1 - Os factos apurados podem assentar numa multiplicidade de meios de prova ou num só e, para além disso, a prova relevante pode ser um só depoimento de uma testemunha, do arguido, do assistente, etc, desde que se tenha revelado credível.
2 - A valoração das declarações da assistente não depende de corroboração de outro meio de prova, nada impedindo ao tribunal recorrido a valoração de tais declarações, segundo do princípio da livre convicção.
3 - Porém, a liberdade na formação da convicção não significa arbitrariedade. A margem de liberdade conferida ao juiz é delimitada por vectores, essenciais, que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
4 - Escrutínio a que se encontra também sujeita a valoração das declarações prestadas pelas vítimas de violência doméstica, não obstante a exigível ponderação das fragilidades apresentadas por tais vítimas, como sejam, as falhas de memória, a falta de exactidão de alguns factos, as hesitações, as imprecisões, os medos e receios do agressor, a timidez, as incertezas e os silêncios.
5 - Assim, situações há, em que tais imprecisões resultantes naturalmente da vulnerabilidade da vítima, são irrelevantes, não impedindo que o testemunho daquela, possa, por si só, ser suficiente para criar a convicção de que determinados factos ocorreram e que deles o arguido foi o seu autor, em particular, se a violência ocorre em ambiente fechado, longe dos olhares de terceiros, bem escondida e disfarçada pelo agressor.
6 - No caso presente, o tribunal apenas atendeu às declarações prestadas pela assistente em audiência, de forma acrítica e discricionária, não cuidando de examinar o probatório que a este propósito foi produzido, nos termos impostos pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
7 - O tribunal a quo omitiu na análise crítica da prova as imprecisões, contradições ou omissões existentes nos relatos da assistente, quer quando confrontados entre si, quer quando confrontados com o episódio de urgência e relatórios de avaliação do dano. Procedimento agravado com a inexplicável falta de pronúncia sobre a motivação da assistente para a existência deste processo.
Acordam, em Conferência, os juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
I. RELATÓRIO
1. Por sentença datada de 10 de setembro de 2024, foi o arguido, AA,
a) condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, línea a), do Código Penal, numa pena de prisão de dois anos e três meses, suspensa por igual período com regime de prova e condicionada à obrigatoriedade de o arguido frequentar o programa para agressores de violência doméstica e um programa ou apoio psicológico direccionado para a aquisição de competências pessoais de controlo das emoções e de gestão de conflitos, designadamente familiares;
b) condenado como demandado no pagamento a BB do valor de € 2 500 (dois mil e quinhentos euros), acrescido de juros à taxa legal desde a notificação do pedido até integral pagamento;
c) condenado como demandado no pagamento à Unidade Local de Saúde do Baixo Mondego, E.P.E. do valor de € 148,72 (cento e quarenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação para contestar até efectivo e integral pagamento;
2. Inconformado, recorre o arguido, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:
I - O presente recurso tem por fundamento o disposto no artigo 412º, nºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, por o Recorrente entender que a douta decisão que agora põe em crise padece de erro de julgamento que se verifica sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado.
II - Ora, no processo sub judice, o tribunal a quo fundou a sua convicção nas declarações prestadas pela assistente em audiência de julgamento, bem como nas declarações das testemunhas CC e de DD (filhos da assistente), que conjugou com os relatórios da perícia médico-legal de acordo com as regras da experiência e do senso comum, sendo certo que apenas pode assentar a sua convicção se tais depoimentos forem de tal forma credíveis e cristalinos que deles não resultem quaisquer contradições ou dúvidas.
III - No caso em apreço e com o devido respeito, decorre das declarações da Recorrida e daquelas duas testemunhas seus filhos, prestadas em audiência de julgamento e conjugadas com a prova documental junta aos autos, que existe matéria que foi considerada provada pelo tribunal a quo, mas que não o deveria ter sido.
IV - No ponto 3. da douta sentença resultou provado que “Desde dia não apurado do Verão de 2020, o arguido, alcoolizado, começou a maltratar a ofendida verbalmente. ” mas nas declarações prestadas pela Recorrida na audiência de julgamento de 02 de Setembro de 2024 esta nunca conseguiu localizar no verão de 2020 os comportamentos censuráveis que começa por imputar ao Recorrente.
V - Com o devido respeito por opinião diversa, não se concebe de onde é que o tribunal a quo retirou a sua convicção e qual o fundamento para considerar provado que a conduta do Recorrente para com a assistente teria início “Desde dia não apurado do Verão de 2020”.
VI - Na questão do consumo do álcool pelo Recorrente, o tribunal a quo não atentou na prova documental junta aos presentes autos, mais propriamente nas Avaliações de Risco levadas a cabo pelo NAVVD para situações de violência doméstica que no caso concreto tiveram lugar, a primeira, a 01.09.2022, um dia após os factos ocorridos a 31.08.2022, a segunda Avaliação de Risco a 15 de Setembro de 2022 e a terceira a 30.09.2022.
VII - Nas três Avaliações de Risco juntas aos autos e enunciadas no libelo acusatório de fls. 81 e 82, a assistente, ora Recorrida, foi questionada à pergunta “7. O/A ofensor tem problemas relacionados com o consumo de álcool ou outras drogas (incluindo as que impliquem receita médica), dificultado uma vida normal (no último ano)?”, tendo a Recorrida em três ocasiões distintas respondido que “Não” à pergunta que lhe foi feita em três ocasiões distintas.
VIII - Para além disso, o tribunal a quo desvalorizou totalmente nesta matéria o Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal levado a cabo pelo Instituto de Medicina Legal com base em duas deslocações efectuadas pela Recorrida àquela instituição, a primeira a 2 de Setembro de 2022 e a segunda a 15 de Novembro de 2022, juntos aos autos a folhas 75 e 76 v e 122 a 122v, tendo a mesma declarado no INML em sede do “Ponto C. Antecedentes/2. Contexto familiar…Nega que ele tenha consumos excessivos de bebidas alcoológicas e/ou consumo de drogas de abuso, desconhecendo seguimento em consultas de psiquiatria.”
IX - O tribunal a quo ignorou por completo o teor das declarações produzidas pela Recorrida em diversas diligências levadas a cabo durante o Inquérito, preferindo acreditar piamente o que esta declarou em sede de audiência de julgamento e concluindo que o Recorrente consumia álcool ao ponto de se alcoolizar.
X – Aliás, o Recorrente declarou que consumia álcool moderadamente apenas às refeições, no que foi comprovado pela testemunha EE, sendo os dois depoimentos claros e credíveis assim comprovando que o Recorrente não se alcoolizava.
XI - Da transcrição das declarações da Recorrida em sede de audiência de julgamento decorre que a esmagadora maioria das suas respostas se traduzem em responder um simples “Não” ou um simples “Sim” à inquirição que foi levada a cabo pela Meritíssima Juiz de Direito, resultando tais respostas do facto de as questões que foram colocadas à Recorrida serem de cariz sugestivo ou enunciativo e por isso contrárias ao princípio da imediação e da oralidade que impõe a observância do disposto no nº 2 do artigo 138º do CPP.
XII - Tais respostas singelas, traduzidas num simples “Sim” ou “Não” produzidas pela Recorrida, deveriam ter sido desvalorizadas pelo tribunal a quo, porque delas não se consegue retirar a certeza necessária que exige o artigo 127º do CPP para que o julgador forme a sua convicção, sendo desprovidas de espontaneidade,
XIII - No ponto 4. da douta sentença foi dado como provado que o Recorrente discutia com a Recorrida e dizia-lhe “que ela não podia tomar banho porque gastava gás” tendo ele relatado que o aquecimento de águas sanitárias da casa é feito com o auxílio de uma bomba de calor, sendo desprovida de sentido e lógica aquela imputação que o tribunal a quo não deveria ter dado como provada, sendo certo que nem sequer foi corroborada por qualquer testemunha.
XIV - O mesmo se diga quando a Recorrida refere e foi dado como provado que o Recorrente lhe dizia “que não sabia fazer comida”, porque em audiência de julgamento o Recorrente admitiu precisamente o contrário e não foi igualmente indicada qualquer outra prova que comprovasse tal imputação.
XV - O tribunal a quo deu como provado que o Recorrente dizia à Recorrida que “estragava tudo em casa, dizendo-lhe ainda que tinha a tensão alta por causa dela e que ia queixar-se ao médico.” mas o Recorrente nega ter dito tais expressões à Recorrida conforme se retira das suas declarações em audiência de julgamento e tais expressões não foram comprovadas por qualquer outra testemunha.
XVI - No ponto 5. da matéria provada, é consagrado que “pelo menos duas vezes por semana, por qualquer motivo, o arguido dirigia-se a ofendida e num tom de voz elevado e com uma expressão corporal agressiva chamava-a de «puta», «deficiente», «doida», dizia-lhe «andas no mundo por veres andar os outros, não queres sexo comigo, porque o fazes com os animais»
XVII - As expressões provadas no ponto 5. da matéria provada carecem de localização no tempo e contexto em que o recorrente teria proferido tais expressões, o que se exige no domínio do direito penal porquanto os factos provados em julgamento devem ser circunstanciados e contextualizados, declarando a Recorrida que o foram uma vez por semana, pelo que nunca a douta sentença poderia dar como provado que pelo menos “duas vezes por semana” o Recorrente praticaria as condutas mencionadas no Ponto. 5, pelo que se verifica um erro de julgamento na matéria de facto.
XVIII - A forma como a Recorrida declarou em audiência de julgamento, releva que as expressões «puta», «deficiente», «doida», dizia-lhe «andas no mundo por veres andar os outros, não queres sexo comigo, porque o fazes com os animais». que constam do ponto 5. da matéria provada seriam um insulto gratuito e não uma reacção a algo que a Recorrida tivesse levado a cabo, e que tais expressões foram ouvidas por amigos, mas mais ninguém foi indicado como testemunha.
