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DIFAMAÇÃO
TIPO OBJECTIVO
JUÍZO OFENSIVO
Sumário
Designar outrem como “pessoa violenta e perigosa” não tem a intensidade necessária para se constituir, do ponto de vista objectivo, num crime de difamação: pode ser indelicado, impertinente (como é o caso, tratando-se de escrito num auto de notícia pelo agente policial que o elaborou, por referência ao aí arguido) e até humilhante, o que, per si, é insuficiente para merecer a tutela penal.
Texto Integral
Neste processo n.º 3832/22.5T9VCT.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I - RELATÓRIO
No processo comum singular n.º 3832/22...., a correr termos no Juízo Local Criminal (J...) de ..., nessa Comarca, em que é arguido AA e assistente BB, foi proferida sentença que o condenou, pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz um total de € 480,00 euros, e a pagar ao demandante/assistente a indemnização de € 100,00, acrescida de juros de mora, contados desde a data da sentença.
Inconformado, da mesma recorreu o arguido, apresentando as seguintes conclusões[1]:
«2ª O Ex.mo Senhor Procurador do MP neste processo, evidencia claramente, confortado nomeadamente na Posição do Professor Beleza dos Santos, que os factos participados não integram objetivamente e subjetivamente a prática do ilícito criminal imputado ao arguido, pelo que não acompanhou, para julgamento, a acusação particular deduzida pelo assistente, sendo que a Meritíssima Juíza não se debruça sobre aquela posição do MP, e as razões aduzidas, o que salvo o devido respeito e melhor opinião, mereceria, que para estribo da sua posição divergente, para que a decisão que veio a tomar pudesse melhor ser entendida quer pelo recorrente, - já que o mesmo foi confrontado por posições antagónicas sobre os mesmos factos e os âmbito do mesmo processo, e ainda sem colocar em causa a autonomia e legitimidade da MMª Juíza para decidir como o fez - quer por todos os destinatários daquela decisão judicial, na perspetiva de prevenção geral, pelo que andou mal a MMª Juiz a quo. 3ª O arguido utilizou as expressões "violento" e "perigoso" num contexto de queixa judicial e como reflexo de uma perceção subjetiva e não como uma imputação de factos falsos. As expressões não foram dirigidas ao público, nem feitas com o intuito de prejudicar a honra do assistente, mas sim para comunicar uma preocupação pessoal e legítima. A jurisprudência, incluindo o Acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 2004 (Processo n.º 04S1233), tm vindo a defender que expressões subjetivas e perceções pessoais sem dolo genérico, não constituem difamação. 4ª Andou mal o Tribunal a quo quando deu como provado que o ora Recorrente tinha conhecimento da falsidade das expressões "violento" e "perigoso" e que agiu com a intenção de ofender o Recorrido, já que tal conclusão não se mostra, nem de facto, nem de Direito minimamente sustentada. 5ªQuanto ao ponto 1 dos factos dados como provados, considerando o teor do alegado sobre a matéria supra, - que por economia processual se considerada reproduzido -, o presente processo indicia trata–se de uma sequela do processo 1045/22.5T9VCT, e sugere que o ora Recorrido se move imbuído de um sentimento persecutório relativamente ao ora Recorrente, e como tal deveria também ser tido em conta no julgamento do comportamento do arguido 6ª O que a MMª. Juíza a quo deveria ter decido face às provas documentais e testemunhais que lhe foram disponibilizadas era que o Recorrente expressava uma opinião pessoal com base em perceções, e não afirmava factos concretos com intenção difamatória. A interpretação do Tribunal a quo, e dada aos termos utilizados pelo Recorrente, extrapolou o significado subjetivo pretendido, conforme os requisitos de dolo difamatório implícitos no artigo 180.º do Código Penal. 7ª O Recorrente atuou no exercício de um direito, exercendo a sua liberdade de expressão e defesa em contexto judicial, conforme lhe está garantido pelo artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. O uso das palavras "violento" e "perigoso" serviu para comunicar um receio no âmbito de um processo judicial e deve ser protegido enquanto parte do direito de expressão, desde que não tenha sido intencionalmente ofensivo. A jurisprudência, nomeadamente no Acórdão do STJ de 18 de abril de 2017, defende a liberdade de expressão em contexto de denúncia de comportamentos. 8ª O Tribunal a quo errou ao considerar que o ora Recorrente imputou ao assistente um "historial processual". Na verdade, e desde logo porque sobre tal matéria nenhuma prova, fosse documental, testemunhal, fosse qualquer outra, foi produzida. Ao que acresce que o Recorrente não fez referência a qualquer histórico criminal ou processual, limitando-se a utilizar, no caso sub júdice, termos vagos. A jurisprudência entende que apenas imputações factuais concretas são difamatórias; expressões vagas, como “perigoso” e “violento”, não configuram, por si só, um histórico criminal. Tal interpretação afasta a ideia de dolo direto e intencional para difamar. 9ª Não se mostrou provado que o Recorrente tenha agido com a intenção de humilhar o ora Recorrido. As palavras "violento" e "perigoso" foram utilizadas no contexto de uma denúncia judicial e não dirigidas a terceiros com o objetivo de o humilhar. A intenção do Recorrente era a de expor uma preocupação legítima sobre o comportamento do assistente, pelo que tal comportamento não podendo, em consequência ser subsumível ao crime de Difamação, porquanto e mais uma vez se deixa reiterado não houve dolo nem intenção ofensiva específica. 10ª O Recorrente atuou de forma consciente e livre, mas apenasmente com o objetivo de relatar uma perceção subjetiva no âmbito de uma queixa judicial, e não com o intuito de causar dano à reputação do assistente. O dolo genérico necessário para configurar difamação não se mostra presente, uma vez que o arguido não tinha a consciência de estar a praticar um ato ilícito, mas sim a defender os seus direitos de queixa. 11ª A alegação de dano emocional sofrido pelo assistente, baseado em testemunhos indiretos, como o são as apresentadas pelo Recorrido no caso em apreço, [a colaboradora e amiga CC e DD esposa do Recorrido a quem este, por sua exclusiva iniciativa deu conta do teor da queixa apresentada pelo Recorrente] não podem constituir prova objetiva de dano à honra pelo que também e quanto a esta matéria, andou mal, com o devido respeito, a MMª. Juíza a quo. Na verdade, a jurisprudência do Supremo Tribunal, como no Acórdão do STJ de 9 de Novembro de 2016, sublinha que as afirmações a serem apreciadas em contexto do crime de difamação necessitam causar um efetivo dano real e mensurável à reputação para configurar tal ilícito criminal. A simples reação subjetiva do Recorrido não é suficiente para que possa ser estabelecido um qualquer nexo de causalidade entre o que foi dito e tal dano. 12ª Não existe prova objetiva de que o assistente possua a "admirável reputação" e "notoriedade" mencionadas na sentença. O Tribunal a quo baseou-se em suposições genéricas, sem apoio documental ou testemunhal robusto. Para efeitos de difamação, a honra e a reputação precisam de ser demonstradas de forma concreta. A ausência de prova sobre a relevância pública ou o prestígio do assistente retira sustentação à acusação de que o arguido teria denegrido aquela imagem pública de "admirável reputação" e "notoriedade". 13ª Não se encontram presentes os elementos essenciais para a configuração do crime de difamação, nomeadamente a imputação de factos concretos e o dolo genérico; o Recorrente agiu dentro do direito de liberdade de expressão e defesa judicial, amparado pela Constituição e pelo Código Penal; as expressões utilizadas pelo Recorrente foram subjetivas, sem que o Tribunal a quo, tenha mostrado provada a intenção de imputar factos falsos ou prejudicar objetivamente a honra do assistente e, finalmente não foi feita prova de dano efetivo à reputação do assistente, e consequentemente inexiste base legal para o pedido de indemnização civil. 