DETENÇÃO E USO DE ARMAS
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Sumário

Na dúvida sobre a detenção, conhecimento e uso das armas por parte do arguido, o tribunal deveria ter decidido a favor do arguido. O facto de não se poder provar com suficiente segurança que o arguido tinha controlo sobre as armas, nem que sabia da sua existência no veículo, são determinantes para a sua absolvição por in dúbio pro reo.

Texto Integral

Proc. n.º 14/23.2SPRT.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 2

Relator Paulo Costa

1º Adjunto Nuno Pires Salpico

2ª Adjunta Amélia Catarino

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo Comum Singular em epígrafe id. a correr termos no Juízo Local Criminal do Porto, por sentença foi decidido:

« A) Condeno o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, nº 1, alíneas c) e d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção introduzida pela Lei n.º 12/2011, de 27.04; art.º 2º, n.º1, al. p), e sub al. i), q), az) e ae), n.º3, al c), e ar.º 3º, n.º1 e 3, b); art.º 2º, n.º1, al. p, sub al i), v), n.º3, al c), e art.º 3º, n.º2, al l); art.º2º, n.º3, al. p) e ac), art.º3º, al.a) e b); art.º2º, n.º3, al.p) e ac), art.º3º, n.º4, al b), tudo do mencionado diploma, na pena de 3 (três) anos de prisão.

B) Mais condeno a arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UCs. (art.ºs 513º, 514º, do C.P.P. e art.º 8º, n.º9, do R.C.P., Tabela anexa III)


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Declaro as armas e munições apreendidas perdidos a favor do Estado, nos termos do art.º 109º, n.º1, do C. Penal.

Comunique à PSP-NAE do Porto para que diligencie pelo destino a dar às armas e às munições, nos termos do artigo 78º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro. »


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Inconformado o arguido interpôs recurso, solicitando a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que o absolva, concluindo (transcrição):

«Conclusões que apresenta o Arguido.

Na sentença sub Júdice o Tribunal a quo condenou o Arguido Recorrente pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86º, nº 1, alíneas c) e d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção introduzida pela Lei n.º 12/2011, de 27.04; art.º 2º, n.º1, al. p), e subalíneas i), q), az) e ae), n.º3, al c), e ar.º 3º, n.º1 e 3, b); art.º 2º, n.º1, al. p, subalíneas i), v), n.º3, al c), e art.º 3º, n.º2, al l); art.º2º, n.º3, al. p) e ac), art.º3º, al. a) e b); art.º2º, n.º3, al. p) e ac), art.º3º, n.º4, al b), tudo do mencionado diploma, na pena de 3 (três) anos de prisão.

Mais foi o Arguido condenado no pagamento das custas do processo fixadas na taxa correspondente a 2 Unidades de conta.

Não se conforma o Arguido com a Sentença porquanto da matéria de facto apurada em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, impunha-se, uma decisão de absolvição quanto a todos os crimes pelos quais vinha acusado.

Sem prescindir, e sem conceber, entende o Arguido Recorrente que o douto Tribunal na determinação da medida da pena que lhe foi aplicada, mormente na fundamentação aduzida a respeito da possibilidade de substituição da pena aplicada não teve em consideração a factualidade assente quanto à conduta do Arguido na sua conduta, anterior e posterior, à prática do crime e circunstâncias do mesmo, violando os artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal.

Pelo que através o presente recurso, o Arguido Recorrente requer a nulidade da Sentença – artigos 379.º, n.º 1, c) e 410.º, n.º 2, a) CPP), quanto aos factos, impugnando matéria de facto em concreto, devidamente especificada, individualizada por facto concreto e provas produzidas, e quanto ao direito, porque a sentença viola o disposto no artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção introduzida pela Lei n.º 12/2011, de 27.04; art.º 2º, n.º1, al. p), e subalíneas i), q), az) e a e), n.º3, al c), e ar.º 3º, n.º1 e 3, b); art.º 2º, n.º1, al. p, subalíneas i), v), n.º3, al c), e art.º 3º, n.º2, al l); art.º2º, n.º3, al. p) e ac), art.º3º, al. a) e b); art.º2º, n.º3, al. p) e ac), art.º3º, n.º4, al b), do RJAE; e, ainda, o disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal.

Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no que respeita aos normativos do RJAM, entende-se que o Tribunal deveria ter conhecido que da prova produzida em juízo e a conduta do Arguido Recorrente não lhe são subsumíveis porque não resultou provado que o Arguido Recorrente deteve ou usou as armas e munições em discussão.

A sentença a quo padece do referido vício por assentar em deficiente decisão da matéria de facto provada com relevância para a boa decisão da causa porquanto ) não resultou da prova produzida factos que permitem com toda a certeza o preenchimento da prática do tipo de ilícito criminal de que o Arguido veio acusado; e

(ii) não foram devidamente valorados e apreciados factos resultantes da prova documental e testemunhal produzida que afastam a punibilidade do agente e que por essa razão deveriam ter sido dados por provados pelo Tribunal a quo alterando por completo o sentido da decisão a ser proferida.

Em concreto, e no que respeita aos factos que deveriam ter sido dados por provados, o Tribunal a quo deveria ter considerado provado e valorado as circunstâncias em que surgiu a notícia dos crimes previsto e punidos nos presentes autos, âmbito do inquérito com o n.º ..., para combate ao tráfico de droga, que nada têm a ver com o Arguido.

Tal como resulta do depoimento da testemunha do Senhor Agente BB prestado na sessão de audiência de discussão e julgamento de 10 de setembro e que, conforme consignado em ata se encontra gravado na aplicação informática em uso no tribunal com início a 10:40 e termo a 10:50, das declarações prestadas pelo próprio Arguido, AA, prestado na sessão de julgamento do dia 16.09.2024, conforme consignado em ata se encontra gravado na aplicação informática em uso no tribunal com início a 14:39 e termo a 14:50, em concreto a partir dos 02 minutos e 50 segundos.

Não foi considerado pelo Tribunal o facto de que o Arguido Recorrente não se encontrar na viatura com a matrícula ..-..-GL, de marca Peugeot, modelo ..., de cor ..., onde foram descobertas as armas de fogo e munições aprendidas nos presentes autos, nem tão pouco se encontrava nas imediações da mesma -Cfr. pagina 3 do auto de notícia e do aludido depoimento do Senhor Agente BB, a partir do 1 minuto e 10 segundos.

O Tribunal não deu como provado que o Arguido Recorrente autorizou a realização de uma busca à mesma, o que indicia um juízo de inexistência de ilícito criminal, conforme resulta do auto de autorização de busca manuscrita junto aos autos, e de depoimento do referido Agente BB a partir do 1 minuto e 57 segundos;

Acresce que o Tribunal não considerou provado que a viatura se encontrava fechada,

o Tribunal não considerou provado que o Arguido não dispunha de meios de acesso à viatura, nomeadamente chaves da mesma,

o Tribunal não considerou provado que os senhores agentes procederam facilmente à abertura da mesma sem causar qualquer tipo de dano, o que consistia num procedimento simples e que qualquer um poderia executar sem dano.

Veja-se ainda o auto de interrogatório do Arguido junto aos autos a fls, do processo, datado de 22.11.2023, executado entre as 15h35 e termo as 15h58m, e, também o depoimento do Agente a partir do 1 minuto e 53 segundos até 2minutos e 40 segundos, e novamente aos 5minutos e 33 segundos até aos 7 minutos de gravação.

Trata-se de factos que cremos provados, que por prova documental, quer por prova testemunhal e que não constam da fundamentação da sentença na parte dos factos provados, nem tão pouco da convicção do Tribunal.

