OPERAÇÕES DE LOTEAMENTO
TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE PARA O DOMÍNIO PÚBLICO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Sumário

I - Sendo o DL nº 289/73 e o DL nº 400/84 de 31/12, omissos quanto à formalização da transferência da propriedade e ao estatuto jurídico das parcelas de terreno cedidas em operações de loteamento urbano, a realização de escritura pública para transmitir essas áreas.
II - O art. 16.º, n.º 2, do DL n.º 448/91, de 29-11, ao consagrar que a transmissão para o domínio municipal de parcelas cedidas no âmbito de loteamentos opera automaticamente não pode aplicar-se a loteamentos anteriores finalizadas com emissão de alvará.
III - Cabe ao município alegar e provar que a área ocupada por terceiro faz parte das áreas validamente transferidas por causa do processo de loteamento.
IV - Caso não esteja demonstrada essa realidade e seja possível que essa área ocupada pertença a outro lote ou às partes comuns do loteamento a pretensão de revindicação terá de improceder.
V - Não é possível, no caso concreto, defender o interesse público de construção de uma ciclovia através dos mecanismos de abuso de direito ou aquisição originária, porque os factos necessários não foram alegados e resulta claro que nenhuma construção pela apelante foi realizada na parcela do lote que terá sido apropriada por terceiro.

Texto Integral

Processo: 13551/21.4T8PRT


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Sumário:

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1. Relatório

O Município 1... veio propor a presente ação sob a forma de processo comum contra AA NIF ...95 e esposa, BB, ambos residentes na Rua ..., ... ..., ..., peticionando se declarar que a) a área de 60,00 m2, que os réus ocuparam integra o domínio público municipal, por cedência e imposta pelo alvará de loteamento n.º ...6 de 1986-04-09, e não integra o lote nº 3, b) os réus ocupam ilegitimamente essa área de 60,00 m2, e condenar-se os réus a c) reconhecerem quanto vem peticionado e será declarado e a d) desocuparem a supramencionada área de 60,00 m2.

Alegou, para tanto e em síntese, que, após aprovação pelo Município 2..., foi emitido, no âmbito do processo ...43/82, alvará de loteamento, identificado pelo n.º 15, de 28.04.1981, do prédio sito nos lugares da Estação e ..., da Freguesia ..., ..., com as confrontações Norte com Estrada Nacional, CC, DD e outros, do Sul com EE, do Nascente com a linha férrea e Herdeiros de FF e do Poente com caminho de servidão e GG, o qual está inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ... sob os artigos ...76 e ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob os nºs ...37 e ...73; que, o referido alvará foi alterado por aquele Município, e assim foi substituído pelo alvará n.º 8, de 09.04.1986; e que, por força deste último alvará, resultaram cedidas áreas, a extrair do prédio loteado, para o domínio público; que, em parte de uma dessas áreas, foi projetada, pelo autor, uma ciclovia; que, em 1991, os réus requereram pedido de licenciamento de edificação de uma habitação, que acabou aprovado, mas com uma área superior à definida pelo alvará de loteamento; que, essa edificação se encontra a ocupar a parcela ...5 do projeto de ciclovia; que, apesar de notificado a reverter a situação e a repor os limites da sua propriedade, nos termos do alvará de loteamento, os réus, porém, nada fizeram.


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Citados, os réus apresentaram contestação, na qual, em resumo, alegam que a área da sua propriedade é a que consta do requerimento de licenciamento de construção, realizada pela própria Câmara Municipal 2...; que a área definida no alvará de loteamento estava errada, numa diferença de 60m2; que a licença de construção aprovada abrange a sua habitação e garagem, em resultado de uma alteração durante o procedimento; que a área ocupada e em discussão é sua propriedade, por aquisição aos vendedores e anterior proprietária e promotora do loteamento, A..., Lda; que essa área nunca foi cedida e integrada em domínio público. Pugnando, por conseguinte, pela improcedência da ação.

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O autor apresentou articulado superveniente, que foi liminarmente recebido, mas sujeito a produção de prova. Produzida esta em julgamento esse articulado não foi admitido.

O processo foi saneado e instruído e, após julgamento foi proferida sentença que julgou o pedido improcedente.

Inconformada veio a autora interpor recurso o qual foi admitido como (de apelação) subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo, ao abrigo do disposto nos artigos 629.º, 631.º, 638.º, n.ºs 1 e 7, 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

2.1. Conclusões apresentadas pela apelante

1.º A douta sentença indeferiu o articulado superveniente apresentado pelo Autor e, consequentemente, expurgou do elenco dos temas de prova o item K que se reporta à existência da servidão administrativa, por entender que aquele não logrou comprovar a superveniência subjetiva: “O autor, pese embora alegar que o conhecimento só sobreveio em agosto de 2022, nada alega quanto ao motivo que impediu, ou terá impedido, o conhecimento mais oportuno”.

2.º Todavia, em sede de articulado superveniente, alega o Autor que por força da sua criação em 1998, pela Lei nº 83/98, de 14 de Dezembro, instaurou contra o Município 2... acção administrativa com o nº Processo ... no TAF de Penafiel, na qual peticionou a entrega de todos os processos administrativos do sector de urbanismo, uma vez que se aquele recusava a entregar os processos administrativos de loteamento que passaram a integrar o acervo documental do Município 1... e que no dia 25.05.2021 o Município 2... enviou 32 caixas com os diversos processos de loteamento e de licenciamento de obras particulares para os serviços administrativos do Município 1....

3.º Tendo em conta a estrutura complexa da Câmara Municipal, bem como a elevada quantidade de processos enviados, não foi possível aos órgãos representativos tomar conhecimento imediato de todos esses processos de loteamento, não lhe podendo ser exigível um conhecimento mais célere.

