivo, um dolo dirigido não só à ofensa do corpo mas também de tratamento cruel, ínsito à sujeição a maus tratos.
No presente caso, pelas razões abaixo mencionadas, relacionadas com a interpretação da prova apresentada, que levaram a que não se considerassem os factos vertidos no despacho de apresentação do arguido como fortemente indiciados, não é possível que se tenha por verificadas circunstâncias que apontem para a sujeição da denunciante a maus tratos degradantes.
V – Análise crítica dos indícios que fundamentam a imputação
O meio de prova que suporta as imputações feitas ao arguido e a qualificação das mesmas como integradoras da previsão do art.º 152º, do Código Penal, é constituído pelas declarações já prestadas por BB, apoiadas pelos fotogramas juntos, os quais foram colhidos nos momentos em que a denunciante teve contactos com a força policial.
Examinando tais fotografias, verifica-se que a denunciante apresenta algumas lesões, nomeadamente hematomas no seio, lábio e face, as quais não são, contudo, compatíveis com as fortes agressões de que afirma ter sido vítima por parte do arguido.
Recorde-se que nas diversas situações em que BB prestou declarações nos diversos inquéritos instaurados apresentou um quadro semelhante ao presente.
O inquérito 809/22.4PLSNT, instaurado em 29/05/2022, que teve na sua origem episódio semelhante àquele que aqui é apresentado, suportado do mesmo modo por declarações da denunciante e fotograma recolhido nas instalações policiais, acabaria por ser objecto de despacho de arquivamento, no qual o ministério Público, deixou expresso que “não existem indícios suficientes, pelo menos com a suficiência exigida pelo art.º 283º, nº 2, do CPP, para se sustentar uma acusação pelo cometimento do crime de violência doméstica”.
Nesse inquérito, agora apenso, o Ministério Público chegou a tal conclusão sem sequer ter procedido à constituição do suspeito (o mesmo) na qualidade de arguido, pelo que o mesmo não teve oportunidade de se expressar e assumir posição quanto aos factos denunciados.
No presente caso, surgido na sequência de factos idênticos e com recurso aos mesmos meios de prova, quase dois anos depois e sem que existisse notícia de outros factos, nomeadamente mais graves – já que a escalada de violência em verdadeiras situações de violência doméstica é fenómeno corrente – o arguido foi trazido a este primeiro interrogatório e teve oportunidade de se manifestar.
Prestou declarações de modo sereno, coerente e isento, ao ponto de assumir comportamentos que lhe são francamente desfavoráveis, pois admitiu comportamentos que não lhe eram agora imputados.
Porém, relatou de modo credível, porque sempre espontâneo e respondendo as questões que lhe eram colocadas para verificar a credibilidade das suas afirmações de forma coerente, que as situações de conflito e confronto entre o casal baseavam-se em agressões mútuas.
Explicou que um dos episódios em que admite ter agredido BB com chapadas na cara, iniciou-se porque a denunciante começou por agredi-lo com um ferro de engomar enquanto passava a roupa a ferro.
Referiu que não raras vezes BB o mordeu e arranhou pelo que teve de lhe puxar os cabelos para afastá-la, chegando a agarra-la com força suficiente para que a mesma ficasse marcada nos braços, porque a mesma se predispunha a agredi-lo.
Retirou uma dentadura para exibir um dente partido (um dente frontal superior direito) que teria sido partido na sequência de agressões de BB, isto é, nos confrontos físicos entre ambos.
Admitiu ter chamado “puta” a BB mas isso na sequência de a mesma lhe ter comunicado que tinha “arranjado um outro homem” que o arguido até conheceria e de ter apelidado o arguido de “corno”.
Como acima se referiu, os fotogramas juntos aos autos não são compatíveis com a força e quantidade de agressões que BB afirma ter sofrido, muito embora se afigurem compatíveis com os confrontos físicos que o arguido admite travar com a mesma no âmbito dos graves conflitos conjugais que frequentemente travam.
Neste contexto, não é possível afirmar que se encontra fortemente indiciada a prática de factos integradores do crime de violência doméstica (bem andou o Ministério Público no despacho de arquivamento proferido no processo 809/22.4PLSNT), muito embora se possa considerar indiciado um contexto de ofensas à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º, do CP, recíprocas.
Arguido e denunciante permanecem ligados, quer pelos filhos comuns, quer pela habitação que partilhavam.
A disputa da habitação, pela conjuntura habitacional, sobretudo no estrato social a que pertencem arguido e denunciante (ele manobrador de máquinas de profissão, mas sem emprego actual e ela sem profissão), tem estado na origem de inúmeros conflitos já que não obstante a separação emocional e afectiva os contendores permanecem na ocupação do mesmo espaço por incapacidade de encontrar alternativa habitacional financeiramente viável, em separado.
A denunciante teve já ao longo dos diversos inquéritos instaurados e arquivados, intervenções, mesmo através de mandatário forense, reveladores de que pretende voltar a ocupar residência que foi comum, onde se encontra o arguido.
Contudo, as medidas de coação não podem ser utilizadas para a solução deste tipo de conflitos quer pessoais quer patrimoniais.
As medidas de coação dependem da verificação de pressupostos expressamente previsto na lei, sendo certo que a medida de coação de afastamento ou proibições previstas no art.º 200º, do CPP, depende da verificação de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, que aqui não se verificam – recorde-se que o crime previsto no art.º 143º é punível com pena de prisão até 3 anos e a ameaça agravada p. e p. pleo art.º 155º, com pena de prisão até dois anos.
VI – Medida de coacção proposta pelo Ministério Público e posição manifestada pela defesa
- Proibição de contactos promovida pelo Ministério Público.
VII – Medida de coacção adequada
Não podendo ser considerados fortemente indiciados, neste momento processual, os factos imputados ao arguido, fica legalmente inviabilizada a possibilidade de aplicação de qualquer medida de coação prevista no art.º 200º, do CPP, pelos motivos já acima expostos.
Embora todo o conflito seja susceptível de gerar perigo, não se mostram adequadas, ao nível criminal e no caso concreto, quaisquer medidas de coação legalmente admissíveis ao caso concreto.
VIII – Medida de coacção concreta
Pelo exposto, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a termo de identidade e residência – art.º 196º, do CPP.
Porque existem menores envolvidos no presente conflito, comunique como promovido.
Notifique.
Restitua o arguido à liberdade.”
iii.2. Constam do auto de 1º interrogatório judicial de arguido detido, como indiciados, os seguintes factos (que foram, nessa ocasião, comunicados):
“1. O arguido e a vítima BB iniciaram uma relação de namoro em 2018, em ....
2. Em 2019, a BB veio viver para Portugal com o arguido.
3. O arguido e a BB passaram a viver juntos como se casados fossem, em comunhão de mesa, leito e habitação.
4. O casal estabeleceu residência a. Inicialmente, num quarto, em fração não apurada, na ...; b. Desde 2021, na ....
5. O arguido e a BB tiveram dois filhos em comum, que residiam com o casal:
a. CC, nascido a ... de ... de 2020;
e b. DD, nascido a ... de ... de 2022.
6. Desde 2021, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, com frequência, na residência do casal, o arguido disse à BB: a. “vou-te matar”; b. “vou-te atirar da janela abaixo”.