Da prova produzida resulta apenas provado o facto de o veículo automóvel no qual se encontravam no porta luvas as referidas armas e munições proibidas é propriedade do Arguido Recorrente, o que não é mesmo que posse, detenção ou utilização.

Estamos perante factos que deveriam ter sido considerados para a boa decisão da causa e cuja não ponderação determina nulidade da sentença que o Recorrente expressamente vem arguir.

Sempre se diga, que o Tribunal fez uma errada apreciação da matéria de facto que importa assim que seja alterada em função da prova documental e testemunhal supratranscrita, a saber:

Quanto à prova documental, expõe-se os seguintes meios de prova que impõe decisão diversa (Cfr. do disposto no artigo 412.º, n.º 4 do CPP): Teor do Auto de notícia por detenção, datado de 01.03.2023, na parte identificada na parte da motivação, que aqui se dá como reproduzida;

Teor da autorização de busca manuscrita pelo Arguido, datada de 01.03.2023, e junta ao auto acima mencionado, na parte identificada na parte da motivação, que aqui se dá como reproduzida;

Teor do auto de interrogatório do Arguido junto aos autos a fls, do processo, datado de 22.11.2023, executado entre as 15h35 e termo as 15h58m, na parte identificada na parte da motivação, que aqui se dá como reproduzida;

Nas declarações do Arguido, AA, prestado na sessão de julgamento do dia 16.09.2024, conforme consignado em ata se encontra gravado na aplicação informática em uso no tribunal com início a 14:39 e termo a 14:50; e

No Depoimento da Testemunha Senhor Agente BB prestado na sessão de audiência de discussão e julgamento de 10 de setembro e que, conforme consignado em ata se encontra gravado na aplicação informática em uso no tribunal com início as 10:40 e termo as 10:50.

Pelo exposto, são factos pertinentes e essenciais para a boa decisão da causa e que, por este motivo, devem ser aditados aos factos provados, os seguintes:

1) A notícia da existência de armas e munições proibidas na viatura, teve origem em informações obtidas numa operação policial que teve lugar na data da prática dos factos no Bairro ..., que incluiu buscas domiciliárias, processo em que o Arguido nada tem a ver, referente ao tráfico de droga (inquérito com o n.º ...)

2) O Arguido Recorrente não se encontrava na viatura com a matrícula ..-..-GL, de marca Peugeot, modelo ..., de cor ..., onde foram descobertas as armas de fogo e munições aprendidas nos presentes autos;

3) O Arguido Recorrente não se encontrava nas imediações da referida viatura com a matrícula ..-..-GL, de marca Peugeot, modelo ..., de cor ..., onde foram descobertas as armas de fogo e munições aprendidas nos presentes autos.

4) o Arguido colaborou com os agentes de autoridade a autorizar voluntariamente a realização de uma busca à viatura com a matrícula ..-..-GL.

5) A viatura matrícula ..-..-GL, de marca Peugeot encontrava-se fechada,

6) O Arguido não dispunha de meios de acesso à viatura, nomeadamente de chave da mesma;

7) Os senhores agentes procederam facilmente à abertura da viatura matrícula ..-..-GL sem causar qualquer tipo de dano, facto que se mostrou de fácil execução por qualquer pessoa.

XXII. A prova dos factos supramencionados que deveriam ter sido valorados pelo Tribunal a quo, conduz-nos necessariamente à não prova dos factos dados por provados na sentença recorrida.

XXIII. Em concreto, não corresponde à verdade e não resulta provada a detenção pelo Arguido das ramas e munições proibidas, mas apenas e tão só a propriedade da viatura na qual se encontraram as armas e munições referenciadas.

XXIV. Não resultou provado que a viatura era habitualmente usada pelo Arguido, pelo contrário, pois resultou das mencionadas declarações e interrogatório do Arguido e depoimento do Senhor Agente que a viatura se encontrava avariada, e que não foi possível verificar se o Arguido era o condutor e utilizador habitual do veículo.