4.º Os responsáveis do urbanismo do Município 1... apenas se inteiraram em agosto de 2022 desses processos administrativo de loteamento ...43/82, alterado pelo alvará nº ...5, de 28 de abril, e do processo de licenciamento com o alvará n.º ...52... de 31.01.1991, que licenciaram a edificação do imóvel construído no prédios dos RR

5.º O Recorrente não tinha conhecimento na fase dos articulados da tramitação desse processo nem dos documentos que o compõem e se juntaram, nem dos factos que tais documentos atestam.

6.º O Tribunal da Relação deve alterar a decisão da matéria de facto operada pela sentença recorrida nos termos do disposto no artº 662º nº 1 do CPC e considerar como provado o seguinte facto (que a 1ª instância considerou como não provado): «1. Os funcionários do departamento urbanístico do autor inteiraram-se dos teores dos documentos dos procedimentos referidos no facto provado n.º 2, em agosto de 2022.»

7.º E, para alicerçar e fundamentar esta alteração da decisão sobre matéria de facto, o Recorrente evoca o depoimento das testemunhas HH

... (Chefe de Divisão de Planeamento, Urbanismo, Mobilidade e Ambiente, à data dos factos em discussão) (…)

8.º Ao não admitir o articulado superveniente, sendo este tempestivo e do interesse para a boa decisão da causa, a sentença recorrida violou a disposição prevista no artigo 588.º, n.º 4, do CPC.

9.º Tendo em conta a prova documental a que foi junta ao articulado superveniente – a certidão processo administrativo - e prova testemunhal produzida, quanto à existencia do processo administrativo, releva a já referida prova testemunhal, nomeadamente, o depoimento da testemunha HH (Chefe de Divisão de Planeamento, Urbanismo, Mobilidade e Ambiente) (…) que devem ser levados ao elenco da matéria de facto provada, os factos que integram os artigos 2º a 17º do articulado superveniente.

10.º Com base nos depoimentos das testemunhas (…) devem ser levados ao elenco da matéria de facto provada, os factos que integram os artigos artigos 18.º a 34.º do articulado superveniente.

11.º A atual edificação dos Recorridos (lote n.º 3) ocupa uma área que extravasa os parâmetros estabelecidos pelo respetivo alvarás de loteamento emitido, num total estimado de 60m2 e que integra a parcela ...5 da ....

12.º A própria sentença recorrida refere em sede de motivação da matéria de facto que a ocupação da parcela de terreno pelos RR não se estriba em qualquer título emitido pelo Recorrente, extravasando os limites previstos no respectivo alvará de loteamento.

13.º No regime jurídico do Dec Lei nº 289/73, a integração no domínio público de áreas de cedência obrigatórias operava-se por mera emissão do alvará de loteamento e não tinha, para valer juridicamente, que ser formalizado por escritura pública, que constitui o título obrigatório apenas para as transações de imóveis no âmbito do direito privado.

14.º A integração no domínio público, à luz do artº 19º nº 2 do Dec Lei nº 289/73 operava pela emissão do alvará do qual constavam obrigatoriamente as áreas cedidas.

15.º Ficou demonstrado que o alvará de loteamento n.° .../86 impôs a cedência para o domínio público de parcelas de terreno destinadas a arruamentos, passeios, aparcamentos, zonas verdes, necessariamente destinadas à utilização pelo público, devendo entender-se que, independentemente de uma efectiva afectação de facto a esse uso, foram afectadas, juridicamente ao domínio público.

16.º Os particulares apenas podem utilizar ou ocupar privativamente um bem submetido ao estatuto de dominialidade ao abrigo de um título jurídico-administrativo.

17.º In casu, tal como vem referido repetitivamente na sentença recorrida, os Recorridos não são titulares de qualquer documento ou título que legitime a ocupação da parcela de terreno de 60,00 m2. Termos em que não pode ser outra a conclusão senão a de que a ocupação é abusiva e ilícita, devendo os Recorridos ser condenados a desocupara a referida área.

18.º A sentença recorrida incorreu em contradição entre os fundamentos e a decisão ao afirmar “que a ocupação da parcela de terreno, referida nos factos provados n.ºs 17 e 18, não se estriba em qualquer documento/título emitido pelo autor” e, simultaneamente, não declarar a ilegitimidade e ilegalidade da ocupação dessa área de 60,00 m2, por falta de título nem condenar os Recorridos à sua desocupação.

19.º A sentença recorrida enferma de nulidade, de acordo com o preceituado no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, porquanto existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final.

20.º A sentença incorreu na violação das disposições legais previstas nos artigos 84.º, n.ºs 1, al. f) e 2, da CRP, 202.º, n.º 2 do Código Civil, artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 289/73, de 6 de junho.

2.2. Os apelados contra-alegaram, concluindo que:

1 As conclusões 1 a 10 do recorrente gravitam em torno do articulado superveniente que pretende ver admitido depois de ver alterada matéria de facto, que ouvida não merece qual reparo a decisão do tribunal “a quo”.

2. Os factos não são supervenientes à entrada da petição em juízo, têm antes dezenas de anos.

3. O autor ora recorrente do tempo que mediou o recebimento dos documentos do Município 2... em 25 de Maio de 2021 e a entrada da acção em juízo em final de Agosto do mesmo ano, decorreram três meses, tempo mais que suficiente para localizar os documentos e não fazer imputações de tipo calunioso aos réus ora recorrentes como o fizeram.

4. Aliás, os documentos deviam ter sido obtidos logo que começaram a esboçar a ciclovia, ciclovia que devia ter seguido pela via pública como o defendeu o Presidente da Junta de Freguesia mesmo em sede de audiência como resulta do seu depoimento.