7. No dia ... de ... de 2022, pelas 22h12, o arguido chegou a casa já embriagado e começou a discutir com a BB.
8. No decurso dessa discussão, o arguido agarrou a BB pela face e pelo pescoço e empurrou-a até à parede mais próxima.
9. Depois, o arguido desferiu duas bofetadas na face da BB.
10. Como consequência dos atos do arguido, a BB sentiu dores nas zonas atingidas e sofreu ferimentos na face.
11. No dia ... de ... de 2023, pelas 23h00, o arguido chegou à residência do casal já embriagado e a BB não quis que ele se deitasse junto dela.
12. O arguido não acedeu ao pedido do arguido e a BB foi dormir para o sofá, na sala.
13. De seguida, o arguido foi à sala e dali retirou o seu filho CC, que levou para o quarto.
14. A BB foi atrás do arguido.
15. Já no quarto do casal, o arguido desferiu dois murros na cabeça da BB, causando-lhe tonturas momentâneas, e, em ato continuo, empurrou-a para fora do quarto dizendo à mesma para que chamasse a polícia.
16. Desde ... de 2023 que, por várias vezes, em datas não concretamente apuradas, com frequência, na residência do casal, o arguido disse à BB:
a. “és uma puta”;
b. “não prestas”;
c. “cínica”.
17. No dia ... de ... de 2023, às 15h30, na residência do casal, o arguido, já embriagado, começou a acusar a BB de ter tirado a sua carteira do local, pelo que a vítima foi para a cozinha para evitar um confronto.
18. De imediato, o arguido foi atrás da BB, agarrou-a pela camisa e rasgou a camisa, bem como causou-lhe um ferimento no lábio.
19. Depois, o arguido agarrou a BB pelos braços e empurrou-a contra a parede.
20. Em seguida, o arguido saiu de casa e regressou cerca de duas horas depois ainda mais embriagado.
21. De imediato, a BB trancou-se no quarto com receio do arguido.
22. O arguido dirigiu-se à porta do quarto e começou a bater na mesma com força ao mesmo tempo que dizia que “ou abria a porta ou ia deitá-la abaixo”.
23. A BB para não acordar e assustar os seus filhos, abriu a porta do quarto.
24. O arguido entrou no quarto, começou a falar alto com a vítima e disse:
a. “tu não prestas”;
b. “não és mulher”;
c. “vais te deitar no chão que aqui na cama não dormes”.
25. A BB pediu ao arguido para se acalmar e começou a gravá-lo, o que exaltou o arguido.
26. De imediato, o arguido tirou o telemóvel da mão da BB e disse “vou-te dar um murro para veres como é um murro de um homem”.
27. Em ato contínuo, o arguido foi na sua direção para lhe bater.
28. Nesse momento, a BB empurrou o arguido, e ambos caíram sobre a cama.
29. Em cima da cama, o arguido mordeu o braço direito da BB e começou a disferir diversos murros na cara nos braços e nos seios da vítima.
30. A BB conseguiu levantar-se, mas o arguido continuou a bater-lhe e a empurra-la contra a parede.
31. Depois, a BB fugiu do quarto, mas o arguido correu atrás dela e empurrou-a várias vezes e desferiu vários murros na mesma.
32. Na cozinha, o arguido colocou o seu braço à volta do pescoço da BB, estrangulando-a, ao mesmo tempo que lhe disse “vou-te matar”.
33. A BB, entretanto, conseguiu libertar-se.
34. Até a polícia comparecer no local, o arguido disse várias vezes à BB:
a. “vou-te matar para veres que não vales nada para mim”;
b. “vou-te atirar a baixo da janela”
35. Como consequência dos atos do arguido, a BB sentiu dores nas zonas atingidas e sofreu diversos hematomas no braço direito, no seio esquerdo, nos lábios e na cabeça.
36. Nesse dia, a BB saiu de casa com os seus filhos e não voltou a residir na habitação do casal, por ter medo do arguido.
37. Com a prática das condutas descritas, deu causa o arguido, de modo direto e necessário, a que a vítima BB se sentisse ansiosa e com medo, receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que ofendesse a sua integridade física, a humilhasse, a intimidasse ou mesmo a matasse.
38. Ao atuar da forma descrita para com a vítima, sabendo que ela era sua companheira e mãe dos seus filhos, o arguido agiu com o propósito de molestar a saúde física e psíquica da mesma, de afetar a sua liberdade de decisão, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu, ao atuar da forma acima descrita, na presença dos filhos menores, bem sabendo que tinha para com ela um especial dever de respeito e de a tratar com dignidade.
39. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.”
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IV. Fundamentação
Pretende o Digno recorrente que se reconheça «a existência de fortes indícios da prática pelo arguido de todos os factos que lhe são imputados no despacho de apresentação do arguido a primeiro interrogatório judicial, os quais consubstanciam um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal; bem como deverá considerar-se que se verifica, de forma intensa e em concreto, o perigo de continuação da atividade criminosa.»
Pede, em consequência, que ao arguido sejam aplicadas as medidas de coação de proibição de contactar com a vítima, por qualquer meio, direta ou indiretamente, e de proibição de permanecer e de se aproximar da residência da vítima, sendo ambas monitorizadas por meio de controlo eletrónico, tudo nos termos dos artigos 200º, nº 1, alíneas a) e d), e 204º, alínea c), do Código de Processo Penal, e artigos 31º, 35º e 36º, nº 7, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, conjugados com o artigo 1º, alínea e) da Lei nº 33/2010, de 02 de setembro.
Cumpre apreciar.
Vem pedida no recurso a aplicação de medidas de coação consistentes em proibições de conduta (não contactar, não permanecer), no quadro da previsão do artigo 200º do Código de Processo Penal.
As medidas de coação são, como se sabe, meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias2.
Como explica Tiago Caiado Milheiro3, em anotação ao artigo 200º do Código de Processo Penal, “Esta medida de coação, na ordenação legal, surge como antecâmara das medidas de coação privativas da liberdade. Apontando o grau de exigência do legislador – pena de prisão de máximo superior a 3 anos – e a intensidade de indícios – fortes – para uma medida de coação com maior grau de coerção sobre direitos fundamentais do arguido”.
Reconhece-se, em consequência, que a imposição de tal medida de coação “atinge de uma forma intensa a liberdade pessoal do arguido, a sua autonomia decisória. Mais concretamente, a esmagadora maioria das obrigações prendem-se com constrições do direito de deslocação.” Não obstante, “[a] legitimação desta constrição à vida pessoal do arguido e sua liberdade decisória tem por fundamento a conexão com os perigos cautelares que se procuram evitar. Se quisermos, a liberdade de um cidadão não é ilimitada, e os seus limites têm como fronteira o espaço de interferência com a liberdade dos demais cidadãos ou colisão com outros interesses constitucionalmente protegidos”4.
A possibilidade de aplicação de tal medida de coação encontra-se sujeita aos pressupostos legais de carácter geral, (aplicáveis a qualquer medida de coação diferente do TIR), que se referem à verificação de algum ou alguns dos perigos enunciados nas alíneas a) a c) do artigo 204º do Código de Processo Penal: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação da investigação; c) Perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública ou de continuação da atividade criminosa – que não são de verificação cumulativa.
