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TÍTULO EXECUTIVO
PROCEDIMENTO CAUTELAR
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I. Constitui título executivo a decisão prévia transitada em julgado proferida em procedimento cautelar que condenou as requeridas a uma prestação de facere e aplicou uma sanção pecuniária compulsória, fixada em € 250,00 por cada dia de incumprimento. II. Estando a liquidação da obrigação exequenda dependente de mero cálculo aritmético - multiplicação dos dias em que persistiu o incumprimento pelo quantitativo diário fixado - inexiste necessidade de recurso ao incidente declarativo previsto no artigo 704.º, n.º 6, do Código de Processo Civil. III. Estando em causa uma prestação de facere, cujo incumprimento resulta verificado na acção declarativa, recai sobre as executadas o ónus da prova de que lhe deram entretanto cumprimento, nos termos gerais do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 688/22.1T8SLV-B.E1[1] Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Central Cível – Juiz 3
I- Relatório
(…) instaurou contra (…), Unipessoal, Lda. e (…), Lda. execução para cobrança da quantia de € 24.250,00 (vinte e quatro mil e duzentos e cinquenta euros), dando à execução a decisão proferida nos autos de providência cautelar que constituem o apenso A, transitada em julgado em 29 de Dezembro de 2021, e que determinou “a imediata restituição da posse ao Requerente (…) do imóvel identificado no facto indiciariamente provado sob o n.º 1, com a consequente entrega ao Requerente (…) da chave/comando do portão do aldeamento em que este se encontra integrado e a substituição da fechadura do imóvel locado”, tendo ainda condenado as requeridas “no pagamento da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), por cada dia de incumprimento da providência ora decretada, a título de sanção pecuniária compulsória”.
Alegou para tanto que, apesar de devidamente notificadas da decisão proferida, as executadas não procederam à entrega da chave/comando do portão do aldeamento, sendo devida a sanção pecuniária compulsória desde o trânsito em julgado da sentença (29 de Dezembro de 2021) até à data da entrada do requerimento executivo, num total de € 24.250,00 (vinte e quatro mil e duzentos e cinquenta euros) – 250 euros X 97 dias – “somado ao que vier ser liquidado, nos termos dos n.º 3 e 9 do artigo 716.º do CPC, a título de sanção pecuniária compulsória após a citação e enquanto não for entregue a chave / comando do portão do aldeamento conforme decretado na providência cautelar”.
Notificadas as executadas, deduziram oposição, tendo invocado a excepção da falta de título executivo, alegando que a sentença dada à execução, contendo uma condenação genérica, só pode servir de base à execução após a liquidação da obrigação exequenda, em incidente para tanto previamente instaurado, uma vez que não depende de mera operação aritmética.
Mais alegaram ter dado cumprimento à decisão proferida nos autos de procedimento cautelar em 29 de Setembro de 2021, mediante o fornecimento à Il. Mandatária do exequente do código de acesso, conforme consta do auto então elaborado, sendo este o meio de abertura do portão – e não chave ou comando – o que, de resto, se retira do auto de entrega ocorrida em 8 de Abril de 2022, altura em que, mais uma vez, foram fornecidos à Il. Mandatária cópias dos “códigos de abertura dos portões de acesso a viaturas existentes no Aldeamento Turístico”.
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Teve lugar audiência prévia e nela anunciou a Sr.ª juíza o conhecimento antecipado do mérito da causa.
Foi de seguida proferido saneador sentença que julgou improcedentes os embargos deduzidos, determinando em consequência o prosseguimento da execução.
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Irresignadas, apresentaram as executadas o presente recurso e, tendo desenvolvido na alegação apresentada os fundamentos da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões:
“A- O presente recurso incide sobre a decisão datada do passado dia 15.07.2024, pela qual, sem lugar a qualquer atividade instrutória e sem análise crítica de quaisquer factos ou provas, decidiu o Tribunal aquo julgar improcedentes os embargos de executado apresentados pela ora Recorrente.
