INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
REMOÇÃO
FACTOS COMPLEMENTARES OU CONCRETIZADORES DOS FACTOS ESSENCIAIS
Sumário

I - Embora as partes continuem oneradas com o dever de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e os que sirvam de suporte às excepções invocadas, o poder de cognição do tribunal em matéria de facto não se acha limitado ao alegado pelas partes nos seus articulados, podendo o mesmo conhecer factos que apenas venham a ser alegados após os articulados em resposta ao convite ao aperfeiçoamento e/ou que não sejam sequer alegados, mas resultem da instrução da causa, podendo neles, em qualquer dessas circunstâncias, fundar a decisão que venha a proferir.
II - Tratando-se de factos complementares ou concretizadores dos factos alegados, exige-se, para tanto, que tenham os mesmos tal natureza, que a notícia (no processo) da sua existência resulte da prova produzida durante a instrução da causa e, por último, que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre eles antes de o tribunal os decidir.
III - As funções de cabeça de casal devem ser desempenhadas com seriedade, bom senso e diligência.
IV - Justifica-se a remoção do cargo de cabeça de casal quando este incumpra, com gravidade, os deveres funcionais que a investidura do cargo sobre si faz recair.

Texto Integral

Processo n.º 11449/21.5T8PRT-B.P1

Tribunal Judicial do Porto

Juízo Local Cível do Porto – Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

Nos autos de inventário que correm termos por óbito de AA, falecido no dia ../../2011, e de BB, falecida no dia ../../2018, o requerente CC suscitou o incidente de remoção da cabeça-de-casal DD, sustentando, em síntese, que esta padece de doença de foro psiquiátrico o que a torna incompetente para o exercício do cargo; e não vem cumprindo pontualmente as funções para as quais foi nomeada, seja os deveres processuais a que está vinculada, seja administrando com diligência os bens da herança.

Ofereceu prova testemunhal e documental.

A cabeça-de-casal exerceu o contraditório.

Sustentou que o prazo de que dispunha para constituir mandatário na sequência da renúncia apresentada pela Senhora Dra. EE apenas começou a correr com a notificação no dia 19 de Janeiro de 2023, que enquanto não decidido o incidente manter-se-ia nas funções de cabeça-de-casal e, quanto à inércia na apresentação da relação de bens, sustentou estar em tempo e justificou a falta até à data da apresentação por estar “privada do convívio com os bens que constituem o acervo a partilha”.

Não ofereceu prova, mas juntou a relação de bens.

O requerente tomou posição e sustentou ser intempestiva a apresentação da relação de bens.

Após produzida a prova oferecida pelo requerente, foi proferida decisão, com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julgo o incidente de remoção procedente e

- Removo DD do cargo de cabeça-de-casal.

- Nomeio CC como cabeça-de-casal.

Custas do incidente a cargo da requerida.

Fixo o valor do incidente em 550.000,00€.

Notifique”.

Inconformada com a referida decisão, dela interpôs a cabeça de casal recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1) A decisão impugnada é passível de recurso nos termos do disposto no art. 627.º, n.º 1 e 629.º, n.º 1, do CPC.

2) O recurso é de apelação, nos termos do disposto no art. 644.º, n.º 2, al. e) e al. h), do CPC,

3) Com subida em separado – art. 645.º, do CPC, a contrário sensu,

4) E efeito suspensivo da decisão – art. 647.º, n.º 3, al. e), do CPC.

5) O Tribunal de 1ª Instância errou ao dar como provados factos essenciais que constituem causa de pedir da remoção do cabeça-de-casal, e não foram alegados pelas partes, designadamente nos pontos 7 a 93 dos Factos Provados.

6) Não obstante o art. 5.º, n.º 2, al. c), do CPC dispor que o juiz deverá considerar os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, tal conhecimento e consideração tem como exceção a factualidade reportada aos factos essenciais que constituem a causa de pedir que sustenta o pedido.

7) Neste sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 18/04/2023, processo 1205/19.6T8VCD.P1.S1, que pode ser consultado em www.dgsi.pt.

8) O Tribunal recorrido, ao julgar provados factos essenciais não alegados pelas partes, que constituem a causa de pedir, e não se enquadram no disposto no art. 5.º, n.º 2, al. c), do CPC, violou o art. 5.º, n.º 1, do CPC e o art. 552.º, n.º 1, al. d), do CPC.

9) O Tribunal recorrido ao julgar provados factos essenciais não alegados pelas partes, que constituem a causa de pedir, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento e a sentença é nula nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. d), do CPC.

10) O Tribunal recorrido errou ao dar como provados, por não impugnados e, por isso, admitidos por acordo, os factos constantes dos pontos 94 a 96 dos Factos Provados.

11) Tais factos são relativos à saúde pessoal da Recorrente;

12) Integram o âmbito de proteção legal (artigo 80º do Código Civil) e constitucional (artigo 26º da Constituição) do direito à reserva da intimidade da vida privada.

13) O direito à reserva da intimidade da vida privada é um direito indisponível.

14) Não podem ser considerados admitidos por acordo factos se não for admissível confissão sobre eles.

15) Não é admissível a confissão que recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis.

16) Os factos em causa deveriam ter sido julgados não provados.

17) O Tribunal recorrido, ao não entender assim, violou o art. 574.º, n.º 2, do CPC e o art. 354.º, al. b), do CC.

18) O Tribunal recorrido errou ao dar como provados os factos constantes do ponto 98 dos Factos Provados, nos termos em que fez.

19) O que o Tribunal recorrido deveria ter julgado provado neste ponto da matéria era que: “DD, até 06/02/2023, não procedeu à participação do recebimento das rendas à Autoridade Tributária no ano de 2022, em nome das heranças.”.

20) É o que resulta em face da prova produzida, designadamente os documentos juntos com o requerimento de pedido de remoção, os documentos juntos com o requerimento com a ref. 37736905 (05/01/2024), e dos documentos que agora se junta.

21) O Tribunal recorrido errou ao considerar que a Recorrente incumpriu a obrigação fiscal de participação de rendas e, consequentemente, violou o seu dever de administração do património.

22) A base factual não é suficiente para o Tribunal recorrido ter retirado tal conclusão/consideração.

23) Não foi alegado nem provado que no ano de 2022, existiam bens na herança que se encontravam arrendados; não foi alegado nem provado a existência de quaisquer contratos de arrendamento; não foi alegado nem provado os imóveis sobre que incidiam esses contratos; não foi alegado nem provado o valor das rendas a que a herança tinha direito por força dos mesmos; não foi alegado nem provado as partes intervenientes em tais contratos.

24) E, não foi alegado nem provado nem o valor efetivamente recebido pela Recorrente a título de rendas das heranças; não foi provado que a mesma estava obrigada a participá-las à Autoridade Tributária em nome das heranças; nem o prazo em que o tinha de fazer.