14ª Face às conclusões anteriores e atentas as alegações de recurso apresentadas supra, a condenação por difamação do Recorrente atento o disposto no comando normativo ínsito no artigo 180.º do Código Penal não deveria ocorrer porquanto: i- Ausência de dolo genérico – conforme os factos provados e não provados, não há evidência clara de que o arguido teve intenção deliberada de ofender o assistente, mas sim de expressar um receio pessoal, apoiado pela jurisprudência citada; ii. O Direito à liberdade de expressão – tal como se encontra também alegado o arguido agiu no exercício do seu direito de expressão e de defesa, estribado pelo artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa e pelo artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Estas normas asseguram a liberdade de expressão, especialmente em contextos de defesa judicial, como o auto de denúncia; iii subsiste a Distinção entre juízos de valor e imputação de factos – sendo que facilmente se retira de tudo quanto ficou alegado que o Recorrente ao ter-se socorrido dos termos “violento” e “perigoso” apenas pretendeu expressar uma avaliação pessoal, e nunca uma imputação objetiva de facto lesivo à honra do ora Recorrido, argumento que encontra sustento em vasta jurisprudência, sendo que esta, maioritariamente considera que adjetivos ou opiniões em contextos defensivos não configuram o tipo de ofensa necessário para o crime de difamação; iv ausência de prova de dano real à honra – para que haja difamação, exige-se prova concreta de prejuízo à honra, conforme mencionado no acórdão do STJ de 13 de março de 2014. 15ª Tudo quanto vem de concluir-se encontra reforço no artigo 180.º do Código Penal e pela jurisprudência que indica que adjetivações subjetivas, usadas como juízos de valor em contextos defensivos, não constituem difamação, uma vez que faltaria a intencionalidade e o dano objetivo exigidos por este tipo legal de crime. 16ª O Tribunal a quo, e sempre com o respeito que é devido, ignorou as especificidades descritas nas conclusões anteriores o que levou a uma conclusão do silogismo judiciário errada, condenando o ora Recorrente ao ter desatentado à exigência da verificação objetiva de dolo, violando assim as proteções constitucionais de liberdade de expressão e o princípio de legalidade no direito penal. 17ª Em síntese e atentos os factos dados como provados e não provados ora colocados em crise, impunha-se que o Tribunal a quo tivesse concluído que o Recorrente não agiu com a intenção de difamar ou ofender, mas sim e apenasmente o de expressar uma preocupação legítima sobre o comportamento do assistente; que as expressões "violento" e "perigoso" são juízos de valor subjetivos e não configuram factos concretos; que o arguido, ora Recorrente exercia o seu direito de liberdade de expressão ao fazer uma queixa formal; e que não .existe prova de que o Recorrido sofreu danos reais, um elemento essencial para a configuração do crime. 18ª As conclusões supra, corretamente apreciadas e conjugadas com as decisões jurisprudenciais citadas, oferecerem suficiente sustento para uma sólida demonstração da falta de elementos típicos do crime de difamação e, consequentemente, para a absolvição do Recorrente do crime de que vem acusado. 19ª Quanto ao pedido de indemnização cível e uma vez que, nos termos do presente recurso, não resultou a prova dos factos ilícitos praticados pelo arguido, o pedido deduzido pelo assistente terá necessariamente que improceder. 20ª Admitindo, por mera hipótese de raciocínio, mas que se não concede, a existência de dúvida razoável sobre a ilicitude e culpa do Recorrente, essa dúvida deve ser resolvida a seu favor, e consequentemente pela sua absolvição, atento o princípio constitucional, plasmado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. 21ª A decisão do Tribunal recorrido, constante da sentença ora posta em crise, violou as normas constantes dos artigos 32º n.º 5 e 37º da CRP, artigo 10º., do CEDH, artigos 14º e 180º ambos do CP e artigo 70º e 483º do CC.»
Pugna o recorrente pela revogação da sentença e sua substituição por acórdão que absolva o arguido do crime pelo qual foi condenado.
O recurso foi admitido.
O assistente respondeu ao recurso, com as seguintes conclusões:
«A. Da presente resposta evidenciar-se-á que os argumentos utilizados pelo Recorrente para invalidar os factos provados, 1, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 23 e 24, devem improceder, pois, como se demonstrará, foram doutamente apreciados e julgados pelo Tribunal a quo. B. No que respeita ao facto provado 1., o recorrente parece (querer) confundir os autos recorridos e o processo n.º 1045/22.5T9VCT, em que são igualmente intervenientes os aqui recorrente e recorrido, porém, deve improceder tal pretensão, pois, estes dois processos respeitam a situações distintas, quer factualmente quer temporalmente, pois enquanto o processo n.º 1045/22.5T9VCT diz respeito a factos que terão ocorrido no dia 30/03/2022 (vide facto provado n.º 2), em que o recorrente foi julgado pela prática de um crime de injúria, os autos ora recorridos, dos quais resultou a condenação do recorrente pela prática de um crime de difamação, respeitam a factos ocorridos em 31/03/2022, data em que o aqui recorrente participou criminalmente do recorrido pela alegada prática de crimes de injúria e ameaça, dando origem ao processo de inquérito n.º 222/22.3PBVCT (vide factos provados n.º 3, 4, 5, 6 e 7), nessa medida, as acções judiciais em causa reportam-se a situações distintas, com distinto enquadramento legal, em que apenas coincidem os intervenientes, inexistindo aqui qualquer índole persecutória por parte do recorrido, pelo que deve manter-se o facto provado em causa. C. Já quanto ao facto provado 10, o recorrente tenta (em vão) justificar as expressões por si utilizadas para qualificar o recorrido, como se de uma “percepção pessoal” ou “preocupação legítima” se tratasse. Porém, semânticas à parte, uma “percepção pessoal” exteriorizada/materializada num documento escrito, é uma formulação de um juízo de valor reproduzido, logo, enquadrável na norma punitiva do n.º 1, do art.º 180.º do CP, que dispõe que quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo pratica um crime de difamação. D. Neste pressuposto, afirmando o recorrente que o recorrido tem registo de ocorrência por situação análoga, sendo mais que evidente ser uma pessoa violenta e perigosa, faz, quanto a este, um juízo de valor, que reproduz no auto de denúncia que elaborou, sendo no mínimo caricato que o recorrente alegue que proferiu as palavras "violento" e "perigoso" dentro do contexto da queixa elaborada e que deu origem ao processo 222/22.3PBVCT (cfr doc fls 12 e s. junto aos autos), tendo tais palavras sido usadas pelo Recorrente, para descrever a sua experiência subjetiva e os receios que, na sua perspetiva, o Recorrido lhe provocava, já que o Recorrente havia interagido com o ora Recorrido no âmbito do processo crime nº. 1045/22.5T9VCT, porém, este processo teve origem na participação crime apresentada pelo aqui recorrido em 12/04/2022 (cfr. documento n.º 1 junto com a participação crime nos autos ora recorridos), ao passo que, a denúncia do recorrente no processo 222/22.3PBVCT (cfr doc fls 12 e ss. junto aos autos), foi apresentada em 31/03/2022, ou seja, quase um mês antes da participação crime apresentada pelo recorrido, pelo que aquele processo não poderia justificar a participação crime neste último processo. E. O raciocínio lógico-dedutivo da afirmação do recorrente, de que o recorrido possui registo de ocorrência por situação análoga, quando no processo de inquérito n.