XIX - Pela forma como as testemunhas CC e DD declararam em juízo, aquelas expressões seriam proferidas pelo Recorrente como uma reacção a uma conduta praticada pela Recorrida, no que se distingue daquilo que a Recorrida declarou em juízo que aquelas expressões e ofensas eram proferidas gratuitamente pelo Recorrente pelo simples facto de estar alcoolizado.
XX - As declarações do Recorrente ao negar ter proferido tais expressões foram completamente desvalorizadas tal como o foram as prestadas pela testemunha EE, sob o fundamento de que “empiricamente sabe-se que a violência entre casais é um fenómeno que ocorre sobretudo entre quatro paredes”, argumento que contraria as declarações prestadas pela Recorrida que não teve qualquer pejo em dizer que, durante os convívios, o Recorrente a injuriava e que todos assistiram.
XXI - Tal argumento não pode colher e assim deveria ter-se tido em conta o depoimento da testemunha EE, o qual foi isento, claro, conciso e credível, devendo o tribunal formar a sua convicção seguindo o mesmo e considerar como não provada a matéria da douta sentença sob os pontos 3., 4. e 5.
XXII - Relativamente aos factos que constam do ponto 6., que teriam ocorrido no supermercado A..., mais uma vez o tribunal a quo depositou total confiança, única e exclusivamente nas declarações da Recorrida para assim dar como provada a matéria do ponto 6. da douta sentença, nos termos da qual “perante quem se encontrava no local, o arguido dirigiu-se à ofendida num tom de voz elevado e visivelmente exaltado disse-lhe «despacha-te deficiente, despacha-te garota.”, não tendo a Recorrida junto qualquer testemunha quando existiam pessoas que poderia indicar.
XXIII - No Ponto 7. da douta sentença, foi dado como provado que “Em dia não apurado do mês de Julho de 2022, pelas 17h00, no interior do estabelecimento comercial «B...», em ..., o arguido, num tom de voz elevado e com uma expressão corporal agressiva dirigiu-se à ofendida e disse-lhe «deficiente», «puta», «garota», «estás toda a vida para escolher e nem sabes o que queres», tendo o Recorrente negado tais factos porque a Recorrida não frequentava a B... por manter divergências com a proprietária daquele estabelecimento, sendo acompanhado nesta posição pela testemunha EE cujo depoimento foi desvalorizado pelo tribunal a quo.
XXIV - Relativamente a este episódio, em nenhum momento da sua inquirição a Recorrida indicou a expressão “garota” mas a sentença deu a mesma como proferida pelo Recorrente nesta ocasião, não tendo também a Recorrida indicado qualquer testemunha que suportasse tais imputações.
XXV - As suas declarações foram titubeantes, imprecisas e divergentes, andando mal o tribunal a quo quando se fundou exclusivamente nelas para dar esta matéria como provada, desvalorizando o depoimento da testemunha EE que foi claro, espontâneo, consistente e seguro o suficiente para demonstrar que tais factos não se poderiam ter ocorrido da forma descrita porque a Recorrida nem tão pouco frequentava a dita pastelaria por manter uma dívida para com a proprietária, pelo que o tribunal a quo deveria ter dado como não provada a matéria do Ponto 7.
XXVI – Relativamente à morte da cadela, o Recorrente afirma que se encontrava a cortar as unhas do animal e o animal saltou e embateu com a cabeça na perna da mesa, enquanto a Recorrida afirmou na audiência de julgamento que o Recorrente agarrou no animal e, por a cadela não o deixar cortar as unhas, mandou o animal contra a mesa, tendo em sede de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal (fls 75 a 76 v, 122 a 122v) junto do INML declarado que “ele terá dado murros numa cadela de ambos, vindo a mesma a falecer no seguimento dessa agressão.”, assim se demonstrando que o depoimento da Recorrida não pode merecer a credibilidade que o tribunal a quo lhe conferiu para formar a sua convicção, devendo ser escalpelizado com grandes reservas por existirem enormes contradições que a Recorrida não consegue explicar.
XXVII - A Recorrida afirma em audiência de julgamento que o Recorrente lhe começou a chamar “deficiente, tu és uma vaca, és uma puta” e a dizer também, tu pensas que eu sou cega como tu, mas vejo muito bem.” ainda antes do Recorrente ter iniciado o corte das unhas do animal, o que representa desde logo uma contradição assinalável porquanto na matéria de facto provada (Ponto 8 a 10) os impropérios só foram proferidos após a morte do animal.
XXVIII - O tribunal a quo também considerou provado que “ o arguido agarrou o pescoço da ofendida com a mão esquerda, apertando-o e com a mão direita desferiu-lhe um murro na testa”, formando a sua convicção nas declarações da Recorrida em audiência de julgamento mas o seu depoimento foi titubeante, tendo alterado várias vezes a descrição dos factos nomeadamente após a leitura das declarações prestadas em inquérito e não encontrando explicação para o facto de ter declarado no hospital na noite de 31 de Agosto “Dor na região frontal por traumatismo com um pau”, mais uma vez se demonstrando a fragilidade e incongruência das suas declarações.
XXIX - O tribunal a quo não teve em conta que o Recorrente padece de uma incapacidade permanente de 63 por cento, que o Recorrente tinha à data dos factos setenta e seis anos, que lhe foram amputados os dedos anelar e mindinho da mão direita para, conjugando tudo isso com as regras da experiência, concluir que uma pessoa com as debilidades físicas do Recorrente não teria a destreza necessária para agredir daquela forma a Recorrida.
XXX - No que diz respeito às marcas da referida agressão, da conjugação das declarações da Recorrida com os depoimentos dos seus filhos não se retira qualquer certeza porque os mesmos são manifestamente contraditórios, facto que nos faz pôr em causa a dita agressão e o relato que a Recorrida produziu em juízo e que de resto foi acolhido pelo tribunal a quo na douta decisão, sendo certo que no Relatório Médico Legal produzido pelo INML no dia 02 de Setembro de 2022, cerca de dois dias depois daqueles factos, consta a menção de que “A examinanda não apresenta lesões ou sequelas, nomeadamente ao nível da face e da região cervical”, o que é incompatível com o depoimento apresentado pela Recorrida e pelas testemunhas seus filhos.
XXXI - A falta de credibilidade das declarações da Recorrida e das testemunhas seus filhos também se retira por estas contradições em questões laterais e, atendendo a estes excertos, não existe uma versão firme dos três intervenientes acerca do posicionamento da Recorrida quando estes chegaram lá a casa a 31 de Agosto de 2022, o que é sintomático da falta de credibilidade dos seus depoimentos, pelo que da análise da prova existe concluímos também que mal andou o tribunal a quo ao considerar provada a matéria que consta nos pontos 8., 9. e 10.
XXXII - No cumprimento do disposto na alínea a) do nº 3 do Artigo 412º do CPP, foram incorrectamente julgados os pontos 2., 3., 4., 5. 6., 7., 8., 9. e 10 da matéria provada e, por não se provarem nem se verificarem os factos que motivaram a condenação do Recorrente pela prática daquele crime, deverá este Superior Tribunal absolver o Recorrente da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, línea a), do Código Penal , e, consequentemente, da pena de prisão suspensa na sua execução que lhe foi aplicada bem como dos dois pedidos cíveis em que foi condenado, um em favor da Recorrida no valor de € 2.500,00 e outro em favor do Hospital Distrital da Figueira da Foz no valor de € 148,72.
XXXIII - A condenação do Recorrente exige uma prova acusatória de inabalável consistência e, julgamos ter demonstrado, que a que serviu de base à condenação do Recorrente não tem essa consistência, restando dúvidas, contradições e imprecisões e sendo incompatível com as regras da experiência comum, da lógica e inclusive das regras de natureza científica a que deve obedecer o direito probatório.
XXXIV - Numa palavra, impõe-se in casu a absolvição do Recorrente do crime de violência doméstica de que foi condenado com as legais consequências em relação à pena de prisão e determinando-se a absolvição dos pedidos cíveis em que foi igualmente condenado, o que se pede ao abrigo do princípio in dubio pro reo.
XXXV - Ao condenar o Recorrente nestes termos pela prática daquele crime, da forma como o fez, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 127º do CPP, 138º, nº 2 do CPP, art. 412º, nº 3 do CPP bem como do artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, línea a), do Código Penal e ainda no art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
2. O Ministério Público, em resposta ao recurso, defende a improcedência do mesmo. \
3. Nesta Relação o Digno Procurador Geral Adjunto defende a manutenção da sentença recorrida.
4. Cumpridos o disposto no artigo 417º, do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do Recurso.
II. FUNDAMENTENÇÃO DE FACTO.
A primeira instância decidiu a matéria de facto como segue:
«A. Factos provados
Com relevância para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A ofendida BB e o arguido iniciaram um relacionamento como se marido e mulher fossem, em data não apurada do ano de 2013.
2. O casal residiu na casa do arguido, situada na Rua ..., ..., ..., ..., ....
3. Desde dia não apurado do Verão de 2020, o arguido, alcoolizado, começou a maltratar a ofendida verbalmente.
4. O arguido, alcoolizado, iniciava discussões com a ofendida, dizendo-lhe que ela não podia tomar banho porque gastava gás, que não sabia fazer comida, que estragava tudo em casa, dizendo-lhe ainda que tinha a tensão alta por causa dela e que ia queixar-se ao médico.
5. Na verdade, desde o Verão de 2020, no interior da residência do casal, depois de ingerir bebidas alcoólicas, pelo menos duas vezes por semana, por qualquer motivo, o arguido dirigia-se a ofendida e num tom de voz elevado e com uma expressão corporal agressiva chamava-a de «puta», «deficiente», «doida», dizia-lhe «andas no mundo por veres andar os outros, não queres sexo comigo, porque o fazes com os animais».
6. Em data não apurada, do último trimestre de 2021, nas instalações do estabelecimento comercial «A...», no ..., em ..., perante quem se encontrava no local, o arguido dirigiu-se à ofendida num tom de voz elevado e visivelmente exaltado disse-lhe «despacha-te deficiente, despacha-te garota.»
