ALIMENTOS
FILHO MAIOR
PRESUNÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário

Sumário[i]:
(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[ii])
1. Nos arts. 1880.º e 1905.º, n.º 2, do CC, estabelece-se uma presunção de necessidade de alimentos a favor do filho maior de idade que ainda não atingiu os 25 anos.
2. Assim, o n.º 2 do art.º 1905º dispensa o filho maior de alegar e provar os pressupostos do art.º 1880.º.
3. Se durante a sua menoridade estiver fixada uma prestação alimentar, atingidos os 18 anos, esta não cessa automaticamente e continua a servir como título executivo.
4. Face a esta inversão do ónus da prova, compete ao progenitor não residente, atingida a maioridade do seu filho, requerer contra este a cessação ou alteração da obrigação de alimentos, cabendo-lhe a prova da irrazoabilidade do pagamento da prestação, podendo argumentar:
- que o seu filho ultrapassou os 25 anos;
- que a sua formação se concluiu; ou,
 - que este terminou livremente a sua formação.
5. O art.º 986.º, n.º 2, do CPC, prescreve a prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo, de modo que os factos essenciais que constituam a causa de pedir não delimitam o âmbito de cognição do tribunal já que este pode considerar outros factos (complementares concretizadores, instrumentais, notórios, de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou que sejam constitutivos do desvio da função processual) para além daqueles que são alegados pelas partes, não estando dependente de nenhum ónus de alegação pelos intervenientes, na precisa medida em que pode conhecer oficiosamente os factos, quer por investigação própria, quer na sequência de alegação dos interessados.
6. Contudo, esta prevalência do princípio do inquisitório não deve ser lida como uma dispensa do ónus da alegação da matéria de facto por parte dos intervenientes (porquanto persiste um princípio de autorresponsabilidade mitigada) e não os exime de fundamentar os pedidos formulados, o que vale por dizer que a liberdade e iniciativa probatória do juiz tem como limite o objetivo prosseguido pelo processo especial em causa, bem como a adequação da medida a adotar à finalidade pretendida.
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[i] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[ii] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório:
LF veio instaurar contra RB, incidente de incumprimento de prestação de alimentos, relativo à filha de ambos, CB, nascida no dia 23 de março de 2006, portanto, então ainda menor, alegando, em síntese, que na ação de divórcio em que foram partes os aqui requerente e requerido, foi proferida sentença, transitada em julgado, na qual se decidiu que «o pai contribuiria a título de alimentos, para a sua filha menor, com a quantia mensal de €75,00 (setenta e cinco euros), a atualizar em Janeiro de cada ano, em percentagem correspondente ao índice da inflação, e que suportaria metade das despesas de médicas, medicamentosas e escolares mediante a apresentação, pela mãe, do respectivo recibo».
Sucede que o requerido nunca atualizou o valor da pensão de alimentos e também não pagou as prestações mensais referentes aos meses de agosto e setembro de 2023.
Conclui assim o requerimento inicial:
«Nestes termos e demais de Direito aplicáveis, requer-se, a V. Ex.ª, se digne ordenar seja o presente incidente de incumprimento de prestação de alimentos apensado ao proc. nº __/__._TBVPT. Mais requer, a V. Exª., seja ordenado o cumprimento do disposto no artº. 48º nºs 1 b) e 2 da Lei 141/2015 de 08-09».
*
RB respondeu, concluindo assim:
«Nestes termos e nos melhores de direito requer-se a V. Exª que declare improcedente o pedido formulado pela Requerente e provado o pedido agora formulado pelo requerido, sendo julgadas procedentes por provadas as excepções de prescrição e de pagamento deduzidas, com todas as legais consequências».
*
No dia 16 de novembro de 2023 foi proferida decisão de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Atentas as considerações de facto e de direito supra expendidas, o Tribunal decide julgar o presente incidente de incumprimento da prestação de alimentos a favor da jovem, CB, parcialmente procedente, por parcialmente provado e, por conseguinte:
a) Declara-se verificado o incumprimento, por parte do Requerido, RB, das atualizações da pensão de alimentos vencidas e não pagas, devidas à sua filha menor de idade, no montante total de € 278,55 (duzentos e setenta e oito euros e cinquenta e cinco cêntimos), referente aos anos de 2015 a 2023 (até ao mês de setembro);
b) Condena-se o Requerido, RB, no pagamento do montante referido em a), à Requerente, LF;
c) Consigna-se que o montante referido em a) será coercivamente descontado do ordenado do Requerido, RB pela quantia mensal de € 35,00 (trinta e cinco euros), acrescida do valor da pensão de alimentos atualizada devida à sua filha (no valor de € 85,35 – oitenta e cinco euros e trinta e cinco cêntimos – no corrente ano), até perfazer o montante total em dívida, referido em a).
d) Absolve-se o Requerido, RB, do demais peticionado».
*
Tal decisão não foi objeto de impugnação, pelo que transitou em julgado.