º 222/22.3PBVCT o recorrente refere que o aqui recorrido o injuriou e ameaçou, sendo mais que evidente ser uma pessoa violenta e perigosa apenas pode ser entendido no sentido que as próprias palavras do recorrente expressam, de que o recorrido é pessoa violenta e perigosa. Atente- se que, os crimes de injúria e/ou ameaça, nos termos da alínea j), do art.º 1.º, do CPP, configuram “Criminalidade Violenta”, logo, o recorrente, com as expressões que utilizou, pretendeu efectivamente qualificar e caracterizar o recorrido como pessoa violenta e perigosa. F. Contraiamente ao alegado pelo recorrente, de que o recorrido tem registo de ocorrência por situação análoga (entenda-se injúria e ameaça), tal não resulta da prova produzida em audiência, bem pelo contrário, como bem se percebe do documento junto a fls. 104, e que configura um extrato do SEI, onde constariam os processos em que o recorrido surgia como interveniente, sem que, contudo, se identificasse a qualidade em que este intervém nesses mesmos processos. Tal circunstância foi igualmente comprovada na audiência de julgamento realizada em 02/10/2024, em que a testemunha arrolada pelo recorrente, o seu colega agente da PSP, EE, entre os minutos 11:19:00 a 11:47:00, quando confrontada com este documento afirma que do mesmo (SEI) não consegue perceber a qualidade em que o recorrido é visado, apenas sabe os números do processo (NIUPC) e mais nada. G. Esta apreciação é igualmente feita pelo Tribunal a quo, que quanto ao depoimento desta testemunha escreve que confrontada esta testemunha com o registo do SEI de fls.104 disse que dele não consegue saber a qualidade em que a pessoa visada intervém e, para ele, a informação era insuficiente para fazer constar o que consta do auto em concreto. H. Por conseguinte, da consulta da base de dados SEI, não poderia nunca o recorrente concluir, como efectivamente fez, que o recorrido seria uma pessoa violenta e perigosa e, tendo-o feito, desconhecendo a qualidade em que o recorrido constava do SEI nos processos que lhe eram imputados, actuou o recorrente dolosamente, com a intenção e consciência de ofender e imputar índole criminosa ao recorrido, pelo que, mais uma vez bem decidiu o Tribunal a quo, devendo manter-se este facto como provado. I. Quanto a facto provado 11, mais uma vez o recorrente justifica as expressões por si utilizadas para qualificar o recorrido, como se de uma mera percepção pessoal e subjectiva se tratasse e não de um verdadeiro juízo conclusivo quanto ao recorrido e ao seu carácter, olvidando-se que esse juízo conclusivo decorre da pesquisa por si efectuada na base de dados da PSP (SEI), como bem refere “Efetuada pesquisa na informação disponível a esta Polícia“, alega que o recorrido possui registo de ocorrência por situação análoga, leia-se, injúria e ameaça, afirmando que é “mais que evidente ser uma pessoa violenta e perigosa”. Tal informação, além de ser efectivamente falsa, não resultando da base de dados disponível para a PSP a imputação ao recorrido a prática de qualquer ilícito ou registo de ocorrência por crimes de injúria ou ameaça, cfr. excerto junto a fls. 104, pelo que também sabe e não pode ignorar o recorrente, que tal afirmação, pelo teor da mesma, é atentatória da honra e bom nome do recorrido, pelo que, bem decide o Tribunal a quo, dando como provado que o recorrente bem sabia que a afirmação era falsa, suportando tal decisão em factos objectivos inegáveis, designadamente o documento junto a fls. 104, além do depoimento da testemunha EE, quando afirma que quanto a este mesmo documento que não é possível aferir a qualidade ou carácter do visado nesse extrato da base de dados. J. Também a alegação, por parte do recorrente, de que as expressões utilizadas para qualificar o recorrido correspondem ao exercício da sua liberdade expressão e direito de defesa, consagrado nos arts.º 37º da CRP e 10º da CEDH, devem improceder, pois, como bem se percebe do nº 3, do art.º 37.º da CRP, que dispõe que as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais, como efectivamente sucedeu nos autos recorridos em que o Digno Tribunal a quo sustentou a sua posição com doutrina relevante, pelo que, tal douta decisão não merece qualquer censura, devendo manter-se na integra. K. No que respeita ao facto provado 12, insurge-se o recorrente, considerando que o Tribunal a quo não logrou provar a vontade do recorrente de lesar a honra e dignidade do recorrido, o que, salvo o devido respeito se discorda, não podendo o recorrente querer convencer o Tribunal ad quem que não sabia que as expressões utilizadas para caraterizar o recorrido seriam ofensivas ou atentatórias da sua honra. Usando o critério de razoabilidade de um bonus pater famílias, a caracterização de alguém como “violento e perigoso”, será sempre ofensivo e atentatório da honra do visado por essa caraterização, tanto mais se tal caraterização ocorrer num âmbito processual, e, se tal caraterização decorrer de factos falsos conhecidos do recorrente, que teve acesso à base de dados da polícia (SEI) – vide documento junto a fls. 104. L. Ainda que porventura se aceitasse que o recorrente não teve intenção de ofender o recorrido, ainda assim a sua conduta seria ilícita e com relevância criminal, mesmo que não a título de dolo directo, mas antes dolo eventual, cfr. art.º 14.º, n.º 2, do CP, pois sabendo o recorrente que a imputação de um juízo falso quanto ao caracter do recorrido (apelidando-o de violento e perigoso), será ofensivo da sua honra e consideração, porém, conforma-se com essa ofensa, não se inibindo de o praticar. A jurisprudência trata esta temática de forma consensual, refira-se, por exemplo o acórdão proferido pelo STJ em 13/07/20217, no processo n.º 71/15.5TRGMR-A.S1. M. O recorrente para participar criminalmente do recorrido não tinha de expressar a sua “opinião pessoal”, podendo exercer este direito sem qualificar o carater do recorrido, pois os direitos de queixa e defesa do recorrente não carecem de opiniões ou impressões, mas sim de factos, porém, o recorrente quis efectivamente atingir e denegrir o recorrido, o seu bom nome e honra. Neste sentido, toma-se a liberdade de referir o acórdão do STJ, de 21/04/2010, proferido no processo n.º 1/09.3YGLSB.S2. N. Também quanto ao facto provado 13 se insurge o recorrente, porém, mais uma vez e com devido respeito por diversa opinião, sem razão, pois, as expressões utilizadas pelo recorrente afirmando que efectuou pesquisa na informação disponível à Polícia, relativamente ao recorrido e que este tem registo de ocorrência por situação análoga, sendo mais que evidente ser uma pessoa violenta e perigosa, ou seja, imputando um histórico processual sem correspondência com a realidade, nunca pode ser justificado com liberdade de expressão, com um pretenso direito de defesa, ou com subjectivas impressões ou preocupações. O. Também considera o recorrente que o facto provado sob o n.