7. Em dia não apurado do mês de Julho de 2022, pelas 17h00, no interior do estabelecimento comercial «B...», em ..., o arguido, num tom de voz elevado e com uma expressão corporal agressiva dirigiu-se à ofendida e disse-lhe «deficiente», «puta», «garota», «estás toda a vida para escolher e nem sabes o que queres».
8. No dia 31 de Agosto de 2022, pelas 21h00, no interior da residência do casal, na sequência de o arguido não ter conseguido cortar as unhas a uma cadela e do facto de referida cadela ter embatido na mesa da sala e estar inanimada, o arguido encetou uma discussão com a ofendida.
9. Naquelas circunstâncias, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe «cala-te, tu és uma deficiente, não sabes fazer nada», «nem sabes nem deixas fazer».
10. Ato contínuo, o arguido levantou-se do sofá, dirigiu-se à ofendida que estava sentada num sofá e enquanto lhe dizia «És uma puta», «És uma cabra», «Eu faço-te o mesmo que fiz à cadela», «sai daqui da minha casa senão eu dou cabo de ti», o arguido agarrou o pescoço da ofendida com a mão esquerda, apertando-o e com a mão direita desferiu-lhe um murro na testa.
11. Com a conduta do arguido de 31/8/2022, o mesmo provocou no corpo da ofendida, de forma directa e necessária, dores e mal-estar físico que determinaram um período de doença de 1 dia, com afectação da capacidade geral de trabalho de 1dia.
12. Do evento não resultaram quaisquer consequências permanentes.
13. Actuou o arguido com a intenção concretizada de atingir a ofendida, sua companheira, na sua integridade física e psíquica, lesar a sua integridade moral e dignidade pessoal e de a fazer temer pela sua vida e pela sua integridade física.
14. Ao dirigir-lhe as expressões referidas e ao actuar da forma descrita, o arguido visou provocar-lhe medo e terror, o que conseguiu, pretendendo e conseguindo fazer-lhe crer que estava disposto a tirar-lhe a vida.
15. Com a conduta assumida pelo arguido, a ofendida sente-se insegura, nervosa e temerosa.
16. Agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo a sua conduta era punida e proibida por lei.
Mais resultou provado que:
1. Em consequência da actuação do arguido, foi prestada assistência médica à ofendida, no valor de € 148,72.
2. A assistente ficou nervosa e dorida com o sucedido a 31 de Agosto de 2022.
3. Este processo represente uma surpresa para o arguido.
4. A ofendida apresentou a queixa que deu origem aos presentes autos como acto revanchista contra o arguido.
5. Desde 2020 que o arguido tem uma incapacidade permanente global de 63%.
6. O arguido mantém-se na casa em que residiu com a assistente, a qual apresenta boas condições de habitabilidade e conforto.
7. AA é oriundo de uma família com competências normativas, no seio da qual o arguido viveu até aos 20 anos de idade.
8. Frequentou o sistema de ensino até concluir o 4.º ano de escolaridade, altura em que iniciou o seu percurso laboral no sector da construção civil, por conta própria, em empresas do ramo, sediadas no concelho ... e em França, onde trabalhou aproximadamente oito anos.
9. Actualmente, já reformado e com uma incapacidade de 63%, o arguido dedica-se à agricultura, principalmente na actividade vinícola, nas suas propriedades.
10. AA, aufere uma pensão de reforma no valor de 336,00€ e um rendimento anual obtido no estrangeiro no valor de 2.538,12€.
11. Mensalmente, o arguido despende cerca de € 200 no pagamento de serviços na habitação (água, electricidade, telecomunicações).
12. Socialmente, é considerado como um indivíduo trabalhador, com um bom relacionamento interpessoal, educado e cordato.
13. AA sente-se preocupado em relação ao presente processo, temendo pelas eventuais consequências que dele possam advir.
14. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
B. Factos não provados
Com relevância para a boa decisão da causa não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:
a) Desde a data referida em 3, que o arguido também maltratava fisicamente a assistente.
b) Além do referido em 5, o arguido também dizia à assistente que lhe dava um tiro.
c) Nas mesmas circunstâncias, o arguido empurrava a denunciante, colocando-lhe as mãos nos ombros e nas costas e desferia-lhe bofetadas na cara.
d) Naqueles momentos, a ofendida tinha que fugir de casa para evitar continuar a ser agredida, regressando mais tarde a casa.
e) Em consequência da actuação do arguido, a assistente tem receio de sair de casa e encontrar o arguido.
C. Motivação
A convicção do Tribunal resultou da consideração conjugada da prova carreada para os autos e nele produzida, à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal. Ademais, valoraram-se os relatórios da perícia médico-legal realizada à assistente, de acordo com a força probatória que lhes é reconhecida pelo artigo 163.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Assim, na audiência de discussão e julgamento, foram tomadas declarações ao arguido e à assistente e foram inquiridos CC e DD (filhos da assistente); FF e GG (vizinhas da assistente); HH (conhecida do arguido e da assistente); Dr.ª II (advogada que representou o arguido no âmbito de um processo); EE (amigo do arguido, colega de caça do arguido e conhecido da assistente); BB (prima da assistente); e JJ (amigo do arguido).
Do ponto de vista da prova documental, valorou-se o auto de notícia de fls. 25 a 27; a declaração de fls. 28; o aditamento ao auto de notícia de fls. 55 a 56; o auto de apreensão de fls. 57 a 58; o auto de exame e avaliação de fls. 59; a informação do NAE da PSP de fls. 63; a informação clínica de fls. 71 a 72; a guia de entrega de fls. 79; a avaliação do NAVVD de fls. 81 a 82; os documentos oferecidos com o pedido de reembolso e a contestação; o relatório social da DGRSP; e o certificado de registo criminal do arguido.
No que toca à prova pericial, valoraram-se os relatórios do INMLCF,I.P. juntos aos autos.
O primeiro ponto a referir neste conspecto é que relativamente a parte da factualidade da acusação, se verificou um encontro das versões do arguido e da assistente. De facto, ambos coincidiram quanto a terem vivido em união de facto, quanto à assistente ter vivido na casa do arguido que se situa na Rua ..., ..., e quanto à assistente ter saído de casa a 31 de Agosto de 2022. Existe, assim, um consenso quanto ao contexto em que a dinâmica relacional objecto dos presentes se insere. Isto permite já justificar os factos provados n.ºs 1 e 2.
Se em relação aos aspectos acima mencionados o arguido e a assistente confluíram no relato feito, em relação à dinâmica da relação entre ambos não se verificou essa convergência.
Por um lado, o arguido negou a prática dos factos que lhe são imputados na acusação e disse que considera que tudo correu bem na relação e que as discussões que teve, ao logo da mesma com a assistente, não foram nada de grave. Ainda segundo o arguido, na noite em que faleceu a cadela (31 de Agosto de 2022), não ocorreu qualquer discussão com a assistente, apenas se tendo apercebido da ausência daquela quando chamou por ela e deu pela sua falta. Segundo o arguido, o mesmo só a voltou a ver no dia seguinte, quando a polícia se deslocou a sua casa e o informaram da queixa.
Por outro lado, a assistente relatou factos que, em traços gerais, se reconduzem aos constantes da acusação. De todo o modo, a assistente referiu que agressões físicas só ocorreram na noite de 31 de Agosto de 2022 e disse não recordar que o arguido a tenha ameaçado com armas. Aliando isto à ausência de prova de agressões físicas para além das que ocorreram na noite de 31 de Agosto de 2022 e, bem assim, de ameaças com armas, mostram-se justificados os factos não provados a) a d).
A circunstância de o arguido e de a assistente terem versões distintas quanto ao sucedido, por si só, não significa que o Tribunal não possa ficar convencido quanto à veracidade de uma daquelas versões. Para tanto, é necessário que essa versão seja coerente, plausível, consistente e que encontre suporte em outros elementos probatórios, mesmo que em relação a aspectos laterais.
Esta breve nota deve-se ao facto de, nestes autos, as testemunhas que foram ouvidas terem dito que não assistiram a qualquer agressão, insulto ou ameaça (com ressalva para os filhos da assistente que, segundo os próprios, nos últimos 2/3 anos da relação assistiram a insultos e, na noite de 31 de Agosto de 2022, ao arguido dizer à assistente que lhe fazia o mesmo que à cadela), a terem dito que do convívio com o casal não se aperceberam de qualquer problema entre ambos e/ou a terem dito que apenas sabem aquilo que lhes foi contado pelo arguido ou pela assistente.
Começando pelas declarações da assistente, as mesmas afiguraram-se detalhadas, circunstanciadas no tempo e no espaço e verosímeis. Ademais, encontraram suporte em outros elementos probatórios.
Assim, em primeiro lugar, nas respectivas declarações, a assistente falou de forma pormenorizada sobre a relação com o arguido, sobre a forma como era tratada por este, sobre o sucedido na B..., no A... e na noite de 31 de Agosto de 2022. A assistente referiu, ainda, espontaneamente alguns dos insultos que, na sua versão, lhe eram dirigidos pelo arguido, bem como os locais do seu corpo em que foi atingida na noite em que a cadela do casal faleceu.
Em segundo lugar, a assistente conseguiu, ainda que aproximadamente, localizar no tempo e no espaço alguns dos episódios que foi relatando. É certo que, no que tange aos insultos que disse que lhe eram dirigidos várias vezes desde o início de 2021, a assistente não conseguiu indicar os exactos dias em que os mesmos foram ditos. De todo o modo, tendo em conta a considerável frequência com que a mesma disse que aqueles epítetos lhe eram dirigidos, que se trata de um período de cerca de 1 ano e 10 meses (do início de 2021 a 31 de Agosto de 2022) e que foi ouvida quase dois anos após o fim da relação, afigurou-se compreensível e até expectável que a mesma não o fizesse. Na verdade, estranho seria se a assistente, no quadro que descreveu, conseguisse dizer todos os exactos dias em que foi insultada. Isto sem prejuízo de alguns episódios, pelos seus contornos, compreensivelmente se destacarem na memória da assistente, como seja os que ocorreram em espaços públicos, ou os que ocorreram a 31 de Agosto de 2022, por coincidir com a morte da cadela do casal.