Quanto aos pressupostos de carácter específico, encontram-se estabelecidos no artigo 200º nº 1, do Código de Processo Penal, e são cumulativos: a existência de fortes indícios da prática de crime; que o crime indiciado seja doloso; que o crime seja punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos. Adicionalmente, no nº 4 do mesmo preceito prevê-se que as obrigações previstas nas alíneas a), d), e) e f) do nº 1 também podem ser impostas pelo juiz ao arguido, se houver fortes indícios de prática do crime de ameaça, de coação ou de perseguição, dispensando-se, nestas circunstâncias, o requisito de que a pena aplicável seja superior a 3 anos de prisão.
A medida de proibição ou imposição de condutas pode ainda ter (e com regularidade tem) como finalidade assegurar a proteção da vítima, como sucede no caso de crimes de violência doméstica, prevendo-se na Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o «regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas» (RJVD), designadamente, que deve ser assegurado um nível adequado de proteção à vítima e, sendo caso disso, à sua família ou a pessoas em situação equiparada, nomeadamente no que respeita à segurança e salvaguarda da vida privada, sempre que as autoridades competentes considerem que existe uma ameaça séria de represálias, de situações de revitimação ou fortes indícios de que essa privacidade possa ser perturbada (artigo 20º, nº 1), que, logo que tenha conhecimento da denúncia, sem prejuízo das medidas cautelares e de polícia já adotadas, o Ministério Público, caso não se decida pela avocação, determina ao órgão de polícia criminal, pela via mais expedita, a realização de atos processuais urgentes de aquisição de prova que habilitem, no mais curto período de tempo possível sem exceder as 72 horas, à tomada de medidas de proteção à vítima e à promoção de medidas de coação relativamente ao arguido (artigo 29º-A, nº 1), e dispondo expressamente o artigo 31º do RJVD que 1 - Após a constituição de arguido pelo crime de violência doméstica, o juiz pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, de medida ou medidas de entre as seguintes: a) Não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa; b) Sujeitar, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica; c) Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família, impondo ao arguido a obrigação de a abandonar; d) Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, bem como não contactar, aproximar-se ou visitar animais de companhia da vítima ou da família; e) Restringir o exercício de responsabilidades parentais, da tutela, do exercício de medidas relativas a maior acompanhado, da administração de bens ou da emissão de títulos de crédito.
2 - O disposto nas alíneas c) e d) do número anterior mantém a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica.
Assim, no âmbito do RJVD, o juiz tem de ponderar a aplicação de tais medidas, significando que o legislador entende que se trata, por princípio, de medidas de coação ajustadas, no caso de violência doméstica, e que o tribunal as deverá aplicar para proteger a vítima, verificados os pressupostos legais.
Não obstante, a imposição de tais medidas encontra-se, igualmente, à semelhança das restantes medidas de coação, com exceção do Termo de Identidade e Residência, sujeita às condições de adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente, face à gravidade do crime e às sanções que, num juízo de prognose em relação ao julgamento, virão, possivelmente, a ser aplicadas. É o que decorre das normas contidas nos artigos 191º, nº 1, 193º e 204º do Código de Processo Penal, de acordo, aliás, com os princípios constitucionais consagrados nos artigos 18º, nº 2, 27º e 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
O princípio da adequação das medidas de coação exprime a exigência de que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a concreta medida de coação imposta ou a impor. Afere-se por um critério de eficiência, partindo da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coação e a previsível capacidade de esta o neutralizar ou conter.
O princípio da necessidade tem subjacente uma ideia de exigibilidade, no sentido de que só através da aplicação daquela concreta medida de coação se consegue assegurar a prossecução das exigências cautelares do caso e não de outra qualquer ou da não aplicação de qualquer delas.
O princípio da proporcionalidade assenta num conceito de justa medida ou proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coação escolhida.
O artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa prevê que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Os mencionados princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade que regem a aplicação de medidas de coação são, ainda, uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência constante no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
«Respeitar o princípio da adequação significa escolher a medida que poderá constituir o melhor instrumento para garantir as exigências cautelares do caso (…). Para respeitar o princípio da proporcionalidade, a medida de coação escolhida deverá manter uma relação direta com a gravidade dos crimes e da sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos.»5
Feitas estas considerações de carácter geral, que hão de ser tidas em conta na verificação da existência dos pressupostos de que depende a aplicação das medidas de coação eventualmente a impor ao arguido, é tempo de nos debruçarmos sobre os concretos aspetos assinalados nas conclusões extraídas da motivação do recurso do Ministério Público.
(dos fortes indícios do cometimento do crime imputado)
Sendo a ocorrência de indícios da prática de um crime uma condição sine qua non da aplicação de todas as medidas de coação, no que concerne à proibição e/ou imposição de condutas (tal como para as medidas privativas da liberdade), a lei é mais exigente, pois usa a expressão «fortes indícios», sendo que, ao fazê-lo, como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.08.20186, cuja perspetiva subscrevemos, “o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado7 e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos.
Sendo diferente o contexto probatório em relação ao momento da aplicação da medida de coacção – como é o caso – e ao momento da acusação, poderá então afirmar-se que não sendo conceitos semelhantes, claro está, de certo modo se equivalem o conceito de «fortes indícios» usado no art.º 202º e o de «indícios suficientes» explicitado no art.º 283º, nº 2 quanto aos objectivos que visam em cada momento processual: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.8 9
Essa idoneidade, porém, há de aferir-se pela circunstância de serem usados perante realidades processuais distintas, e não pela respetiva substância.
Assim, se os indícios suficientes se devem ter por verificados, quando, com base nesses indícios, a probabilidade de condenação é, pelo menos, maior do que a de absolvição, reportada à fase da audiência de discussão e julgamento10, os indícios só serão fortes quando o seu grau de certeza acerca do cometimento do crime e da identidade do seu autor é próximo do que é exigido na fase do julgamento, apenas com a diferença de que, aquando da aplicação da medida de coação, os elementos probatórios têm uma maior fragilidade, resultante da ausência de contraditório, da imediação e da oralidade, que são característicos da fase da discussão e julgamento da causa.
O despacho recorrido considerou indiciado o cometimento pelo arguido AA, de crimes de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, e de ameaça, previsto e punido pelos artigos 153º e 155º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal – sem especificar quantos destes crimes entende terem sido indiciariamente cometidos, perante a pluralidade de condutas descritas. O Digno recorrente, porém, pugna pelo reconhecimento da existência de fortes indícios da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal.
Face a esta discordância, antes de nos adentrarmos na situação concreta dos autos, importa examinar o recorte típico do crime de violência doméstica, relevando-se que o mesmo visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade11 12. O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade da pessoa com quem o agente mantenha uma relação análoga à dos cônjuges, ou de progenitor de descendente comum (no que para o caso em mãos releva – cf. alíneas b), e c) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal).
É pacífico que o preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos»13.
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja, hoje, um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma. A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da ação uma pluralidade indeterminada de atos parciais.
Importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal das vítimas que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão14, «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”.
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.
Por outro lado não pode deixar de ser tido em conta, como se expõe no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.01.201315, que “[a]quilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja «sovada», objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade.