º 14 foi mal julgado pelo Tribunal a quo, e que nunca foi sua intenção atingir o assistente, humilhando-o e prejudicando a sua honra, porém, parece-nos evidente (como também pareceu ao Tribunal a quo) que o recorrente teve intenção de atingir o recorrido apelidando-o de violento e perigoso, pois além desta qualificação ser desnecessária à prossecução dos alegados direitos de liberdade expressão e defesa, também é evidente e notório que as expressões em causa sempre seriam ofensivas para o recorrido, humilhantes e diminutivas da sua honra e consideração. Neste sentido, e contrariamente ao alegado pelo recorrente, o Digno Julgador a quo não se baseou numa interpretação subjectiva e descontextualizada das palavras do recorrente para decidir como o fez, bem pelo contrário, tendo efectivamente considerado o contexto em que foram proferidas, designadamente a qualificação feita pelo recorrente com base numa alegada consulta à base de dados da PSP, pelo que deve manter- se esta decisão. P. Quanto ao facto provado 16, a nosso ver bem julgado, importa desde logo esclarecer que o recorrente é agente da PSP, com larga experiência e não um leigo em matéria criminal, pelo que bem sabia que as expressões por si utilizadas para qualificar o recorrido constituíam um ilícito criminal, porém, não se coibiu de ainda assim de as escrever, sendo esta a sua vontade inequívoca, que, nunca em sentido diverso o recorrente tentou desconstruir, remetendo-se ao silêncio, quando teve oportunidade de se justificar ou retratar-se, porém, fez uso da prerrogativa de não prestar declarações, pelo que, naturalmente, não pode ser prejudicado por tal opção, porém, a ausência de uma versão factual alternativa sustentada por outro meio de prova objetivo e credível e a existência de outros meios de prova livremente valoráveis (inclusive em desfavor do arguido silencioso), podem, obviamente, levar à sua criminalização, aliás, entendimento seguido pela Relação de Guimarães, no acórdão de 19/12/2023, proferido no processo n.º 27/19.9GAMDL.G1. Q. No que respeita ao facto provado 23, o recorrente teoriza que os juízos de valor que proferiu foram mal interpretados pelo recorrido, todavia, desconhece-se que outra interpretação pode ser dada a uma denúncia crime cuja fundamentação, quanto ao caracter do denunciado, advém de uma alegada pesquisa a uma base de dados da PSP, da qual se conclui, de forma “mais que evidente”, que o recorrido é uma pessoa violenta e perigosa. Mais, contrariamente a esta teoria do recorrente, não terá sido só o recorrido a interpretar “mal” as suas palavras, pois também o Tribunal a quo as interpretou com igual sentido, decidindo como fez, bem como a testemunha EE (testemunha do recorrente), que confrontado com o registo do SEI de fls.104 disse que deste documento não consegue apurar a qualidade da pessoa visada (leia-se recorrido) e que a informação era insuficiente para fazer constar do auto de denúncia a informação de que o recorrido era uma pessoa violenta e perigosa, pelo que, no parece “mais que evidente” que o recorrido interpretou corretamente as palavras do recorrente, das mesmas extraindo o sentido que este lhes quis conferir, sendo justificáveis os sentimentos por parte do recorrido. R. Já quanto ao facto provado 24, preconiza o recorrente que nenhuma prova objectiva foi produzida, o que, obviamente, discordamos, pois, um facto notório é um facto que não carece de nem de alegação nem de prova, devendo considerar-se como tal os factos que são do conhecimento geral, cfr. art.º 412.º, do CPC, como aliás, também defende a Relação de Lisboa, no acórdão de 29/05/2013, processo n.º 7053/10.1TBCSC.L1-6. S. Atentemos que o meio em que se move o recorrido é ..., onde possui várias indústrias, e emprega algumas centenas de funcionários, sendo do conhecimento público esta realidade, tendo o recorrido, nessa mesma qualidade, sido notícia em vários meios de comunicação social, destacando-se, entre outros, as publicações no “...”, “...” e “...”, cfr. documentos A, B e C, que se juntam, logo, é do conhecimento geral que o recorrido é um “(…) empresário/industrial com admirável reputação e notoriedade nos meios em que se move.”, não carecendo, por tal, de alegação ou prova, tendo, mais uma vez, bem decidido o Tribunal a quo. T. No que respeita à subsunção dos factos à matéria de direito, considera também o recorrente que o Tribunal a quo não decidiu bem, o que o recorrido não concorda, pois, o Tribunal a quo, fazendo uma breve, mas incisiva incursão pelos temas mais relevantes do tipo de crime, nomeadamente, dos conceitos de honra, consideração, da exigência apenas de dolo genérico neste tipo de crimes, sobre a liberdade de expressão e os seus limites, sustenta o seu posicionamento, na doutrina mais relevante, designadamente, Beleza dos Santos, Faria Costa, Oliveira Mendes, Costa Andrade, Figueiredo Dias, citando-os. U. Contrariamente ao que alega o recorrente, os requisitos necessários à imputação do crime de difamação em que vem condenado, tal como resulta da prova produzida e valorada, verificam-se na íntegra, pelo bem decidiu o Tribunal em condenar o recorrente, não lhe assistindo igualmente razão recorrente quanto à inexistência do dolo e da modalidade que este deve revestir para determinar uma condenação, pois, como bem decidiu a sentença recorrida, a atuação do recorrente foi dolosa. Aliás e ainda que assim não fosse, para o preenchimento do tipo em causa seria suficiente um mero dolo genérico e já não um dolo específico, como aliás, bem preconiza a doutrina e jurisprudência que nesta matéria e que o Digno Julgador a quo considera na sua decisão. V. Já no que respeita à distinção entre factos e juízos de valor, para efeito do crime em que veio o recorrente condenado, vem este alegar que para o tipo em causa apenas releva a imputação de factos concretos e já não juízos de valor, sustentando este posicionamento exclusivamente em dois acórdãos do STJ, sobre os quais o recorrido não se pode pronunciar, pois, de todas as pesquisas que efetuou com os dados indicados, não logrou encontrar nenhum deles. Não obstante, o recorrido discorda deste entendimento, que, aliás, atenta contra a própria ratio da norma, visto o n.º 1, do art.º 180.º do CP, expressamente referir que juízos de valor são considerados para efeito de incriminação. W. Já no que contende com a liberdade de expressão, defende também o recorrente que esta foi desconsiderado pelo Digno Julgador a quo, que, não teve em consideração o contexto em que estas palavras foram reproduzidas, discordando o recorrido deste entendimento do recorrente, pois efectivamente o Tribunal a quo considerou o contexto em que foram escritas as referidas expressões, proferidas no âmbito de um processo crime, pois, até pertence o recorrente a um órgão de polícia criminal e bem conhece os trâmites processuais dos inquéritos crime (facto provado 9); bem sabendo também o recorrente que o recorrido nunca havia sido condenado pela prática de qualquer crime de qualquer natureza (facto provado 8). X. Além do mais, considera também o recorrente que o recorrido não conseguiu provar que o crime cuja prática lhe é imputada, causou efetivo prejuízo à honra e reputação do recorrido, o que discorda o recorrido, pois foi feita prova deste dano e do correspondente prejuízo, designadamente através das declarações prestadas pelo recorrido e o depoimento das testemunhas DD e CC, pelo que, também aí, bem decidiu o Tribunal a quo, nenhum reparo deverá ser feito a esta decisão. Y. Por fim, sustenta-se o recorrente no princípio constitucional in dúbio pro reo, conquanto tal pudesse reverter em seu favor, esquecendo-se, porém, que o Digno Julgador a quo não teve quaisquer dúvidas, como aliás, atenta a matéria probatória produzida, se compreende e subscreve. O Tribunal a quo apenas desrespeitaria este princípio se, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidisse contra o arguido, não obstante, resulta indubitavelmente da sentença recorrida que o Digno Julgador, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, ficou plenamente convicto, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação, apreciando prova válida e sem contrariar as regras da experiência comum. Z. Numa última nota, no que respeita aos diversos arestos referidos pelo recorrente nas suas alegações, todos do Supremo Tribunal de Justiça (num total de 9), não pode o recorrido quanto aos mesmos pronunciar-se, pois, da consulta à base de dados do IGFEJ, disponível em www.dgsi.pt, não logrou encontrar qualquer dos referidos acórdãos.»
Pede a confirmação da sentença recorrida.