XXV. Ademais, da factualidade provada o Tribunal não dá conta de qualquer ligação efetiva entre as armas e munições em causa e a conduta criminosa do arguido.

XXVI. Acresce, ainda, que quanto à arma de marca "Sig Sauer", não resulta provado o respetivo exame feito pelo Núcleo de Armas e explosivos do Comando metropolitano do Porto da PSAP (exame n.º 213/2013) que a mesma se encontrava em bom funcionamento e estado de conservação.

XXVII. Concluindo-se, assim, que o Tribunal deverá considerar não provados os factos acima transcritos considerados provados na sentença recorrida.

XXVIII. O Tribunal a quo, ao dar como provados os factos assentes na fundamentação da sentença, violou o disposto no artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d), da Lei nº 5/2006, de n.º1, al. p), e subalíneas i), q), az) e ae), n.º3, al c), e ar.º 3º, n.º1 e 3, b); art.º 2º, n.º1, al. p, subalíneas i), v), n.º3, al c), e art.º 3º, n.º2, al l); art.º2º, n.º3, al. p) e ac), art.º3º, al. a) e b); art.º2º, n.º3, al. p) e ac), art.º3º, n.º4, al b), tudo do mencionado diploma,

Da prova produzida, erradamente considerada e valorada, resulta que o arguido não deteve, nem usou, nem teve na sua posse as armas e munições proibidas em discussão nos autos.

Como nos explica a melhor jurisprudência no, acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no âmbito do processo 10/09.2GFMMN.E1, datado de 17.09.2013., para efeitos do crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86.°da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, pratica a ação típica na modalidade de detenção quem tenha a arma consigo ou quem a tenha na sua esfera de disponibilidade, ainda que de forma esporádica ou transitória, sem prejuízo da eventual verificação das causas comuns de justificação ou de exclusão da culpa.”.

Resulta da prova produzida que o arguido recorrente não tinha consigo as armas e munições, nem as mesmas se encontravam na sua esfera de disponibilidade.

Não se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos da prática do crime que lhe foi imputado e pelo qual foi condenado pelo Tribunal a quo.

Nos termos do supra alegado e não tendo o recorrente praticado nenhum dos crimes em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido da sua prática, e do pagamento das custas do processo.

Sem prescindir, e caso assim não se entenda:

Entende, ainda, o Arguido Recorrente que o douto Tribunal não teve em consideração a factualidade assente quanto à sua personalidade, sua conduta, anterior e posterior, à prática do crime e circunstâncias do mesmo, violando o disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal.

Como ensina a melhor Doutrina e Jurisprudência, de acordo com os referidos preceitos legais, as finalidades da punição são exclusivamente preventivas.

No caso em discussão, decorre do relatório social junta a fls. do processo as circunstâncias pessoais e familiares do Arguido que ditaram o seu desenvolvimento psicossocial, os problemas de consumo de estupefacientes, as terapêuticas encetadas, o cometimento de crimes associados à adição.

resulta provado do relatório social e da própria matéria dada como provada na sentença que o Arguido já deu prova bastante e suficiente que é digno do apoio pessoal, social e terapêutico do Estado e das instituições no combate ao seu comportamento aditivo, e na obtenção de bases e princípios orientadores da sua conduta pessoal, profissional e social.

Como denota o relatório social junto o Arguido pese embora os anteriores confrontos judiciais, o arguido denota alguma capacidade de análise consequencial e autocrítica, com consequências na afirmação da necessidade de conservar um estado de abstinência como estratégia de adaptação a um quotidiano normativo.

Assim, em caso de condenação, consideramos que o processo de reinserção social de AA dependerá, essencialmente, da devida interiorização da ilicitude dos atos praticados. O definitivo afastamento de substâncias aditivas e o investimento na empregabilidade constituem, também, áreas de intervenção essenciais por forma a potenciar uma alteração do seu estilo de vida no sentido pró-social.”