Em terceiro lugar, a versão da assistente afigurou-se plausível, pois que nada disse que seja contrário às regras da experiência e do senso comum.
Em quarto lugar, o relato da assistente encontrou suporte em outros elementos probatórios, a saber:
· nos depoimentos de CC e de DD (filhos da assistente). Estas testemunhas tiveram relatos simples e coincidentes entre si. Se foi evidente que nenhuma das testemunhas tem um discurso fluído e um vocabulário diversificado, também foi evidente que descreveram, em palavras próprias, uma mesma dinâmica relacional entre o arguido e a assistente, pois que ambas as testemunhas referiram ter assistido ao arguido, com agressividade, proferir para a assistente expressões como «estás deficiente ou quê?» e «atrasada» (CC), ou «és uma bosta, és uma merda» (DD). Além disso, estas testemunhas, coincidiram quanto a, na noite de 31 de Agosto de 2022, o arguido lhe ter dito «vai-te embora, se não em faço o mesmo que à cadela», bem como ao estado de espírito da assistente quando ambos a foram buscar a casa do arguido.
· no depoimento de EE (amigo do arguido). Apesar de esta testemunha ter afirmado que da sua percepção a relação entre o casal era boa, a verdade é que em relação à noite da morte da cadela do casal, referiu que o arguido lhe disse que tinha havido uma discussão e que a assistente ligou aos filhos para a irem buscar. Ora, esta menção além de contrária à versão do arguido de que nessa noite nada se passou, vai ao encontro da versão da assistente quanto à existência de uma discussão, bem como de encontro à versão da assistente e das testemunhas CC e DD quanto àquela lhes ter ligado para estes a irem buscar.
· Nos relatórios do INMLCF,I.P., de fls. 75 e 76 e 122, já que aí se conclui que o quadro doloroso e ansioso referido pela assistente é compatível com a informação.
Contra o acabado de dizer não vai a circunstância de as testemunhas FF, BB, HH, II, EE, BB e JJ terem dito que, no convívio com o casal, não se aperceberam de insultos, agressões ou ameaças, tudo parecendo bem. É que empiricamente sabe-se que a violência entre casais é um fenómeno que ocorre sobretudo entre quatro paredes, ou, pelo menos, na maior parte dos casos, no núcleo familiar.
Assim sendo, a circunstância de algumas das pessoas que conviveram com o casal não se terem apercebido de insultos, agressões, ameaças ou de qualquer indício de violência do arguido para com a assistente não significa que essa violência, na ausência daqueles, não ocorresse.
De igual modo, as declarações do arguido, por se terem afigurados inverosímeis, não tiveram força para pôr em causa, ou infirmar o convencimento que as declarações da assistente conseguiram.
Com efeito, as declarações do arguido não convenceram.
Isto pelo modo como o arguido disse ter reagido quando, na noite de 31 de Agosto de 2022, se apercebeu que a assistente já não estava em casa. É que não é crível que, como o arguido disse ter acontecido, alguém que vive com outra pessoa vários anos, de repente, sem que nada o fizesse prever, se aperceba de que a companheira não está em casa e, perante isto, se limite a tentar ligar-lhe para o telemóvel, indo depois dormir, já que a assistente não atendeu. É certo que o arguido disse que não podia sair de casa, porque estava a cuidar da cadela. Ora, ainda que assim fosse, seria expectável que o arguido tentasse por outras vias perceber o que se passava, ligando, no limite, para as autoridades.
Mais: a versão do arguido não é sequer sustentada pela testemunha EE, amigo do arguido, pois que este referiu que o arguido lhe contou que, nessa noite, houve uma discussão e que a assistente ligou aos filhos para a irem buscar.
A inverosimilhança da versão do arguido não se fica por aqui.
A dado momento, o arguido justificou a assistente lhe imputar os factos ora julgados com a circunstância de este não querer que um dos filhos da assistente passasse a ir fazer as refeições a casa do casal todos os dias. Ora, não só a assistente e os filhos desta negaram tal intenção, como não é crível que alguém apresente uma queixa-crime, muito menos contra alguém com quem vive há vários anos, apenas por uma questão como a referida pelo arguido e quando antes não tentou dialogar com o companheiro para resolver a questão do filho lá ir ou não fazer as refeições.
Tudo isto explica a convicção deste Tribunal quanto a efectivamente ter ocorrido o descrito nos factos provados n.ºs 3 a 16.
A este propósito, o facto não provado e) deve-se à ausência de prova quanto ao mesmo.
A ausência de antecedentes criminais resultou do certificado de registo criminal do arguido.
III. APRECIAÇÃO DO RECURSO
A única questão a decidir consiste em saber se o tribunal recorrido errou na decisão que julgou provados os factos impugnados.
1. Impugnação de facto
1.1. Os poderes de cognição do tribunal de recurso
Antes de mais, importa reter que o recurso da matéria de facto não visa suprir ou substituir o juízo formado pelo Tribunal recorrido sustentado na imediação acerca da maior ou menor credibilidade dos declarantes, mas a corrigir erros que devem concretamente apontados.
Neste particular, cabe-nos, verificar se o tribunal errou ao julgar provados os factos impugnados, tendo presente que não estamos perante a realização de um novo julgamento, como se o efectuado pela primeira instância não tivesse acontecido, mas sim diante mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E, é por isso, que recai sobre o impugnante e, apenas ao impugnante a identificação do erro (ou erros) que pretende corrigir pela via do recurso. Assim o impõe o artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ao sujeitar o Recorrente ao dever de especificação, numa tripla vertente: a) a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e c) a especificação das provas que devem ser renovadas, esta, nos termos do artigo 430.º, do Código de Processo Penal.
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número 3, do citado artigo 412.º, fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Todas estas especificações devem constar na Motivação e nas Conclusões do recurso (artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
A modificação de facto não se basta, assim, com a indicação de provas que permitam uma decisão diferente da recorrida, sendo, também necessário, que as provas identificadas e concretizadas imponham uma decisão diversa da proferida pela primeira instância.
Para tanto, exige-se ao recorrente que relacione «o conteúdo especifico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado[1], o que, no caso, foi cumprido pelo recorrente.
1.2. Factos concretamente impugnados
Facto provado n.º 3
O tribunal recorrido julgou provado que, desde dia não apurado do Verão de 2020, o arguido, alcoolizado, começou a maltratar a ofendida verbalmente.»
Contrapõe o recorrente, alegando que as declarações da assistente impõem se julgue não provado este facto.
E, diga-se com razão.
Afirma-se na sentença recorrida:
«Começando pelas declarações da assistente, as mesmas afiguraram-se detalhadas, circunstanciadas no tempo e no espaço e verosímeis. Ademais, encontraram suporte em outros elementos probatórios.
Assim, em primeiro lugar, nas respectivas declarações, a assistente falou de forma pormenorizada sobre a relação com o arguido, sobre a forma como era tratada por este, sobre o sucedido na B..., no A... e na noite de 31 de Agosto de 2022.
A assistente referiu, ainda, espontaneamente alguns dos insultos que, na sua versão, lhe eram dirigidos pelo arguido, bem como os locais do seu corpo em que foi atingida na noite em que a cadela do casal faleceu, que «a ofendida conseguiu, ainda que aproximadamente, localizar o tempo e no espaço alguns episódios que foi relatando.
É certo que, no que tange aos insultos eram dirigidos várias vezes desde o início de 2021, a assistente não conseguiu indicar os exactos dias em que os mesmos foram ditos. De todo o modo, tendo em conta a considerável frequência com que a mesma disse que aqueles epítetos lhe eram dirigidos, que se trata de um período de um ano e 10 meses (de inicio de 2021 a 31 de agosto de 2022) e que foi ouvida quase dois anos após o fim da relação, afigura-se compressível e expectável que a mesma não o fizesse.
Na verdade, estranho seria se a assistente, no quadro que descreveu, conseguisse dizer todos os exactos dias em que foi insultada. Isto sem prejuízo de alguns episódios, pelos seus contornos, compreensivelmente se destacarem na memória da assistente, como seja os que ocorreram em espaços públicos, ou os que ocorreram a 31 de Agosto de 2022, por coincidir com a morte da cadela do casal.
Em terceiro lugar a versão da assistente afigurou-se plausível, pois nada disse contrário às regras da experiência comum.».
Daqui resulta que o tribunal recorrido acreditou na assistente, por ter conseguido detalhar os factos praticados pelo arguido, situando os actos praticados entre o início de 2021 e 31 de dezembro de 2022, não tendo sido, neste aspecto, contrariada por nenhum outro meio de prova.
Se assim é, só podemos concluir que os factos descritos nos n.ºs 3 a 5 terão ocorrido a partir do início de 2021 e não do verão de 2020.
Continua o recorrente, alegando, que a assistente, nas declarações que prestou em audiência, situa os “insultos” no dia em que faleceu a cadela e não no início de 2021.
Com razão.
A propósito do momento em que a relação do ex-casal se começou a complicar (palavras da Senhora Juiz) ou quando o arguido começou a tratar mal (insultar) (palavras da assistente), importa considerar que, após muita insistência, a assistente acaba por localizar a primeira vez no dia 31 de agosto de 2022, data em que morreu a cadela.
Ouçamo-la:
Juiz: Bom volto a perguntar, a primeira vez em que aconteceu algum tipo de mau trato, foi o quê? Foi uma agressão? Exactamente o que aconteceu nessa altura, pelo menos em termos gerais? Tiveram uma discussão e ela agrediu-a? Tiveram uma discussão e ele insultou-a? Tiveram uma discussão e ele ameaçou-a? A primeira vez que ele a maltratou?
Assistente: A primeira vez que ele me maltratou foi quando ele matou uma pinscher.