O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, sendo as conclusões[2]:
«2. Desde logo, importa precisar que nos presentes autos a prova realizada e apreciada em audiência de julgamento difere da prova recolhida em inquérito, designadamente a postura processual do arguido, que em sede de julgamento se remeteu ao silêncio. 3. Com efeito, na sentença recorrida é manifestamente clara a análise que o Tribunal a quo fez da prova, sendo manifestas as razões pelas quais conferiu credibilidade e o peso que cada prova teve na formação da convicção do Tribunal. 4. Quanto ao julgamento da matéria de facto, o Tribunal a quo apreciou correctamente as provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, cabendo tal apreciação de maneira adequada na margem de liberdade de que o julgador sempre dispõe na apreciação da matéria de facto e que o legislador processual penal expressamente consagrou no artigo 127.º do C.P.P., 5. Assim, face ao que resultou da audiência de discussão e julgamento, o sentido da decisão final não poderia ser outro que não o que concluísse pela condenação do arguido. 6. Inexististe, pois, qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova e do principio do in dúbio pro reo.»
Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta é de parecer que o recurso deve improceder: no que escreveu, o recorrente confundiu o seu papel de cidadão comum com a veste de agente policial, assim “extravasando (…) o objecto e termos da denúncia”; por outro lado, as expressões em causa “destinavam-se a ser valoradas no âmbito do processo de inquérito por si iniciado”, não pretendendo qualquer fim particular, “mas formular um juízo de valor relativamente à conduta do assistente num documento oficial – a participação policial – dirigido ao (…) Ministério Público”, não se encontrando aqueles juízos abrangidos na protecção conferida à liberdade de expressão.
Cumprido o contraditório, não houve resposta.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[3], e face às conclusões do recurso, a única questão a resolver é se os factos provados integram ou não a prática, pelo recorrente, do crime de difamação pelo qual foi condenado.
É certo que o recorrente invoca, na motivação, o art. 412.º, n.º 3, e alega impugnar a decisão sobre matéria de facto.
Porém, há requisitos mínimos para este Tribunal poder apreciar o erro de julgamento.
Prevê esta última disposição legal: “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.”
Deixando de lado esta última alínea, já que o recorrente não pretende qualquer renovação da prova, restariam as duas primeiras.
Relativamente à da alínea a), e sempre em sede de motivação, o recorrente menciona os factos provados 1, 10 a 14, 16, 23 e 24, depreendendo-se da sua argumentação o entendimento de que deveriam ter sido dados como não provados.
Acontece que, como bem assinala o Ministério Público nesta Relação, o recorrente apenas levou para as conclusões a alusão ao facto provado 1 (que resulta de documento), sem que aí indique quaisquer provas que impusessem decisão diversa, como lhe é exigido pela citada alínea b), e deixou de fora dessas conclusões os demais factos contra os quais se insurge na motivação do recurso.
Acresce que, nesta, o recorrente também não indica prova, para cada um daqueles factos, que imponha para eles sorte diferente: antes tece considerações sobre a intenção que o terá movido e, ainda mais abundantemente, sobre o enquadramento jurídico dos factos no crime em causa.
Ora, devendo as conclusões do recurso ser o resumo das razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, in fine), como é próprio da definição etimológica mais adequada nesta circunstância – “parte final de um texto, raciocínio, discurso, etc., em que se apresenta uma síntese das principais ideias anteriormente desenvolvidas”[4] –, não pode o recorrente nelas omitir o principal alicerce da sua pretensão: a indicação expressa das provas (fossem elas documentais ou de outra natureza) susceptíveis de fundamentar uma alteração daquela matéria de facto provada.
Face à omissão do recorrente, também no texto da motivação, de tais especificações, não há lugar “ao convite para correcção, uma vez que tal se traduziria na ultrapassagem do limite que o texto da motivação consiste”[5], limite que é absoluto[6].
Assim, tem este Tribunal de considerar que o recurso, tal como foi interposto, carece dos elementos necessários para constituir impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto na 1.ª instância.
1. Factos provados
«1- O assistente, BB, no dia 12-4-2022, apresentou participação criminal contra o ora arguido, que deu origem ao processo judicial nº.1045/22.5T9VCT, que corre no Tribunal Judicial de Viana do Castelo – Juízo Local Criminal – Juiz ...; 2- Tal participação teve por base factos ocorridos no dia 30-3-2022, pelas 10.40h, na Avenida ..., ...; 3- Em 28-11-2022, foi o ora assistente constituído arguido no processo de inquérito nº.222/22.3PBVCT, em que é denunciante o ora arguido AA; 4- Tomou aí conhecimento o ora assistente que contra ele corria um processo de inquérito, com o referido nº.222/22.3PBVCT, onde o ora arguido, ali denunciante, sustenta a sua pretensão igualmente com base em factos ocorridos em 30-3-2022; 5- Nesse auto de denúncia, apresentado pelo ora arguido, em 31-4-2022, na veste de cidadão, fez este constar do item “informações complementares” uma descrição dos factos que sustentassem a sua denúncia contra o aqui assistente; 6- No oitavo parágrafo das “informações complementares” do auto de denúncia junto aos autos de inquérito nº.222/22.3PBVCT, o ora arguido, referindo-se ao aqui assistente (aí denunciado), escreve o seguinte: “Efetuada pesquisa na informação disponível a esta Polícia, relativamente ao suspeito - BB, tem registo de ocorrência por situação análoga, sendo mais que evidente ser uma pessoa violenta e perigosa”; 7- O auto de denúncia que deu origem ao processo de inquérito nº.222/22.3PBVCT, materializa a pretensão de procedimento criminal do aqui arguido contra o aqui assistente; 8- O ora assistente não foi condenado pela prática de qualquer crime de qualquer natureza; 9- O ora arguido pertence a um órgão de polícia criminal e bem conhece os trâmites processuais dos inquéritos crime; 10- O ora arguido ao afirmar o supra referido em 6. bem sabia que a existência de um inquérito crime não pressupõe que o respectivo visado tenha efectivamente praticado o ilícito que lhe é imputado; 11- O ora arguido ao afirmar o supra referido em 6., referindo-se ao ora assistente, bem sabia que tal afirmação é falsa e atentatória da honra e bom nome do assistente; 12- Com a descrita conduta o arguido quis ofender a honra e dignidade do assistente, bem sabendo que as suas afirmações eram lesivas do seu bom nome e falsas; 13- Com a imputação ao assistente de um histórico processual que não tem correspondência com a realidade, tentou o arguido denegri-lo, pretendendo que sobre o mesmo se criasse uma imagem de pessoa conflituosa, violenta e com passado criminal; 14- Agiu o arguido com intenção de atingir o assistente, humilhando-o e diminuindo-o na sua honra, consideração e bom nome; 15- O teor das afirmações, transcritas no auto de denúncia apresentado, tornaram-se do conhecimento de todos quantos os que contactaram com o referido inquérito; 16- O arguido actuou de forma livre, consciente e voluntária, com noção de que praticava tais actos; 17- O arguido não tem antecedentes criminais; 18- É casado e tem dois filhos maiores, sendo um ainda estudante e a seu cargo; 19- Exerce a profissão de agente da PSP, auferindo cerca de 1.250 euros mensais; 20- Vive com a família, em casa própria, adquirida com recurso ao crédito bancário, pagando por tal cerca de 480 euros mensais; 21- Tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade; 22- É considerado pelas pessoas das suas relações como boa pessoa e excelente profissional; 23- Como consequência directa e necessária das expressões escritas pelo demandado, o demandante sentiu-se ofendido e vexado, dominado por um sentimento de injustiça e dormiu mal; 24- O demandante é um empresário/industrial com admirável reputação e notoriedade nos meios em que se move.»
2. Factos não provados
«Não provada a restante matéria factual alegada na acusação particular de fls.144 e ss., no pedido de indemnização de fls.150 v. e s. e na contestação de fls.167 e ss., que aqui, por brevidade, se dá por reproduzida.»