5. Ciclovia em que dois tercos do traçado passa pela via pública sem a necessidade de invadir propriedade privada como é o caso. Faixa de terreno destinada a zona verde conclusões 11 a 17

6. A faixa de terreno de 60 m2 conjuntamente com idênticas faixas de lotes contiguos insere-se na faixa de terreno destinada a pequena zona verde constituida por árvores de pequeno porte e arbustos situada entre os lotes 1, 2, 3 e 4 e os armazéns e que o Ministério da Habitação e Obras Publicas, Serviços Regionais Urbanísticos do Norte, condicionaram a aprovação do loteamento, cf doc. junto com o articulado superveniente e que o douto Tribunal “a quo” considerou como elemento de prova atento o princípio do inquisitório.

7. Lê-se em diversas sítios no processo de que seria uma servidão de protecção à unidade industrial mas isso não passou de uma invenção e alegação, porque a natureza dessa faixa de terreno longitudinal contigua aos lotes e armazés foi para zona verde.

8. Note-se que quando a Câmara 2... deliberou no sentido da desafectação e porque não tivesse cumprido o requisito de ouvir a CCRN a propósito da alteraçao ao alvará o Tribunal Central Administrativo do Porto considerou nula tal decisão.

9. Quando o autor pretendeu alterar o loteamento e dar um destino diferente de tal faixa e zona verde para um troço de ciclovia, desrespeitou os comandos urbanísticos e encontra-se tal matéria a ser investigada em sede própria.

10. É verdade que os reus ora recorrentes construiram parte da garagem em parte dessa zona verde, mas tal construção foi devidamente licenciada e autorizada como se encontra profusamente documentado nos autos.

11. O DL nº 289/73 não tinha uma disposição como o artº 68 do actual Regime Juridico da Urbanização e Edificação que viesse a por em crise o acto de licenciamento da construção, termos em que a mesma se consolidou com toda a eficácia jurídica sem que possam ser destruídos os seus feitos cumprindo as factispecies.

12. Quanto à falta de dominialidade já se referiu que a faixa de terreno destinada a zona verde ainda que, quem defenda a tese da transferência para o domínio público nos termos da legislação da época, nos termos da legislação actual e que já data desde 1999, tais zonas verdes passaram a constituir zonas comuns dos lotes como acima já foi referido.

13. E se de facto uma parte da garagem se encontra edificada em parte da faixa de terreno destinada a zona verde, deu-se uma acessão industrial imobiliária nos termos do art. 1340.º do Código Civil.que é uma das formas de aquisição originária da propriedade.

14. Será de acrescentar que a conduta dos réus e ora recorridos não merece o minimo reparo. A área do lote foi corrigida nas instalações da Câmara Municipal 2... como se alcança do documento junto com a p.i. e depois com a contestação e que o réu marido em sede de audiência esclareceu devidamente que o douto tribunal “a quo” decidiu ouvir conforme pode ser constatado. Além disso, a construção foi devidamente licenciada e a Câmara Municipal 2... pretendeu alterar o loteamento e desafectar do domínio público tal faixa verde mas não cumpriu as formalidades legais ouvindo a CCRN ou Comissão da Coordenação da Região Norte, como o autor e ora recorrente não cumpriu, porque bem sabia que a autorização não lhe seria dada.


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3. Questões a decidir

1. Apreciar a nulidade da sentença

2. Apreciar o recurso da matéria de facto quanto à admissão do articulado superveniente

3. Caso seja necessário apreciar depois o recurso da matéria de facto sobre a factualidade desse articulado.

4. averiguar por fim a bondade da solução jurídica invocada pela apelante quanto à forma necessária para a transmissão da área de 60 m2 no decurso do loteamento.


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4. Da nulidade da decisão

Pretende o apelante que “A sentença recorrida enferma de nulidade, de acordo com o preceituado no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, porquanto existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final.

O vício de nulidade do acórdão alicerçado na contradição entre os fundamentos e a decisão, mostra-se previsto na alínea c), do n.º 1 do art.º 615.º, “ex vi” do art.º 666.º, ambos do CPC.

Este existe quando há um “vício lógico na construção da sentença”, pois, querendo a lei processual que o juiz justifique a sentença, os fundamentos que este invoca para a sua decisão “… conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.[1]

Ora, é evidente que nada disso acontece no caso presente, sendo que a sentença é tudo menos nula com esse fundamento.

Esta descreve a situação, enuncia as duas teses em confronto e termina por julgar o pedido improcedente com base na posição que acolheu e cuja consequência é precisamente esta.

Indefere-se, pois, a arguição da nulidade.


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5. Do recurso da matéria de facto

Este diz respeito, à produção de prova relativa à superveniência subjectiva do documento.

Na valoração da prova o tribunal aplica, em primeiro lugar, regras de valoração social fundadas nas regras da experiência à luz das quais existem meios de prova “naturais” e outros pouco habituais para comprovar certas realidades.

Está em causa a data concreta da remessa e recebimento de processos administrativos entre duas autarquias.

Parece, pois, natural que essa realidade esteja comprovada por documentos nos quais conste o termo de remessa e recebimento desses processos e a data concreta em que isso ocorreu.

Opta, porém a apelante por tentar demonstrar essa realidade através de prova testemunhal sem que, note-se tenha explicado sequer a inexistência dessa prova documental “natural”.

4 Do facto relativo à superveniência do documento.

Pretende a autora que o facto não provado nº 1 seja alterado passando a ser provado nos seguintes termos: «Os funcionários do departamento urbanístico do autor inteiraram-se dos teores dos documentos dos procedimentos referidos no facto provado n.º 2, em agosto de 2022.».

Pretende a autora demonstrar essa realidade com base no depoimento dos seus funcionários[2].

Note-se, porém, que o a primeira delas (Sr. Arquitecto HH) afirma “Relativamente ao licenciamento, nós só conseguimos obter os documentos, se não estou em erro, em 2022, porque isto era um processo do Município 2... e por conseguinte nós não os tínhamos, eles só vieram em 2022. Teríamos conhecimento de casos de projetos ao lado ou próximo que tinham a planta de loteamento” (…) Vinham assim camiões com esses processos, que foram para o arquivo, estão a ser tratados, estão a ser registados um a um, pronto, um processo mais moroso, mas que é assim que se faz.(quando têm concretamente conhecimento deste processo de licenciamento?) Se não estou em erro, dezembro, janeiro, novembro, por aí, do mesmo ano.