25) A matéria de facto relativa a esta questão, é insuficiente para que o Tribunal aplicasse o disposto no art. 2086.º, n.º 1, do Código Civil, violando este normativo.

26) O Tribunal recorrido errou ao julgar que a Recorrente incumpriu, nestes autos de inventário, os deveres que a lei processual lhe impõe, com base em factos que não foram alegados pelas partes.

27) O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de remoção do cabeça-decasal nos factos melhor descritos em V) do corpo destas alegações.

28) Tais factos não foram alegados pelas partes, nem o Tribunal podia tomar conhecimento ou considerá-los, oficiosamente, nos termos do art. 5.º, n.º 2, al. c), do CPC, por serem factos essenciais que constituem a causa de pedir da remoção do cabeça-de-casal.

29) O Tribunal recorrido violou o art. 5.º, n.º 1, do CPC e o art. 552.º, n.º 1, al. d), do CPC.

30) O Tribunal recorrido ao fundamentar a sua decisão em factos essenciais não alegados pelas partes, que constituem a causa de pedir, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento e a sentença é nula nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. d), do CPC.

31) O requerimento do Recorrido em que pediu a remoção do cabeça-de-casal, assenta em juízos conclusivos e de valor, desprovido de factualidade suscetível de integrar a causa de pedir do mesmo.

32) No incidente de remoção do cabeça-de-casal, constitui ónus do requerente a alegação e prova de qualquer dos fundamentos previstos na lei (art.º 2086º,nº 1, do Código Civil), não sendo suficiente, quanto à alegação essencial, a referência a factos conclusivos.

33) Para além de não ter alegado os factos essenciais, não alegou a gravidade dos mesmos, nem o prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo.

34) Assim foi entendido pelo TRP, no Ac. de 01/06/2023, proferido no proc. 828/20.5T8LOU-A.P1 e no Ac. de 07/10/2021, proferido no proc. 1450/12.5TJPRT-J.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt,

35) Em face da falta da alegação dos factos essenciais que constituem causa de pedir da remoção do cabeça-de-casal, nunca poderia, o Tribunal recorrido ter decidido a remoção da Recorrente do cargo de cabeça-de-casal.

36) O Tribunal recorrido violou o disposto no art. 2086.º, n.º 1, do CC.

Termos em que V. Exas. Julgando procedente o presente recurso, anulando ou

revogando a decisão recorrida

FARÃO JUSTIÇA”.

O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se a decisão recorrida padece de nulidade;

- se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;

- se, em concreto, se mostram preenchidos os pressupostos para a remoção da ora recorrente do cargo de cabeça de casal.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A. Em primeira instância foram julgados provados os seguintes factos:

1) AA faleceu no dia ../../2011, no estado de casado com BB.

2) Deixou a suceder-lhe pelo menos o cônjuge.

3) O inventariado outorgou testamento, deixando a quota disponível ao cônjuge, se este lhe sobrevivesse.

4) BB faleceu no dia ../../2018, no estado de viúva de AA.

5) Deixou a suceder-lhe a DD.

6) A inventariada outorgou testamento, dispondo da quota disponível a favor do neto CC, na hipótese de sobreviver ao cônjuge.

7) CC requereu o presente inventário em 24 de Julho de 2017, perante o Cartório Notarial da Senhora Dr.ª FF.

8) Indicou DD para o exercício do cabeçalato.

9) DD foi nomeada cabeça-de-casal por despacho de 10 de Novembro de 2017.

10) Frustrada a citação via postal, foi ordenada a citação por contacto pessoal por despacho proferido em 18 de Junho de 2018.

11) Por requerimento de 24 de Setembro de 2018, CC suscitou o incidente de remoção de cabeça-de-casal.

12) Foi proferido despacho datado de 24 de Outubro de 2018, mediante o qual se julgaram improcedentes os fundamentos invocados para a remoção do cabeça-de-casal. No mesmo despacho, equacionou a Senhora Notária a substituição do cabeça-de-casal com fundamento no art. 22.º, n.º2, do RJPI e ordenou a notificação de CC para exercer o contraditório.

13) CC aceitou o exercício do cargo.

14) Foi proferido despacho datado de 20 de Novembro de 2018 pelo qual foi decidida a substituição do cabeça-de-casal e nomeado CC para o cargo.

15) DD juntou aos autos procuração em 14 de Fevereiro de 2019, constituindo como mandatário o Senhor Dr. GG.

16) Em 18 de Fevereiro de 2019 apresentou requerimento nos autos pelo qual arguiu a nulidade da citação, bem como a nulidade decorrente da violação do contraditório no incidente de substituição do cabeça-de-casal, requerendo a sua citação para os termos do inventário e do incidente.

17) DD foi citada em 20 de Fevereiro de 2019.

18) Por requerimento de 2 de Março de 2019, o Senhor Dr. GG declarou renunciar ao mandato.

19) Por requerimento de 15 de Abril de 2019, DD veio informar ter revogado a procuração outorgada a favor do Senhor Dr. GG em 26 de Fevereiro de 2019.

20) DD outorgou procuração a favor do Senhor Dr. HH em 3 de Abril de 2019, junta aos autos em 24 de Abril de 2019.

21) Por requerimento de 25 de Junho de 2019, o Senhor Dr. HH declarou renunciar ao mandato.

22) DD outorgou procuração a favor do Senhor Dr. II em 18 de Setembro de 2019, junta aos autos na mesma data.

23) Por requerimento de 6 de Junho de 2020, o Senhor Dr. Dr. II declarou renunciar ao mandato.

24) DD outorgou procuração a favor do Senhor Dr. JJ em 28 de Agosto de 2019, junta aos autos em 1 de Setembro de 2020.

25) Por despacho proferido em 29 de Outubro de 2020 foi ordenado o desentranhamento do despacho de 2 de Novembro de 2019 e, apreciado o requerimento de 18 de Fevereiro de 2019, foram as apontadas nulidades julgadas improcedentes.

26) DD interpôs recurso do despacho datado de 29 de Outubro de 2020, que indeferiu as nulidades da citação e do processado arguidas pela recorrente.

27) Em 9 de Novembro de 2020, DD requereu a remessa dos autos para o Tribunal.

28) Por requerimento de 12 de Abril de 2021, o Senhor Dr. Dr. JJ declarou renunciar ao mandato.

29) DD outorgou procuração a favor da Senhora Dra. KK em 22 de Abril de 2021, junta aos autos em 12 de Maio de 2021.

30) Por requerimento de 8 de Junho de 2021, a Senhora Dra. KK declarou renunciar ao mandato.

31) DD outorgou procuração a favor do Senhor Dr. LL em 22 de Junho de 2021, junta aos autos em 30 de Junho de 2021.

32) Em 9 de Julho de 2021 foi proferido despacho pelo Notário a determinar a remessa dos autos a este Tribunal.

33) Por requerimento de 2 de Setembro de 2021, o Senhor Dr. LL declarou renunciar ao mandato.