B- Na medida em que de tal decisão se não retira qualquer identificação da factualidade alegada e não provada, e igualmente não se retira qualquer motivação ou fundamentação de facto, a mesma é nula, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
C- Na medida em que tal decisão foi proferida sem precedência de qualquer diligência instrutória, tendo sido obliteradas (sem despacho) as diligências de prova requeridas pela Recorrente, a mesma viola o direito à prova e ao contraditório da Recorrente, bem como os artigos 3.º, n.º 3, do CPC, e 20.º da Constituição, e a garantia de uma tutela jurisdicional efetiva e de um processo justo e equitativo neles consagrada.
D- Por falso, deve o facto elencado sob o nº 3 da factualidade “assente” ser expurgado da decisão recorrida.
E- Por não impugnados, e resultantes igualmente do “AutodeEntrega” junto como documento da oposição à execução, deverão ser aditados como assentes/provados os seguintes factos:
Não existe chave ou comando de abertura portão do aldeamento;
O referido portão abre com recurso a um código;
No dia 29 de setembro de 2021, pelas 10h00, com a presença da mandatária do Exequente, Ilustre Advogada, teve lugar diligência de cumprimento da decisão cautelar, em cujo auto se consignou que,«[e]mrelaçãoaocomandocuja [incompreensível],digo,cujaentregafoiordenada,consigna-sequeomesmonãofoientregue,tendo,noentanto,sidofornecidoumcódigoàIlustreMandatáriadoRequerente».
F- Nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 704.º do CPC, «tendohavidocondenaçãogenérica,nostermosdon.º2doartigo609.º,enãodependendoaliquidaçãodaobrigaçãodesimplescálculoaritmético,asentençasóconstituitítuloexecutivoapósaliquidação».
G- Incasu, a liquidação do alegado crédito do Exequente mostrava-se dependente, antes do mais, da demonstração em sede declarativa de ter ou não havido incumprimento pelas requeridas das providências decretadas pela decisão exequenda, e, em caso afirmativo, por quanto tempo.
H- Caberia ao Exequente ter procedido à sua liquidação em incidente pós-decisório no âmbito do próprio processo declarativo cautelar, nos termos do disposto no artigo 704.º, n.º 6, do CPC, ou, no limite, na presente fase executiva.
I- Não tendo feito, não pode a decisão cautelar em apreço constituir título exequível para os específicos efeitos dos presentes autos, o que se requer seja declarado, nos termos e com os legais efeitos.
J- Sem prejuízo, sempre se diga que inexistiu incumprimento da decisão cautelar exequenda, nem o mesmo resulta da decisão de facto.
K- Inexiste na decisão qualquer facto alusivo a tal incumprimento, sendo certo, por outro lado, que não podia o Tribunal ter desconsiderado o que a esse propósito foi alegado em sede de oposição à execução, para mais, sem qualquer produção de prova a tal respeito, e quando a única prova pré-constituída nos autos demonstra justamente o contrário.
L- Isto é, que não existia qualquer chave ou comando passível de ser entregue em cumprimento do descritivo da decisão, e que o modo de acesso ao aldeamento, designadamente no que ao portão diz respeito, foi prontamente entregue ao Exequente no dia 29.09.2021 (o aludido código de abertura).
M- Deve, por conseguinte, com a modificação da decisão de facto nos termos promovidos, ser revogada a decisão recorrida e a mesma substituída por outra que julgue integralmente procedentes os embargos deduzidos, ou, assim não se entendendo, embora sem conceder, deve a sentença recorrida ser anulada com vista à ampliação da matéria de facto, pela manifesta insuficiência da decisão de facto para a decisão proferida pelo Tribunal aquo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
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O exequente respondeu, sustentando naturalmente o acerto da decisão recorrida.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas:
i. determinar se a sentença é nula por ausência de discriminação dos factos não provados e motivação da decisão proferida sobre os factos;
ii. da inexistência de título executivo;
iii.. do erro de julgamento nos factos;
iv. do cumprimento da obrigação exequenda e da insuficiência da matéria de facto para a decisão.
* Da nulidade da sentença
As executadas/embargantes e ora recorrentes arguiram a nulidade da sentença por ausência de discriminação dos factos não provados - assim tendo sido omitida referência à matéria factual que alegaram na petição de embargos - e falta de motivação da decisão proferida.