3. Motivação
«Para formar a sua convicção, relativamente aos factos provados e não provados, baseou-se o tribunal, para além do corelacionamento de toda a prova produzida: - no teor e análise conjugada dos documentos juntos aos autos, designadamente, de: - fls.6 e s. (cópia da participação do ora assistente contra o ora arguido, que deu origem ao processo nº.1045/22.5T9VCT); - fls.8 a 10 (autos de contraordenação e de apreensão de documentos de 30-3-22); - fls.11 (constituição de arguido do ora assistente, no âmbito do processo nº.222/22.3PBVCT); - fls.12 e s. (auto de denúncia elaborado pelo ora arguido, na qualidade de autuante e de denunciante/ofendido, contra o ora assistente, que deu origem ao processo nº.222/22.3PBVCT); - fls.14, 99, 178 e ref....17, de 2-10-24 (crc do ora assistente, onde nada consta); - fls.18 a 23 (cópias do processo nº.1045/22.5T9VCT, da fase de inquérito); - fls.24 a 39 (cópias do processo nº.222/22.3PBVCT, da fase de inquérito, onde consta o auto de denúncia – fls.28 e s., com as menções escritas pelo ora arguido e em apreço nestes autos -, bem como o despacho final de arquivamento); - fls.100 (pesquisa de processos em que o ora assistente é interveniente); - fls.102 a 116 (informação da PSP, com pesquisa do SEI/sistema estratégico de informação – de fls.104 e s. – e prints do expediente relativo a alguns dos registos onde é visado o ora assistente); e, - fls.170 (crc do arguido, onde nada consta); - no teor das declarações do arguido, apenas relativas ao que elucidou o tribunal quanto a alguns aspectos da sua actual situação pessoal e económica, já que, no mais, usou do seu direito ao silêncio; - no teor das declarações do assistente, BB, que relatou como leu o auto e o que dele constava, como o mesmo foi do conhecimento do advogado, da polícia e até na sua empresa; disse que ao ver-se mencionado como “pessoa perigosa e violenta”, ainda mais acrescentando o arguido a palavra “evidente”, ficou indignado, revoltado, correspondendo a mentiras que não pode admitir, verbalizando “não sou um fugitivo”; disse não conhecer o arguido a não ser da outra situação (referindo-se à em causa nos autos que deram origem aos supra mencionados processos), revelando-se as suas declarações sinceras, coerentes e credíveis; e, - no teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas, sendo que: - DD, esposa do assistente, deu conta de que o marido (com quem está casada há 27 anos, conhecendo-o há 32 anos) nunca foi violento ou perigoso, aludindo a como o mesmo tomou conhecimento do escrito e lhe contou, ficando abalado e ofendido, andando incomodado durante algum tempo, sem dormir bem e triste; - CC, amiga e funcionária da empresa do assistente, contou que trabalha com ele há 24 anos, diariamente, como directora financeira, não o tem como violento, nem perigoso, antes pacífico; disse que o assistente comentou com ela o sucedido, por desabafo e estava chateado com a situação; e, - EE, agente da PSP, colega do arguido, referiu como normalmente elaboram as participações das ocorrências, como todos tem acesso ao SEI (PSP e GNR) e referem no auto a informação que obtiveram do registo; confrontado com o registo do SEI de fls.104 disse que dele não consegue saber a qualidade em que a pessoa visada intervém e, para ele (admitindo que outros colegas possam ter acesso a outras informações), a informação era insuficiente para fazer constar o que consta do auto em concreto; atestou ainda o habitual bom comportamento pessoal e profissional do arguido. Tais documentos, declarações e depoimentos, analisados criticamente, conjugados entre si e valorados segundo as regras de experiência comum e do normal acontecer, levaram o tribunal a convencer-se quanto aos factos que apurou. Na verdade, para além do que objectivamente consta do auto de denúncia que o arguido elaborou (cuja autoria não foi posta em causa) - dele se fazendo constar como autuante e como denunciante/lesado/ofendido, e onde, para além do relato correspondente à sua queixa propriamente dita, desejando procedimento criminal, fez constar, nas “informações complementares” que “Efetuada pesquisa na informação disponível a esta Polícia, relativamente ao suspeito - BB, tem registo de ocorrência por situação análoga, sendo mais que evidente ser uma pessoa violenta e perigosa” -, conjugado com o teor dos demais documentos indicados (mormente o registo do SEI de fls.104, de onde não transparece nenhuma especial menção sobre a pessoa do ora assistente ou da sua associação e em que qualidade à listagem ali inclusa), aliados todos ao teor das declarações do assistente (que deu conta, em moldes tidos por coerentes e sinceros, de como soube e se sentiu na sequência do escrito pelo arguido), ficou o tribunal convencido de que o arguido actuou de forma perfeitamente esclarecida, ciente do que escrevia e quis escrever, caracterizando a pessoa do assistente, pretendendo atingi-lo e ofende-lo efectivamente, como era seu intuito (enfatizando – ao usar a expressão “mais que evidente” - o juízo que sobre o mesmo quis transmitir, a imagem de pessoa violenta e perigosa que no auto que elaborou fez constar, não se limitando a relatar a sua queixa). Aliás, que tal o arguido quis transmitir, ao escrever o que escreveu, também resulta do cotejo do expediente junto de fls.106 a 116, junto com o SEI, onde, se atentarmos, em nenhum outro auto se alude a idêntica pesquisa e, muito menos, a qualquer acrescento sobre a personalidade do assistente ou de quem quer que seja (à excepção da feita, precisamente, no auto escrito pelo ora arguido, ali também junto a fls.109 e s.). É claro que as palavras usadas não são propriamente do teor que é habitual serem proferidas e apreciadas em processos desta natureza. No entanto, salvo o devido respeito, apelidar alguém, ainda mais num auto de denúncia (no caso, por umas alegadas injúrias e ameaças), que a pessoa é, de forma mais que evidente, violenta e perigosa – características que costumam associar-se a pessoas ligadas a crimes violentos, roubos, homicídios, por exemplo -, é, porventura, pior do que o uso das expressões habitualmente tidas como ofensivas, por muito mais grosseiras que sejam em relação às ora em apreço. Assim, da conjugação de toda a prova, ficou o tribunal convencido de que o arguido escreveu de forma esclarecida (e agastada até) o que do auto consta, sabendo o alcance e o significado que era atribuído às palavras que usou, querendo mesmo assim usá-las, estando também convencido (face ao enfase que deu às palavras escritas) que o que escreveu poria, como pôs, em causa a pessoa do assistente, a sua imagem pessoal e, no caso, processual.»