É, portanto evidente que essa superveniência não foi comprovada por meio testemunhal, pois, se o articulado superveniente foi apresentado em 13.12.22 a descoberta dos processos nunca poderia ter ocorrido posteriormente e, pelos vistos, a mesma poderia, nesta tese, ter ocorrido em Novembro de 22.

Acresce que essas testemunhas admitem que “é um processo longo e moroso”, e que os processos chegaram em 2022. Logo teremos de concluir que entraram nas instalações da autora e aí foram entregues fisicamente, pelo menos, alguns meses antes de dezembro de 2022.

Isto, porque “fizemos um acordo” (Sr. II) e “penso que foi no final de 2022 ou meados ou o princípio de… do outono de 2022”. Sendo certo que “quando ouvi uma conversa numa, numa… numa televisão, por um senhor presidente da junta da, da… da freguesia, a dizer alguns disparates, quanto a mim, a dizer que ele é que tinha razão, que aquilo estava certo e tudo, o que é que fiz? Fui fazer recolha, que é essa recolha que temos aqui no processo, fui fazer recolha, com cópias, para… para que apresente… Porque os membros da assembleia começaram-me a questionar, para eu dizer o que é que se passava e qual era, no entender da Câmara”.

É, pois, evidente que os depoimentos testemunhais são vagos, imprecisos e não logram situar no tempo concreto a entrega desses processos.

Reiteramos que em regra as comunicações entre municípios não se demonstram com perguntas testemunhais, pois, por certo existem documentos comprovativos, tal como admitem algumas testemunhas (acodo).

Acresce por fim que é a própria autora que no art. 8º, do seu articulado superveniente alega: “Na pendência dessa acção, e no dia 25.05.2021 o Município 2... enviou diverso processos de loteamento e de licenciamento de obras particulares fpara os serviços administrativos do Município 1...”.

Ou seja, existe uma manifesta contradição entre o depoimento das testemunhas (2022) e a realidade concreta alegada pela parte o que demonstra bem a falibilidade dos depoimentos testemunhais apresentados.

É, portanto seguro e evidente que essa factualidade não pode ser alterada, tanto mais que nunca foi concretizada uma data e afinal parece que a entrega ocorreu quase 18 meses antes da apresentação do articulado.

Improcede, pois, o recurso sobre a matéria de facto.


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3. Da admissão do articulado superveniente.

Face aos factos provados nesta matéria [3] é manifesto que o mesmo não pode ser admitido por violar os limites temporais do n.º 3 do artigo 588.º do CPC, pelo que se mantém a decisão do tribunal a quo


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4. Não admitido o articulado não é necessário/possível alterar a matéria de facto pelo que essas conclusões se declaram prejudicadas.

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5. Motivação factual

1. O autor é uma autarquia local de natureza territorial.

2. O autor foi criado pela Lei nº Lei 83/98, de 14 de dezembro, publicada no Diário da República n.º 287/1998, Série I-A de 1998-12-14.

3. O autor sucedeu ao Município 2..., nos seus direitos e obrigações.

4. O Município 2... aprovou o processo de loteamento n.º ...43/82 e emitiu o Alvará n.º 15 por deliberação da Câmara Municipal 2..., para a operação urbanística de loteamento incidente no prédio sito nos lugares da Estação e ..., da Freguesia ..., ..., com as confrontações Norte com Estrada Nacional, CC, DD e outros, do Sul com EE, do Nascente com a linha férrea e Herdeiros de FF e do Poente com caminho de servidão e GG, o qual está inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ... sob os artigos ...76 e ...77 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob os nºs ...37 e ...73, livro ...3, folhas 99 a 100, e consistindo em alteração e transformação fundiária do mesmo.

5. Mais tarde esta Câmara Municipal 2... emitiu um outro alvará n.º .../86 de 1986.04.09, em substituição desse alvará ...5/81, no mesmo processo de licenciamento.

6. O referido alvará impôs a cedência de áreas, a extrair do prédio loteado, como obrigação do loteador, concretamente as áreas de 2554m2, 2290m2, 1336m2 e 285m2, destinadas respetivamente a arruamentos, passeios, aparcamentos, zonas verdes, todas identificadas na planta a que se refere no seu n.º 1.

7. Mais tarde, Câmara Municipal 2..., por deliberação de 03.08.1994, deliberou proceder à desafetação do domínio público de parte dessa área cedida, designadamente, da parcela de terreno com a área de 258,50m2, sita no lugar ..., Freguesia ....

8. A faixa de terreno referida no facto provado n.º 7 integra-se no prédio para o qual foi aprovado o loteamento.

9. Em 11.08.1994 foi publicitado edital a dar a conhecer aquela deliberação de 3.08.1994.

10. JJ e EE apresentaram reclamações contra essa deliberação, alegando que a dita parcela de terreno não pertencia ao domínio público ou privado da Câmara, antes sendo sua propriedade.

11. Entretanto, um desses reclamantes, EE interpôs recurso contencioso de anulação da aludida deliberação da Câmara Municipal 2..., que correu termos no Tribunal Administrativo de Círculo do Porto.

12. Essa ação foi julgada procedente por sentença transitada em julgado.

13. Esse Tribunal Administrativo declarou nula a referida deliberação de 03.08.1994, por entender que a mesma consubstanciava uma alteração ao loteamento (processo de loteamento nº ...43/82) e que qualquer alteração obedece, designadamente em matéria de pareceres, aos trâmites previstos para a emissão do alvará, pelo que a deliberação em causa deveria ser precedida de parecer da CCRN.