Pelo exposto, as exigências de prevenção especial pugnadas pelo legislador e adiantadas no relatório social não se coadunam com a aplicação de uma pena de prisão efetiva, detentiva da liberdade.

Constando dos autos, que dispõe ao nível familiar de apoio regular e constante, de habitação condigna, e de que se encontram garantidas as condições mínimas necessárias para o seu processo de reinserção social.

De acordo com a melhor doutrina, a pena deve “em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de proteção dos bens jurídicos.”.

O cumprimento da pena de prisão de curta duração que foi aplicada ao Arguido pelo Tribunal a quo são consideradas, consensualmente, inúteis para a reeducação social, atento o reconhecido carácter criminogéno da prisão.

Dúvidas não restam de que o Tribunal a quo deverá aplicar ao Arguido uma pena de substituição da pena de prisão aplicada.

Só assim, será possível ao Arguido combater, de forma eficaz e definitiva, o seu comportamento aditivo, obter a capacitação e treino de competências pessoais e sociais que lhe permitirão manter-se livre de drogas, de cumprir com as suas obrigações pessoais e familiares num ambiente saudável, de reintegração social e profissional.

Assim, e por se encontrarem no caso em concreto preenchidos os pressupostos previstos no artigo 50.º do Código Penal, a pena de substituição adequada será a da suspensão da execução.

Até porque, salvo melhor entendimento, a ameaça de prisão feita pelo Tribunal a quo realizou de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Sem prejuízo, e caso o Tribunal entenda conveniente e adequado à realização das finalidades da punição a aplicar ao Arguido Recorrente, deve tal suspensão ser subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, sendo acompanhada de regime de prova.

Termos em que, julgando o recurso de acordo com as precedentes conclusões, revogando a sentença proferida pelo tribunal a quo por acórdão e, em consequência, ser o arguido recorrente absolvido dos crimes em que foi condenado, e respetivas custas do processo. Sem prescindir, e caso assim não se entenda, que proceda à substituição da pena de prisão aplicada por uma pena suspensa na sua execução, por um período igual de tempo, eventualmente sujeita a regime de prova,

Assim farão v. Exas. A acostumada justiça!!

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O M.P. respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo:

« Salvo melhor opinião, parece-nos que o recorrente não cumpriu minimamente com a obrigação de indicar as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida.

Na verdade, como bem refere o Professor Paulo Pinto de Albuquerque, no «Comentário do Código de Processo Penal», 2.ª edição, de Paulo Pinto de Albuquerque, pág 1131, anotação ao artº 412º do CPP: “ a especificação das "concretas provas" só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida... mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de "voltas" do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento».

Neste sentido se pronunciou também o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 15.11.2006.

No caso, como o presente, em que a gravação foi efectuada o recorrente tem que indicar o dia, hora, minuto e segundo em que se encontra gravada a parte das declarações ou depoimento, através das quais pretende convencer o tribunal de recurso de que a decisão daquele(s) ponto(s) da matéria de facto foi incorrecta e que devia ser diversa. E, além disso, também tem que a transcrever, o que no caso não foi feito.

Ante o exposto impõe-se concluir que não poderá prosseguir o recurso da matéria de facto a qual terá que manter-se inalterada nos termos constantes da decisão recorrida.

No fim de contas o que pretende o recorrente é agora contrapor a sua versão dos factos à convicção do Tribunal, colhida na imediação e na oralidade (princípios estes que o Tribunal Superior não tem à sua disponibilidade) e abalar esta convicção.

Conclui-se, assim, que a douta sentença decidiu correctamente a matéria de facto e de direito ora controvertida e sob concreta apreciação não se mostrando violada qualquer norma legal, substantiva ou adjectiva, que imponha a sua alteração ou revogação, conforme V. Exas. doutamente suprirão.»