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CB atingiu a maioridade no dia 23 de março de 2024, após o que, no dia 8 de agosto de 2024, RB apresentou, neste mesmo apenso de incidente de incumprimento, que então se encontrava findo e com visto em correição aposto desde 23 de fevereiro de 2024, requerimento com o seguinte teor:
«(...) a sua filha CB já completou 18 anos de idade, tendo a mesma informado o requerido que se encontra a trabalhar, não pretendendo seguir com estudos universitários, bem como comunicou ao requerido que considera que estando a trabalhar não necessita de continuar a receber pensão de alimentos.
Nestes termos e porque a entidade patronal para além do valor a que o requerido foi condenado em sentença de fls… dos autos, continua a descontar a favor da filha CB o valor da pensão mensal de alimentos, requer-se (...) que tal obrigação seja considerada extinta, atento o exposto e a maioridade da filha do requerido, o que se requer, com todas as legais consequências, devendo a mesma ser notificada para proceder à devolução dos valores que lhe foram pagos a título de pensão de alimentos após ter atingido a maioridade e se encontrar no mercado de trabalho».
*
LB respondeu nos seguintes termos, através de requerimento apresentado no dia 3 de setembro de 2024:
«É verdade que CB, filha da requerente e do requerido já completou os 18 anos de idade no dia 23/03/2024, contudo, a mesma frequentou a EBSSMA até ao mês de julho de 2024, onde concluiu o ensino secundário.
No entanto, é falso que a referida CB não pretenda prosseguir estudos universitários.
O que sucede é que devido a falta de suporte financeiro a CB viu-se forçada a realizar um interregno nos estudos e ingressar no mercado de trabalho durante um ano de forma a angariar dinheiro, para posteriormente candidatar-se à universidade com o imprescindível suporte financeiro de quem estando longe da sua casa e da sua ilha terá de pagar despesas de alojamento, alimentação, material e manuais escolares, etc, tendo sido o requerido devidamente informado desta situação.
Não se compreende, assim, que o requerido venha afirmar perante este Tribunal que a sua filha não pretende prosseguir os estudos universitários, bem sabendo que tal facto não corresponde à verdade.
Na realidade, a CB viu-se forçada a interromper, momentaneamente, os estudos, contra a sua vontade, apenas por insuficiência económica, pelo que, continua a carecer de alimentos, dado que, o processo não foi interrompido por sua livre iniciativa.
De igual forma, não se compreende que o requerido venha solicitar a devolução do valor da pensão de alimentos desde a maioridade da sua filha, pois bem sabe que a mesma completou 18 anos de idade em 23 Março de 2024 e só concluiu o ensino secundário no mês de Julho de 2024.
Face ao supra exposto, deve manter-se a obrigação do requerido de pagar a pensão de alimentos à sua filha enquanto a mesma não tiver cessado, terminantemente, a sua formação escolar e profissional, até aos 25 anos de idade, nos termos do disposto no artigo 1880º e 1905º nº 2 do Código Civil.
*
Conhecedor do teor daquele requerimento, RB apresentou novo requerimento, datado de 4 de setembro de 2024, no qual, e com relevo, «requer que sejam oficiados os Serviços do Instituto da Segurança Social para virem juntar aos autos a ficha de descontos da filha CB, bem como a indicação de qual o tipo de contrato que foi outorgado com a entidade patronal e data de início dos mesmos».
*
O Ministério Público emitiu douta promoção, que concluiu assim:
«Em face do exposto, atendendo ao disposto no artigo 1880º do Código Civil e correspondente jurisprudência dominante nesta temática, o Ministério Público promove que se julgue improcedente o requerido pelo progenitor RB, mantendo-se a obrigação do mesmo continuar obrigado ao pagamento da pensão de alimentos à sua filha, até que aquela complete a sua formação escolar, até aos 25 anos».
*
No dia 16 de setembro de 2014 foi proferida decisão, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Nesses termos e atendendo ao supra exposto, indefere-se o requerido pelo progenitor RB, por falta de fundamento legal, mantendo-se a obrigação legal de pagamento da prestação de alimentos à sua filha CB até que aquela complete o seu processo de educação/formação profissional, até aos 25 anos, ao abrigo do disposto nos artigos 1880.º e 1095.º n.º 2 do Código Civil».
*
No dia 23 de setembro de 2024, LB apresentou requerimento com o seguinte teor:
«(...) em face da postura do requerido, nos presentes autos, nomeadamente, o pedido da devolução das prestações de alimentos pagas durante o período em que a sua filha ainda estudava e a indiferença relativamente ao futuro desta, a CB, sua filha, ficou desiludida e magoada com o requerido, pelo que, a mesma não pretende continuar a receber pensão de alimentos do pai, tendo elaborado e assinado uma declaração de renúncia de pensão de alimentos, cuja junção aos autos se requer».
Com esse requerimento juntou um documento com o seguinte teor:
«CB (...) declara por sua honra e para os devidos efeitos legais que não pretende que os eu pai lhe pague a pensão de alimentos que lhe foi atribuída no âmbito do processo n.º __/__._TBPVT do Juízo de Competência Genérica de ____, pelo que, renuncia ao referido direito  de receber pensão de alimentos, com efeitos imediatos».