Ou seja, a existência da crueldade não é elemento do tipo – o que ajuda a afastar a anterior jurisprudência que apostava na crueldade quer para caracterizar o acto não reiterado, quer os resultados – em sede de facto – que caracterizam uma postura desnecessariamente exigente, dos danos verificáveis.”
E mais adiante, ainda no mesmo aresto, “(…) aceitando os critérios propostos por Nuno Brandão16, entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à «imagem global do facto» - se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.
(…)
E, por fim, há que referir como abrangidos pelo tipo penal os casos de «micro violência continuada», que Nuno Brandão refere como caracterizando-se pela “opressão … exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”.
É o caso abordado pelo acórdão do TRC de 07-10-2009 (Proc. 317/05.8GBPBL.C2, rel. Mouraz Lopes) em que a «ocorrência de várias condutas reiteradas no tempo, diferenciadas no grau e no tipo de conduta, que por si só não assumam uma especial gravidade, mas que quando interpretadas e vistas no enquadramento de uma relação conjugal assumem ou podem assumir claramente uma conformação de maus tratos. Ou seja, ao longo de um determinado período de tempo, no âmbito da relação conjugal, um dos cônjuges, agride, humilha, ameaça, injuria ou pratica outros actos que põem em causa a saúde do cônjuge, mesmo que não revista cada um deles de per si uma gravidade significativa».”
Posto isto – e mantendo presente esta «geometria variável» a que se acha sujeito o crime de violência doméstica, nos termos que se deixaram expostos – retornemos, finalmente, ao caso dos autos.
Preliminarmente, tem de dizer-se que os factos constantes do despacho de apresentação (e reproduzidos no auto de interrogatório), descrevem, de forma clara, uma situação de violência doméstica: há agressões físicas repetidas no tempo, há ameaças de males maiores, há insultos, e tudo no contexto da vivência em comum, numa situação análoga à dos cônjuges, e na presença de dois menores (que, a tudo assistindo, não podem deixar de ser também vitimizados), prolongando-se já por mais de dois anos. A coroar tudo isto, há ainda a saída de casa da ofendida (na sequência da agressão ocorrida em ... de 2023), a qual ficou, assim, sem teto e com os dois menores a cargo.
A decisão recorrida, como se disse, considerou indiciados todos os factos descritos no despacho de apresentação do arguido a primeiro interrogatório judicial – mas não fortemente indiciados. E não considerou indiciados (fortemente ou não) quaisquer outros factos para além dos referidos.
Do contexto da decisão recorrida resulta que aqueles factos não foram considerados fortemente indiciados não porque o Tribunal a quo se tenha convencido de que não ocorreram, mas antes porque, perante as declarações do arguido, se convenceu de que, de algum modo, a atuação descrita poderia estar justificada por recíprocas agressões.
Ouvidas as declarações prestadas pelo arguido perante o Mmo JIC, cotejadas com as declarações prestadas pela ofendida perante OPC, e, bem assim, com os demais elementos de prova disponíveis nos autos17, não podemos partilhar a opinião exarada na decisão recorrida.
Comecemos pelas declarações do arguido:
- confrontado com as fotografias tiradas em ...de 2023, juntas aos autos (refª Citius 25967882), e questionado sobre se tinha dado socos ou dentadas na ofendida, disse (aos minutos 00:05:38 a 00:05:42) “Hã… de dentada, não, mas esses dois sim”, “De dentada não lembro. Essas duas sim”; e, mais adiante, ainda sobre o mesmo tema, perante a insistência em face das marcas visíveis nas fotografias: “Eu não lembro se dei soco nela”, “Não, soco que eu lembro que dei nela... outubro... no domingo que pronto” (aos minutos 00:06:33). Questionado diretamente sobre o(s) soco(s) no seio da ofendida, diz “Oooo soco no seio... é que, ... ela me, me colocou ferro de alisa na perna que estava...” (aos minutos 00:06:50 a 00:07:00), explicando que a ofendida o queimou com o ferro de engomar roupa18.
- disse, nesta sequência, “eu sim, eu levantei-me para ela”, “ela voltou para mim, e me derrubou no chão” (aos minutos 00:07:03 a 00:07:10), e mais adiante “eu tive que pegar ela no cabelo para tirar ela de cima de mim”, “Depois eu coloquei ela em cima de cama, porque ela já tinha... me queimado. Eu peguei ela no pescoço”, “Peguei ela, coloquei em cima de cama, peguei no pescoço e disse também sei prometer o soco também na cara dela, como ela me deu.” (aos minutos 00:07:22 a 00:07:51).
- disse, depois, que afinal não deu socos na ofendida, só chapadas, “Deu dois, e soltei ela... Ela ficou naquele quarto a chorar e vim até na porta pra abrir porta vizinha” (minutos 00:08:11 a 00:08:39).
- quando questionado sobre a razão pela qual a ofendida o teria queimado com o ferro de engomar, diz “eu posso contar… conto do início…” (aos minutos 00:09:02), mas depois começa a contar outra história, de outra discussão, num outro dia, envolvendo milho e pipocas e o seu direito de sair com as crianças ao fim-de-semana, na qual a ofendida lhe rasga duas camisas, mais dizendo que, apesar de ela ser consideravelmente mais baixa (aos minutos 00:10:30 diz “só que a altura dela é até aqui”, depreendendo-se que terá dito que lhe dava pelo ombro), “ela é mais forte que mim” (minutos 00:10:34), assumindo, porém, ao minuto 00:10:54, que a empurrou.
- confrontado com a existência de queixas anteriores (minutos 00:13:05), o arguido mostra o seu dente partido, e diz que “foi um tapa que ela me deu na estação de ...” (minutos 00:13:32), e acrescenta “Estava no meio de muitas pessoas, Eu. Não. muitos. Outros disse que eu que eu batia também de novo, outro disse que não...” (minutos 00:13:38), situando tais factos “há dois anos atrás” (minutos 00:14:10). E disse, ainda, “Nosso briga não é tanto aquele briga que tem muita força, não. Eu sempre empurrei ela. Eu só empurro”, “Ela, que começa tipo a fazer essas coisa, mas eu pá, eu, eu, uma vez que ela ficou com o braço... com a mancha no braço, porque eu segurei ela um pouco duro pra ela…” (minutos 00:20:25 a 00:20:39)
- perguntado sobre se é habitual embriagar-se, primeiro diz que não, porque trabalha com máquinas (minutos 00:14:36), mas mais adiante admite que sim, que tem vários dias que chega a casa embriagado (minutos 00:15:33 a 00:15:38), negando, porém, que cause qualquer confusão quando embriagado. Apesar disso, mais adiante, questionado sobre se dizia à ofendida que a matava e que a atirava da janela abaixo, disse: “Às vezes com a cabeça quente, bêbado, já disse mata não, para janelas, já disse que atirava pela janela19 (minutos 00:24:25), e acrescenta: “A gente sabe que bêbados, faz e falam qualquer coisa”, para logo emendar: “mas não fazem, mas falam” (minutos 00:24:51), sugerindo ainda que não teria condições físicas para atirar a ofendida pela janela, antes esta o atiraria a ele (minutos 00:25:00 a 00:25:07).