Feito o exame critico desta prova – não realizado, neste particular, pelo tribunal quo – a única certeza que poderá extrair-se das declarações da assistente, é a de que ao arguido começou «a maltratar a ofendida» em 31 de agosto de 2022.
Tudo o mais se enquadra num manto de incertezas que a própria assistente não conseguiu remover, não se compreendendo, a que respostas pormenorizadas sobre os insultos se reporta a sentença recorrida.
Com excepção dos episódios referidos nos factos provados 6, 7 e 8, não descreveu a assistente uma única situação que permita contextualizar a forma como foi insultada antes de 31 de agosto de 2022, assistindo, também aqui, razão, ao recorrente.
O mesmo de diga, quanto ao alcoolismo imputado ao arguido. Não cuida o tribunal de explicar o modo como formou a sua convicção, que meio de prova considerou para dar como provado que o arguido era alcoólico.
É certo que a assistente declarou em audiência que o arguido consumia álcool. Porém, fê-lo de uma forma genérica e vaga, não conseguido identificar um único episódio em que o arguido estivesse alcoolizado e a tivesse agredido verbal ou fisicamente.
Acresce que, nas três informações que forneceu para avaliação de risco levada a cabo pelo NAVVD - primeiro no dia 1 de setembro de 2022 (um dia após os acontecimentos de 31 de agosto de 2022), a segunda 15 de setembro de 2022 e a terceira a 30 de setembro de 2022 - a assistente declarou que o arguido não «tem problemas relacionados com o consumo de álcool (…) dificultando uma vida normal no último ano.
Também no Capitulo B da perícia de avaliação ao dano corporal realizada em 2 de setembro de 2022 e 15 de novembro de 2022 (fls. 75, 76 e 122 a 123)
Quando, em audiência, é confrontada com estas declarações- contrárias às que estava a prestar – hesita na resposta, acabando por dizer «houve coisas que eu agora já não me lembro de tudo».
O arguido, por seu turno, esclareceu que só bebe (moderadamente – um copo ou um copo e meio de vinho) às refeições, tendo a testemunha EE confirmado que assim era, que nunca o viu alcoolizado, nem sequer nos convívios de caça, ou nas festas ou entre amigos.
Estamos assim, diante de duas versões do mesmo facto: (i) a do arguido - nega consumos de álcool em excesso -, corroborada pelo testemunho de EE e pela primeira versão da assistente e (ii) a da assistente prestada em audiência em que afirma que o arguido é alcoólico.
De todos estes meios de prova, o tribunal apenas atendeu às declarações prestadas pela assistente em audiência, de forma acrítica e discricionária, não cuidando de examinar o probatório que, a este propósito, foi produzido, nos termos impostos pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, que, como se sabe, estatui que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.
Recorde-se que a livre apreciação da prova abrange três tipos de avaliação da prova de natureza e características diferentes, a saber: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador[2]».
Subjectiva, mas não arbitrária. «[A] liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva[3]».
A livre convicção «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade[4]» sendo a convicção do juiz, uma convicção pessoal (…) é, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando … o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável[5]».
Para tanto, exige-se que o julgador expresse o processo de convencimento na motivação ou fundamentação da decisão da matéria de facto, isto é que cumpra o dever de fundamentação das decisões judiciais, com assento constitucional [artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa] e na lei ordinária [artigos 97.º, nº 3 e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal].
A livre convicção deve expressar-se na sentença de modo a que seja possível avaliar a objectividade, o rigor, a imparcialidade, a consistência lógica, a racionalidade e a legitimidade da formação da convicção,
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte[6].
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
Só desta forma, o julgador justifica e assegura que o processo de apreciação das provas atendíveis que suportam a decisão é garante de todas as garantias de direito probatório, quer na aquisição, quer na valoração das provas. Ao não proceder desta forma, preterem-se os princípios constitucionais do acesso à justiça e tutela jurisdicional efectiva e da presunção da inocência, de que o principio in dubio pro reo.
Foi o que sucedeu no caso em apreço.
O Tribunal recorrido não formulou qualquer juízo crítico do depoimento da vítima/ assistente. Ao contrário do escrito na sentença recorrida, as declarações da assistente relativamente ao facto impugnado, nem se mostram detalhadas, nem circunstanciadas no tempo ou no espaço, nem encontram suporte em outros meios de prova.
Procede, pois, a impugnação do facto provado n.º 3, passando para não provado.
Factos provados n.º 4 e 5
Em causa está a seguinte matéria:
O arguido, alcoolizado, iniciava discussões com a ofendida, dizendo-lhe que ela não podia tomar banho porque gastava gás, que não sabia fazer comida, que estragava tudo em casa, dizendo-lhe ainda que tinha a tensão alta por causa dela e que ia queixar-se ao médico. (facto n.4)
Na verdade, desde o Verão de 2020, no interior da residência do casal, depois de ingerir bebidas alcoólicas, pelo menos duas vezes por semana, por qualquer motivo, o arguido dirigia-se a ofendida e num tom de voz elevado e com uma expressão corporal agressiva chamava-a de «puta», «deficiente», «doida», dizia-lhe «andas no mundo por veres andar os outros, não queres sexo comigo, porque o fazes com os animais». (facto n.º 5)
Defende o recorrente que o tribunal recorrido errou ao julgar provados estes factos, em virtude de a assistente não ter falado «de forma pormenorizada da relação com o arguido», mas de uma forma genérica e vaga.
Relida a sentença e ouvidas as declarações da vitima, confirmamos a critica apontada à sentença recorrida.
É que apesar do esforço realizado pela Senhora Juiz no sentido esclarecer quando, aonde e de que modo é que o arguido proferiu as palavras descritas nos factos provados 4 e 5, a assistente não conseguiu identificar uma única situação, nem responder com espontaneidade à maioria das perguntas, o que obrigou a Senhora Juiz a recorrer a perguntas sugestivas quer no que respeita ao tipo de insulto quer no que toca ao número de vezes em que teria ocorrido.
Mas mesmo aqui, as respostas da assistente foram vagas, como o demonstra o diálogo que a seguir se transcreve.
Juiz – Eu estou a tentar fazer-lhe as perguntas o mais abertas possível, para não a induzir. Por isso é que eu estou a perguntar
(…) Senhora BB, compreende que isto é uma situação delicada, mas nós não assistimos, só os senhores é que lá estiveram. Percebe? E, portanto, não basta aqui chegar e dizer genericamente que foi isto e aquilo tudo embrulhado, por isso eu peço um esforço. Eu percebo que seja complicada, mas se quer fazemos algum tipo de pausa ou se precisar de uma água a senhora funcionária vai buscar, se quiser falar com a senhora advogada podemos fazer uma pausa, mas eu peço-lhe é que faça um esforço para ouvir exactamente o que estou a perguntar e ser o mais concreta possível.
Assistente – Sim, Sim.
Juiz – Bom, volto a perguntar, a primeira vez em que aconteceu algum tipo de mau trato, foi o quê? Foi uma agressão? Exactamente o que é que aconteceu nessa altura, pelo menos em traço gerais? Tiveram uma discussão e ele agrediu-a? Tiveram uma discussão e ele insultou-a? Tiveram uma discussão e ele ameaçou-a? A primeira vez em que ele a maltratou?
Assistente – A primeira vez que ele me maltratou foi quando ele matou uma pinscher. Tínhamos jantado, tínhamos ido para a sala como a gente fazia todos os dias, ver as notícias e televisão, e os pinscheres iam todos para os nossos colos, para o meu colo e para o dele. E eu é que cuidava dos pinscheres, dava-lhe banho e que lavava a roupa deles, as camas deles. Tinha tudo para eles estarem sempre limpos, onde ele estávamos sentados e ele estava com uma manta e um pinscher ao colo e uma pinscher que se chamava KK fui eu, batizamos com o nome de KK, puxou a malha de uma camisola.
Juiz– Relativamente aos insultos, à expressão “deficiente” e outras desse tipo. A senhora recorda-se, depois daquela fase em que disse que era razoável, quando é que ele começou a insultar e com que frequência é que o fazia?
Assistente – Várias vezes, várias vezes.
Juiz – Mas eu preciso que seja mais específica porque se disser num período de dois ou três anos aquela pessoa insultou-me várias vezes, tem de ser mais concreto.
Assistente – Sim.
Juiz – Era uma vez por mês?
Assistente – Há, era mais.
Juiz – Uma vez por semana?
Assistente – Era mais. Às vezes era quase todos os dias.
Assistente – Pronto, mas será correcto dizer que era uma vez por semana?
Assistente – Sim.
(…)
Juiz– Quando ele o fazia, que expressões é que ele lhe dizia?
Assistente – Que expressões é que ele me dizia?
Juiz – Sim. Como é que ele a insultava?
Assistente – Chamava-me “garota, deficiente, vaca, puta, que as mulheres eram todas umas putas e umas ordinárias”. “Vaca, que não prestava para nada.”
Juiz– Mais alguma expressão?
Assistente – Não.
Juiz – A senhora tem ideia de ele a apelidar de doida?
Assistente – Como?
Juiz – Doida. A expressão doida?
Assistente – Sim.
Juiz– Era utilizada?
Assistente – Sim.
Juiz– Ele dizia-lhe “andas no mundo por veres andar os outros?”
Assistente – Sim, sim. Isso dizia muita vez, também.
Juiz– Não queres sexo comigo porque o fazes com os animais?
Assistente – Sim.
Juiz – Ele disse isto uma ou duas vezes ou …
Assistente – Muita vez.
Juiz – Ele insultava?
Assistente – Muita vez. Não era só quando me insultava. Ele dizia muita vez. Que “eu que nem merecia o comer que comia!”
Juiz – Mas, ele dizia-o muita vez. Mas quando a insultava também dizia estas frases?
Assistente – Sim, também.
Juiz– Ou seja, pelo menos uma vez por semana?