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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde pugnou pela improcedência do recurso, subscrevendo a resposta do M.P. a quo.


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Cumpridas as notificações a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas.


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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

-Vicio da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

- Erro de julgamento.

- Errada valoração da prova.

- Suspensão da pena.


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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente à decisão e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados, respectiva motivação e medida da pena constantes da sentença recorrida (transcrição):

« A) FACTOS PROVADOS

Da audiência de discussão e julgamento, com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

No dia 01.03.2023 o arguido detinha no interior do seu veiculo automóvel de matricula ..-..-GL, estacionado na Rua ..., ..., no Porto, por si habitualmente usado:

- uma arma de fogo curta, pistola semi automática, calibre 9mm Parabelum, com o de arma e cano ...01, marca "Sig Sauer", de percussão central pois o seu percutor atua sobre a escora ou fulminante aplicado na base do involucro, podendo efectuar disparos por conter todos os mecanismos em bom funcionamento e estado de conservação;

- uma arma de fogo modificada, arma de fogo curta, revolver de repetição, da marca "Taurus", com o número de arma obliterado, de calibre .32 H&R Magnun, fabricada no Brasil, de percussão central pois o seu percutor atua sobre a escora ou fulminante aplicado na base do involucro, com as inscrições originais no que respeita à marca na face esquerda do cano, e do fabricante, origem e calibre na face direita do revólver; na face direita do revólver por cima do gatilho apresenta um número de série obliterado através de ação mecânica e a zona do punho de madeira foi reduzida; arma modificada mediante a intervenção não autorizada e a qual sofreu alterações das suas numerações de origem; apta a efectuar disparos por conter todos os mecanismos em razoável estado de conservação;

- 38 (trinta e oito) munições de arma de fogo, de calibre nominal 9mm parabeLLum, de várias marcas e origens, contendo o conjunto de componentes que permitem o disparo do projétil, quando introduzidas numa arma de fogo; constituídas por invólucro metálico, fulminante, carga propulsora e projétil em chumbo; este porjetil é encamisado, sendo designado com "Full Metal Jacket" por possuir uma camisa metálica que cobre o núcleo do mesmo em toda a sua extensão; de percussão central, sendo o seu sistema de ignição a atuação do percutor sobre o fulminante aplicado no centro da base do invólucro, podendo ser utilizadas em armas que usem tal calibre;

- 3 (três) munições da marca Fiocchi, calibre .32 S&W, constituidas por invólucro metálico, fulminante, carga propulsora e projétil em chumbo; de percussão central, sendo o seu sistema de ignição a atuação do percutor sobre o fulminante aplicado no centro da base do invólucro, em bom estado de conservação para serem utilizadas em armas que usem tal calibre.

O arguido não era nem é titular de licença de uso e porte de arma ou detenção no domicílio.

A detenção de armas de classe A e munições da classe B é proibida e insusceptível de ser autorizada.

O arguido sabia que, em virtude de não ser titular de licença de uso e porte de arma, não lhe era lícito adquirir, guardar, transportar, deter ou ter na sua posse as supra descritas armas e munições e sabia que era igualmente proibida a detenção das armas da classe A e munições da classe B, não obstante, detinha-as na sua posse, sabendo encontrarem-se aptas a ser utilizadas.

Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo a respectiva conduta proibida e punida por lei.