34) DD outorgou procuração a favor da Senhora Dra. MM em 12 de Outubro de 2021, junta aos autos em 14 de Outubro de 2021.

35) Por despacho de 6 de Março de 2022 foi julgado o recurso procedente (apenso A), declarada a nulidade decorrente da omissão da observância do contraditório prévio relativamente à decisão de substituição do cabeça-de-casal e anulado o processado subsequente à omissão do acto.

36) Na mesma data foi proferido despacho nos autos principais mediante o qual se ordenou a notificação de DD para, no prazo de 10 dias, se pronunciar quanto à equacionada substituição da cabeça-de-casal.

37) O incidente foi julgado improcedente em 19 de Maio de 2022 e DD mantida no exercício do cargo e ordenada a notificação da cabeça-de-casal para o efeito previsto no art. 1102.º, n.º1, do nCPC.

38) DD foi notificada em 30 de Maio de 2022, inclusive na sua própria pessoa, para o efeito previsto no art. 1102.º, n.º1, do nCPC, ou seja, para conformar, corrigir ou completar o teor do requerimento inicial e juntar documentos, para apresentar a relação de bens e para apresentar o compromisso de honra.

39) Por requerimento de 1 de Junho de 2022, declarou revogar a procuração outorgada a favor da Senhora Dra. MM, sem assinar o requerimento.

40) Por requerimento de 2 de Junho de 2022 declarou revogar a procuração outorgada a favor da Senhora Dra. MM, assinando então o requerimento.

41) Por requerimento de 2 de Junho de 2022 declarou anular as declarações de revogação referidas em 39) e 40).

42) Por requerimento de 5 de Junho de 2022, a Senhora Dra. MM declarou renunciar ao mandato.

43) Por requerimento de 6 de Junho de 2022, DD declarou “revogar definitivamente” a procuração outorgada a favor da a Senhora Dra. MM.

44) DD foi notificada a renúncia dia 22 de Junho de 2022.

45) DD outorgou procuração a favor do Senhor Dr. NN em 30 de Junho de 2022, junta aos autos na mesma data.

46) O despacho proferido em 19 de Maio de 2022 foi notificado a DD na pessoa do à data actual mandatário constituído, Senhor Dr. NN.

47) Em 7 de Julho de 2022, DD juntou aos autos a declaração de compromisso de honra e requereu a prorrogação do prazo por sessenta dias para juntar a relação de bens.

48) Foi proferido despacho em 8 de Julho de 2022 pelo qual foi deferido parcialmente o requerido e prorrogado o prazo por 30 dias.

49) Por requerimento de 14 de Julho de 2022, o Senhor Dr. NN declarou renunciar ao mandato.

50) Em 28 de Julho de 2022, DD juntou aos autos, por mensagem de correio electrónico, a carta que enviou ao referido Advogado com a menção de constituir o fundamento da renúncia.

51) DD foi notificada a renúncia dia 11 de Agosto de 2022.

52) DD outorgou procuração a favor da Senhora Dra. OO em 20 de Setembro de 2022, junta aos autos na mesma data.

53) Em 7 de Outubro de 2022, DD requereu a prorrogação do prazo para juntar a relação de bens por quinze dias.

54) Foi proferido despacho em 7 de Outubro de 2022 pelo qual foi deferido o pedido de prorrogação do prazo.

55) Ainda em 7 de Outubro de 2022, a Senhora Dra. OO renunciou ao mandato.

56) DD outorgou procuração a favor do Senhor Dr. PP em 10 de Outubro de 2022, junta aos autos no dia 11 de Outubro de 2022.

57) DD foi notificada a renúncia dia 14 de Outubro de 2022.

58) Foi proferido despacho datado de 17 de Novembro de 2022 mediante o qual, evidenciando a inércia no cumprimento do dispondo no art. 1102.º do nCPC, apesar das prorrogações de prazo concedidas, se ordenou a notificação de DD, incluindo na sua própria pessoa para, em 15 dias, suprir a omissão.

59) O despacho referido em 58) foi notificado em 17 de Novembro de 2022.

60) Por requerimento de 29 de Novembro de 2022, o Senhor Dr. PP declarou renunciar ao mandato.

61) DD foi notificada a renúncia dia 30 de Novembro de 2022.

62) Em 5 de Dezembro de 2022, DD apresentou requerimento nos autos, subscrito pela próprio, pelo qual requereu a prorrogação do prazo para constituir mandatário por quinze dias.

63) O requerimento referido em 62) foi apreciado e indeferido por despacho de 6 de Dezembro de 2022.

64) Por requerimento de 14 de Dezembro de 2022, DD veio alegar que por lapso havia requerido prazo para constituir mandatário quando pretendia requerer a prorrogação do prazo para juntar aos autos a relação de bens.

65) DD outorgou procuração a favor da Senhora Dra. EE em 19 de Dezembro de 2022, junta aos autos no dia 20 de Dezembro de 2022.

66) O requerimento referido em 64) foi indeferido e, com referência à circunstância de a cabeça-de-casal ter constituído entretanto novo mandatário, determinado que os autos aguardassem ainda por dez dias.

67) Por requerimento de 3 de Janeiro de 2023, a Senhora Dra. EE renunciou ao mandato.

68) Em 5 de Janeiro de 2023, DD juntou aos autos um requerimento, subscrito pela própria, pelo qual disse expor os fundamentos da renúncia ao mandato pela Senhora Dra. EE.

69) DD foi notificada a renúncia dia 19 de Janeiro de 2023.

70) Foi proferido despacho em 26 de Janeiro de 2023 pelo qual se considerou que, perante o teor do requerimento de 5 de Janeiro de 2023, DD já tinha à data conhecimento da renúncia da Senhora Dra. EE e, ante a falta de apresentação da relação de bens pela cabeça-de-casal, ordenou-se a notificação do requerente para requerer o que tivesse por conveniente.

71) DD outorgou procuração a favor da Senhora Dra. QQ em 23 de Janeiro de 2023, junta aos autos no dia 3 de Fevereiro de 2023.

72) Em 10 de Fevereiro de 2023, o requerente suscitou o incidente de remoção do cabeça-de-casal.

73) E procedeu à notificação do requerimento na pessoa da mandatária referida em 71).

74) Em 15 de Fevereiro de 2023, DD exerceu o contraditório e juntou um documento com a menção de corresponder à relação de bens.

75) Na mesma data, juntou novo documento com a menção de corresponder à relação de bens, justificando-o pelo anterior não estar completo.

76) Em 27 de Fevereiro de 2023, o requerente sustentou ser a apresentação da relação de bens intempestiva.

77) Por requerimento de 9 de Março de 2023, DD veio declarar revogar a procuração outorgada a favor da Senhora Dra. QQ.

78) Por requerimento de 10 de Março de 2023, a Senhora Dra. QQ declarou renunciar ao mandato.