*
No dia 8 de outubro de 2024, RB apresentou requerimento com o seguinte teor:
«(...) vem, face à declaração assinada pela sua filha CB e junta aos autos, no âmbito da qual manifesta a intenção de prescindir/renunciar à pensão de alimentos na maioridade, pois entende-se que já não precisa de tal pensão (nos termos do artigo 2013º alínea b) do CC), requerer que tal intenção seja comunicada à entidade patronal do requerido de forma a que cesse o pagamento coercivo da pensão de alimentos, evitando-se assim a prática de actos inúteis, nomeadamente, a interposição de recurso da decisão/sentença proferida a fls… dos autos».
*
Os autos foram com vista ao Ministério Público, que emitiu a seguinte promoção:
«(...)
À semelhança de outros actos praticados pela obriganda CB – p. ex. trabalhar para conseguir angariar rendimentos para conseguir suportar os custos com a sua formação – também o acto agora requerido se afigura revelador do seu nobre carácter, o que se louva.
Não obstante, o direito a alimentos é irrenunciável, sendo, portanto, um direito indisponível, conforme se estabelece no artigo 2008º do Código Civil.
Tal indisponibilidade funda-se no próprio interesse da obriganda CB, interesses esses que prevalecem acima de qualquer outra circunstância – pese embora se reconheça os legítimos motivos apresentados para a renúncia – e nessa medida é legalmente inadmissível a renuncia ao direito em causa.
Pelo exposto, o Ministério Público promove que se indefira o requerido em ambos os requerimentos apresentados, mantendo-se o direito a alimentos à obriganda CB, com a correspondente continuidade dos pagamentos a ser suportados por parte do obrigado RB nos exactos termos estabelecidos e em vigor».
*
RB interpôs recurso da decisão judicial proferida no dia 16 de setembro de 2014, concluindo assim as respetivas alegações:
«1. A sentença da qual se recorre julgou improcedente o incidente de cessação da pensão de alimentos a favor da filha maior do requerido, tendo considerado que a pensão de alimentos devida à filha maior do requerido deve ocorrer até que ela complete 25 anos de idade, independentemente de a mesma frequentar ou não estudos/formação.
2. Entende o apelante que a progenitora é parte ilegítima nos autos, atendendo à maioridade da filha CB e por tal motivo deveria ter sido a filha maior a ser chamada aos autos.
3. Na prática, a subsistência dessa obrigação dependia de um impulso processual do filho, já maior, que, em processo especial instaurado contra o progenitor, tinha de demonstrar não ter ainda completado a sua formação profissional e estarem reunidos os demais pressupostos do art.º 1880.º do CCiv.
4. Estabelece o artigo 1879º do CC que: (...).
5. Acresce que, o artigo 1880º do CC refere que: (...).
6. O requerido indicou várias diligências de prova que não foram atendidas pelo Tribunal, sendo que tais diligencias eram pertinentes para apurar os factos alegados pelo requerido.
7. O tribunal a quo não teve em consideração o alegado pelo requerido quanto ao facto de a sua filha maior não ter intenção de ingressar o ensino superior ou formação profissional, não tendo sido comprovado pela mesma a intenção de o fazer.
8. Alegando a progenitora que a filha CB pretende, alegadamente, ingressar o ensino superior, sem concretizar quando e como, nem sequer quais os cursos que a mesma estaria interessada.
9. Alegou que a mesma não concorreu no ano lectivo de 2024-2025 por alegada falta de condições económicas; entendemos que tal não poderá prevalecer na medida em que se efectivamente a filha maior pretendesse e tivesse intenção de estudar existem vários recursos, apoios e subsídios para o efeito;
10. Não tendo junto qualquer prova que ateste que pretende efectivamente estudar;
11. Estando a maior CB a prover o seu sustento, não sendo razoável e justo que o progenitor tenha que prover ao sustento da mesma até aos 25 anos, independentemente de a mesma ingressar ou não os estudos;
12. Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.» (...).
13. A sentença proferida padece de irregularidades insanáveis quer pelo facto de não terem sido deferidas as diligências de prova solicitadas pelo progenitor, quer pelo facto de a filha maior não ter sido chamada aos autos para se pronunciar.
14. Não é justo e razoável que o requerido fique obrigado a pagar pensão de alimentos à sua filha maior, que se encontra inserida no mercado de trabalho e a prover o seu sustento, até aos 25 anos.
15. Assim, deve a obrigação de alimentos à filha CB ser considerada extinta, atento o exposto e a maioridade da mesma e o facto de ter interrompido voluntariamente os estudos e estar a prover o seu sustento, o que se requer, com todas as legais consequências, devendo a mesma ser notificada para proceder à devolução dos valores que lhe foram pagos a título de pensão de alimentos após ter atingido a maioridade e se encontrar no mercado de trabalho.
16. Deve a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que declare cessada a prestação de alimentos, com todas as legais consequências atento o exposto, cessando tal obrigação até que a filha CB comprove que ingressou o ensino superior ou formação profissional, bem como ser a mesma notificada para proceder à devolução dos valores que lhe foram pagos a título de pensão de alimentos após ter atingido a maioridade e se encontrar no mercado de trabalho».