Vejamos, pois, se a sentença é nula, conforme arguem.
Os vícios que conduzem à nulidade da sentença são os taxativamente previstos no artigo 615.º do CPC, designadamente, e para o que aqui releva, a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b) do n.º 1). A previsão legal sanciona com a nulidade o desrespeito pelo comando do artigo 607.º, nos termos do qual o juiz, na sentença, deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final” (n.º 3), impondo o n.º 4 que “na fundamentação da sentença declare os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a decisão”.
Pese embora o assim preceituado, vem sendo entendido que só a absoluta – que não a deficiente ou insuficiente – ausência de fundamentação, determina a nulidade da sentença. Deste modo, ainda que se inclua na previsão legal a falta de motivação da decisão da matéria de facto, teria que se estar perante uma ausência absoluta, não bastando a motivação deficiente, insuficiente ou pouco convincente (cfr., neste preciso sentido, o acórdão do TRC de 13/12/2022, proferido no processo n.º 98/17.2T8SRT.C1, acessível em www.dgsi.pt).
Não é, porém, aqui o caso, tendo a Sr.ª juíza consignado que os factos assentes resultavam “dos autos e das posições das partes expressas nos articulados, concatenados com a falta de impugnação dos documentos apresentados”, motivação que se afigura suficiente quando se considere estarem em causa o conteúdo da sentença exequenda e o seu trânsito em julgado, a improcedência da oposição deduzida, liquidação efectuada no requerimento executivo, auto de entrega e acto de penhora da viatura, tudo factos que resultam dos autos e neles se encontram documentados. Refira-se, finalmente, que eventual falta ou insuficiência da motivação, dizendo respeito a facto julgado essencial, não teria virtualidade para determinar a anulação da decisão, dando lugar ao uso por este Tribunal da Relação dos seus poderes mitigados de cassação, determinando a remessa dos autos à 1.ª instância para efeitos de fundamentação, por aplicação do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC (v., neste preciso sentido, o acórdão do TRP de 4 de Maio de 2022, processo n.º 14614/21.1T8PRT.P1, acessível no mesmo sítio).
Por outro lado, e como se vê da motivação do recurso apresentado, as apelantes, em bom rigor, não identificam os factos por si alegados que deveriam ter sido objecto de pronúncia por banda do Tribunal, ainda que integrando os não provados; ao invés, pretendem que um concreto facto, na circunstância a entrega à Il. Mandatária do exequente de um código de abertura dos portões, que têm como demonstrado face ao auto de entrega elaborado em 29 de Setembro, faz prova do cumprimento da obrigação que lhes foi imposta e foi indevidamente desconsiderado, o que se reconduz à invocação de um erro de julgamento, fora do âmbito portanto das nulidades da sentença.
Diversa ainda é a questão de saber se o estado do processo continha todos os elementos em ordem a permitir ao juiz que, sem produção de prova, conhecesse antecipadamente do mérito da causa, da qual nos ocuparemos infra.
Em face do exposto, porque os vícios invocados não se reconduzem às causas de nulidade da sentença taxativamente previstas no citado artigo 615.º, improcede a arguida nulidade.
* Da impugnação da matéria de facto
As recorrentes impugnam a decisão proferida sobre os factos, pugnando pela eliminação do ponto 3, pretendendo ver aditados outros, que especificam, os quais, em seu entender, resultam provados em face dos elementos constantes dos autos.
Apreciando:
No que se refere ao ponto 3, que pretendem seja expurgado do elenco factual apurado, inexiste razão para tal. Com efeito, considerando embora - ainda que sem razão, como se crê ter ficado demonstrado – que a sanção compulsória aplicada na decisão transitada teria de ser objecto de incidente de liquidação na acção declarativa, a verdade é que a mesma depende de simples cálculo aritmético, o qual foi efectuado no requerimento executivo. Deste modo, porque o facto em causa se limita a consignar o que resulta daquela peça processual, não se vê fundamento para a sua eliminação.