14. EE e mulher, KK, instauraram também, ação cível que correu termos no Tribunal de Círculo Judicial de Santo Tirso, contra os aqui réus.

15. Essa ação findou com sentença, de cujo dispositivo consta: “a. Ser a ação julgada improcedente na parte em que os autores pediam o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno denominada em segundo lugar na resposta ao quesito 1, tal como foi julgada improcedente a ação na parte em que os autores pediam que se declarasse que os réus tinham violado o disposto no art. 60 do RGEU, absolvendo nessa parte os réus. b. Ser julgada procedente a ação para declarar que os autores são proprietários da faixa de terreno que na resposta ao quesito 1 vem identificada em primeiro lugar. c. Ser julgada procedente a ação para o efeito de condenar os réus a demolirem as construções que fizeram na referida segunda faixa, recuando os logradouros dos lotes de que são donos para os limites dessa segunda faixa tal como vem caracterizada na resposta ao quesito 1. d. Serem os autores condenados a pagar multa de 178€ por litigância de má-fé reportada ao seu pedido que incide sobre a denominada segunda faixa.”

16. Tal sentença foi parcialmente anulada pelo Acórdão da Relação do Porto de 3.11.2005, confirmando-se a decisão recorrida, nos seguintes termos: “ (…) - Julgar improcedente a apelação dos AA. e procedentes as apelações dos RR. e, em consequência: - Declara-se nula a sentença recorrida na parte em que julgou procedente o pedido de condenação na demolição das construções; - Revoga-se a sentença recorrida nessa parte, julgando-se improcedente esse pedido de condenação; - Mantem-se o mais decidido quanto ao mérito.”

17. Aquando da implementação do tramo 6 do projeto do “Corredor Ciclável dos ...”, verificou-se que, de acordo com o extrato da planta, parte daquele percurso se encontra ocupado pelos réus, proprietários do lote n.º 3, que está abrangido pelo alvará de loteamento n.º .../86, de 09.04.1986, promovido por A..., Lda.

18. Os identificados réus apossaram-se de parte da parcela de terreno referida no facto provado n.º 17, em uma área não concretamente apurada.

19. E, essa parcela de terreno encontra-se identificada como parcela ...5, no projeto referido no facto provado n.º 17.

20. O que vão fazendo sem qualquer título emitido pelo Município 1....

21. O réu AA requereu ao autor o licenciamento de obra particular - uma edificação destinada a habitação unifamiliar, de cave, r/ c e 1.º andar ao abrigo do proc.º n.º 1194/90 para o lugar ..., lote n.º 3 do referido loteamento, atual ...).

22. Esse pedido foi deferido por despacho de 23.01.1991, do Presidente da Câmara Municipal 2..., tendo sido emitido o alvará de licença de construção n.º ...52..., a 11.01.1991.

23. Os réus, proprietários do lote n.º 3, foram notificados, pelo autor, para reporem respetivas vedações nos termos do loteamento onde se inserem, a fim de poder ser implantado o mencionado tramo 6 do já em construção “Corredor Ciclável dos ...”, através do ofício ...29/2020, de 28 de maio de 2020, estabelecendo um prazo de 20 dias, e do ofício ...04/2021, de 19.03.2021.

24. Não se tendo verificado, até à data, qualquer diligência no sentido de dar cumprimento ao notificado aos réus.

25. A construção licenciada no seguimento de requerimento por parte dos réus proprietários do suprarreferido lote n.º 3, não se encontra totalmente implantada dentro dos limites previstos no respetivo alvará de loteamento.

(Da contestação)

26. A decisão proferida pelo Tribunal da Relação e referida no facto provado n.º 16, foi mantida pelo Supremo Tribunal de Justiça, negando o recurso de revista.

27. A planta do primitivo alvará só previa um coberto para aparcamento, mas depois de obter declaração de concordância do lote vizinho, e que foi junta ao Processo de Obras, a Câmara Municipal 2... autorizou a construção da garagem.

28. A área constante da certidão matricial original, relativa ao lote n.º 3, foi alterada, a pedido dos réus, para 342 m2, por requerimento (Mod. 1 do IMI) apresentado em 11.06.2019 nas Finanças informando que o prédio agora inscrito teve origem no art.º ...41, que só tinha a área de 282m2 e que estava inscrito apenas como terreno para construção.

29. A área de 342 m2 constava do requerimento de licenciamento de obras que deu entrada em 30.07.1991, na Câmara Municipal 2....

(Factos instrumentais)

30. Consta do teor do alvará de loteamento n.º 15, 28.04.1981: “1. É autorizada a constituição de 38 lotes de terreno, numeradas de 1 a 38, com as áreas de (…) lote n.º 2 com 285m2, lote n.º 3 com 282m2 (…) 3.Para instalação de equipamentos gerais é cedida a parcela de terreno com a área de 1220m2, já integrada no património municipal por Contrato n.º ...0, lavrado a fls. 39 do Livro n.º ...8 de Notariado Privativo desta Câmara, em 18 de março de 1981. São também cedidas as áreas de 2434m2, 1837m2 e 6001,50m2 destinadas a arruamentos, baías de estacionamento e zonas verdes, todas identificadas na planta a que se refere o n.º 1. (…) ”

31. Consta do teor do alvará de loteamento n.º 8, de 09.04.1986: “1. É autorizada a constituição de quarenta e um lotes de terreno, numerados de um a quarenta e um, com as áreas de, lote n.º 2 com 285m2, lote n.º 3 com 282m2 (…) Da concessão do presente alvará, que altera e substitui, a parte desta data, o alvará n.º 15 de 28 de Abril, de 1981 (…).”