79) Por requerimento de 3 de Abril de 2023, DD veio declarar a anulação da revogação da procuração outorgada a favor da Senhora Dra. QQ.

80) DD foi notificada a renúncia dia 24 de Abril de 2023.

81) Em 18 de Maio de 2023, DD apresentou requerimento de apoio judiciário, designadamente na modalidade nomeação de patrono, que juntou aos autos na mesma data.

82) Em 25 de Maio de 2023, foi proferido despacho mediante o qual se ordenou que se oficiasse aos serviços da Segurança Social com a informação de o pedido ser formulado na pendência da acção e do número de mandatários constituídos objecto de renúncia e/ou revogação.

83) DD veio aos autos por requerimento de b1 de Junho de 2023 insurgir-se contra o despacho de 25 de Maio de 2023.

84) DD outorgou procuração a favor da Senhora Dra. RR em 6 de Junho de 2023, junta aos autos no dia 12 de Junho de 2023.

85) Por requerimento de 13 de Junho de 2023, a Senhora Dra. QQ declarou renunciar ao mandato.

86) Em 4 de Junho de 2023, DD informou ter renunciado ao pedido de apoio judiciário formulado junto da Segurança Social.

87) DD foi notificada a renúncia dia 9 de Julho de 2023.

88) Em 29 de Agosto de 2023, a Segurança Social informou o teor da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário.

89) DD outorgou procuração a favor do Senhor Dr. SS em 13 de Setembro 2023, junta aos autos no dia 19 de Setembro de 2023.

90) Por requerimento de 18 de Outubro de 2023, DD veio aos autos revogar a procuração outorgada a favor do Senhor Dr. SS.

91) Na mesma data, o Senhor Dr. SS declarou renunciar ao mandato.

92) DD foi notificada a renúncia dia 26 de Outubro de 2023.

93) DD outorgou procuração a favor do Senhor Dr. TT em 6 de Novembro 2023, junta aos autos na mesma data.

94) DD apresenta patologia do foro psiquiátrico de esquizofrenia.

95) Que lhe foi diagnosticada na adolescência.

96) E foi acompanhada no Hospital ..., tendo chegado a ser internada.

97) Desde 30 de Maio de 2022 as rendas dos imóveis que integram as heranças são recebidas por DD.

98) DD não procedeu à participação do recebimento das rendas à Autoridade Tributária no ano de 2022.

B. E considerou não provados os seguintes factos:

a.- A cabeça-de-casal teve dois processos de internamento compulsivo requeridos pelo Ministério Público.

b.- Desde o óbito dos inventariados que a cabeça-de-casal não tem acesso aos bens que integral as respectivas heranças.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

1. Questão prévia: admissibilidade de junção de documentos com as alegações de recurso.

Antes de entrar na análise do objecto do recurso, importa indagar da admissibilidade da junção dos documentos apresentados pela recorrente com as alegações de recurso.

Dispunha o artigo 693º-B do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8, que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 524º, no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude de julgamento proferido na 1ª instância e nos casos previstos nas alíneas a) a g) e i) a n) do nº 2 do artigo 691º”.

O artigo 523.º, n.º 1 do Código de Processo Civil naquela versão, estabelecia que os documentos destinados a fazer a prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes”, acrescentando o n.º 2: “se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, mas a parte será condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.”

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 524.º do mesmo diploma dispunha: “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”; e o seu nº 2: “os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo”.

Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 651.º que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais que se refere o artigo 425.º[1] ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.

Por regra, os documentos devem ser apresentados com o correspondente articulado, ou seja, com a petição inicial, se pretenderem a demonstração dos factos fundamentadores da acção, ou com a contestação, se se destinarem a comprovar os fundamentos da defesa.

Como informa Abrantes Geraldes[2], “em sede de recurso, é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objectiva ou subjectiva), quando se destinem a provar factos posteriores ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior ao julgamento em 1ª instância (art. 524º)”, adiantando o mesmo autor que “a junção de prova documental deve ocorrer preferencialmente na 1ª instância, regime que se compreende na medida em que os documentos visam demonstrar certos factos, antes de o tribunal proceder à sua integração jurídica. A lógica imporia até que fosse mais limitada a possibilidade de junção de documentos fora dos articulados, para melhor satisfação dos objectivos de celeridade[3].

A recorrente juntou dois documentos com as alegações de recurso.

Para além de nem sequer requerer a junção dos aludidos documentos, limitando-se a proceder, sem mais, à sua junção, apenas refere, no corpo das suas alegações, que “Em face da decisão do Tribunal da 1ª instância, impõe-se que a Recorrente junte documentos comprovativos da participação das rendas, em nome pessoal, o que faz”, para, assim, justificar a junção tardia dos documentos em causa.

Note-se, todavia, que o recorrido, interessado/requerente do incidente de remoção de cabeça de casal, alegou, entre o mais, que “...o Requerente teve recentemente a confirmação de que a cabeça de casal não procedeu à participação das aludidas rendas junto da Autoridade Tributária conforme lhe era exigível até ao dia 31.01.2023” – artigo 17.º -, acrescentando, no artigo seguinte: “Informação que este conseguiu verificar junto do portal das finanças, não só na sua área reservada, mas também na das respetivas heranças”. E como suporte probatório do por si alegado, o mesmo requerente juntou três documentos.

Tendo sido garantido o contraditório, tendo a cabeça de casal, aqui recorrente, respondido ao requerimento do interessado CC, absteve-se de indicar qualquer meio de prova, designadamente documental, sem invocação de qualquer razão que a impossibilitasse de o fazer no momento próprio.

O alegado pela recorrente em sede de alegações de recurso para justificar a junção dos documentos com elas apresentados não constitui razão bastante para essa justificação tardia, não se destinando os documentos à prova de factos supervenientes, nem se vislumbrando fundamento, apesar do invocado pela apelante, para só agora serem juntos.

Assim, inexistindo fundamento para a sua apresentação extemporânea, não se admite a junção dos documentos apresentados com as alegações.

2. Da invocada nulidade da sentença recorrida.

Imputa a recorrente à sentença que impugna recursivamente vício de nulidade que reconduz à previsão legal das alíneas d), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil:

É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

A nulidade da sentença - ou de despacho - constitui um vício intrínseco da decisão, desde que ocorra alguma das circunstâncias taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que, pela sua gravidade, comprometem a sentença ou o despacho qua tale.

Como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[4], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[5].

Sustenta a recorrente que “O Tribunal recorrido ao julgar provados factos essenciais não alegados pelas partes, que constituem a causa de pedir, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento e a sentença é nula nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. d), do CPC” – conclusão 9.ª.

O artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil correlaciona-se com o estatuído no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma legal, onde se determina que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. O vício tipificado na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre quando haja falta de apreciação de questão que o tribunal devesse conhecer, cuja resolução não tenha ficado prejudicada por solução dada a outras.
Exige-se, com efeito, uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão deduzida.
Como esclarecia Anselmo de Castro, ainda no âmbito da aplicação da pretérita lei adjectiva[6], «o vício relaciona-se com o dispositivo do art.° 660.°, n.° 2.° e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, como nesse preceito se dispõe.
A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a “fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sobre os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”.
E Alberto dos Reis[7] já alertava que não se pode confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões: "São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão."
Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas pelas partes, apenas deve conhecer destas e das que oficiosamente lhe caiba conhecer[8].
E essa tarefa foi, no caso, criteriosamente respeitada pelo Sr. Juiz que proferiu a decisão sob recurso, que, sem exceder aqueles limites legais, conheceu da questão posta à sua apreciação, indagando se, de facto e de direito, se mostravam reunidos os pressupostos para a pretendida remoção da cabeça de casal do respectivo cargo.
Assim, ao contrário do que sustenta a recorrente, o tribunal recorrido não conheceu de questão que lhe estava vedado conhecer, sendo que as razões em que suporta tal juízo dizem respeito ao julgamento da matéria de facto, mas sem afectarem a validade da sentença aqui sindicada.
Improcede, como tal, o recurso, quanto à arguida nulidade da sentença.

3. Reapreciação da matéria de facto.

Não se conformando a recorrente com a decisão proferida em primeira instância quanto à matéria de facto submetida a julgamento, reclama desta instância o reexame da mesma.

Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:

“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.

Como refere A. Abrantes Geraldes[9], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.

Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[10] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1.ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência.

Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas[11].
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.

A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.

Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[12], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.

Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.

A recorrente aponta à decisão que impugna erro de julgamento por ter atendido a factos não alegados, considerando provada a matéria constante dos pontos 7.º a 93, sustentando, para o efeito, – conclusão 5.ª - que “O Tribunal de 1ª Instância errou ao dar como provados factos essenciais que constituem causa de pedir da remoção do cabeça-de-casal, e não foram alegados pelas partes, designadamente nos pontos 7 a 93 dos Factos Provados”.

Como sublinha Fernando Pereira Rodrigues[13], “...a pessoa que recorre a juízo tem obrigação, antes de mais, de fazer a alegação dos factos. O “ónus allegandi” é o primeiro que a parte tem de ultrapassar quando se dirige, ou é chamada, a juízo. Efectivamente, cabe às partes alegar os factos que servem de fundamento à sua pretensão, sejam a procedência ou a improcedência da acção.

E este ónus não é de parco ou irrelevante resultado, porque a falta de alegação pode comportar consequências irreparáveis para a parte, na medida em que o juiz, por princípio, não pode tomar em consideração factos que a parte não alegou”.

É, com efeito, a factualidade invocada pelas partes que delimita o objecto da acção e baliza as fronteiras do conhecimento consentido ao julgador.

O artigo 5.º da nova lei processual civil corresponde, ainda que com profundas alterações, ao que dispunha o anterior diploma no artigo 264º, que fazia recair sobre as partes os ónus de alegação, e artigo 664º, que delimitava os poderes de cognição do tribunal.

O n.º 1 do artigo 5.º continua a impor às partes o ónus de alegação, quanto aos “factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”.

Permite, contudo, o n.º 2 do mesmo normativo que, além dos factos articulados pelas partes, o juiz considere:

“a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”.

Não podendo o juiz supor ou inventar factos que não hajam sido alegados, os factos que o n.º 2 do artigo 5. º lhe consente que atenda hão-de resultar da instrução da causa. Ou seja, tratam-se de factos que apesar de não haverem sido invocados pelas partes, a produção de prova lhes assegurou consistência suficiente para poderem ser ponderados.

E, ainda assim, não serão quais quaisquer factos os atendíveis nessas circunstâncias pelo juiz, que apenas poderá ter em conta os factos instrumentais e, quanto aos essenciais, os que constituam complemento ou concretização dos alegados pelas partes.

É que, não obstante as profundas alterações introduzidas neste domínio pelo novo Código de Processo Civil, continua a haver vinculação temática à causa de pedir: esta continua a delimitar o objecto do processo[14], e não pode ser livremente alterada[15].

Como antes se esclareceu, embora as partes continuem oneradas com o dever de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e os que sirvam de suporte às excepções invocadas, como se depreende do n.º 1 do artigo 5.º, o poder de cognição do tribunal em matéria de facto não se acha limitado ao alegado pelas partes nos seus articulados, podendo o mesmo conhecer factos que apenas venham a ser alegados após os articulados em resposta ao convite ao aperfeiçoamento e/ou que não sejam sequer alegados, mas resultem da instrução da causa, podendo neles, em qualquer dessas circunstâncias, fundar a decisão que venha a proferir.

Para tanto requer-se, contudo, tratando-se de factos complementares ou concretizadores dos factos alegados, que tenham os mesmos tal natureza, que a notícia (no processo) da sua existência resulte da prova produzida durante a instrução da causa e, por último, que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre eles antes de o tribunal os decidir.

Presentemente, o juiz pode, com efeito, atender a esses factos, mesmo oficiosamente, sem requerimento de nenhuma das partes[16], bastando que às mesmas tenha sido assegurada a possibilidade de sobre eles se pronunciarem.

Exigindo a última parte da alínea b) do n.º do artigo 5.º que “desde que sobre eles tenham tido [as partes] a possibilidade de se pronunciar”, tal significa necessariamente que o exercício desse poder oficioso do juiz terá de ser antecedido do exercício do contraditório, o que exige que tenha sido facultado às partes informação sobre a possibilidade de determinados factos não alegados pelas partes, mas cuja aquisição haja resultado da instrução da causa, poderem vir a ser atendidos pelo tribunal, repercutindo-se na decisão final.

A matéria elencada nos pontos 7.º a 93.º da sentença recorrida corresponde a matéria alegada pelo recorrido no requerimento em que deduziu o incidente de remoção de cabeça de casal, designadamente, nos seus artigos 1.º, 2.º, 3.º, 9.º, 10.º e 11.º, melhor concretizada com a referência aos termos processuais devidamente documentados nos autos, aos quais a recorrente sempre teve acesso, não constituindo para ela qualquer novidade com a qual se tenha confrontado com a sentença que impugna.

Como dá conta o despacho com a referência 459769749, “...reanalisando o requerimento inicial do incidente de remoção no confronto com a decisão proferida, julga-se não ter atendido indevidamente quaisquer factos essenciais não alegados: os factos elencados na decisão correspondem aos alegados nos arts. 1.º a 4.º, 9.º, 10.º, 11.º e 13.º do referido requerimento.

Quanto muito poderia ser defensável que foram, quanto a parte destes factos – por exemplo, quanto ao número de mandatários sucessivamente constituídos e que renunciaram ao mandato e/ou a cabeça-de-casal revogou a procuração – concretizados factos essenciais alegados pelo requerente, concretamente com indicação das datas de acordo com a tramitação do processado (concretamente quanto ao facto alegado de a cabeça-de-casal removida ter já constituído 12 advogados nos presentes autos).