Quanto aos factos que as exequentes pretendem ver aditados e que, em seu entender, resultam provados quando se ponderem os elementos constantes do processo, especificamente os autos de 29 de Setembro 2021 e 8 de Abril de 2022, assiste-lhes parcialmente razão.
Está em causa a seguinte factualidade, resultante da alegação feita pelas executadas na petição de embargos (cfr. artigos 21º a 26º) Não existe chave ou comando de abertura portão do aldeamento; O referido portão abre com recurso a um código; No dia 29 de setembro de 2021, pelas 10h00, com a presença da mandatária do Exequente, Ilustre Advogada, teve lugar diligência de cumprimento da decisão cautelar, em cujo auto se consignou que, «em relação ao comando cuja [incompreensível], digo, cuja entrega foi ordenada, consigna-se que o mesmo não foi entregue, tendo, no entanto, sido fornecido um código à Ilustre Mandatária do Requerente».
Os factos vindos de discriminar constituem matéria exceptiva, pretendendo as executadas com eles fazer prova de que deram cumprimento ao sentenciado logo em 29 de Setembro de 2021, data em que ocorreu a entrega do imóvel ao exequente, donde, não lhe ser devida qualquer quantia a título de sanção pecuniária compulsória.
Pois bem, no que respeita ao conteúdo do auto de entrega de 29 de Setembro, verifica-se que a menção ora em destaque consta efectivamente do mesmo. Trata-se de facto com relevância que, por isso, há-de ser aditado.
No que respeita ao auto de entrega de 8 de Abril, elemento que foi absolutamente determinante para a prolação de decisão favorável às exequentes com dispensa da produção da prova indicada pelas partes, a verdade é que não pode, a nosso ver, ser-lhe atribuído o valor de reconhecimento, por via da adopção pelas embargantes de uma conduta concludente, de que se encontravam em situação de incumprimento. E assim é desde logo porque na petição de embargos expressamente se referem a tal entrega como repetição da prestação (cfr. artigo 27º da oposição), com o esclarecimento de que foi excedido o ordenado na sentença apenas para colocar um fim ao litígio.
Não obstante, e apesar de neste auto se referir mais uma vez a entrega de cópia de códigos, inexistindo qualquer referência a chave ou comandos, tal não é suficiente para que se dê como assente que à data da prolação da sentença exequenda e da sua notificação às obrigadas, momento relevante, fosse aquele o meio de abertura do portão de acesso ao aldeamento. Mais relevante ainda: não faz o referido auto de 29 de Setembro prova de que o código na altura fornecido à Il. Mandatária dos apelantes fosse efectivamente aquele que permitia tal acesso pois, interpretando devidamente a sentença, é disso mesmo que se trata -permitir o acesso do exequente, conforme correctamente interpretaram as apelantes.
Importa por último referir que mostrando-se impugnada a referida factualidade, invocada pelas embargantes (cfr. artigos 6º e 19º da contestação), sendo relevante para a decisão haverá que determinar o seu apuramento.
Atento o exposto, na parcial procedência da impugnação, determina-se o aditamento aos factos provados da menção que consta da parte final do auto de entrega de 29 de Setembro, aceitando-se a redacção proposta pelas recorrentes. * II. Fundamentação De facto
Da sentença recorrida consta consignada como provada a seguinte factualidade:
1. ... (Embargado) intentou acção executiva contra “(…) – Unipessoal, Lda.” e “(…), Lda.” (Embargantes), com vista ao cumprimento de decisão judicial proferida em sede de procedimento cautelar, que correu termos pelo Tribunal Judicial de Lagos com o n.º 229/22.0T8FAR-A.
2. Em tal decisão, de 20 de Setembro de 2021, foi decidido: “determina-se a imediata restituição da posse ao Requerente (…) do imóvel identificado no facto indiciariamente provado sob o n.º 1, com a consequente entrega ao Requerente (…) da chave/comando do portão do aldeamento em que este se encontra integrado e a substituição da fechadura do imóvel locado; Condenar os Requeridos (…), Unipessoal, Lda. e (…), Lda. no pagamento da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), por cada dia de incumprimento da providência ora decretada, a título de sanção pecuniária compulsória”.