32. Consta do teor do relatório pericial, elaborado em agosto de 2023, a seguinte conclusão: “Pergunta 6 Os proprietários dos lotes 13 e 3 vedaram os lotes em desacordo com os limites aprovados no Loteamento, ocupando uma faixa de terreno do domínio público que não integra estes lotes do loteamento? Resposta: Na data da visita ao local, o lote nº...3 apresentava-se totalmente vedado, estando os seus limites em sintonia com os limites previstos no alvará de loteamento nº.../86 emitido 09-04-1986; (Ver Fotografia nº16 e 17). No que se refere ao lote nº ..., na data da visita ao local, o mesmo apresentava-se vedado em desacordo com os limites previstos no alvará de loteamento nº.../86 emitido 09-04-1986, nomeadamente o seu limite posterior e parte do seu limite lateral nascente e lateral poente os quais se apresentavam em desacordo com os limites previstos e aprovados no alvará de loteamento nº.../86 emitido 09-04-1986, fazendo com que o lote no local possua uma área superior á prevista e aprovada no referido alvará de loteamento; Ver Fotografia nº18 e 19) ”.


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6. Motivação Jurídica

O Decreto-lei nº 46673, de 29 de Novembro, que no seu preâmbulo esclarece que “impõe-se facultar às autoridades administrativas responsáveis os meios legais que as habilitem a exercer eficiente intervenção nas operações de loteamento urbano”, definia o loteamento urbano, como “a operação ou o resultado da operação que tenha por objecto ou tenha tido por efeito a divisão em lotes de um ou vários prédios fundiários, situados em zonas urbanas ou rurais, para venda ou locação simultânea ou sucessiva e destinados à construção de habitações ou de estabelecimentos comerciais” (artigo 1º)[4].

No Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro, loteamentos urbanos são definidos como “As acções que tenham por objecto ou simplesmente por efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, destinados imediatamente ou subsequentemente á construção”, artigo 1º, nº 1 alínea a),

Em 1991, é publicado o Decreto-Lei nº 448/91, de 29 de Novembro, alterado, pelo Decreto-Lei nº 334/95, de 28 de Dezembro, no qual a definição de operação de loteamento, consiste em “Todas as acções que tenham por objecto ou por efeito a divisão em lotes, qualquer que seja a sua dimensão, de um ou vários prédios, desde que pelo menos um dos lotes se destine imediata ou subsequentemente a construção urbana”.

Em 1999, o Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro (RJUE), (que visa estabelecer o regime jurídico da urbanização e edificação, (cfr. artigo 1º do RJUE), é uma compilação de diversos diplomas, na tentativa de sistematizar num só diploma diversos regimes.

Neste diploma alguma doutrina entendia [5] que o ius aedificandi fazia parte do conteúdo do direito de propriedade e para outros tratava-se de uma faculdade concedida por acto administrativo.

Nestes termos e em qualquer destas teses o alvará de autorização de loteamento, é facto relevante para efeito de registo nos termos dos arts 2º, nº 1 alínea d) e 54º, do CRP[6]

E, por causa disso as especificações nele previstas vinculam a câmara, o proprietário e ainda os adquirentes dos lotes nos termos do artigo 77, nº 3 do RJUE.

Porque, além do mais, o mecanismo do registo predial tem “como fim prioritário do registo predial dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis”.

In casu face à data do alvará de loteamento é aplicável o DL 289/73, de 6 de junho.[7]


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2. A problemática da formalidade para transferência do direito de propriedade de áreas para a esfera administrativa.

Este diploma não se previa que a integração das áreas cedidas, a realizar de forma obrigatória fosse automática.

Nesta querela parece-nos claro que nem o DL 289/73, de 6 de junho regula qualquer efeito automático de transmissão e que, na data, o art. 80º, do Código Notariado dispunha[8] que “1 - Celebram-se, em geral, por escritura pública, os actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis”.

Esta questão, depois, de 1991 foi resolvida por intervenção legislativa[9], já que o Decreto-Lei nº 448/91 expressamente permitiu essa transferência da propriedade através do documento (alvará) de loteamento emanado pela entidade administrativa[10].

Mas no âmbito anterior levantou-se a questão de saber se o acto de transferência de parte dos terrenos objecto de loteamento estaria submetida a essa disposição ou, pelo contrário, poderia ser valida e eficaz apenas através dos instrumentos administrativos. [11]

Mas mesmo sendo interpretativa[12] a nova disposição não poderia alterar os requisitos e forma de transferência das áreas do loteamento já realizadas através da emissão de alvará.

Porque, bastará dizer que o primeiro dos diplomas referidos continha uma norma de direito transitório (art. 18) nos termos do qual: “Aos loteamentos anteriores à publicação deste decreto-lei, ou nesta data em curso, que não se integrem em plano ou anteplano de urbanização aprovado ou que não tenham sido autorizados pela câmara municipal ou pelo Ministério das obras Públicas, são imediatamente aplicáveis, nos termos do presente decreto-lei, as disposições nele contidas na parte relativa aos lotes de terreno onde ainda não se tenham iniciado as edificações a que alude o artigo 1”.

E o novo diploma de 1991 não.

Por causa disso levantou-se a questão de saber se até 1991, era ou não necessária a realização de escritura pública para a concretização das cedências obrigatórias para o município previstas em operações de loteamento urbano.

Há muito tempo atrás sufragamos, tal como o tribunal a quo, a posição negativa exigindo a forma geral aplicável à transmissão de imóveis.

E, teremos de notar que essa interpretação corresponde à do nosso mais alto tribunal.