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial»[3].
No presente recurso, após a formulação das conclusões, o apelante deduz o seguinte pedido revogatório:
«Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que tenha em consideração por um lado que a progenitora é parte ilegítima nos autos, atendendo à maioridade da filha e por outro lado que considere que a filha maior CB interrompeu voluntariamente os estudos, sem ter manifestado intenção de retomar ou ingressar o ensino superior, estando a prover o seu sustento, não sendo razoável que o progenitor continue obrigado ao pagamento da pensão de alimentos, para que o Tribunal possa decidir em conformidade, com todas as legais consequências, assim se fazendo a necessária e costumada
JUSTIÇA!»
*
A senhora juíza a quo admitiu o recurso nos seguintes termos:
«Por tempestivo e legal, admito o recurso interposto pelo progenitor em 11-10-2024, que é de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo (artigo 32.º n.º 1, 3 e 4 e 33.º ambos do RGPTC e artigos 644.º n.º 2 al. i), 645.º n.º 2 e 647.º n.º 1 todos do CPC).
*
Notifique e aguarde-se o decurso do prazo de resposta ao recurso apresentado pelos demais sujeitos processuais».
Imediatamente a seguir:
- à admissão do recurso; e,
- à determinação da notificação dos demais sujeitos processuais para, querendo, responderem ao recurso interposto por RB, a senhora juíza a quo proferiu a seguinte decisão:
«Ref.ª CITIUS n.º 5900038, 5929094:
Veio a progenitora juntar aos autos, declaração assinada pela sua filha CB, no qual a mesma declara que “não pretende que o seu pai lhe pague a pensão de alimentos que lhe foi atribuída, pelo que renuncia ao referido direito de receber pensão de alimentos com efeitos imediatos”, em virtude da postura adoptada pelo progenitor nos presentes autos, tendo esta ficado desiludida e magoada com o mesmo.
Na sequência de tal declaração, o progenitor vem requerer que a intenção da sua filha seja comunicada à entidade patronal por forma a cessar o pagamento da pensão de alimentos.
Com vista nos autos, o Ministério Público promoveu que se indeferisse o requerido em ambos os requerimentos em virtude de o direito a alimentos ser irrenunciável, devendo manter-se o direito a alimentos à filha CB.
Cumpre decidir.
Dispõe o artigo 2008.º n.º 1 do Código Civil que “o direito a alimentos não pode ser renunciado ou cedido, bem que estes possam deixar de ser pedidos e possam renunciar-se as prestações vencidas.”
Já nos termos do artigo 2013.º n.º1 do mesmo Código determina que “A obrigação de prestar alimentos cessa: a) Pela morte do obrigado ou do alimentado; b) Quando aquele que os presta não possa continuar a prestá-los ou aquele que os recebe deixe de precisar deles; c) Quando o credor viole gravemente os seus deveres para com o obrigado.”
Sem prejuízo das considerações já expandidas no anterior despacho proferido a 16-09-2024, quanto à natureza e importância dos alimentos prestados a filhos menores e maiores, a lei é clara ao referir que tal direito “não pode ser renunciado”, o que quer dizer que o credor dos mesmos, no caso a filha CB, ainda que o faça de forma livre, expressa e esclarecida não poder renunciar a tal direito.
Ademais, de acordo com o disposto no artigo 2013.º do CC, a renúncia não é uma das formas de cessação da obrigação de alimentos.
Na verdade, sem prejuízo do teor da declaração prestada pela filha CB, constata-se que da mesma não se retira que esta “deixou de precisar deles”. Ou seja, CB pretende a renúncia ao seu direito a alimentos por se encontrar magoada com o progenitor pela situação em causa nos autos e não pelo facto de ter deixado de precisar deles, pressuposto que depende a cessação legalmente prevista.
Sem prejuízo do que supra se decidiu, sempre se dirá que o pressuposto de a mesma já não precisar deles ou não se encontrarem preenchidos os pressupostos legais que determinam aquela obrigação de alimentos a filhos maiores, este Tribunal já se pronunciou quanto à questão, cabendo agora aos tribunais superiores decidirem a mesma no âmbito do recurso ora interposto pelo progenitor.
Nesses termos, e sem necessidade de maiores considerações, indefere-se o requerido pela filha CB, por falta de fundamento legal, uma vez que o seu direito a alimentos é irrenunciável, nos termos do artigo 2008.º do Código Civil, mantendo-se a correspondente obrigação de alimentos a cargo do progenitor obrigado RB, nos exactos termos estabelecidos»[4].
*
Notificado o Ministério Público, pronunciou-se no sentido de que, tendo CB atingido a maioridade, «(...) carece o Ministério Público de legitimidade para continuar a intervir neste processo, razão pela qual não se apresentará Resposta ao Recurso interposto pelo progenitor RB».