- finalmente, questionado sobre as circunstâncias em que a ofendida saiu de casa, disse que “naquele dia o polícia… Levaram ela, no domingo que a vizinha chamou a polícia. Tiraram ela de casa, polícia levaram, ela foi fazer a queixa, mas ela não, não voltou. Eu... Não voltou, Eu não fico, não sabia muito. Eu não sei onde é que ela foi” (minutos 00:22:08 a 00:22:29), e ainda esclareceu que a vizinha chamou a polícia porque a BB estava a chorar alto (minutos 00:22:32 a 00:23:16).
Nas declarações do arguido, que, sublinhamos, estão longe de ser coerentes, surpreende-se alguma candura, ao admitir ter batido na ofendida, ter-lhe dito que a matava e que atirava da janela abaixo, ter-lhe chamado “puta”, “vadia” ou ter dito que ela “não presta”, e reconhecendo ainda embriagar-se com frequência – mas o que resulta da globalidade do seu relato, é que o fez por estar convencido de que o seu comportamento está justificado, que tem o direito de assim atuar, e também, notoriamente, para procurar desresponsabilizar-se das agressões (em alternativa: ou foi agredido primeiro, ou estava bêbado). E isto, com todo o respeito por opinião contrária, não tem o efeito de tornar duvidosos os factos relatados no processo pela ofendida, para mais quando esta ainda não foi ouvida (nem vista) pelo Tribunal.
No que se refere às lesões documentadas nas fotografias, e relevando-se que estas se reportam apenas ao último episódio de agressão, inexistindo qualquer exame médico, não é possível avaliar a intensidade das pancadas (chapadas, socos, dentadas, empurrões ou apertões) que causaram os hematomas e equimoses visíveis, pelo que a única conclusão que pode extrair-se das mesmas é que aquelas marcas não documentam outra coisa que não seja a existência de uma agressão.
Por outro lado, como decorre do que já acima se referiu a propósito do recorte objetivo do crime de violência doméstica, não constitui elemento do tipo que a vítima seja selvaticamente sovada, nem o crime deixa de consumar-se se não forem produzidas marcas exuberantes ou severamente lesada a sua integridade física (sem embargo de tais circunstâncias se constituírem como agravantes). É, aliás, precisamente para procurar evitar que tais resultados se materializem que a lei aposta na sinalização precoce das situações de violência doméstica e na adoção de medidas que sejam adequadas a proteger as vítimas.
Cabe assinalar, porém, que a escalada de violência, no contexto do crime em causa, podendo ocorrer (como ocorre), também não constitui elemento identificador do tipo: são conhecidas situações em que o padrão de violência se manteve sempre em patamares de baixa intensidade, mas relevante persistência temporal, conduzindo também por esta via a que se identifique a existência de degradação da dignidade humana, de infelicidade e mau-viver, que constituem pedra de toque do crime que aqui apreciamos. Neste contexto, não logramos identificar na circunstância de os atos praticados em ... de 2023 se mostrarem semelhantes aos ocorridos em ... de 2022 e... de 2023 (as duas queixas anteriores), qualquer justificação para a desconsideração da gravidade dos factos denunciados, antes se indiciando a persistência dos comportamentos.
Note-se, a propósito, que nos processos nos 809/22.4PLSNT e 299/23.4PISNT (atualmente reabertos e apensados a estes autos), foi inicialmente determinado o respetivo arquivamento nos termos do nº 2 do artigo 277º do Código de Processo Penal, ou seja, a aguardar melhor prova, e não porque se tivesse concluído pela inexistência da prática de crime. E foi assim porque a ofendida, apesar de ter apresentado as queixas, não quis depois prestar declarações sobre os factos (nas suas palavras, não desejou procedimento criminal20), não podendo o Ministério Público, em consequência, confiar em que, em julgamento, fosse possível provar os factos denunciados.
A ambivalência, nas vítimas de violência doméstica, é comum.
E é assim porque a esmagadora maioria das vítimas de tal crime não quer, verdadeiramente, que o agressor seja condenado: quer que ele mude. Convencem-se tais vítimas de que a queixa, representando um «susto», será bastante para alcançar tal efeito21. O que raramente (ou nunca) acontece.
Por isso, é também comum o padrão apresentado nos autos.
Da existência de dois arquivamentos anteriores – em processos entretanto reabertos – não pode extrair-se a irrelevância penal dos factos. E também não pode concluir-se que tudo se reconduz a uma disputa pela habitação: se assim fosse, não haveria motivo para que a ofendida «desistisse» do processo, ao não querer prestar declarações, como sucedeu.
Em sentido contrário, consta dos autos que a avaliação do risco levada a cabo pela PSP em ........2023 (refª Citius 25967882) concluiu pela atribuição ao caso de «risco elevado» e a avaliação efetuada pela APAV em ........2024 (refª Citius 26017027) é pontuada com «risco extremo».
Neste quadro, não vemos como afirmar que os factos descritos em iii.2. supra, não estão fortemente indiciados: se a medida relevante para o efeito é a possibilidade de condenação perante a prova dos mencionados factos em julgamento, temos de afirmar, claramente, que, a provarem-se os factos denunciados, é altamente provável a condenação do arguido em julgamento.
E a tanto não obsta a posição adotada pelo arguido (não sujeita a contraditório, relembramos), já que, verdadeiramente, não rejeitou que os factos se tenham efetivamente verificado, antes procurando desresponsabilizar-se dos mesmos (o que também é comum em situações de violência doméstica). A ser verdade que a ofendida se entretém a fazer a vida negra ao arguido, porque teria ela fugido de casa, levando consigo dois menores com menos de três anos?
Só divisamos uma explicação: a vítima tem medo do arguido.
E tem razões para tal, porque, como o próprio assumiu, aquele bateu-lhe, apertou-lhe o pescoço, puxou-lhe os cabelos, empurrou-a, deu-lhe socos e chapadas. E ainda ameaçou matá-la.
Por outro lado, para que se possa considerar a existência de uma situação de violência doméstica não é requisito que a vítima sofra calada, ou que não esboce qualquer reação. O que releva na determinação da existência de uma situação de desequilíbrio relativo, que permita concluir pelo atingimento da dignidade pessoal e, simultaneamente, pela supremacia do agressor, é a consideração da possibilidade de a potencial vítima se subtrair a essa vitimização pelos seus próprios meios, o que não sucede no caso em apreço, já que foi necessária a intervenção das autoridades para que a ofendida pudesse sair de casa22.
Podemos, pois, dizer que tudo o que os autos nos mostram aponta, de forma clara, para a forte indiciação dos factos denunciados e, por consequência, do cometimento pelo arguido do crime de violência doméstica, que consome os crimes de ofensa à integridade física e ameaça agravada que a decisão recorrida considerou indiciados, embora sem discutir a respetiva pluralidade e/ou expor por que razão não vislumbrou na repetição dessas condutas – associadas a todas as outras que se acham descritas – o padrão de agressão, desrespeito e rebaixamento que define a violência doméstica.
Perante a verificação de tais factos, seria necessário que se demonstrassem outros, de modo concreto, para que se afastasse o enquadramento jurídico proposto pelo Ministério Público. E isso não aconteceu na decisão recorrida: não se consignaram quaisquer outros factos para além dos que vinham descritos no despacho de apresentação, e as declarações prestadas pelo arguido (que nem sequer está vinculado ao dever de verdade) também não são adequadas a produzir tal alteração.