Na verdade o Ac do STJ de 1.12.2015, nº 7815/05.1TBSTB.S1 (Nuno Cameira) decidiu que: “Às cedências de áreas e terrenos, devidas por um particular a um Município, previstas em alvará de loteamento emitido em 1989, aplica-se o DL n.º 400/84, de 31-12. O art. 16.º, n.º 2, do DL n.º 448/91, de 29-11, ao consagrar que a transmissão para o domínio municipal de parcelas cedidas no âmbito de loteamentos opera automaticamente: não constitui norma interpretativa, antes norma inovadora, não sendo susceptível de se ter por integrada no DL 400/84 (art. 13.º, nº 1, do CC); e, também não disciplina o conteúdo de qualquer relação jurídica já constituída e subsistente, abstraindo dos factos que a originaram, não sendo aplicável retroactivamente (art. 12.º, n.º 2, do CC). Embora o DL n.º 400/84 não regulasse expressamente a forma da transmissão das parcelas cedidas, não se pode dizer que existisse qualquer lacuna, por o então CN impor a escritura pública e ser essa a forma uniformemente acolhida pela doutrina e pela jurisprudência”.[13]

Do mesmo modo, a doutrina mais relevante na matéria[14] concorda também que nesse regime, aplicável aos autos o alvará não tinha o efeito translativo da propriedade.[15]

Sendo aliás que os factos instrumentais demonstram que o próprio ente administrativo adotou essa tese, pois, quanto ao primeiro loteamento elaborou uma escritura, quanto ao segundo já se bastou com a emissão do alvará.

Logo teremos de concluir que os 60 m2 objecto desta acção, caso façam parte do segundo alvará[16] não poderiam integrar o domínio público porque essa transferência não foi realizada de acordo com o formalismo vigente e exigível na data.


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Teremos de notar, por fim, que mesmo adoptando outra tese relativa às exigências formais de transferência [17] nunca ocorreu neste caso qualquer efectiva afectação pública do terreno. Ou seja, esse espaço não foi concretamente usado para qualquer fim.

Depois, da matéria de facto logramos determinar se a área reinvindicada está a ser efectivamente ocupada pelos RR.

Nessa medida note-se ser absolutamente certo que o lote 13 não ocupa qualquer área para lá dos seus limites (facto 32).

Quanto ao lote 3 apesar de estar demonstrado que tem uma área superior aos seus limites não está demonstrado que essa área corresponda a parte do terreno cedido por escritura pública à autora; que faça parte da restante parte de terreno cedido através do alvará ou, até, que diga respeito a qualquer outro lote vizinho

Portanto, a autora não logrou comprovar a efectiva violação do seu direito, como lhe competia (art. 342º, do CC).


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3. Da aquisição originária e abuso de direito

Porém, esta situação não impede a utilização dos institutos gerais do nosso sistema através das formas de aquisição originária que até é a prevalente[18].

Mas, neste caso a autora nada alegou e por isso poderá até estar demonstrado que o possuidor da faixa de terreno é a parte contrária.

Quanto ao abuso de direito (o qual é de conhecimento oficioso) diremos que o art. 334.º, do CC, dispõe que: “ É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Ora, a expressão “manifestamente”, ainda que interpretada como mera desproporcionalidade relevante impede a utilização deste instituto no caso presente.

Bastará dizer que: “O exercício ilegítimo de um direito subjetivo privado, por abuso de direito, só será manifesto e censurável, quando esse desempenho, para além de contrariar um dos seus critérios específicos (boa fé, bons costumes, finalidade económica ou social), conduzir, em concreto e atendendo à globalidade dos acontecimentos, a uma injustificada desproporção entre o benefício decorrente desse direito e a desvantagem resultante do correspondente dever para a contraparte, não surgindo aquele ou este, como necessários, adequados, na justa medida e para assegurar um interesse legítimo”[19].

In casu, não foram alegados factos passíveis de enquadrar este instituto.

4. Conclusão

Apesar de estar demonstrada a aparente ocupação ilegal de uma área de domínio público (e note-se que a acessão pressupõe sempre a boa fé), devido a um lapso dos serviços da autora essa aquisição não cumpriu os requisitos formais. O tribunal oficiosamente procurou ainda proteger o interesse público através de vários institutos, mas devido à lacuna de factos alegados e provados e ao facto de nenhuma obra ter sido realizada nesse terreno não é possível, nesta acção, efetivar essa proteção.

Razões pelas quais se terá de concluir pela improcedência da apelação.


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7. Deliberação

Pelo exposto este tribunal colectivo, julga a presente apelação não provida e, por via disso, confirma a sentença recorrida.

Custas a cargo da apelante porque decaiu inteiramente.