Assistente – Sim. (…)
Juiz – Olhe alguma vez ele lhe disse que a senhora não sabia fazer comida?
Assistente: Sim disse-me muita vez;
Juiz - Que estragava tudo em casa?
Assistente – Sim
Juiz - Que tinha a tensão alta por causa dela e que ia fazer queixa ao médico?
Assistente: Sim;
Juiz - Ela disse isso uma ou duas vezes?
Esta inquirição evidencia bem que a assistente não elucidou, minimamente, as condições em que o arguido a insultava, limitando-se a anuir às perguntas sugestivas que lhe iam sendo feitas pela Senhora Juiz.
Quanto ao tom de voz elevado e expressão corporal mencionado nos factos impugnados, nada foi dito pela assistente.
No que toca ao facto de o arguido dizer à assistente que não podia tomar banho porque gastava gás, a resposta da assistente surge na sequência de uma pergunta sugestiva da Senhora Juiz.
Porém, quando confrontada com a inexistência de gás para aquecimento de águas (existe uma bomba de calor eléctrico como referiu), não consegue explicar as suas palavras.
Em Relação aos insultos, diz a assistente que aqueles insultos existiam mesmo à frente de terceiros, nomeadamente, os seus filhos.
Todavia, com excepção da palavra deficiente, nenhum dos filhos, DD e CC, corroborou as expressões mencionadas pela assistente, pese embora a insistência do tribunal para o efeito.
Em suma, a assistente, nas declarações que prestou em audiência sobre os factos agora impugnados (4 e 5), não falou de forma pormenorizada sobre a relação com o arguido, sobre a forma como era tratada por este, não detalhou relatos, circunscritos no espaço e no tempo e no espaço verosímeis, com suporte em outros elementos probatórios.
Neste cenário, só podemos concluir como concluiu o recorrente que bastam as declarações da assistente efectivamente proferidas em audiência para que se devam considerar não provados os factos provados n.ºs 4 e 5.
Factos provado n.º 6:
Em data não apurada, do último trimestre de 2021, nas instalações do estabelecimento comercial «A...», no ..., em ..., perante quem se encontrava no local, o arguido dirigiu-se à ofendida num tom de voz elevado e visivelmente exaltado disse-lhe «despacha-te deficiente, despacha-te garota.»
Sobre esta matéria existem duas versões contraditórias: a do arguido e da assistente.
A assistente, após um longo interrogatório, durante o qual, foi sujeita a um conjunto de perguntas para as quais parecia não ter resposta, tem agora a possibilidade de relatar um evento histórico que terá acontecido num supermercado.
Diz, então: «Fomos ao A... para comprar umas coisas e ele começou-me a tratar mal também, começou “despacha-te. Tu és um a deficiente. És uma garota. Estás toda a vida e nem sabes o que queres “ao menos as criancinhas sabem logo o que querem: com a idade que tu tens, já deves saber aquilo que tu querias (…) Foi perto dessa altura que eu o deixei”.
Esta situação decorreu na presença de todos as pessoas que estavam presentes no local, sendo que, estranhamente, nenhuma dessas testemunhas foi ouvida em julgamento.
Já o arguido nega que alguma vez tenha insultado a assistente naquele ou noutro local, facto que foi corroborado pelas testemunhas, FF, BB, HH, II, EE, BB e JJ, quando afirmaram conviver com o casal, nunca se tendo apercebido de insultos, agressões ou ameaças, tudo parecendo bem.
Todavia, nenhum destes testemunhos foi considerado pelo tribunal recorrido, com base no que é empiricamente conhecido sobre os casos de violência doméstica, ou seja, que a violência entre os casais é um fenómeno que ocorre intra-muros.
Pois bem, não é esse o nosso caso.
Sabemos que as declarações da assistente constituem um meio de prova legalmente admissível (artigo 125º e 145º, nº 1, do Código de Processo Penal), livremente apreciado pelo tribunal (artigos 125º, 127º e 145º, nº 1, do Código de Processo Penal), não se vislumbrando neste ou noutro normativo legal, que o depoimento da vítima/assistente não se baste a ele mesmo para formar a convicção do julgador que os factos se passaram como o seu relato.
Também aceitamos que a valoração das declarações da assistente não depende de corroboração de outro meio de prova, nada impedindo ao tribunal recorrido a valoração de tais declarações, segundo do princípio da livre convicção.
Os factos apurados podem assentar numa multiplicidade de meios de prova ou num só e, para além disso, a prova relevante pode ser um só depoimento de uma testemunha, do arguido, do assistente, etc. Mister é que ele se tenha revelado credível[7].
Porém, e como já se disse a liberdade na formação da convicção não significa arbitrariedade. A margem de liberdade conferida ao juiz é delimitada por vectores, essenciais, que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo [8].
A valoração das declarações prestadas pelas vítimas de violência doméstica não foge a este crivo.
Com isto não se quer dizer que não se ponderem as fragilidades apresentadas pelas vítimas de violência doméstica, como sejam, as falhas de memória, a falta de exactidao de alguns factos, as hesitações, as imprecisões, os medos e receios do agressor, a timidez, as incertezas e os silêncios.
Situações há, em que tais imprecisões resultantes naturalmente da vulnerabilidade da vitima, são irrelevantes, não impedindo que o testemunho daquela, possa, por si só, ser suficiente para criar a convicção de que determinados factos ocorreram e que deles o arguido foi o seu autor, em particular, se a violência ocorre em ambiente fechado, longe dos olhares de terceiros, bem escondida e disfarçada pelo agressor.
Pressuposto é, que o depoimento concretamente prestado reúna aquelas características.
Não é o que sucede com a situação dos autos.
Na valoração da prova, o tribunal recorrido avalia as declarações da assistente com base, não no que foi efectivamente dito ou contado em audiência, mas em considerações abstractas.
Note-se que, para além, da análise da ocorrência do dia 31 de agosto de 2022, nenhum outro facto foi objecto de apreciação concreta. O tribunal recorrido limita-se a afirmar que a assistente relatou os factos que se reconduzem aos constantes da acusação.
Quer do texto da sentença, quer da análise das declarações prestadas em audiências ressalta uma convicção livre, mas arbitrária, dirigida à comprovação dos factos imputados ao arguido na acusação.
Só assim se compreende que, mesmo nos casos em que assistente não refere matéria que está na acusação, o tribunal a considere provada (cf. factos 3, 4, e 5, relativamente ao alcoolismo e ao momento em que se poderiam ter iniciado os maus tratos).
O mesmo se dá, quando aos insultos: De acordo com as declarações da vítima, a maioria dos insultos ocorria na presenta de terceiros (factos. 6. e 7). Porém, fazendo tábua rasa destas declarações, o tribunal recorrido descredibiliza todos os testemunhos (favoráveis ao arguido), com fundamento numa circunstância não aplicável ao caso.
Finalmente e mais grave, a inexplicável falta de pronúncia sobre a motivação da assistente para a existência deste processo. De acordo com o facto provado n.º 20, a vítima apresentou queixa contra o arguido, como um acto revanchista (facto provado n.º 20).
O que implicaria indagar se a assistente sofreu ou não os insultos – que a muito custo, foi identificando ao longo do seu depoimento - ou, se, pelo contrário, tais acusações só surgem como acto de vingança contra o arguido.
Note-se, que a assistente traz para a audiência palavras novas que nem sequer constavam da acusação.
Neste contexto probatório, só nos resta a dúvida sobre o sucedido no hipermercado A..., o que implica decidir a favor do arguido – in dubio pro reo – julgando o facto não provado.
Facto provado n.º 7
Em dia não apurado do mês de Julho de 2022, pelas 17h00, no interior do estabelecimento comercial «B...», em ..., o arguido, num tom de voz elevado e com uma expressão corporal agressiva dirigiu-se à ofendida e disse-lhe «deficiente», «puta», «garota», «estás toda a vida para escolher e nem sabes o que queres».
Sobre esta matéria existem duas versões contraditórias, (i) a do arguido, corroborada pela testemunha EE e a (ii) da assistente, sem qualquer corroboração.
Defende o recorrente que o tribunal recorrido credibilizou a versão de BB, sem curar de apreciar as declarações do arguido e da testemunha, EE.
E, de facto assim é. A prova do facto n.º 7 assentou exclusivamente nas declarações da assistente.
Também aqui, o tribunal acolheu a versão da assistente acriticamente. Com excepção dos factos que terão ocorrido no dia 31 de agosto, o tribunal não aprecia os testemunhos corroborantes da versão do arguido, nem justifica, a razão pela qual as declarações da assistente merecem mais credibilidade que aquelas.
Concretizando:
Em relação ao à ida à B..., diz a assistente:
- Fomos uma vez à Pastelaria a ..., à Arca Doce, para eu lanchar e eu sentei-me e ele sentou-se ao pé de mim e começa para mim a dizer: anda, despacha-te deficiente. Anda, despacha-te. Vê lá se escolhes aquilo que tu queres porque estás toda a vida para escolher.
Juiz – A expressão foi: anda, deficiente. Despacha-te. Vê lá se escolhes o que queres. A senhora recorda-se, mais ou menos, quando é que isto foi?
Assistente – Isto foi no verão.
Juiz – De que ano?
Assistente – Foi mais ou menos em
Juiz - Não. De que ano? É o mesmo ano da morte da cadela?
Assistente – Sim, sim.
Juiz – A senhora recorda-se em que hora do dia é que foi isso? As horas, teria ideia?
Assistente – Não.
Juiz – Corrija-me se eu estiver errada, a senhora disse que foi na esplanada?
Assistente – Dentro do café, dentro.
Juiz – Os senhores tinham por hábito ir a esse café?
Assistente – Íamos lá de vez em quando.
Juiz– Iam os dois juntos?
Assistente – Sim.
Juiz – Então, a senhora costumava entrar dentro do café com o senhor AA?
A – Sim, sim
Juíza – Algum de vocês tinha algum tipo de desentendimento ou de discórdia com a dona desta pastelaria, por causa de dívidas ou de outros assuntos?