Tais factos resultam provados pelos autos e termos do processo, respeitando inclusive a actos praticados pela recorrente, pelo que, perante aquela alegação, não poderia a recorrente deixar de contar que teriam de ser mobilizados como fundamentos da decisão.

Na medida em que os factos elencados não correspondem a quaisquer factos essenciais diversos (ou sequer novos) por referência aos alegados no requerimento de injunção, não é pertinente a convocação do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 18 de Abril de 2023, proferido no proc. n.º1205/19.6T8VCD, citado pela recorrente, que apreciou e julgou hipótese diversa”.

Nesta parte, não é merecedora de reparo a decisão que a recorrente impugna.

A mesma impugnou ainda a decisão na parte em que julgou provada a matéria contida nos pontos 94.º a 96.º, considerados provados, e que, na sua perspectiva, devem ser julgados não provados.

Pode ler-se na sentença recorrida, quanto à motivação da decisão relativa à matéria em causa: “Os factos das alíneas 94) a 97) resultam provados por acordo, nos termos dos arts. 293.º, n.º3, 1091.º, 1103.º, n.º2, 574.º, n.º2, do nCPC, na medida em que a requerida do incidente não os impugnou”.

Convocando o disposto nos artigos 574.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e o disposto no artigo 354.º, alínea b), do Código Civil, argumenta a recorrente que respeitando os factos em causa a direitos indisponíveis, não é admissível a sua confissão, pelo que não podem ser admitidos por acordo.

A matéria em causa mostra-se irrelevante para o conhecimento do mérito do incidente suscitado pelo recorrido na medida em que, sem mais, ficou por apurar se e em que medida a referida patologia condiciona o desempenho do cargo de cabeça de casal para o qual a recorrente foi nomeada.

A sentença recorrida expressamente desvalorizou a factualidade em causa, que nenhuma influência teve na decisão que determinou a remoção da recorrente do cargo de cabeça de casal. Refere, com efeito, a sentença impugnada: “A condição de saúde do cabeça-de-casal pode, de facto, constituir fundamento para concluir pela incompetência para o exercício do cargo.

No entanto, os factos alegados (vertidos nas alíneas 95., 96. e 97.), para além de não serem alegados como actuais, não são o bastante para concluir pela incapacidade para o exercício do cargo. De facto, nada é concretizado quanto à repercussão da doença na capacidade da cabeça-de-casal por forma a que se pudesse concluir que não está em condições de exercer o cargo, nem se trata de uma doença que, de forma notória, imponha a incapacidade para o exercício do cargo (tais como doenças congénitas que se manifestam em atrasos mentais ou doenças degenerativas em estado avançado)”.

A pretendida alteração da matéria em causa é, pois, absolutamente inócua para a decisão de mérito do incidente suscitado, pelo que se justificava a dispensa de sua reapreciação por esta instância de recurso.

Ainda assim, sempre é de referir que a factualidade questionada, respeitando a direitos pessoais da recorrente, cuja tutela é garantida nos termos do artigo 70.º do Código Civil, não se confunde com direitos indisponíveis, em relação aos quais é inadmissível a confissão, de acordo com o disposto no artigo 354.º do Código Civil.

De acordo com a denominada «teoria das três esferas», é possível distinguir na personalidade humana e na relação pessoal três dimensões: «a vida íntima», que compreende os gestos e factos que, em absoluto, devem ser subtraídos ao conhecimento de outrem, respeitantes não apenas ao estado do sujeito, enquanto separado do grupo, mas, também, a certas relações sociais, totalmente, protegida; «a vida privada», que engloba os acontecimentos que cada indivíduo partilha com um número restrito de pessoas, apenas relativamente protegida, e que poderá ter de ceder perante outros interesses ou bens; e «a vida pública», que, correspondendo a eventos susceptíveis de ser conhecidos por todos, respeitam à participação de cada um na vida da colectividade.

Sempre haverá que reconhecer que a tutela da intimidade da vida privada, não inclui, no âmbito da sua protecção, a esfera da vida privada e a esfera da vida normal de relação, ou seja, os factos que o próprio interessado, apesar de pretender subtraí-los ao domínio do olhar público, isto é, da publicidade, não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros, mas abrange, ao invés, todos aqueles aspectos que fazem parte do domínio mais particular e íntimo que se quer manter afastado de todo o conhecimento alheio, porquanto a esfera privada ou individual representa uma realidade distinta da esfera íntima ou de segredo.

A condição de saúde de um concreto sujeito integra-se nos denominados «direitos condicionais» que, ao contrário dos direitos absolutos ou intangíveis, que são objecto de uma protecção inderrogável, apenas gozam de uma tutela relativa, porquanto admitem limitações. Uma protecção sem limites de certos direitos fundamentais deixaria em muitos casos sem efectiva tutela o próprio direito de acção.

Também a recorrente se insurge contra a decisão que julgou provada a matéria constante do ponto 98.º dos factos provados.

O referido segmento decisório mostra-se deste modo fundamentado na sentença aqui escrutinada: “Quanto ao facto da alínea 98), resulta o mesmo provado pelo teor dos documentos juntos pelo requerente, que correspondem ao registo da consulta da página da Autoridade Tributária, relativa a cada uma das heranças, e de onde decorre que, sendo a consulta feita em 9 de Fevereiro de 2023, por referência ao ano de 2022 não foi participado o recebimento de rendas. Sempre se acrescenta que, sendo certo que com os documentos juntos em 5 de Janeiro de 2024 a cabeça-de-casal pretendeu apenas oferecê-los para fazer prova quanto à relação de bens (cfr. o próprio teor do requerimento e a acta de 10 de Janeiro de 2024), as certidões de “situação tributária regularizada” não contrariam a anterior conclusão, na justa medida em que se não foi participado o recebimento das rendas, naturalmente que nenhuma imposto cumpre pagar e a situação está regularizada. O óbice está em o recebimento não sido participado (isto é, cumprida a obrigação fiscal de participar esse rendimento das heranças).

Pretende a recorrente que seja alterada a decisão quanto à factualidade fixada no referido ponto 98.º dos considerados provados, de forma a poder constar da mesma que “DD, até 06/02/2023, não procedeu à participação do recebimento das rendas à Autoridade Tributária no ano de 2022, em nome das heranças.”.

A factualidade dada como assente no ponto 98.º encontra suporte probatório nos documentos juntos pelo interessado CC com o requerimento de remoção da cabeça de casal, não tendo a mesma sido infirmada por qualquer outro meio de prova.

Acresce que a pretendida alteração da redacção daquele segmento decisório nenhuma relevância merece, porquanto sempre a participação teria de ser efectuada em nome das heranças, e, quanto às rendas relativas ao ano de 2022, a participação à Autoridade Tributária tinha como limite temporal o dia 31.01.2023.