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Por sua vez, a recorrida LB contra-alegou. pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, perante as conclusões da alegação do apelante, neste recurso importa decidir:
- da legitimidade da requerente LB para intervir nos autos depois de a sua filha CB, beneficiária dos alimentos, ter atingido a maioridade;
- se deve declarar-se cessada a obrigação do recorrente prestar alimentos a favor da sua filha CB.
***
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que decorre do relatório que antecede.
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3.2 – Fundamentação de direito:
Salvo o devido respeito, estamos na presença de vários equívocos que importa começar por esclarecer.
Estamos em presença de um incidente de cessação da prestação de alimentos a filho maior.
Dispõe o art.º 989.º, n.º 2, que «tendo havido decisão sobre alimentos a menores ou estando a correr o respetivo processo, a maioridade ou a emancipação não impedem que o mesmo se conclua e que os incidentes de alteração ou de cessação dos alimentos corram por apenso».
No caso concreto, como se viu, houve decisão sobre alimentos a filha menor, transitada em julgado, pelo que, atingida a maioridade da beneficiária, o incidente com vista à cessão da sua prestação por parte do progenitor, deveria ter corrido por apenso ao processo onde aquela decisão foi proferida.
Vale isto por dizer que este incidente de cessação de prestação de alimentos deveria ter corrido ab inicio, por apenso ao processo de divórcio, e não incorporado neste apenso de incidente de incumprimento de responsabilidades parentais, o qual, por sinal, até já se encontrava findo quando foi instaurado aquele outro incidente.
Por conseguinte, apresentado por RB, o requerimento datado de 8 de agosto de 2024, através do qual deu início a este incidente de cessação de prestação de alimentos, deveria o mesmo, ter sido autuado por apenso, autonomamente, e não incorporado neste apenso A), respeitante a incidente de incumprimento de responsabilidades parentais.
Não o tendo sido, incumbia à senhora juíza a quo, na primeira vez que o processo de lhe foi concluso após a apresentação, por RB, do requerimento datado de 8 de agosto de 2024, ordenar:
- o seu desentranhamento destes autos de incidente de incumprimento de responsabilidade parentais (findo, havia meses, quando aquele requerimento foi apresentado), assim como todo o expediente subsequente; e,
- a respetiva autuação como apenso autónomo de incidente de cessação de prestação de alimentos.
Esse seria o procedimento correto!
Vejamos agora o momento em que o tribunal a quo proferiu decisão:
- quanto ao requerimento apresentado por LB no dia 23 de setembro de 2024 e à declaração com ele junta, subscrita pela filha, CB; e,
- quanto ao requerimento apresentado pelo requerido RB no dia 8 de outubro de 2024.
O momento processual próprio para o tribunal a quo proferir decisão sobre tais requerimentos, era, como parece lógico, antes, e não depois da prolação do despacho que admitiu o recurso interposto por RB da decisão proferida no dia 16 de setembro de 2014.
E que dizer quanto à tramitação imprimida ao próprio recurso.
A senhora juíza a quo começou por admitir o recurso e só a seguir:
- ordenou a notificação dos demais sujeitos processuais; e,
- determinou que os autos aguardassem «o decurso do prazo de resposta ao recurso apresentado pelos demais sujeitos processuais».
Como é sabido, há vários anos que as coisas se processam de forma diferente em sede de tramitação dos recursos.
Conforme decorre dos arts. 638.º, n.º 5 e 641.º, n.º 1, do CPC/13, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, entrado em vigor no dia 1 de setembro de 2013, o juiz apenas tem intervenção depois de decorrido o prazo para apresentação das contra-alegações; ou seja, é só depois da apresentação das contra-alegações, ou de decorrido o prazo para o efeito, que o juiz admite o recurso ou indefere o requerimento de interposição do mesmo.
Posto isto, passemos à apreciação da decisão recorrida!
Como ponto de partida importa ter presente que o incidente de cessação da prestação de alimentos se insere no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, a que são aplicáveis as disposições contidas nos arts. 292.º a 295.º, podendo o tribunal, «no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes», só sendo «admitidas as provas que o juiz considere necessárias».
Voltaremos, naturalmente, a esta questão!
Como se viu, a decisão recorrida indeferiu «o requerido pelo progenitor RB», o mesmo é dizer, julgou improcedente o incidente de cessação da prestação de alimentos por este deduzido, «por falta de fundamento legal», mantendo, consequentemente, «a obrigação legal de pagamento da prestação de alimentos à sua filha CB até que aquela complete o seu processo de educação/formação profissional, até aos 25 anos, ao abrigo do disposto nos artigo 1880.º e 1095.º n.º 2 do Código Civil».
Afigura-se-nos evidente que esta decisão não pode subsistir!
Dispõe o art.º 1880.º do CC:
«Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o número anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.»
Estatui o n.º 2 art.º 1905.º do mesmo diploma, com a redação que lhe foi dada pelo art.º 2.º da Lei n.º 122/2015, de 1 de setembro:
«2 - Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.»