Em face do acervo probatório disponível nos autos, não podemos concordar com avaliação das circunstâncias apuradas feita pelo Tribunal a quo, antes se devendo sufragar o entendimento expresso no recurso, pelo que é de concluir pela forte indiciação da prática por parte do arguido AA de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), e nº 2, alínea a), do Código Penal. Tal crime é em abstrato punível com pena de prisão de 2 a 5 anos, pelo que é admissível a aplicação da medida de coação de imposição/proibição de condutas. Em suma, é de considerar demonstrada a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, nos termos exigidos pelo artigo 200º, nº 1, do Código de Processo Penal.
(dos pressupostos para a medida de coação de imposição/proibição de condutas)
Preenchido o pressuposto específico do artigo 200º, do Código de Processo Penal, vejamos agora os pressupostos constantes do artigo 204º do mesmo diploma legal, sustentando o Digno recorrente que se mostra em concreto verificado o perigo de continuação da atividade criminosa, contemplado na alínea c) do preceito citado.
Na decisão recorrida, mercê da opção seguida quanto ao enquadramento jurídico dos factos, não se tomou posição a este respeito23, referindo-se apenas, em termos genéricos, que todo o conflito será suscetível de gerar perigo.
Porém, os factos fortemente indiciados nos autos são expressivos quanto à violência física e psíquica a que foi sujeita a vítima BB, ao longo de mais de dois anos, pelo arguido AA, concretizada nas diferentes situações descritas em que fisicamente agrediu a ofendida, dando-lhe socos e chapadas, apertando-lhe os braços, puxando-lhe os cabelos e apertando-lhe o pescoço, para além de regularmente a ofender e humilhar, chamando-lhe puta e dizendo-lhe que não presta, e de a ameaçar, dizendo-lhe que a mata e que a atira da janela abaixo.
Estes factos associados às efetivas lesões verificadas na vítima, levam-nos a concluir pela objetiva gravidade dos factos imputados, além do que transmitem do desprezo pela integridade, vida e pela dignidade humana da vítima.
E não será a eventual inserção social e profissional do arguido que afastará este perigo, pois que, até agora essa inserção não teve essa virtualidade e nada nos autos aponta no sentido de qualquer mudança objetiva por parte do arguido, que nos faça concluir pela interiorização por este do desvalor da sua ação, ou qualquer outro indício de que é possível um diferente juízo de prognose.
Acresce que, os factos acima descritos integram o conceito de criminalidade violenta (artigo 1º, alínea j) do Código de Processo Penal) atingindo bens jurídicos estruturantes, e fortemente valorados pela sociedade.
Neste quadro, perante a natureza e circunstâncias do crime e personalidade do arguido nele revelada, fazendo um juízo de prognose quanto ao risco de repetição das condutas, caso arguido e vítima voltem a ter contacto (ou mesmo a coabitar), é de considerar efetivamente verificado o aludido perigo de continuação da atividade criminosa, previsto na alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal.
As medidas de coação propostas – de proibição de contactos com a vítima e de afastamento da residência desta – mostram-se, por seu turno, adequadas a acautelar o mencionado perigo e salvaguardar os bens jurídicos postos em causa com a atuação do arguido, potenciando a proteção da vítima e a cessação da respetiva revitimização. Sendo adequadas, tais medidas são também necessárias, não se vendo outras que possam obstar à persistência da agressão.
A gravidade objetiva do crime que vem indiciado e a previsibilidade de condenação (sem prejuízo da ausência de antecedentes criminais do arguido) justificam, do ponto de vista da proporcionalidade, a imposição das medidas de coação propostas, a qual se mostra, por isso, proporcional à gravidade dos crimes fortemente indiciados e às sanções para os mesmos legalmente previstas.
De referir ainda que, na situação presente, a limitação do princípio da presunção de inocência, estabelecido no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa está legitimada, na medida em que, pelas razões acima expostas, as medidas de coação em causa se mostram essenciais à proteção da vítima e, por isso, adequadas e proporcionais às exigências cautelares em apreço.
Já se disse acima que as medidas de coação aqui em discussão, quando aplicadas no quadro da violência doméstica têm também (na verdade, primordialmente), uma função de proteção das vítimas e acautelamento do risco de persistência da agressão na pendência do processo.
No caso, como também já se referiu, a avaliação do risco levada a cabo através da aplicação de matrizes aceites como adequadas para o efeito e efetuada por entidades com experiência em situações de violência doméstica, aponta para a existência de «risco elevado» de repetição dos comportamentos e eventual agravamento do grau de violência.
É um risco que não pode ser ignorado por este Tribunal.
Lapidarmente refere o Mmo JIC, entre os minutos 00:31:27 e 00:31:32 do interrogatório judicial do arguido AA, “há uma coisa que parece que é certa: os dois na mesma casa, isso acaba mal”.
Perante esta constatação, não se compreende que não sejam adotadas as medidas legalmente previstas e adequadas a acautelar o perigo de que os comportamentos persistam e/ou se agravem.
Conforme tem vindo a ser reconhecido, nomeadamente, nas instâncias internacionais, não é tolerável um padrão de passividade judicial em relação a alegações de violência doméstica (vd. acórdão do TEDH Durmaz v. Turquia, de 13.11.2014, § 65)24.
Isto mesmo se afirmou também no acórdão do TEDH Opuz v. Turquia, de 09.06.200925, no qual se fez constar: “128. The Court reiterates that the first sentence of Article 2 § 1 enjoins the State not only to refrain from the intentional and unlawful taking of life, but also to take appropriate steps to safeguard the lives of those within its jurisdiction (see L.C.B. v. the United Kingdom, 9 June 1998, § 36, Reports 1998-III). This involves a primary duty on the State to secure the right to life by putting in place effective criminal-law provisions to deter the commission of offences against the person backed up by law-enforcement machinery for the prevention, suppression and punishment of breaches of such provisions. It also extends in appropriate circumstances to a positive obligation on the authorities to take preventive operational measures to protect an individual whose life is at risk from the criminal acts of another individual (see Osman v. the United Kingdom, 28 October 1998, § 115, Reports 1998-VIII, cited in Kontrová v. Slovakia, no. 7510/04, § 49, 31 May 2007).”26
E, mais adiante: “144. As regards the Government’s argument that any further interference by the national authorities would have amounted to a breach of the victims’ rights under Article 8 of the Convention, the Court notes its ruling in a similar case of domestic violence (see Bevacqua and S. v. Bulgaria, no. 71127/01, § 83, 12 June 2008), where it held that the authorities’ view that no assistance was required as the dispute concerned a “private matter” was incompatible with their positive obligations to secure the enjoyment of the applicants’ rights. Moreover, the Court reiterates that, in some instances, the national authorities’ interference with the private or family life of the individuals might be necessary in order to protect the health and rights of others or to prevent commission of criminal acts (see K.A. and A.D. v. Belgium, nos. 42758/98 and 45558/99, § 81, 17 February 2005).”27
Nestes termos, face ao que decorre do disposto nos artigos 20º, nº 1, 29º-A, 31º, nº 1, alíneas c) e d) e nº 2, 35º e 36º, todos do RJVD, mostrando-se preenchidos os pressupostos legais constantes dos artigos 200º, nº 1, alíneas a) e d) e 204º, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, impõe-se concluir pela necessidade de imposição das medidas de coação reclamadas, de modo a acautelar a segurança da vítima e dos seus filhos, não se encontrando justificação para que tenham que ser estes a abandonar a sua residência, ficando privados de a ela regressar (ou, regressando, sujeitarem-se à repetição de novos atos violentos), em benefício do agressor.