Mais se provou, quanto a antecedentes criminais, que:

O arguido já foi condenado:

i) nos autos de proc comum singular n.º... do 3ºJuízo-1ªSecção dos Juizos Criminais do Porto, por sentença de 14.05.2012, transitada em julgado em 14.06.2012, pela prática, em 24.03.2010, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 18 meses de prisão suspensa por igual período;

ii) nos autos de proc comum colectivo n.º ... do JC Criminal do Porto – Juiz 13, por acórdão de 27.11.2012, transitado em julgado em 09.01.2013, pela prática, em 26.02.2011, de um crime de tráfico de menor quantidade, na pena de 2 ano e 6 meses de prisão suspensa por igual período com regime de prova, entretanto revogada;

iii) nos autos de proc comum colectivo n.º... do JC Criminal do Porto – Juiz 7, por acórdão de 04.09.2013, transitada em julgado em 17.12.2014, pela prática, em 18.02.2011, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão suspensa por igual período, entretanto revogada;

iv) nos autos de proc comum colectivo n.º... da 1ª Vara Criminal do Porto, por acórdão de 30.05.2012, transitado em julgado em 20.02.2013, pela prática, em 02.06.2010, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão suspensa por igual período com regime de prova, entretanto prorrogado por 1 ano, posteriormente revogada;

v) nos autos de proc comum colectivo n.º... do JC Criminal do Porto – Juiz 2, por acórdão de 06.04.2017, transitado em julgado em 08.05.2017, pela prática, em 17.06.2016, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

vi) nos autos de proc de liberdade condicional n.º... do JE Penas do Porto – Juiz 1, por sentença de 16.04.2020, transitada em julgado em 16.04.2020, pela prática, em 17.06.2016, de um crime de tráfico de menor gravidade, e em 18.02.2011, de um crime de tráfico de estupefacientes, pela aplicação de perdão ao abrigo da Lei 9(2020, de 10.04, foi declarada perdoada a pena de prisão ainda não cumprida no proc n.º... e no proc n.º..., tendo-lhe sido concedida liberdade definitiva;

vii) nos autos de proc comum colectivo n.º... do JC criminal do Porto – juiz 9, por acórdão de 09.01.2024, transitado em julgado em 26.06.2024, pela prática, em 26.05.2023, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.

Provou-se ainda, quanto ao percurso de vida e condições socioeconómicas, que:

À data dos factos pelos quais vem acusado AA encontrava-se a viver em situação de sem-abrigo, na zona do bairro da ..., no Porto. Laboralmente inativo, não dispunha de qualquer rendimento ou apoio social, experimentando um quadro de significativa precariedade, socorrendo-se de expedientes vários para suprir as suas necessidades básicas e toxicómanas. Em fase ativa de consumos de cocaína e heroína, desprovido de qualquer acompanhamento especializado, vivia um ciclo de desorganização pessoal, sendo que o seu quotidiano se organizava em função da problemática dependente.

A 27.05.2023, deu entrada no Estabelecimento Prisional ..., sujeito a medida de coação de prisão preventiva no âmbito do processo ..., medida que lhe veio a ser alterada em 19.12.2023, para obrigação de apresentações periódicas.

Em liberdade, integrou o agregado da tia materna, CC, de 71 anos, reformada, residente em apartamento propriedade da mesma, tipologia 2, descrita como dispondo de condições habitacionais adequadas, localizado em zona sem significativa incidência de problemáticas sociais e/ou criminais. Não dispunha de rendimentos próprios, beneficiando do suporte financeiro e habitacional da tia materna, sendo a situação económica do agregado avaliada como estável. Permaneceria em espaço doméstico, onde se ocupava a ver televisão, registando poucas saídas. Estabelecia convívios com a progenitora e irmãs, bem como com a descendente (DD), presentemente com 13 anos de idade. A relação do arguido com a tia foi descrita como apoiante e afetivamente gratificante.

No que se reporta à sua trajetória de vida, AA detém como habilitações literárias o segundo ciclo do ensino básico. Integrou-se laboralmente aos 17 anos de idade, como operário fabril, tendo exercido outras atividades de caráter indiferenciado, nomeadamente na área da restauração, até cerca dos 20 anos de idade.