 Conforme afirma Diana Ramos Mariano, «estabelece-se uma presunção de necessidade de alimentos a favor do filho maior de idade que ainda não atingiu os 25 anos. Tal presunção vem ao encontro da actual situação económica e social portuguesa. Assim, o nº 2 do art.º 1905º CC dispensa o filho maior de alegar e provar os pressupostos do art.º 1880º CC. Se durante a sua menoridade estiver fixada uma prestação alimentar, atingidos os 18 anos, esta não cessa automaticamente e continua a servir como título executivo. Face a esta inversão do ónus da prova, compete ao progenitor não residente, atingida a maioridade do seu filho, requerer contra este a cessação ou alteração da obrigação de alimentos, cabendo-lhe a demonstração da irrazoabilidade do pagamento da prestação, podendo argumentar que (1) o seu filho ultrapassou os 25 anos, (2) que a sua formação se concluiu (3) ou que este terminou livremente a sua formação»[5].
Escreve ainda a mesma Autora que «para justificar a cessação da obrigação de alimentos devida a filhos maiores, socorremo-nos principalmente dos arts. 2013º, 115º, 1880º, 1905º, nº 2, todos do CC. O nº 1 do art.º 2013º, contempla as causas gerais de cessação da obrigação de alimentos. Nos termos da al. a), esta cessará com a morte do obrigado a alimentos ou do alimentando. Para além disso, de acordo com a al. b), cessará também se não se verificar proporcionalidade entre as possibilidades do obrigado e as necessidades do alimentando, quer porque este já concluiu o seu percurso académico, quer porque se dispôs a trabalhar, a fim de atenuar as suas necessidades económicas, como resulta do art.º 1880º CC.
(...) à luz do actual art.º 1905º, nº 2 CC é ainda causa de cessação da prestação a demonstração da irrazoabilidade do seu pagamento. Há inversão do ónus da prova, competindo ao progenitor obrigado alegar e provar que o seu filho ultrapassou os 25 anos, que a sua formação terminou ou que foi por este livremente terminada»[6].
Consta da fundamentação da decisão recorrida, além do mais, o seguinte:
I - «(...) No caso em apreço e atendendo aos elementos já constantes dos autos, verifica-se que, por decisão judicial já transitada em julgado nos autos principais, o progenitor RB ficou obrigado a contribuir com a quantia mensal de 75, 00 € (setenta e cinco euros), a título de pensão de alimentos, a favor da jovem CB, nascida em 23-03-2006, que atingiu a maioridade em 23-03-2024.
Importa verificar se, atendendo à situação concreta da jovem CB, a obrigação de alimentos continua a ser devida pelo seu progenitor RB.
Dispõe o artigo 1879.º do Código Civil que “Os pais ficam desobrigados de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação na medida em que os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos.”
Nos termos do artigo 1880.º do mesmo diploma, prevê-se que “(...”)[7].
Por último, de acordo com o n.º 2 do artigo 1905.º daquele diploma “(...)”[8].
 Ora, a redacção dada ao n.º 2 do artigo 1905.º com a Lei n.º 122/2015, de 01 de Setembro veio clarificar que a prestação de alimentos já fixada anteriormente na menoridade do filho, mantém-se automaticamente após o mesmo atingir a maioridade e até perfazer 25 anos de idade.
Nesse sentido, caberá aos progenitores a obrigação de prover aos filhos – já maiores – o sustento dos mesmos para que estes possam concluir os estudos e/ou formação profissional, em cumprimento, enquanto pais, do seu dever de educação e instrução com vista à sua autonomia e independência dos filhos, sem que para tal estes tenham de trabalhar, ainda que o possam o vir a fazer.
Tal obrigação de alimentos na maioridade poderá, no entanto, ser afastada, cabendo ao progenitor vinculado à prestação alimentícia requerer a sua cessação, tendo o ónus de alegar e provar que o processo de educação ou formação profissional do filho foi concluído antes de este perfazer os 25 anos ou foi voluntariamente interrompido por este ou, ainda, a irrazoabilidade da exigência da prestação alimentícia. [Nesse sentido, Ac. TRG 19-12-2017 Relator Arlindo Oliveira e Ac. TRP 23-03-2023 Relator Francisca Mota Ribeiro]».
Concorda-se inteiramente com o assim afirmado pelo tribunal a quo.
II - «Veio o progenitor alegar que a filha atingiu a maioridade, encontra-se a trabalhar e que não prosseguiu os estudos após o secundário (que terminou em julho do presente ano).
Contudo, o mesmo não demonstra nem prova que o processo de educação da filha foi voluntariamente interrompido por esta ou que se mostra irrazoável exigir a prestação de alimentos.
Concorda-se igualmente com assim afirmado pelo tribunal a quo.
III - «Efectivamente, a sua filha i) atingiu a maioridade, ii) não ingressou na universidade e iii) encontra-se a trabalhar».
Está provado que CB atingiu a maioridade no dia 23 de março de 2024.
A expressão «não ingressou na universidade» é redutora, pois o conceito de «formação profissional» é utlizado nos arts. 1880.º e 1905.º, n.º 2, do CC, em sentido lado, indo muito além do ingresso na universidade.
Não está provado que CB se encontre a trabalhar.