Em conformidade com o citado artigo 31º, nº 1, alínea c) do RJVD, e de modo a executar a medida de coação de afastamento da residência da vítima (que é a casa de morada de família), impõe-se determinar ao arguido a obrigação de abandonar tal residência – medida cuja relevância não é afastada pelo facto de a vítima se ter visto obrigada a abandonar aquela residência em consequência do comportamento do arguido (cf. nº 2 do citado artigo 31º).
A execução de tais medidas deverá ser acompanhada de vigilância eletrónica, pois só assim se poderá garantir o seu efetivo cumprimento, relevando-se que a vítima já prestou o seu consentimento para o efeito, o qual deverá igualmente ser colhido relativamente ao arguido, ou dispensado, nos termos legalmente admissíveis – o que será implementado na 1ª instância.
Perante o exposto, não obstante o muito respeito que nos merece o labor do Mmo JIC a quo, impõe-se revogar a decisão recorrida, concedendo-se provimento ao recurso.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando a decisão recorrida, e, considerando existirem nos autos fortes indícios do cometimento pelo arguido AA de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal, determinam que o mesmo aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às medidas de coação de proibição de contactar, por qualquer meio, direta ou indiretamente, a vítima BB, e de proibição de permanecer e se aproximar da residência da vítima (na ..., em ...), que o arguido fica obrigado a abandonar, sendo ambas as medidas monitorizadas por meio de controlo eletrónico (artigos 200º, nº 1, alíneas a) e d) e 204º, alínea c), do Código de Processo Penal).
Sem tributação, nesta instância.
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Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.
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Lisboa, 25 de março de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
(Juíza Desembargadora Relatora)
Manuel Advínculo Sequeira
(Juiz Desembargador Adjunto – vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Ana Lúcia Gordinho
(Juíza Desembargadora Adjunta)

Voto vencido
Pois que manteria a decisão recorrida.
Esta considera indiciados os factos constantes de 1 a 39, mas também os seguintes:
Um dos episódios (quando agrediu BB com chapadas) iniciou-se porque a denunciante o começou a agredir com um ferro de engomar;
Não raras vezes BB o mordeu e arranhou pelo que teve de lhe puxar os cabelos para afastá-la, chegando a agarrá-la com força suficiente para que a mesma ficasse marcada nos braços;
A denunciante partiu um dente do arguido (frontal superior direito) na sequência de agressões daquela, nos confrontos físicos entre ambos.
Chamou "puta" a BB na sequência de a mesma lhe ter comunicado que tinha "arranjado um outro homem" que o arguido até conheceria e de ter apelidado o arguido de "corno".
Ainda que a denunciante apresenta algumas lesões, nomeadamente hematomas no seio, lábio e face, as quais não são, contudo, compatíveis com as fortes agressões de que afirma ter sido vítima por parte do arguido, pois que os fotogramas juntos aos autos não são compatíveis com a força e quantidade de agressões que BB afirma ter sofrido, muito embora se afigurem compatíveis com os confrontos físicos que o arguido admite travar com a mesma no âmbito dos graves conflitos conjugais que frequentemente travam.
Por isso que na consideração global da factualidade indiciada conclui que as situações de conflito e confronto entre o casal se baseavam em agressões mútuas, donde não haver qualquer tipo de submissão da vítima ao arguido, essencial, com os contornos do caso, para que daquele crime se possa falar. Pelo contrário, o que a decisão recorrida pode constatar é que se verifica conflito sem supremacia de nenhum dos contendores, com insultos e agressões mútuas.
E fá-lo recorrendo ao exame minucioso de todos os elementos que constam dos autos, caldeando-os com a prova por declarações já produzida e com a que perante si decorreu (1ª interrogatório de arguido detido), em situação privilegiada para o efeito e a que mais nenhum dos intervenientes teve acesso.
A informação policial de 19.1.2024 (refª 25983014) vai no mesmo sentido, não atendendo a denunciada os telefonemas do OPC, tendo mudado de residência (até àquela data coincidente com a de João Pires!? com quem teria um relacionamento até então) tendo depois sido fornecido pela denunciante aos autos o seu telefone e morada onde residirá actualmente segundo informação policial posterior, para onde, ademais, retirou todos os seus pertences e os dos filhos.
E é então aquela reciprocidade que impede a consideração daqueles factos como fortemente indiciados.
A tanto acresce, em irrepreensível uso de regras de experiência comum e percorrendo cuidadosamente tudo o que dos autos consta, a fundada suspeita de que o principal objectivo da denunciada é o de ficar com a casa (bastas vezes afirmada nos autos) aproveitando a panóplia de instrumentos que, na actualidade, automática e acriticamente são fornecidos a quem quer que se intitule como alvo de violência doméstica, logo se desencadeando a assinalada avaliação do risco levada a cabo por OPC, obrigatória e efectuada com cruzes apenas perante aquela denúncia e a que mais nenhum interveniente é possível (menos ainda conveniente) alterar, nem mesmo ao agente do MP titular do inquérito, por directiva que, logo por isso, é de mais que duvidosa legalidade (a avaliação feita pela APAV, nesta conformidade, nem merece referência, além da de ter sido elaborada exclusivamente com o que a denunciante ali contou).
A preocupação geral passa a ser a de evitar qualquer tipo de responsabilidade pública, ou publicitada, para o efeito sendo irrelevante a qualificação dos factos e (já agora) a forte ou a mera indiciação daqueles.
Todavia e como é sua função interveio o tribunal recorrido. E estando em causa apreciação de prova oral meramente indiciária, sem qualquer evidência de arbitrariedade ou erro por parte do juiz, que ademais beneficiou da imediação essencial ao efeito, é insindicável a base factual essencial à decisão recorrida, além disso absolutamente adequada àquela factualidade.
No mínimo, tal como sucede para a apreciação factual atinente a decisão final e por maioria de razão, não permite a lei um segundo julgamento integral, sem qualquer tipo de imediação, pois que como é sabido, esse é o caminho mais eficaz para a afirmação de erros judiciários, paradoxalmente, em fase de recurso (daí não ser legalmente admitida, sequer em momento com a prova bem mais sedimentada e regras bem definidas e exigentes).
Perante duas versões factuais possíveis, como é princípio elementar, prevalece a do tribunal, por motivos que dispensam mais comentário, além do que na lei previsto está para os pressupostos de alteração factual.
E impor-se-ia tal versão, exactamente pela circunstância de ter dado maior peso às declarações do arguido, que perante si as prestou (e um primeiro interrogatório não é algo de somenos) mas, recorde-se, com recurso a todos os demais elementos constantes dos autos e para determinar o que sempre se imporá em casos com estes contornos: há ou não fortes indícios de maus tratos?