Não tendo a cabeça de casal, aqui recorrente, efectuado a participação das rendas nas condições assinaladas, mostra-se ajustada a decisão vertida no dito ponto 98.º, não se justificando qualquer alteração à sua redacção.

Improcede, por conseguinte, a impugnação que incidiu sobre a decisão relativa à matéria de facto que, deste modo, se mantém inalterada.

4. Enquadramento jurídico dos factos provados.

Com fundamento nos factos articulados no respectivo requerimento, o recorrido e interessado no inventário CC requereu que fosse a cabeça de casal removida do cargo para o qual foi nomeada, alegando, para o efeito, que “a cabeça de casal se demonstra totalmente incompetente para o exercício do cargo que lhe foi incumbido”.

Incumbe ao cabeça de casal a administração da herança até à sua liquidação e partilha, de acordo com o disposto no artigo 2079.º do Código Civil.

E prescreve o artigo 1102.º, do Código de Processo Civil:

1 - Se o requerimento inicial não tiver sido entregue pelo cabeça de casal, este é advertido, no ato da sua citação, de que, no prazo de 30 dias, deve:

a) Confirmar, corrigir ou completar, de acordo com o estabelecido no artigo 1097.º, o que consta do requerimento inicial e juntar os documentos que se mostrem necessários;

b) Apresentar ou completar a relação de bens nos termos da alínea c) do n.º 2 artigo 1097.º e do artigo 1098.º;

c) Apresentar o compromisso de honra do fiel exercício das suas funções nos termos da alínea e) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 1097.º

2 - Se não estiver em condições de apresentar todos os elementos exigidos, o cabeça de casal justifica a falta e pede, fundamentadamente, a prorrogação do prazo para os fornecer.

Explica Lopes Cardoso[17] que “as funções do cabeça-de-casal, porque são vastas e complexas, hão-de ser desempenhadas com seriedade, bom senso e diligência. Só desta forma o inventário poderá tocar seu termo com segurança e brevidade e oferecer garantia segura de que as partilhas são rigorosas e têm base séria.

A complexidade de tais funções exige competência para o desempenho do cargo e, porque do seu bom exercício depende a finalidade a que visa o processo de inventário, compreende-se que a lei estabeleça cominação para as faltas cometidas pelo cabeça-de-casal, por culpa sua, quer provenientes de incúria ou negligência, quer voluntariamente praticadas.

Há, por assim dizer, como que um feixe de direitos e deveres por parte do cabeça-de-casal, cuja postergação importa falta grave para a qual a remoção actua como castigo bastante”.

Pode o cabeça-de-casal ser removido do cargo, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem, quando ocorra alguma das circunstâncias enumeradas no n.º 1 do artigo 2086.º do Código Civil:

a) Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes;

b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo;

c) Se não cumpriu no inventário os deveres que a lei lhe impuser;

d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.

Segundo o acórdão desta Relação, de 18.05.2023[18], “No primeiro e segundo fundamentos a remoção funda-se na relação anómala que o cabeça de casal estabelece com os bens da herança, seja na administração dos mesmos, seja no reconhecimento e respeito pela sua integração na herança.

O terceiro fundamento provém da imposição legal de o cabeça de casal cumprir no processo de inventário as funções próprias do cargo, praticando com diligência os actos que decorrem dessas funções e sendo removido se o não fizer.

O último fundamento reporta-se às competências do cabeça de casal para o exercício do cargo, as quais variam naturalmente em função da natureza dos bens que compõem a herança e dos cuidados que a administração dos mesmos requer, e que o cabeça de casal há-de reunir. Já não está em causa se ele administra bem ou mal os bens, o que pode ocorrer mesmo com quem é competente para a administração, mas sim se ele possui os conhecimentos, a aptidão e a diligência que o exercício do cargo requer na situação concreta (ainda que seja fácil de concluir que na génese deste fundamento se encontra a presunção legal de que se ele não tem competências para o cargo não irá realizar uma administração capaz, prudente e zelosa)”.

E do acórdão da Relação de Coimbra de 12.04.2018[19] retira-se: “I – No tocante à “incompetência para o exercício do cargo” enquanto fundamento para o incidente de remoção do cargo de cabeça de casal à luz do disposto no art. 2086º, nº 1, al. d) do C.Civil, trata-se de norma em branco a preencher casuisticamente.

II – Enquanto “incidente” da instância do inventário, o respetivo ónus será da Requerente, nos termos das regras gerais dos arts. 292º e segs. do n.C.P.Civil.

III – Nesta dita al. d), atinge-se o caso de inexistirem no cabeça-de-casal qualidades bastantes para a administração ou para esse cumprimento, sendo que a pena/remoção só terá aplicação quando a falta cometida revestir gravidade e, raras vezes, resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres.” Ali se sustenta também que o prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são fatores primaciais a atender na aplicação da referida pena, e ainda que “a má administração tem de se deduzir de factos que inequivocamente a revelem, captadas através de prova suficiente para se poder ajuizar da conduta do cabeça-de-casal”.

A factualidade recolhida nos autos, especialmente a condensada nos pontos 7.º a 93.º dos factos dados como provados, atesta, de forma inquestionavelmente categórica, a falta de cumprimento pela cabeça de casal, aqui apelante, dos deveres funcionais associados ao cargo em que foi investida.

Basta atentar que o processo de inventário foi instaurado, por iniciativa do interessado CC, a 24 de Julho de 2017, tendo sido nomeada cabeça de casal, por despacho de 10.11.2017, a apelante DD, a qual, após vicissitudes várias, parte substancial das quais provocadas pelas sucessivas renúncias dos mandatários por ela constituídos ou revogação dos respectivos mandatos, foi notificada em 30 de Maio de 2022, inclusive na sua própria pessoa, para o efeito previsto no artigo 1102.º, n.º1, do Código de Processo Civil - ou seja, para conformar, corrigir ou completar o teor do requerimento inicial e juntar documentos, para apresentar a relação de bens e para apresentar o compromisso de honra -, não tinha a mesma, à data em que foi requerida a sua remoção do cargo de cabeça de casal, apresentado a relação de bens, que, só após dedução do referido incidente, apresentou.

O comportamento incumpridor da cabeça de casal acha-se detalhadamente espelhado na sentença recorrida quando refere: “Tendo o inventário sido requerido por pessoa diversa daquela a quem competia o cabeçalato, na sequência da anulação do processado (decisão proferida em recurso no apenso A) e da decisão quanto ao incidente de remoção do cabeçade-casal suscitado 24 de Setembro de 2018, foi proferido despacho pelo qual se ordenou a notificação da cabeça-de-casal (porque entretanto já havia sido citada) para dar cumprimento ao disposto no art. 1102.º, n.º1, do nCPC.

O despacho foi proferido em 19 de Maio de 2022 e a notificação cumprida, incluindo na própria pessoa da cabeça-de-casal em 30 de Maio de 2022.