IV - «Contudo, não obstante tais pontos, CB mantém vontade de prosseguir os seus estudos, não o tendo feito por falta de suporte financeiro suficiente para fazer face às despesas que acarretam aquele ciclo, ainda para mais quando tal implicará uma mudança de residência para outra ilha ou, quiçá, para o continente, encontrando-se actualmente a trabalhar, por forma a angariar dinheiro para suportar tais despesas».
Nada disto se encontra provado!
V - «Ora, adiante-se já que o facto de CB não se encontrar, actualmente, a prosseguir a sua educação/formação profissional, não preenche o pressuposto legal de ter interrompido, por livre iniciativa, o seu processo de formação/educação».
Concorda-se, em termos genéricos, que a simples circunstância de alguém «não se encontrar, actualmente, a prosseguir a sua educação / formação profissional» não preenche, por si só, «o pressuposto legal de ter interrompido, por livre iniciativa, o seu processo de formação/educação».
VI - «Atendendo à situação concreta de CB, constata-se que este “interregno” nos estudos não lhe é imputável nem se deve a sua culpa, uma vez que a mesma mantem a vontade de continuar os estudos, não o tendo feito por insuficiência económica no momento da conclusão do ensino secundário».
Trata-se de uma conclusão que não assenta em qualquer facto provado!
VII - «Pelo que, não restam dúvida que a prestação de alimentos devida pelo progenitor deverá continuar a ser cumprida em favor da filha, ainda que maior de idade, quando esta não tenha seguido o seu processo formativo/profissional por causa que não lhe é imputável como não deter condições económicas suficientes para fazer face às despesas de ensino superior aquando do término do ensino secundário».
Trata-se de uma conclusão que não assenta em qualquer facto provado!
VIII - «Ademais, não poderá considerar-se irrazoável a exigência da prestação alimentícia ao progenitor, só pelo simples facto de CB encontrar-se a laborar».
Concorda-se, em termos genéricos, que «não poderá considerar-se irrazoável a exigência da prestação alimentícia ao progenitor, só pelo simples facto de» o filho maior se encontrar a laborar.
IX - «In casu, é de louvar a atitude de CB que se propôs a trabalhar por forma a angariar capacidade financeira para poder prosseguir com os seus estudos, sem prejuízo da pensão de alimentos do progenitor e custeamento de vida pela progenitora, pelo que, ainda mais fará sentido a manutenção daquela prestação de alimentos por forma a garantir o sustento da filha numa fase prévia e como ajuda à entrada na fase da universidade, considerando o tipo de despesas que tal acarreta, em especial com o alojamento e deslocações inter-ilhas ou até ao Continente».
Trata-se de uma conclusão que não assenta em qualquer facto provado!
Por conseguinte, a decisão recorrida não assenta em qualquer facto concreto previamente considerado provado pelo tribunal, limitando-se a senhora juíza a quo, ao que parece, a acolher como verdadeiros, sem produção de qualquer meio de prova, os argumentos expendidos por LB no articulado de resposta ao requerimento apresentado por RB através do qual requer a cessação da prestação de alimentos a favor da sua filha maior CB.
Não oferece dúvida que cabe a RB o ónus de alegar e provar a irrazoabilidade do pagamento da prestação, com o argumento de que, tendo a sua filha atingido a maioridade:
a) se encontra a trabalhar;
b) não pretende seguir com estudos universitários;
c) não necessita, pela razão referida em a), de receber pensão de alimentos.
É certo que, nos termos conjugados dos arts. 293.º, n.º 1 e 986.º, n.º 1, era no requerimento com que introduziu o incidente de cessação da prestação de alimentos que RB devia ter oferecido o rol de testemunhas e outros meios de prova, o que, na realidade, não fez.
No entanto, no dia 4 de setembro de 2024, RB veio, «requer que sejam oficiados os Serviços do Instituto da Segurança Social para virem juntar aos autos a ficha de descontos da filha CB, bem como a indicação de qual o tipo de contrato que foi outorgado com a entidade patronal e data de início dos mesmos».
Sobre tal requerimento não recaiu qualquer decisão judicial!
Nos termos do art.º 986.º, n.º 2, «o tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias».
Em anotação a este preceito, escrevem Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Sousa que ele «prescreve a prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo, de modo que “os factos essenciais que constituam a causa de pedir não delimitam o âmbito de cognição do tribunal já que este pode considerar outros factos (complementares concretizadores, instrumentais, notórios, de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou que sejam constitutivos do desvio da função processual) para além daqueles que são alegados pelas partes” (António J. Fialho, ob. cit., p. 97), não estando dependente de nenhum ónus de alegação pelos intervenientes, na precisa medida em que pode conhecer oficiosamente os factos, quer por investigação própria, quer na sequência de alegação dos interessados. Todavia, esta prevalência do princípio do inquisitório não deve ser lida como uma dispensa do ónus da alegação da matéria de facto por parte dos intervenientes (porquanto persiste um princípio de autorresponsabilidade mitigada) e não os exime de fundamentar os pedidos formulados. A liberdade e iniciativa probatória do juiz tem como limite o objetivo prosseguido pelo processo especial em causa, bem como a adequação da medida a adotar à finalidade pretendida.