4. Enquadramento jurídico dos factos provados
«Nos termos do art.180º, nº.1 do C.P. “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”, sendo, nos termos do art.182º do cit.cód., à difamação verbal equiparada a feita por escrito (...) ou qualquer outro meio de expressão. Já muito se escreveu a propósito do referido tipo de crime, nomeadamente, dos conceitos de honra, consideração, da exigência apenas de dolo genérico neste tipo de crimes, sobre a liberdade de expressão e os seus limites. No entanto, como enquadramento, tecer-se-ão apenas algumas breves considerações. Como refere Beleza dos Santos (cfr. “Algumas Considerações Jurídicas Sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, in R.L.J., Ano 92º, nº.3152, págs.161 e ss.) “A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração e ao desprezo público”. Acolhe-se, entre nós, (e sem nos envolvermos na problemática relativa ao conceito de honra), uma concepção dual (normativa e fáctica) da honra, sendo esta vista “como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior” (cfr. Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, T.I, ed.1999, Coimbra Editora, pág.607). Por sua vez, a consideração traduz-se no juízo que formam os outros no sentido de considerar alguém um bom elemento social, isto é, o conceito que os outros têm sobre a personalidade moral de alguém, a estima ou respeito que lhe tributam (cfr. Beleza dos Santos, op.cit., pág. 167). O direito à honra e consideração é um direito constitucionalmente protegido (cfr. art. 26º da C.R.P.). No entanto, e conforme refere Oliveira Mendes (cfr. “O direito à honra e a sua tutela penal”, ed.1996, Almedina, pág. 52) “os crimes de difamação e de injúrias não tutelam, tão somente, o direito à honra. Ao punir a violação daquele direito subjectivo, o legislador está também a proteger um interesse público, qual seja o da paz social”. Face ao disposto no art.180º, nº.1 do C.P. poder-se-á afirmar que os elementos objectivos deste tipo de crime, no dizer de Faria Costa (cfr.op.cit., pág. 609), “se estruturam em dois grandes segmentos: um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado, por quem quer que seja (…), através da a) imputação de facto ofensivo da honra de outrem, b) por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda c) pela reprodução daquela imputação ou juízo; o outro segmento, o segmento do rodeio ou do enviesamento, exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros”. Importa ainda ter presente que “o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização” (cfr. op.cit., pág.612), pelo que o carácter difamatório e ofensivo de determinada expressão, palavra, gesto ou imagem dependerá do contexto, lugar ou outras circunstâncias em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre e mesmo do modo como ocorre. E, relativamente à vertente subjectiva deste tipo de crime, arredada que está a controvérsia sobre a exigência do chamado dolo específico, bastando pois o dolo genérico, basta uma actuação dolosa, constituída pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los, revestindo o dolo qualquer uma das modalidades referidas no art.14º do C.P.. São assim estes os elementos essenciais a ter em consideração na análise da matéria factual apurada para verificar do seu preenchimento, ou não, pelas condutas do arguido. Ora, analisando os factos apurados, verificamos que o arguido, nas circunstâncias supra descritas, no auto de denúncia que elaborou, fez dele constar alusões à pessoa do assistente, juízos de valor sobre a sua postura e carácter, apelidando-o, no seu dizer, de forma “mais que evidente”, de pessoa “violenta e perigosa”, insinuando que o mesmo seria pessoa dada à prática de crimes (digamos, graves). Tais juízos e palavras, insinuações, apreciadas no contexto em que foram escritas pelo arguido, não podem deixar de ter-se como objectivamente ofensivas da honra e consideração do assistente. E, por outro lado, tais expressões e juízos foram formulados e escritos pelo arguido sabendo o mesmo, e não podendo ignorar, que, ao escrevê-los, estava a ofender a honra, bom-nome e consideração do assistente, o que quis, tendo actuado, nas descritas circunstâncias, de forma livre e consciente, sabendo da censurabilidade da sua conduta. Temos, pois, como preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de difamação em apreço, sendo certo que os juízos de valor feitos não podem ter-se, salvo o devido respeito por opinião diversa, como justificados, como imputações feitas para realizar interesses legítimos, nem como meros exercícios do direito de crítica ou da liberdade de expressão, no contexto em que o foram. Na verdade, como se escreveu no Ac.R.P. de 22-11-06, in www.dgsi.pt, “A liberdade de expressão, particular vertente da liberdade pessoal em geral, sendo uma concretização da «liberdade geral de acção» ou do «direito ao livre desenvolvimento da personalidade», sempre liberdades e direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos (…), que se fundam no valor supremo da dignidade humana (…), caracteriza-se pela sua intrínseca estrutura relacional: é essencialmente na relação com o outro que ela se concretiza e realiza (…). Por isso, como salienta Costa Andrade, também a liberdade de expressão é geradora de “toda uma tensão de conflitualidade que importa apaziguar”, concretamente quando contende com o bem jurídico-complexo da honra na sua perspectiva dual acima mencionada. Assim, os direitos fundamentais aqui em jogo (por um lado o direito ao bom nome e reputação e, por outro, o direito de expressão), que têm peso igual na hierarquia dos valores protegidos constitucionalmente (…), estando sujeitos a determinadas restrições (no caso da liberdade de expressão, estando as limitações também previstas no art. 37 nº 3 da CRP), não podem ser considerados como direitos absolutos (…). Esse conflito que pode resultar do confronto entre o “direito ao bom nome e reputação” e o “direito de expressão” ou “direito de informação em sentido amplo” (…), só poderá ser resolvido com a ponderação dos respectivos interesses, fazendo intervir critérios como o da proporcionalidade, da necessidade e da adequação (art. 18 nº 2 da CRP), salvaguardando, porém, o núcleo (alcance e conteúdo) essencial dos preceitos constitucionais em jogo. Ou seja, há que introduzir limites a esses dois direitos fundamentais, de forma a preservar o núcleo essencial de cada um deles, com o fim de alcançar a necessária composição (“«harmonização» ou «concordância prática» dos bens em colisão, a sua optimização” (…)) dos interesses em conflito” (cfr. também, a propósito, entre outros, Ac.R.G. de 9-10-17 e Ac.R.P. de 11-4-19 e 4-11-20, in www.dgsi.pt). Ora, as alusões e juízos feitos pelo arguido e ora em análise, que já se concluiu serem objectivamente ofensivos e terem sido redigidos pelo arguido de forma dolosa, fazendo apelo aos critérios supra aludidos de proporcionalidade, necessidade e adequação, temos que concluir que ferem de forma excessiva a honra e consideração devidas ao assistente, pois que o uso daqueles que estes direitos ferem, não era necessário e revela-se desproporcional e desadequado ao exercício de um qualquer direito do arguido, ainda que, em última análise, o da sua livre expressão, tendo-se assim por injustificada a conduta que ao arguido se imputa. Por outro lado, tratando-se, como se trata de juízos de valor emitidos pelo arguido sobre a pessoa do assistente, são insusceptíveis de prova, nos termos e para efeitos de configurar a causa de justificação prevista no nº.2 do art.180º do C.P.. Assim, ferido que foi o núcleo essencial do direito à honra e bom nome do assistente, concluímos, quanto ao que o arguido fez consignar, no segmento em apreciação do auto de denúncia, que a conduta do arguido extravasa, por seu turno, o seu direito de crítica, liberdade de expressão e de opinião, pelo que preenche o tipo de crime de difamação de que vem acusado, não se encontrando excluída a sua ilicitude, nem estando a mesma por qualquer forma justificada, pelo que àquele se imputa a prática, com dolo directo e em autoria material (cfr.arts.14º, nº.1 e 26º do C.P.), de um crime de difamação, p. e p. pelo art.180º, nº.1 do C.P..»
C. Apreciação do recurso
Qualificação jurídica dos factos
Cristalizada que se encontra a matéria de facto, cabe a este Tribunal avaliar se as expressões em causa nos autos consubstanciam a prática do crime pelo qual o recorrente foi condenado; é que a qualificação jurídica feita pela 1.ª instância não é, em sede de recurso, vinculativa para o Tribunal da Relação, que conhece “de facto e de direito” (art. 428.º).
Antes de mais, importa lembrar o princípio da intervenção mínima do Direito Penal: numa sociedade, só se criminalizam os actos que, pela sua gravidade, não podem deixar de merecer uma especial censura, traduzida na aplicação de uma pena.
Como se escreveu no preâmbulo do actual Código Penal, este “deve constituir o repositório dos valores fundamentais da comunidade. As molduras penais mais não são, afinal, do que a tradução dessa hierarquia de valores, onde reside a própria legitimação do direito penal.” (ponto 2.)
Em concordância com a protecção constitucional dos direitos ao bom nome e à reputação (prevista no art. 26.º, n.º 1, entre outros direitos pessoais), o Código Penal dispõe de um Capítulo com a epígrafe “Dos crimes contra a honra” (arts. 180.º a 189.º).