2- A No dia 29 de setembro de 2021, pelas 10h00, com a presença da mandatária do Exequente, Ilustre Advogada, teve lugar diligência de cumprimento da decisão cautelar, em cujo auto se consignou que,«[e]mrelaçãoaocomandocuja [incompreensível],digo,cujaentregafoiordenada,consigna-sequeomesmonãofoientregue,tendo,noentanto,sidofornecidoumcódigoàIlustreMandatáriadoRequerente» (facto aditado em conformidade com o acima decidido).
3.À data da instauração da execução – 05 de Abril de 2022 – a quantia exequenda decorrente da sanção pecuniária compulsória aplicada foi liquidada em € 24.250,00.
4. Após a dedução de oposição por uma das Requeridas em sede do procedimento cautelar, foi proferida sentença, em 06 de Dezembro de 2021, julgando aquela oposição improcedente.
5. Essa sentença está transitada em julgado desde 29 de Dezembro de 2021.
6. Em 08 de Abril de 2022, foi entregue à Mandatária do Exequente ”cópia dos códigos de abertura dos portões de acesso a viaturas existentes no Aldeamento Turístico “(…)”, sito em (…), Lagos, bem como de cartão magnético de abertura do portão de entrada para o parque de estacionamento e, ainda, cópia de chave referente à porta de acesso pedonal”.
7. O Embargado alterou a liquidação da quantia exequenda para € 25.000,00, correspondente a 100 dias de atraso no cumprimento do sentenciado por parte das Embargantes.
8. Na execução, foi penhorada a viatura de matrícula (…), registada a favor da Embargante “(…)”.
* De Direito Da falta de título executivo
Ensina o Prof. Lebre de Freitas que a acção executiva tem por finalidade a reparação efectiva dum direito violado”, providenciando “(…) pela realização coativa de uma prestação devida”[2]. Pressupõe por isso “(…) a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo. A declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, constitui na acção executiva o seu ponto de partida”[3]. Vale isto por dizer que a pretensão material está “acertada”, no sentido de sobre ela não dever ter lugar mais nenhuma controvérsia no processo executivo. E é porque o título executivo contém esse acertamento que dele se diz constituir a base daexecução, por ele se determinando “o fim e os limites da acção executiva» (n.º 5 do artigo 10.º), isto é, o tipo de acção e o seu objecto, assim como a legitimidade activa e passiva para ela, sendo ainda em face do título que se verifica se a obrigação é certa, líquida e exigível (artigo 713.º).
Não questionando as embargantes e agora recorrentes que as decisões proferidas em sede de providências cautelares possam constituir título executivo (cfr. o artigo 705.º do CPC), sustentam todavia, e nisso insistem nesta via de recurso, que a obrigação titulada pela decisão judicial aqui dada à execução carecia de prévia liquidação em incidente para tanto instaurado, como impõe o n.º 6 do artigo 704.º, sem o que não podia servir de base à execução.
Não têm, porém, razão.
Atente-se que a execução a que foram opostos os presentes embargos têm como único objecto a execução da sanção pecuniária compulsória aplicada na sentença exequenda, cuja concretização e montante ficou obviamente dependente da (continuação da) violação da obrigação imposta e período do incumprimento. Como é que neste caso se verifica então a violação e liquida a sanção para efeitos da sua cobrança coerciva?
À questão assim enunciada responde com clareza o Prof. Lebre de Freitas[4]. Reconhecendo que a questão não se coloca do mesmo modo na obrigação pecuniária ou de facere, por um lado, e na de non facere, por outro, “uma vez que o incumprimento das duas primeiras está verificado na acção declarativa e, pressupondo a aplicação da sanção que o incumprimento se mantém para além do seu termo inicial, é ao devedor que, nos termos gerais do artigo 342.º-2, CC, cabe provar o cumprimento, em data posterior à sentença, sem prejuízo de a continuação do incumprimento dever, enquanto facto constitutivo do direito de crédito decorrente da sanção, ser alegada pelo credor no requerimento executivo”, já no que respeita às duas obrigações a liquidação da sanção faz-se do mesmo modo: por simples cálculo aritmético feito pelo autor no requerimento inicial da execução, na parte já vencida, e pelo agente de execução, mensalmente e no momento em que cessa a sua aplicação, na parte que vença na pendência da execução, nos termos do artigo 716.º, n.ºs 1 e 3, do CPC.