Este n.º 2 preconiza a flexibilidade da tramitação processual, sendo lícito ao juiz realizar atos ou formalidades não especificamente previstos e omitir aqueles que se revelam destituídos de interesse para o exame ou decisão da causa (RP 2-2-15. 955/12, www.colectaneadejurisprudenda.com), assim como pode prescindir de provas que repute inúteis ou de difícil obtenção (RP 14-6-10,148/09), numa vertente de intervenção discricionária e fundamentada na avaliação do que, no seu prudente arbítrio, considere útil para a decisão (RP 15-9-16, 2848/15, www.colectaneadejuris-prudencia.com). (…).
A especificidade dos processos de jurisdição voluntária levou ainda o legislador a adotar uma tramitação processual simplificada, em resultado da remissão para as disposições sobre incidentes da instância (arts. 292º a 295º) que não contrariem o que especificamente se prescreve. Tal encontra tradução na simplicidade da alegação dos fundamentos fácticos e jurídicos, na apresentação imediata dos meios de prova com o requerimento e com a oposição, na limitação do número de testemunhas, em comparação com o que se verifica no processo comum (sem embargo da oficiosidade), e na brevidade das alegações orais. Diversamente do que consta do art.º 295º, a decisão pode ser proferida dentro do prazo de 15 dias e, por outro lado, a obrigatoriedade de advogado apenas ocorre na fase de recurso»[9].
«(...) nestes processos, o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 986.º, n.º 2, do CPC), pelo que, no plano da alegação dos factos e da prova, o princípio do inquisitório predomina sobre o princípio do dispositivo (cfr. v. g. o Acórdão do TRP, de 8 de junho de 2022, Processo n.º 321/20.6T8ETR.P1, Relatora: Fernanda Almeida).
(...)
Destarte, enquanto na jurisdição contenciosa, os poderes oficiosos do juiz em matéria de prova têm natureza subsidiária, na jurisdição voluntária essa limitação não existe (REIS, Alberto dos, op. cit., pp. 399-400)»[10].
O excurso que antecede permite-nos agora concluir, sem margens para dúvidas, que a decisão recorrida, da qual não resulta sequer enunciado qualquer facto provado, não pode subsistir, devendo ser revogada e substituída por outra que, à luz do dever de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1) e do princípio da adequação formal (art.º 547.º), e em conformidade ainda com o disposto no art.º 193.º, n.º 3, determine a devolução dos autos ao tribunal recorrido, onde:
a) deverá ser proferido despacho a ordenar:
- o desentranhamento do requerimento apresentado por RB no dia 8 de agosto de 2024 (Ref.ª 49636296), assim como de todo o expediente que subsequentemente a ele se mostra processado; e,
- a sua atuação em apenso autónomo, como incidente de cessação de prestação de alimentos;
b) os autos constituídos pelo apenso assim instruído deverá prosseguir seus termos:
- adotando-se a tramitação processual adequada às especificidades da causa; e,
- adaptando-se o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, de forma a assegurar-se um processo equitativo, em decorrência até do decidido neste acórdão, devendo a senhora juíza a quo:
c) necessariamente, conhecer do requerimento apresentado por RB no dia 4 de setembro de 2024, onde «requer que sejam oficiados os Serviços do Instituto da Segurança Social para virem juntar aos autos a ficha de descontos da filha CB, bem como a indicação de qual o tipo de contrato que foi outorgado com a entidade patronal e data de início dos mesmos»;
d) ordenar a produção dos meios de prova que tiver por convenientes à decisão do incidente, além do referido em c), determinando, eventualmente, a audição de CB no sentido de apurar se a mesma pretende, ou não, prosseguir a sua formação profissional e, em caso afirmativo, em que termos.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, em consequência do que revogam a decisão recorrida, que substituem por outra a determinar a devolução dos autos à 1.ª instância, nos termos e para os efeitos acabados de descrever em a) a d) da fundamentação deste acórdão.
As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelada, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

Lisboa, 11 de março de 2025
José Capacete
Cristina Silva Maximiano
Diogo Ravara
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[3] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[4] Nenhum dos sujeitos processuais reagiu contra este despacho.
[5] A Obrigação de Alimentos Devida a Filhos Maiores, à Luz da Lei n.º 122/2015, de 1 de setembro, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no âmbito do 2º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre) na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, Coimbra, 2017, acessível na internet em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/84232/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Diana%20Mariano.pdf, p. 31.
[6] A Obrigação de Alimentos Devida a Filhos Maiores…, pp. 52-53.
[7] O art.º 1880.º do CC já se encontra transcrito supra.
[8] O n.º 2 do art.º 1905.º do CC já se encontra transcrito supra.
[9] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, Almedina, 2022, pp. 459-460.
[10] Cfr. Lurdes Varregoso Mesquita-Diana Leiras, Processos de Jurisdição Voluntária, Anotações aos artigos 989.º a 1081.º do CPC, 1.ª Edição, Gestlegal, 2024, pp. 21-22.