Assistente – Não, não.
Juiz – A senhora não tinha nenhum desentendimento com a dona?
Assistente – Não, nunca teve problemas com ninguém.
Juiz – Recorda-se se estava mais alguém presente nessa altura?
Assistente – Sim, estava sim.
Juiz – Alguém conhecido?
Assistente – Sim, pessoas conhecidas, sim. Mas que a gente só diz bom dia e boa tarde.
Juiz – Olhe, quando o senhor AA lhe disse estas expressões de “Anda, deficiente. Despacha-te. Vê lá se escolhes o que queres. ” Recorda-se qual era o tom de voz dele? Se era baixo ou alto?
Assistente – Era arrogante.
Juiz – E falava alto, baixo?
Assistente – Alto, sim. Que as pessoas ouviram bem, quem lá estava.
Juiz– E lembra-se da expressão corporal dele? Ele estava agressivo ou não estava?
Assistente – Estava agressivo. Um pouco sim.
Juiz – E exactamente porque é que a senhora diz que ele estava agressivo? Era só por causa do tom de voz? Por caso do olhar dele, era o quê?
Assistente – Em tudo, no olhar e um olhar mau.
Juiz – Olhe, neste contexto, mais alguma expressão que ele lhe tenha dirigido, que recorde?
Assistente – Não.
Juiz – Então, ele nessa altura não a chamou de “puta”?
Assistente – Sim, ele chamava-me de tanto nome.
Juíza – Especificamente. Peço-lhe que só diga especificamente.
Assistente – Sim.
Juiz – Só mesmo se tiver a certeza.
Assistente - Chamava-me muita vez, sim.
Juiz – Estou a dizer neste dia na Arca Doce?
Assistente – Na Arca Doce, sim, sim, sim.
Juiz – Mas a senhora há bocado não disse essa expressão. Tem a certeza que ele disse ou já não tem a certeza?
Assistente – Já passou tanto tempo, que há muita coisa que eu também já fui esquecendo.
Juiz – Então, em relação a esta expressão, já não consegue ter a certeza?
A assistente – Isso sim.
Juíz – Porque a senhora espontaneamente não mo referiu. Só referiu a expressão “deficiente”. E a expressão “garota”? Recorda-se, só se souber e tiver a certeza, se ele na Arca Doce o disse, a tratou por “garota”? (18.27)
Assistente – Não, não. Aí não.
Daqui resulta que a assistente, espontaneamente, apenas referiu que o arguido lhe disse «anda despacha-te, deficiente. Anda despacha-te. Vê lá se escolhes aquilo que queres porque estás toda a vida a escolher.».
As restantes palavras foram sugeridas pela Senhora Juiz, deixando na dúvida se a expressão puta foi ou não proferida daquela vez. Quanto à designação garota nega que o arguido a tenha proferido nessa altura.
Deste modo, mesmo considerando-se as declarações da assistente, impunham se julgasse apenas provado que naquele dia o arguido lhe disse: despacha-te deficiente. Anda, despacha-te. Vê lá se escolhes aquilo que tu queres porque estás toda a vida para escolher, palavras que não correspondem exactamente à matéria narrada no facto provado n.º 7.
Sucede que, tal como nota o Recorrente, também depuseram sobre este evento, o arguido e a testemunha EE.
O arguido negou que tenha entrado na pastelaria B... com a assistente, porque esta quando ia com ele, não queria entrar, ficando à espera na carrinha que ficava situado no parque perto da Banco 1.... E isto porque, a assistente tem uma dívida de 400€ para com a dona do estabelecimento, tendo-se chateado.
A testemunha EE conta que ele a mulher, o AA, a BB, vinham de um almoço para tomar cafezinho na Pastelaria. No entanto a D. BB não foi, não quis ir, penso teria problemas com a dona da pastelaria. Ela disse que não queria ir. Na altura que andava com a dona por causa de lá um acerto que elas tinham, lá de contas.
A assistente, por seu turno, diz que entrou na pastelaria, ouvindo do arguido os epítetos acima referidos.
Diante de duas versões contraditórias, a testemunha EE, pessoa que mereceu credibilidade ao tribunal (era uma das testemunhas presentes) confirma a versão do arguido, que, à luz das regras da lógica e do normal acontecer, nada têm de estranho ou inverosímil.
O facto de existir uma questão de contas entre a assistente e a dona do café constitui motivo bastante para que aquela evite entrar no estabelecimento desta.
Não corresponde, pois, à verdade, que, em relação ao ponto de facto provado sob o n. º 7, a versão do arguido não tenha sido corroborada por nenhuma das testemunhas presentes, seja inverosímil e inapta para abalar a versão da assistente, como decidido pelo Tribunal recorrido.
Termos em que se conclui que os meios de prova indicados pelo recorrente e não considerados pelo julgador da primeira instância impõem se modifique o facto provado n.º 7, para não provado.
Facto provado n.º 8
No dia 31 de Agosto de 2022, pelas 21h00, no interior da residência do casal, na sequência de o arguido não ter conseguido cortar as unhas a uma cadela e do facto de referida cadela ter embatido na mesa da sala e estar inanimada, o arguido encetou uma discussão com a ofendida
Relativamente a esta matéria, nada a alterar.
Quer na versão do arguido, quer na versão da assistente, o arguido não conseguiu cortar as unhas à cadela, tendo esta embatido na mesa da sala, ficando inanimada, sendo, para aqui, irrelevantes se foi a cadela que saltou do colo do arguido se foi este que a atirou contra a mesa.
Mantem-se, por isso, este facto provado.
Factos provados n.º 9 e 10
Naquelas circunstâncias, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe «cala-te, tu és uma deficiente, não sabes fazer nada», «nem sabes nem deixas fazer». (facto n.º 9)
Ato contínuo, o arguido levantou-se do sofá, dirigiu-se à ofendida que estava sentada num sofá e enquanto lhe dizia «És uma puta», «És uma cabra», «Eu faço-te o mesmo que fiz à cadela», «sai daqui da minha casa senão eu dou cabo de ti», o arguido agarrou o pescoço da ofendida com a mão esquerda, apertando-o e com a mão direita desferiu-lhe um murro na testa. (facto n.º 10).
Para o Recorrente esta matéria não poderia ter sido julgada provada em face das contradições manifestadas nas declarações da assistente.
Também, aqui, com razão.
Explicando:
Em audiência de julgamento, diz a assistente:
Ele não quis ouvir e começou a tratar mal, a chamar deficiente, tu és uma vaca, és uma puta, tu pensas que eu sou cega como tu, mas vejo muito bem. E é teimoso e agarrou no corta unhas e agarrou na cadelinha e começou-lhe a cortar as unhas. Mas a cadelinha não o deixou. Não deixou e eu fui para por a mão e ele agarra nela e chapa a cadela e ela bateu contra a perna da mesa da sala e ela morreu logo.
Anteriormente, informou os serviços médicos que o arguido deu murros na cadela vindo ela a falecer dessa agressão (fls. 75 e 76).
A primeira versão dos factos não coincide com a última. Naquela o arguido atira a cadela contra a perna da mesa, na segunda, o arguido agride a cadela aos murros e é desta agressão que morre.
A segunda imprecisão verifica-se relativamente ao momento em que se terão iniciado os impropérios: uma vez afirma que ocorreram ainda antes do corte das unhas da cadelinha, outras antes esta ter morrido e outras, ainda, depois da morte do animal (declarações entre 15:22 a 16:35).
Também o modo como foi agredida não se encontra devidamente clarificado.
Na audiência, declara: «(…) ela morreu logo. Foi o maior desgosto. E depois eu disse-lhe que não eram coisas que se deviam fazer e ele veio direito a mim e pôs a mão no pescoço e mandou um murro e ainda consegui me defender e fugir pela rua porque senão as coisas tinham sido piores. No pescoço tinha sido pior. (…) São coisas que nos deixam muito revoltada (…). No pescoço, apertou-me no pescoço. Nunca mais fiquei bem. Até tive um tratamento.
Juiz– A senhora, ele ficou de frente para si quando lhe pôs a mão no pescoço?
Assistente – Sim
Juiz – E a senhora recorda-se que mão é que ele colocou no seu pescoço?
Assistente – Foi a mão esquerda.
Juiz – Ele colocou a mão esquerda só, pô-la assim sem estar ou ele apertou?
Assistente – Apertou, sim.
Juiz – Com força?
Assistente – Com muita força, sim.
Juiz – E a seguir? Há bocadinho a senhora disse, mas eu não
Assistente – Eu consegui sair, fugir, e vim pedir ajuda…
Quando inquirida pela Sra. Procuradora, afirma a assistente:
«No dia 31 de Agosto de 2022, cerca das 21.20 h/ 21.30 h, estavam ambos sentados no sofá da sala e na sequencia de uma discussão provocada pelo facto do arguido ter agredido e morto uma cadela e a ofendida lhe ter dito que ele não devia ter feito aquilo ao animal, o arguido levantou-se do sofá e com a mão direita apertou o pescoço da ofendida ao mesmo tempo que com a mão esquerda lhe deu dois murros na testa do lado esquerdo, não a tendo agredido mais porque ela fugiu em busca de socorro, continuando o arguido a gritar “deficiente, cabra, as mulheres são todas umas putas, ordinárias, fracas, vai foder com os cães”. »
Pedidos esclarecimentos à assistente acerca do modo como o arguido colocou as mãos no pescoço: se o arguido colocou a mão esquerda no pescoço e apertou com força ou se o arguido com a mão direita apertou o pescoço da ofendida ao mesmo tempo que com a mão esquerda lhe deu dois murros - acaba por afirmar que «Foram ao mesmo tempo. Quando ele me apertou o pescoço foram ao mesmo tempo que mandou-me os murros». Com a esquerda apertou o pescoço e ao mesmo tempo mandou os murros (…) do lado esquerdo do olho.