Neste mesmo sentido decidiu já este TRE no acórdão proferido em 8 de Outubro de 2020 (processo n.º 7547/19.3T8STB.E1, acessível em www.dgsi.pt), também citado pela exequente, no qual se consignou que “i) com o trânsito em julgado e o decurso do prazo da prestação, a quantia imposta pela condenação a título de sanção pecuniária compulsória, passou a ser para além de certa, exigível, caso as obrigações que cabiam ao ora executado, não fossem atempadamente cumpridas. ii) o impulso processual do exequente com vista à aplicação de sanção pecuniária compulsória pelo incumprimento de obrigação de prestação de facto infungível, quando tenha sido objeto de anterior condenação possa ser efetuada no processo executivo, sem necessidade de prévio incidente de liquidação. iii) No âmbito de uma obrigação que tem por objeto um facto infungível, em caso de incumprimento da prestação, o exequente apenas pode executar o direito à indemnização que pode cumular com a exigência de sanção pecuniária compulsória, podendo também executar o já reconhecido direito resultante da sanção pecuniária compulsória imposta ao executado em sede da ação declarativa apresentada como título executivo. iv) a execução intentada não se destina à prestação de facto, mas ao pagamento de quantia certa, decorrente de uma sanção fixada em condenação prévia em sede de ação declarativa, e cujos valores na execução foram especificados e calculados pela exequente procedendo à liquidação da quantia, com o recurso ao simples cálculo aritmético. v) por isso não resulta a necessidade de recurso a um incidente declarativo para a prévia liquidação da sanção compulsória já fixada, mas apenas a sua indicação no requerimento executivo, para que o executado possa, eventualmente, se o entender conveniente, em sede de embargos, exercer o seu contraditório, tal como é afirmado pela recorrente.”
O entendimento exposto afigura-se não oferecer controvérsia, porquanto, constando da decisão dada à execução o incumprimento da obrigação imposta e a quantia devida por cada dia em que o mesmo persista, a quantificação da quantia exequenda, que se traduz numa mera operação de multiplicação (dias x quantia diária imposta a título de sanção), assentando em factos que estão cobertos pela segurança do título executivo e não dependendo da indagação de outros, é feita pelo exequente no requerimento executivo. Isso mesmo se verifica ter ocorrido no caso vertente, recaindo sobre as executadas o ónus da prova do cumprimento da obrigação (cfr. artigo 342.º, n.º 2, do CC), ao invés do que erroneamente sustentam.
A decisão dada à execução constitui assim título executivo, improcedendo também este fundamento de recurso.
* Do cumprimento da obrigação de entrega por parte das requeridas/executadas
As apelantes alegam que, tendo sido proferido sem a realização de quaisquer diligências probatórias, o saneador com valor de sentença ora impugnado obliterou o seu direito à prova, violando o direito das apelantes ao contraditório – artigos 3.º, n.º 3, do CPC e 20.º da Constituição –, bem como a garantia de uma tutela jurisdicional efetiva e de um processo justo e equitativo neles consagrada (cfr. conclusão C).
O convocado artigo 20.º, n.º 4, da CRP consagra efectivamente o direito a um processo equitativo que, numa das suas vertentes, postula a igualdade das partes, assegurada pelos princípios do contraditório e da igualdade de armas. Na sua moderna concepção, o princípio do contraditório é entendido como “(…) garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”[5].