Para concluir que não, em face de toda a prova reunida, acrescentando-se ademais que estão presentes todas as circunstâncias típicas verificáveis em situações idênticas à alertada pelo tribunal recorrido: a denunciante pretende apenas e sobretudo ficar com a casa para si.
Assim as agressões mútuas, desencadeadas pela denunciante, acompanhadas ou precedidas de provocação para que o arguido as inicie, como este relatou em interrogatório levado a cabo pela PSP.
Os insultos dirigidos ao arguido que também ali relatou, rematando-se, também ali, com deslize (mais um) sobre aquele objectivo, já que não precisaria do arguido, que teria de sair de casa.
Valendo-se aquela da já referida e pública panóplia, aliada à circunstância, também vulgar e verificada no caso, de não haver denúncia por parte do arguido, por vergonha.
E o que se passou no inquérito depois do recurso (e já lá vai quase um ano…) é também esclarecedor e vai justamente no sentido apontado pela decisão recorrida: com o inquérito já então terminado, optou-se por pará-lo, quando, fosse modelar a real preocupação, haveria de deduzir acusação, eventualmente promovendo alteração de medida coactiva (mais a mais em inquérito etiquetado de “investigação prioritária”, e “tramitado com grau elevado de urgência”…).
Se o afastamento do arguido fosse o principal fito, impor-se-ia a dedução de acusação, eventualmente com pedido de proibição de contacto também na residência, que se referiria àquela que actualmente é a da denunciante.
Vale, para não haver inútil agudização do conflito, que a habitação em causa é arrendada, livrando-se o arguido do pagamento da renda e demais despesas, ainda que não se veja quem depois o fará, pois que, como também é característico, a denunciante não trabalha.
E essa foi a real e sensata mensagem do tribunal recorrido ao exprimir a preocupação, na altura, com a eventual coabitação entre arguido e denunciante. Havia obviamente que lhe por ponto final, preferencialmente de forma consensualizada, logo porque havia crianças envolvidas.
Manuel Advínculo Sequeira
_______________________________________________________
1. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
2. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 254.
3. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, pág. 236.
4. Tiago Caiado Milheiro, Comentário…, cit., pág. 237.
5. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.06.2019, no processo nº 207/18.4PDBRR.L1-3, Relator: Desembargador João Lee Ferreira, em www.dgsi.pt
6. No processo nº 142/17.3JBLSB-A.S1, Relator: Conselheiro Nuno Gomes da Silva, em www.dgsi.pt
7. Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, 3ª ed. pag 1270
8. Cfr “Código de Processo Penal Comentado” de Henriques Gaspar et all., 2ª ed. pag 817
9. Neste sentido também Jorge Silveira, “O Conceito de Indícios no Processo Penal Português”, em https://www.odireitoonline.com
10. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 261.
11. Cf. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, págs. 329 a 339.
12. Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2017, no processo nº 2263/15.8JAPRT.P1.S1, Relator: Conselheiro Nuno Gomes da Silva, em www.dgsi.pt.
13. Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, pág. 305.
14. “Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, nº 12 (Especial), Set-Dez, 2010.
15. No processo nº 113/10.0TAVVC.E1, Relator: Desembargador João Gomes de Sousa, acessível em www.dgsi.pt.
16. Ob. cit., pág. 22.
17. Faz-se notar que, até à data, a única imediação, o único contacto direto do Tribunal, foi com o arguido, já que a vítima não foi ouvida em declarações para memória futura, apenas se encontrando disponível nos autos o registo das declarações que prestou perante OPC.
18. Parece, repetimos: parece, da conversa mantida entre o Mmo JIC e o arguido, que a ofendida estaria a passar roupa em cima da cama e teria tocado com o ferro de engomar quente na perna do arguido – e não exatamente que se tenha querido significar que esta teria ido buscar o ferro de engomar com o único propósito de o queimar. Mas tal não foi verdadeiramente esclarecido.
19. E, nessa circunstância, também disse que morava num 3º andar, reconhecendo que, se atirasse a ofendida pela janela, esta provavelmente morreria (minutos 00:24:33 a 00:24:48).
20. Como se vê nas declarações recolhidas em ........2023 (refª Citius 25968162)
21. Veja-se que, nas declarações prestadas por BB perante OPC em 29.05.2022, no âmbito do processo nº 809/22.4PLSNT, consta: “A vítima confessa ainda nutrir sentimentos pelo suspeito, motivo pelo qual acaba por desculpar alguns comportamentos mais agressivos na esperança que este mude de atitude para consigo, assim como com os seus filhos na figura de pai.”
22. Deixamos, por ora, de lado quaisquer considerações quanto à desproporção da força física entre arguido e ofendida, já que não temos, nem o Tribunal recorrido tem, condições para proceder a tal avaliação, desde logo, porque nunca viu a ofendida.
23. Muito embora deva notar-se que, perante o que se prevê no nº 4 do artigo 200º do Código de Processo Penal, era justificada a análise deste aspeto.
24. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, 2021, págs. 647-648.
25. Em https://hudoc.echr.coe.int/fre#{%22itemid%22:[%22001-92945%22]}
26. 128. O Tribunal reitera que a primeira frase do artigo 2.º § 1 ordena ao Estado não só que se abstenha de tirar vidas intencional e ilegalmente, mas também que tome medidas adequadas para salvaguardar as vidas daqueles que estão sob a sua jurisdição (ver L.C.B. v. Reino Unido, 9 de junho de 1998, § 36, Relatórios 1998-III). Isto envolve o dever primordial do Estado de garantir o direito à vida, implementando disposições eficazes de direito penal para impedir a prática de crimes contra as pessoas, apoiadas por mecanismos de aplicação da lei para a prevenção, repressão e punição de violações de tais disposições. Estende-se também, em circunstâncias apropriadas, a uma obrigação positiva das autoridades de tomarem medidas operacionais preventivas para proteger um indivíduo cuja vida esteja em risco devido aos atos criminosos de outro indivíduo (ver Osman v. Reino Unido, 28 de outubro de 1998, § 115, Relatórios 1998-VIII, citado em Kontrová v. Eslováquia, n.º 7510/04, § 49, 31 de maio de 2007). (tradução da relatora)
27. 144. Quanto ao argumento do Governo de que qualquer interferência adicional por parte das autoridades nacionais teria constituído uma violação dos direitos das vítimas ao abrigo do Artigo 8.º da Convenção, o Tribunal observa a sua decisão num caso semelhante de violência doméstica (ver Bevacqua e S. v. Bulgária, n.º 71127/01, § 83, 12 de junho de 2008), onde decidiu que a opinião das autoridades de que não era necessária qualquer assistência, uma vez que o litígio dizia respeito a uma “questão privada”, era incompatível com as suas obrigações positivas de garantir o gozo dos direitos dos requerentes. Além disso, o Tribunal reitera que, em alguns casos, a interferência das autoridades nacionais na vida privada ou familiar dos indivíduos pode ser necessária para proteger a saúde e os direitos de terceiros ou para impedir a prática de atos criminosos (ver K.A. e A.D. v. Bélgica, n.º 42758/98 e 45558/99, § 81, 17 de fevereiro de 2005). (tradução da relatora)