Existem, assim, três versões sobre o mesmo facto: a primeira o arguido apertou-lhe o pescoço, mandou um murro, do qual se conseguiu defender, fugindo; a segunda o arguido levantou-se do sofá e com a mão direita apertou o pescoço da ofendida ao mesmo tempo que com a mão esquerda lhe deu dois murros na testa do lado esquerdo e, na terceira, o arguido apertou-lhe o pescoço com a mão esquerda, ao mesmo tempo que lhe dava murros com a mão direita no lado esquerdo do olho.
Mas, existe, ainda, uma quarta versão: a contada pela assistente no episódio de urgência realizado no próprio dia 31 de agosto de 2022, pelas 22:53M, na USF ....
Perguntada disse: ter aflição no peito e dorsalgia após conflito familiar, dor frontal por traumatismo com um pau, tendo sido «agredida com um murro na cabeça».
Ora, não existem quaisquer indícios de que o arguido tenha agredido a assistente com um pau.
A quinta e última versão surge dois dias depois do evento de 31 de agosto: Na Delegação do Centro de Clinica e Patologia Forense, afirma a assistente que o arguido lhe deu um apertão do pescoço e o murro na face.
Porém, não apresenta lesões ou sequelas, a nível da face e da região cervical, o que é incompatível com os apertões no pescoço e murros na face.
A ausência de lesões na face e na região cervical contraria, também, as declarações prestadas pelos filhos da assistente: CC, diz ter visto marcas na testa e na cara e DD diz ter visto lesões no pescoço.
A dor precordial, o quadro ansioso que motivaram a terapêutica medica e medicamentosa mostra-se compatível, com a dor profunda que a assistente sofreu e ainda sofre com a perda da cadela. Nas declarações que prestou em audiência é audível o choro quando aborda a morte do animal.
Neste cenário probatório é, no mínimo, temerário, afirmar que as declarações da assistente se mostram plausíveis e consonantes com as conclusões do relatório da avaliação do dano corporal, posto que assentam em, pelo menos, um facto não provado (agressão com um pau).
Ao que acresce a circunstância do arguido ter os dedos anelar e mindinho da mão direita amputada, com uma incapacidade permanente de 63%, o que, naturalmente, lhe retira força física, facto, também, ignorado pelo tribunal recorrido.
Do que precede, pode concluir-se que o julgador em primeira instância, inexplicavelmente, omitiu na análise crítica da prova as imprecisões, contradições ou omissões existentes nos relatos da assistente, quer, quando confrontados entre si, quer, ainda, quando confrontados, com o episódio de urgência e relatórios de avaliação do dano.
De igual modo, não atendeu ao estado de saúde do arguido (amputação de dois dedos da mão direita), facto importante para aferir da aptidão do arguido para agredir a ofendida com a mão direita, nos moldes por esta relatados.
Deste modo, trouxe o recorrente meios de prova bastantes que impõem se julguem não provados os factos n.ºs 9 e 10.
1.3. Termos em que se julga procedente a impugnação de facto, modificando-se os factos provados n.ºs 3 a 10 para não provados.
Consequentemente, consideram-se não provados todos os factos que dependam daqueles, a saber: factos provados n.º 11 a 17.
1.4. Fixação da matéria de facto
Factos Provados
1. A ofendida BB e o arguido iniciaram um relacionamento como se marido e mulher fossem, em data não apurada do ano de 2013.
2. O casal residiu na casa do arguido, situada na Rua ..., ..., ..., ..., ....
(…)
18. A assistente ficou nervosa e dorida com o sucedido a 31 de Agosto de 2022.
19. Este processo represente uma surpresa para o arguido.
20. A ofendida apresentou a queixa que deu origem aos presentes autos como acto revanchista contra o arguido.
21. Desde 2020 que o arguido tem uma incapacidade permanente global de 63%.
22 O arguido mantém-se na casa em que residiu com a assistente, a qual apresenta boas condições de habitabilidade e conforto.
23. AA é oriundo de uma família com competências normativas, no seio da qual o arguido viveu até aos 20 anos de idade.
24. Frequentou o sistema de ensino até concluir o 4.º ano de escolaridade, altura em que iniciou o seu percurso laboral no sector da construção civil, por conta própria, em empresas do ramo, sediadas no concelho ... e em França, onde trabalhou aproximadamente oito anos.
24. Actualmente, já reformado e com uma incapacidade de 63%, o arguido dedica-se à agricultura, principalmente na actividade vinícola, nas suas propriedades.
25. AA, aufere uma pensão de reforma no valor de 336,00€ e um rendimento anual obtido no estrangeiro no valor de 2.538,12€.
26. Mensalmente, o arguido despende cerca de € 200 no pagamento de serviços na habitação (água, electricidade, telecomunicações).
27. Socialmente, é considerado como um indivíduo trabalhador, com um bom relacionamento interpessoal, educado e cordato.
28. AA sente-se preocupado em relação ao presente processo, temendo pelas eventuais consequências que dele possam advir.
29. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
Factos não provados
Com relevância para a boa decisão da causa não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:
a) Desde a data referida em 3, que o arguido também maltratava fisicamente a assistente.
b) Além do referido em 5, o arguido também dizia à assistente que lhe dava um tiro.
c) Nas mesmas circunstâncias, o arguido empurrava a denunciante, colocando-lhe as mãos nos ombros e nas costas e desferia-lhe bofetadas na cara.
d) Naqueles momentos, a ofendida tinha que fugir de casa para evitar continuar a ser agredida, regressando mais tarde a casa.
e) Em consequência da actuação do arguido, a assistente tem receio de sair de casa e encontrar o arguido.
f). Desde dia não apurado do Verão de 2020, o arguido, alcoolizado, começou a maltratar a ofendida verbalmente.
g). O arguido, alcoolizado, iniciava discussões com a ofendida, dizendo-lhe que ela não podia tomar banho porque gastava gás, que não sabia fazer comida, que estragava tudo em casa, dizendo-lhe ainda que tinha a tensão alta por causa dela e que ia queixar-se ao médico.
h) Na verdade, desde o Verão de 2020, no interior da residência do casal, depois de ingerir bebidas alcoólicas, pelo menos duas vezes por semana, por qualquer motivo, o arguido dirigia-se a ofendida e num tom de voz elevado e com uma expressão corporal agressiva chamava-a de «puta», «deficiente», «doida», dizia-lhe «andas no mundo por veres andar os outros, não queres sexo comigo, porque o fazes com os animais».
i). Em data não apurada, do último trimestre de 2021, nas instalações do estabelecimento comercial «A...», no ..., em ..., perante quem se encontrava no local, o arguido dirigiu-se à ofendida num tom de voz elevado e visivelmente exaltado disse-lhe «despacha-te deficiente, despacha-te garota.»
j). Em dia não apurado do mês de Julho de 2022, pelas 17h00, no interior do estabelecimento comercial «B...», em ..., o arguido, num tom de voz elevado e com uma expressão corporal agressiva dirigiu-se à ofendida e disse-lhe «deficiente», «puta», «garota», «estás toda a vida para escolher e nem sabes o que queres».
l). No dia 31 de Agosto de 2022, pelas 21h00, no interior da residência do casal, na sequência de o arguido não ter conseguido cortar as unhas a uma cadela e do facto de referida cadela ter embatido na mesa da sala e estar inanimada, o arguido encetou uma discussão com a ofendida.
m). Naquelas circunstâncias, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse-lhe «cala-te, tu és uma deficiente, não sabes fazer nada», «nem sabes nem deixas fazer».
n). Ato contínuo, o arguido levantou-se do sofá, dirigiu-se à ofendida que estava sentada num sofá e enquanto lhe dizia «És uma puta», «És uma cabra», «Eu faço-te o mesmo que fiz à cadela», «sai daqui da minha casa senão eu dou cabo de ti», o arguido agarrou o pescoço da ofendida com a mão esquerda, apertando-o e com a mão direita desferiu-lhe um murro na testa.
o). Com a conduta do arguido de 31/8/2022, o mesmo provocou no corpo da ofendida, de forma directa e necessária, dores e mal-estar físico que determinaram um período de doença de 1 dia, com afectação da capacidade geral de trabalho de 1dia.
p) Do evento não resultaram quaisquer consequências permanentes.
q). Actuou o arguido com a intenção concretizada de atingir a ofendida, sua companheira, na sua integridade física e psíquica, lesar a sua integridade moral e dignidade pessoal e de a fazer temer pela sua vida e pela sua integridade física.
r). Ao dirigir-lhe as expressões referidas e ao actuar da forma descrita, o arguido visou provocar-lhe medo e terror, o que conseguiu, pretendendo e conseguindo fazer-lhe crer que estava disposto a tirar-lhe a vida.
s) Com a conduta assumida pelo arguido, a ofendida sente-se insegura, nervosa e temerosa.
t) Agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo a sua conduta era punida e proibida por lei.
2 – Modificada a decisão de facto, uma única conclusão se impõe. A absolvição do arguido pela prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal e a absolvição de todos os pedidos cíveis em que foi condenado.
.
IV. DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em julgar provido o Recurso interposto pelo arguido, AA, revogando-se a sentença recorrida.
Consequentemente, acordam em absolver o arguido do crime que lhe é imputado e de todos os pedidos cíveis contra ele formulados.
Sem custas – artigo 4.º, n.º 1, alínea z) do Regulamento das Custas Processuais
Coimbra, 12 de março de 2025
Alcina da Costa Ribeiro
Sara Reis Marques
Sandra Ferreira
[1] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1135.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de janeiro de 2011, P. nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88.
[3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 131.
[4] Cavaleiro de Ferreira Curso de Processo Penal, Vol. II, p..30
[5] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º Vol. p. 203 a 205.
[6] Acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00.
[7] Vide, neste sentido, entre outros, o Acórdão da Relação de Guimarães de 25 de Fevereiro de 2008 e o Acórdão desta Relação de 6 de Janeiro de 2010.
[8] Acórdão desta Relação de 27 de Abril de 2016, Processo Nº 314/14.2TAGRD.C1.