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Paulo Duarte Teixeira

João Venade

Maria Manuela Machado

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[1] Ac do STJ de 25.5.23, nº 1864/21.0T8AGD-A.P1.S1 (Sousa Pinto).
[2] Cujos depoimentos usaremos através das transcrições da apelante.
[3] Que: “No dia 25.05.2021, a Câmara Municipal 2... comunicou ao autor o envio, ocorrido em 18.05.2021, de todos os processos de loteamento urbanístico, respeitantes à freguesia ..., no qual se encontravam incluídos os procedimentos de loteamento ...43/82, titulado pelo alvará ...5, de 28.04.1981, entretanto alterado e substituído pelo alvará ..., de 09.04.1986, e de construção, titulado pelo alvará ...52..., de 11.01.1991.
Que 3. Os réus apresentaram a contestação na data de 12.10.2021.
E que 4. O autor apresentou o presente articulado superveniente na data de 13.12.2022, acompanhado de meios probatórios.
[4] O preâmbulo deste diploma é revelador das intenções legislativas: “Em várias regiões do País em que se está processando ou simplesmente se presume que venha a processar-se em futuro próximo intenso desenvolvimento urbanístico, tem sido verificada, com frequência crescente, actividade especulativa de indivíduos ou de empresas para o efeito constituídas, visando o aproveitamento indiscriminado de terrenos para a construção urbana. Assim, têm vindo a formar-se, por vezes através de operações muito vultosas, aglomerados habitacionais criados sem sujeição a qualquer disciplina, os quais prejudicam ou contrariam os planos oficiais para o aproveitamento dessas regiões. Por carência de meios legais adequados as câmaras municipais e a Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização não têm podido exercer em tais casos acção eficaz visando a disciplina e a fiscalização dessas actividades, de modo a obstar a criação de núcleos habitacionais que contrariam o racional desenvolvimento urbano do território e a evitar que se efectuem operações de loteamento sem que prèviamente estejam asseguradas as indispensáveis infra-estruturas urbanísticas. Estas actividades especulativas, além de lesarem, por vezes, os compradores de boa fé, criam para as câmaras municipais sérios problemas de ordem financeira, pois mais cedo ou mais tarde elas serão chamadas a realizar importantes obras de urbanização, impostas pela necessidade de se dotarem os referidos núcleos habitacionais com os indispensáveis acessos, redes de abastecimento de água e de drenagem de esgotos, espaços livres, etc., e procederem à sua conservação, assumindo encargos que não têm qualquer compensação e que, na maior parte dos casos, não podem ser suportados pelo erário municipal sem prejuízo dos seus programas normais de actividade”.
[5] Oliveira ASCENSÃO, o Urbanismo e o Direito de Propriedade, in Direito do Urbanismo, INA, Oeiras, 1989, p. 322.
[6] Estas normas dispõem que são factos sujeitos a registo: (art. 2) “d) As operações de transformação fundiária resultantes de loteamento estruturação de compropriedade e de reparcelamento, bem como as respetivas alterações; (art. 54) “os registos das operações de transformação fundiária e das respetivas alterações são efetuados com base no alvará respetivo, no recibo de admissão de comunicação prévia ou em outro documento que legalmente comprove aqueles factos, com individualização dos lotes ou parcelas”.
[7] In casu o procedimento de loteamento em causa teve a emissão de um primeiro alvará, identificado pelo n.º 15, na data de 28.04.1981, tendo este sido alterado e substituído por um posterior alvará, identificado pelo n.º 8, de 09.04.1986.
[8] Na redacção aplicável.
[9] Quanto aos requisitos gerais da qualificação como lei interpretativa, Ac. do S.T.J. de 14.03.2019, Proc. 582/18.0YRLSB.S1 (Nuno Pinto Oliveira): - que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e, - que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.
[10] O artigo 16º, nº 1, do DL nº 448/91, de 29 de novembro, dispõe que “o proprietário e os demais titulares de direitos reais sobre o prédio a lotear cedem gratuitamente à câmara municipal parcelas de terreno para espaços verdes públicos e de utilização coletiva, infra-estruturas, designadamente arruamentos viários e pedonais, e equipamentos públicos, que, de acordo com a operação de loteamento, devam integrar o domínio público”, acrescentando o seu nº 2 que “as parcelas de terreno cedidas à câmara municipal integram-se automaticamente no domínio público municipal com a emissão do alvará e não podem ser afetas a fim distinto do previsto no mesmo,…”, contendo o alvará, de acordo com o disposto no artigo 29º, nº 1, f), “a especificação das cedências obrigatórias, sua finalidade e especificação das parcelas a integrar no domínio público da câmara municipal”. (nosso sublinhado).
[11] Teremos de notar que essa redacção mesmo que assuma natureza de lei interpretativa não é de aplicação retroactiva a operações de loteamento com alvarás emitidos anteriormente. Entre vários Ac do STJ de 10.4.2018, nº 5979/12.7TBMTS.P1.S1 (Helder Roque). Em especial Ac do STJ de 21.12.2015, nº 7815/05.1TBSTB.S1 (José Gameiro).
[12] De notar que a nota da sentença que aponta a existência de várias teses resulta de um lapso de pesquisa não verificado. Na verdade, o Ac do STJ de 10.4.28 não abordou essa questão (apesar de dos factos resultar que não existiu escritura pública) pelo que nunca pode ter força de precedente. Pelo contrário o Ac do STJ de 21.12.2015 analisou expressa e longamente a questão concluindo que nunca poderia ser uma lei interpretativa porque nem sequer havia divisão na jurisprudência.
[13] No mesmo sentido os Acs do STJ de 26/4/07 nº 1258/06); e de 20/3/14 nº Procº 5528/05.TLRS.L1.S1.
[14] Fernanda Paula Oliveira, Das Cedências e Compensações para o Domínio (Público) Municipal in Estudos de Direito do Ambiente e de Direito do Urbanismo (Intervenções no Curso de Pós-Graduação de Especialização em Direito do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Urbanismo, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Novembro de 2011 (www.icjp.pt), p. 265 e segs. Acedido e disponível em https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/ebook_ambienteurbanismo_completo.pdf
[15] (no caso até da comunicação prévia) “A este propósito, determinava o n.º 3 do artigo 44.º, na versão anterior ao Decreto-Lei n.º 26/2010, que o referido instrumento notarial devia ter lugar antes da “formação” do acto de admissão da comunicação prévia”.
[16] Este determinava a cedência, além das áreas referidas no anterior alvará as “áreas de 2554m2, 2290m2, 1336m2 e 285m2, destinadas respetivamente a arruamentos, passeios, aparcamentos, zonas verdes, todas identificadas na planta a que se refere o n.º 1”.
[17] O já citado Ac. STJ, P.5979/12.7TBMTS.P1.S1, de 10.04.2018, que em rigor não aborda a forma de transmissão mas apenas a dimensão da mesma.
[18] Ac do STJ de 24.5.2018, nº 455/12.0TVPRT.P1.S1 (Fernanda Pereira): “ O titular da aquisição derivada do direito de propriedade sobre um bem não está impedido de invocar o reconhecimento desse direito com base na aquisição originária do mesmo. São duas vias ou modalidades de aquisição de direitos, cabendo ao autor escolher uma delas ou apresentá-las sob a veste de pedido principal e pedido subsidiário.
[19] Ac da RP de 2.12.21, nº 8271/17.78VNG (Paulo Duarte Teixeira/mesmo relator).