O pleno exercício do contraditório implica e pressupõe assim “o conhecimento pelo demandado do processo contra ele instaurado; o conhecimento, por ambas as partes, das decisões nele proferidas e da conduta processual da parte contrária, com vista a permitir uma eventual impugnação daquelas e o exercício de um direito de resposta à contraparte; a concessão de um prazo razoável para o exercício dos direitos de oposição e de resposta; e a eliminação ou atenuação de gravosas preclusões ou cominações, decorrentes de uma situação de revelia ou ausência de resposta à conduta processual da parte contrária, que se revele manifestamente proporcionadas”.[6]
O princípio da igualdade de armas, por seu turno, enquanto manifestação do princípio mais geral da igualdade das partes, persegue a paridade das suas posições perante o Tribunal, impondo ao longo do processo o equilíbrio entre elas, quer na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses, quer no que respeita à sua sujeição a ónus e cominações idênticos, sempre que as suas posições no processo sejam equiparáveis[7]. Quando assim não suceda, o mesmo princípio impõe “um jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo”.[8]
Assim densificado o princípio do contraditório, nas suas várias vertentes, não se vê em que medida é que o mesmo não foi observado. Com efeito, tendo considerado -de forma acertada ou não, irreleva para este efeito- que o processo continha todos os elementos de facto necessários à decisão, o Tribunal dispensou a produção da prova e proferiu decisão antecipada de mérito, não sem antes anunciar essa sua intenção. É certo que a Sr.ª Juíza, na audiência prévia que teve lugar, conforme consta da acta respectiva, se terá limitado a tentar conciliar as partes, não tendo procedido à delimitação do objecto do litígio, e certamente não anunciou, nem tinha que o fazer, o sentido decisório. Todavia, estando as partes cientes do que havia sido invocado em sede de petição de embargos e do teor da contestação oferecida, não podem alegar que a decisão constituiu surpresa, quando na verdade se limitou a apreciar as questões suscitadas.
Mas se o conhecimento antecipado do mérito se encontra expressamente previsto – cfr. o artigo 595.º, n.º 1, alínea b) –, solução legal que é também decorrência do princípio da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis (cfr. artigo 130.º do mesmo diploma), não fazendo sentido determinar o prosseguimento dos autos com produção de prova quando, seja qual for o resultado, o mesmo se revele indiferente para a decisão a proferir, a verdade é que só se justifica que o juiz profira decisão em momento anterior quando o processo fornecer já todos os elementos de factonecessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis de direito. Tal não se verificava no caso dos autos.
Com efeito, tendo as embargantes alegado factos com relevância para a prova da invocada excepção do cumprimento – cfr. artigos 19º a 26º – que se mostram controvertidos, os autos não continham os elementos factuais necessários à decisão antecipada da causa. Não pode assim subsistir o saneador sentença recorrido, devendo os autos prosseguir os termos subsequentes.
* III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível em julgar parcialmente procedente o recurso apresentado pelas executas/embargantes e, em consequência:
a) julgam improcedente a arguição da nulidade da sentença;
b) julgam improcedente a excepção da falta de título executivo;
c) determinam a alteração dos factos provados de modo a incluir o ponto de facto acima discriminado;
e) revogam o saneador sentença recorrido, determinando o prosseguimento dos autos para apuramento da matéria de facto controvertida acima enunciada, proferindo-se após decisão conforme.
As custas do recurso serão suportadas pelas recorrentes e recorrido, na proporção de ¼ para as primeiras e ¾ para o último (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). * Sumário: (…)
*
Évora, 13 de Março de 2025
Maria Domingas Alves Simões
José Francisco Saruga Martins
Mário João Canelas Brás
__________________________________________________
[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.º Adjunto – Juiz Desembargador José Francisco Saruga Martins;
2.º Adjunto – Juiz Desembargador Mário João Canelas Brás.
[2] Prof. Lebre de Freitas, A acção executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª edição, pág. 16.
[3] Idem, pág. 28.
[4] In “Termo Inicial da Sanção Pecuniária Compulsória Judicial Meio processual para a verificação do incumprimento quando só se peça a execução da sanção”, acessível em https://portal.oa.pt/media/133309/jose-lebre-de-freitas.pdf, também citado pelo exequente/apelado.
[5] José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais, págs. 108/109.
[6] Lopes do Rego, “Comentários ao Código do Processo Civil”, vol. I, 2.ª ed., pág. 17.
[7] Lebre de Freitas, ob. cit., págs. 118/119.
[8] Vide ob. e loc. citados.