A cabeça-de-casal tinha o prazo de 30 dias para dar cumprimento ao ordenado.

Sucederam-se sucessivas constituições de mandatário e revogações de procurações ou renúncias aos mandatos, conforme resulta espelhado no elenco dos factos provados.

O prazo foi prorrogado, a pedido da cabeça-de-casal, por trinta dias, por despacho de 8 de Julho de 2022; e por mais quinze dias, por despacho de 7 de Outubro de 2022.

Nada tendo sido requerido, em 17 de Novembro de 2022 foi proferido despacho mediante o qual se ordenou a notificação da cabeça-de-casal, incluindo na sua própria pessoa, para dar cumprimento ao disposto no art. 1102.º, n.º1, do nCPC no prazo de 15 dias.

A notificação foi remetida nessa mesma data, considerando-se, por isso, a cabeça-de-casal notificada no dia 21de Novembro de 2022, tendo o prazo começado a correr a 22 de Novembro de 2022.

É certo que em 29 de Novembro de 2022, o à data mandatário constituído vem a renunciar ao mandato, tendo a cabeça-de-casal sido notificada pessoalmente no dia 30 de Novembro de 2022”.

E adianta a mesma sentença:

“- No processo de inventário só é obrigatória a constituição de mandatário para suscitar ou discutir qualquer questão de direito e para interpor recurso (ut art. 1090.º do nCPC), não já para o cumprimento dos actos previsto no art. 1102.º do nCPC, concretamente juntar a declaração de compromisso de honra, identificar os herdeiros e identificar os bens e as dívidas.

- Mesmo no decurso do prazo de vinte dias de que o mandante dispõe para constituir novo mandatário (claro está, nas hipóteses em que o patrocínio é obrigatório), o patrocínio inicial mantém-se, continuando o processo a prosseguir os seus termos (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol 1.º, 3.ª Edição, p. 101, em anotação ao art. 47.º do nCPC. Cfr. também, a título de exemplo, porque ainda recentes, os acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de Março de 2021, proferido no proc. n.º2128/15.3T8VNF, e pelo Tribunal da Relação de Évora de 30 de Março de 2023, proferido no proce. n.º979/21.9T8SLV, publicados na base de dados da DGSI, apoiados ambas em jurisprudência constitucional).

Ou seja, nem a renúncia nem a notificação da renúncia têm a virtualidade de suspender qualquer prazo em curso.

Tal efeito só se produz: 1.º com o decurso do prazo de vinte dias; 2.º quando a falta de constituição do mandatário seja do autor ou do exequente; e 3.º quando a constituição de mandatário seja obrigatória.

Tudo isto para se concluir que o prazo em curso desde 22 de Novembro de 2022 não se interrompeu ou suspendeu.

Assim, quando foi proferido o despacho de 26 de Janeiro de 2023 já estava de facto esgotado o último prazo concedido para a cabeça-de-casal dar cumprimento ao disposto no art. 1102.º, n.º1, do nCPC; e em 15 de Fevereiro de 2023 a junção da relação de bens era já intempestiva.

Dito de outra forma, à data em que foi suscitado o incidente de remoção do cabeça-de-casal 10 de Fevereiro de 2023, a cabeça-de-casal ainda não tinha dado cabal cumprimento ao ordenado.

Mas mais:

A cabeça-de-casal apresentou o compromisso de honra em 7 de Julho de 2022 mas até à data não deu cumprimento ao previsto na alínea a) (equivalente às antigas declarações de cabeça-de-casal, nem juntou os assentos em falta); e nem mesmo quanto à relação de bens juntou os todos documentos que em 15 de Fevereiro protestou juntar para a instruir.

Para além de não provado o fundamento de facto invocado para a inércia na apresentação da relação de bens (facto julgado não provado na alínea b), mesmo que provado não se julgaria bastante para justificar o incumprimento do dever processual ante o previsto nos arts. 7.º, n.º4, e 1101.º do nCPC, ou seja, nunca desde 30 de Maio de 2022 a cabeça-de-casal invocou essa dificuldade e requereu quaisquer diligências para ser a mesma ultrapassada.

Por último: mesmo que se concluísse ser a apresentação da relação de bens tempestiva e desvalorizasse a falta de cumprimento do demais imposto pelo art. 1102.º, n.º1, do nCPC quanto às informações relativas aos interessados directos na partilha e a falta de junção da documentação em falta, torna-se patente que a conduta processual da cabeça-de-casal, com a constante e sucessiva constituição de mandatários e cessação dos mandatos tem vindo a importar a inércia no regular andamento do processado, dependente que está da actuação da cabeça-de-casal.

Ao todo, a cabeça-de-casal já constituiu quinze mandatários nos autos.

Também esta actuação, em virtude da repercussão que tem no regular cumprimento dos deveres processuais que sobre a mesma impendem, importa relevar, sopesar e atender no julgamento da remoção.

É que a cabeça-de-casal não só não cumpriu pontualmente os deveres impostos pelo art. 1102.º, n.º1, do nCPC, como tal incumprimento assume gravidade em face de todo o contexto descrito nas alíneas 15) a 93) e sobretudo após 19 de Maio de 2022, quando foi mantida no cargo de cabeça-de-casal”.

O quadro factual apurado nos autos atesta sobejamente ter a cabeça de casal, aqui apelante, incumprido os deveres funcionais com que estava onerada por virtude do cargo em que fora investida, revelando o circunstancialismo associado a esse incumprimento gravidade bastante para justificar a sua remoção e substituição no cargo de cabeça de casal.

Sem merecer reparo a decisão recorrida, é de manter, assim improcedendo o recurso.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso da apelante DD, confirmando a sentença recorrida.

Custas: a cargo da apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Notifique.

Porto, 20.03.2025

Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.

Judite Pires

Maria Manuela Machado

José Manuel Correia





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[1] Que corresponde ao nº1 do artigo 524º do anterior diploma.
[2] “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, Almedina, 2ª ed. revista e actualizada, pág. 228.
[3] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 184.
[4] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[5] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[6] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 142.
[7] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, 1981, pág. 143.
[8] Artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[9]Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[10]Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[11] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 157.
[12] Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt.
[13] “O Novo Processo Civil – Os Princípios Estruturantes”, 2013, Almedina, págs. 74, 75.
[14] Artigos 5º, nº1, 552º, d), 615º, nº1, d), primeira parte, do Código de Processo Civil.
[15] Artigos 260º, 264º e 265º do mesmo diploma legal.
[16] Nisso divergindo do regime do artigo 264.º, n.º 3 da pretérita lei processual civil, que exigia tal requerimento.
[17] Partilhas Judiciais, Almedina, 4ª edição, 1991, vol. III, págs. 11 e seguintes.
[18] Processo n.º 1694/21.9T8VCD-G.P1, www.dgsi.pt.
[19] Processo n.º 62/18.4YRCBR, www.dgsi.pt.