Aqui está em causa o tipo do art. 180.º, n.º 1, a difamação, que pode ser praticado por quem, dirigindo-se a terceiro, “imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração”.
A complexidade deste bem jurídico, com a sua concepção dual, é já referida na sentença recorrida (supra B.4.), convocando-se ainda a doutrina mais relevante na matéria, nomeadamente no que respeita à contextualização das palavras em causa (aqui, escritas, que o art. 182.º do Código Penal equipara às verbalizadas na prática deste crime).
Antes de mais, e para aferir do contexto, atente-se na seguinte cronologia, extraída dos factos provados:
- a 30 de Março de 2022, pelas 10.40h, na Avenida ..., ..., houve uma ocorrência que envolveu o ora assistente e o ora recorrente, agente da PSP;
- no dia seguinte[8], é pelo arguido lavrado auto relativo a essa ocorrência, no qual também se materializa a pretensão de procedimento criminal do ora arguido contra o ora assistente;
- a 12 de Abril de 2022, foi a vez de este apresentar participação criminal contra o ora arguido, também referente aos factos de 30 de Março;
- a 28 de Novembro desse ano, o aqui assistente foi constituído arguido no processo desencadeado pelo supra referido auto.
Resulta daqui evidente a existência de uma conflitualidade latente entre ambos, de tal forma que deu lugar a dois processos crime diferentes: primeiro, o impulsionado pelo aqui arguido e, depois, o instaurado na sequência da queixa do ora assistente.
É no contexto daquele que, no auto de 31 de Março de 2022, surge o escrito cuja relevância criminal aqui se discute: «Efetuada pesquisa na informação disponível a esta Polícia, relativamente ao suspeito - BB, tem registo de ocorrência por situação análoga, sendo mais que evidente ser uma pessoa violenta e perigosa»; o auto foi assinado pelo arguido, na qualidade de agente da PSP.
Aqui, deve ser notado que a denominação atribuída ao auto (quer pelo arguido quer pela Mm.ª Juiz a quo, face à sua epígrafe) é de “denúncia”; porém, está provado que aí se fez constar «uma descrição dos factos que sustentassem a sua denúncia contra o aqui assistente». Ora, sendo o arguido agente da PSP, relatando factos que com ele se passaram e aos quais conferiu relevância criminal, está em causa, juridicamente, um auto de notícia, nos termos do art. 243.º, n.º 1: “Sempre que uma autoridade judiciária,um órgão de polícia criminal (…) presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia”, do qual devem constar os factos que constituem o crime, o dia, hora, local e circunstâncias deste, e “tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos.”
Prevê o n.º 2 do mesmo artigo que este auto “é assinado pela entidade que o levantou” (no caso, o ora arguido) e, segundo o n.º 3, “é obrigatoriamente remetido ao Ministério Público (…) e vale como denúncia.”
É verdade que o recorrente, ao fazer constar do auto o aludido parágrafo, e como se refere no parecer dos autos, pretendia “formular um juízo de valor relativamente à conduta do assistente num documento oficial (…) dirigido ao Ministério Público”, no que pode ser visto como uma tentativa de influenciar o titular do inquérito contra o aí denunciado.
Ora, na sua qualidade de agente da autoridade, tinha o arguido a obrigação de ser mais contido – sem para o auto verter qualquer classificação da conduta ou da personalidade do assistente –, uma vez que estava ele próprio envolvido na ocorrência, e no respeito pelos seus deveres de isenção e imparcialidade, previstos nos arts. 8.º, n.º 2, b) e c), 10.º e 11.º do respectivo Estatuto Disciplinar (Lei n.º 37/2019, de 20 de Maio); para tanto, bastava que se tivesse quedado, no que respeita ao parágrafo referido no facto provado 6, no adjectivo “análoga”. Deixava o resto para a autoridade judiciária titular do inquérito, tanto mais que neste interessam os factos tal como é possível apurá-los, e não a opinião do agente policial.
Mas será que o restante («sendo mais que evidente ser uma pessoa violenta e perigosa») é susceptível de configurar um crime de difamação quanto ao ora assistente?
É evidente que, no caso dos autos, não foi imputado qualquer facto ao visado, ficando a restar os adjectivos, os juízos de valor.
Importa aqui referir, desde logo, que “é hoje incontroverso que nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente possa parecer integrar o tipo de crime, será relevante para [o] núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, não a sua susceptibilidade ou melindre, e a valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. [Os crimes contra a honra] são (…) muito submetidos à erosão dos tempos. São um bom exemplo para recordar a expressão de Welzel, de que «os bens jurídicos não são peças de museu em redomas de vidro; vivem no mundo e sofrem o desgaste da interacção social»”[9].
Por outro lado, também releva o contexto do escrito no auto que, como já se referiu, foi elaborado por um órgão de polícia criminal: o conhecimento do que dele consta, além do titular do inquérito, é ainda assim limitado – outros agentes da PSP encarregados do inquérito, oficiais de justiça que tramitassem o processo na fase de inquérito e advogados que viessem a ser constituídos nos autos. Nem sequer é certo (e desconhece-se, porque a marcha do processo não consta dos factos provados) que um tribunal viesse a ter conhecimento do teor daquele auto.
Ou seja, subscreve-se o que foi entendido pela Magistrada do Ministério Público titular do inquérito, quando não acompanhou a acusação particular (ref.ª ...53).
Mas há ainda a considerar outra questão, aliás decisiva: não se afigura que designar outrem como pessoa violenta e perigosa tenha a intensidade necessária para se constituir, do ponto de vista objectivo, num crime de difamação. Pode ser indelicado, impertinente (como é o caso) e até humilhante, o que, per si, é insuficiente para merecer a tutela penal.
Violento não é sinónimo de criminoso; apesar de ser definido, para um indivíduo, como aquele que “atua com violência” (sendo que esta pode ser o recurso à força física mas também pode não a implicar), também se diz de quem é “intenso; veemente; impetuoso; fogoso; arrebatado; agitado; tumultuoso; irascível; colérico”[10].
Já perigoso quer dizer “arriscado; que corre perigo; que pode causar dano”, tendo por isso uma carga semântica ainda mais fraca.
Aliás, ambos são termos abundantemente utilizados noutros campos da vida, como o desporto – com destaque para o futebol, reportando-se o primeiro à dureza física de um jogador e o segundo às suas habilidades em campo, de uma forma positiva para a sua equipa –, actividade física mais intensa (uma caminhada de 25 km para quem não está habituado a fazer exercício é violenta, e descer um rio numa canoa pode ser perigoso) ou até aliados a sentimentos positivos (uma paixão violenta pode ficar dentro de quem a sente).
Por isso, a adjectivação em causa, que o recorrente fez constar do citado auto, não se traduz em juízo susceptível de atingir o núcleo fundamental da honra ou consideração do assistente, pelo que carece de dignidade penal nos termos do art. 180.º, n.º 1.
Uma vez que a actuação do arguido descrita nos autos está subtraída à tutela deste artigo, deve o recurso ser julgado procedente, com a absolvição do arguido quer da prática do crime pelo qual vinha acusado quer do pedido de indemnização civil deste dependente (que só foi atribuído na 1.ª instância por aí se considerar ter o arguido cometido o crime de difamação).
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o arguido do crime de difamação pelo qual vinha acusado, bem como do pedido de indemnização civil contra ele deduzido pelo assistente.
Custas a cargo do assistente, com 3 UC de taxa de justiça – art. 515.º, n.º 1, b).
Guimarães, 11 de Março de 2025
(Processado em computador e revisto pela relatora)
Os Juízes Desembargadores
Cristina Xavier da Fonseca Bráulio Martins Paula Albuquerque