Nessa fase, o seu padrão de consumo de estupefacientes intensificou-se e complexificou-se, com impacto negativo ao nível da sua inserção laboral e estabilidade pessoal. Ao longo dos anos terá encetado diversas tentativas de tratamento, que não se revelaram consequentes. Afirma ter cessado o consumo de estupefacientes aquando da sua reclusão em maio de 2023, verbalizando estar abstinente desde então até à data, encontrando-se sem qualquer tipo de acompanhamento médico especializado na área das adições.

AA apresenta antecedentes criminais por crimes de tráfico de menor gravidade e foi alvo de duas revogações de suspensão de execução de pena de prisão. O arguido entrou no Estabelecimento Prisional ... em 21.10.2016, para cumprimento de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de um ano e seis meses à ordem do processo 1572/09.0PRT, tendo-se mantido recluído para o cumprimento de sucessivas penas de prisão aplicadas no âmbito de outros processos, vindo a ser libertado em 13.04.2020, ao abrigo do perdão concedido pela Lei 9/2020. Reconhece a ilicitude dos crimes pelos quais foi condenado, contextualizando as suas condutas nas dinâmicas decorrentes da sua toxicodependência, ainda que não as justifique por essa via. Em 27.05.2023, foi-lhe aplicada no âmbito do processo ... medida de coação de prisão preventiva, que lhe veio a ser alterada em 19.12.2023, para obrigação de apresentações periódicas. No âmbito deste processo foi condenado na pena de dois anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, que cumpre no EP 2... desde 16.07.2024. Tem um processo pendente de resolução, que decorre na 3ª Secção do DIAP de Vila Nova de Gaia, com o nº ....

Em contexto prisional observa uma conduta conforme ao normativo instituído e iniciou atividade laboral no pretérito 24.09.2024, na cozinha.

Dispõe de suporte familiar sólido protagonizado pela tia materna e prima, ainda que mantenha contactos telefónicos regulares com a progenitora e irmãs


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B) FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa não resultaram quaisquer factos como não provados.


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C) CONVICÇÃO DO TRIBUNAL

O Tribunal formou a sua convicção com base na prova produzida em audiência, em conjugação com os elementos juntos aos autos e depoimentos prestados.

Relevou, desde logo, o exame pericial de fls. 32 a 44.

Mais relevaram o auto de busca e apreensão de fls. 6, reportagem fotográfica de fls. 13 a 17 e a informação de fls. 31 e 56.

O arguido admitiu a propriedade do veículo identificado nos autos, mas negou a propriedade das armas e munições, afirmando não serem suas, apesar de se encontrarem no seu veículo, que se encontrava fechado e, disse, parado há já algum tempo por se encontrar avariado. Não adiantou, contudo, qualquer justificação plausível para tais bens se encontrarem no interior do seu veículo ou eventual suspeito de ali os ter colocado, o que se impunha, face à versão por si apresentada.

A testemunha BB, agente da PSP, circunstanciou o dia, local e motivo do ocorrido, as diligências efectuadas e a apreensão levada a cabo das armas e munições existentes dentro do veículo do arguido. Explicou que, à data, o arguido negou ser o proprietário das armas, o que atribuiu a outra pessoa que, contudo, não identificou devidamente. Confirmou o teor dos documentos juntos aos autos e com os quais foi confrontado. Prestou um depoimento isento, coerente, claro e esclarecedor, tendo merecido total credibilidade.

A existência de antecedentes criminais resultou do CRC junto aos autos.

O percurso de vida e condições socioeconómicas do arguido resultaram do relatório social elaborado pela DGRSP em conjugação com as declarações prestadas pelo arguido.“

Decidindo.

O recorrente entende que analisada a prova produzida em julgamento, as contradições existentes entre depoimentos e entre estes e prova documental, a matéria de facto considerada como provada foi incorretamente julgada.

A sentença é nula devido a erros na avaliação das provas, alegando que o arguido não tinha posse nem controlo das armas encontradas num veículo de sua propriedade. Além disso, questiona a pena de prisão aplicada, solicitando a sua substituição por uma pena suspensa, considerando a situação pessoal e social do arguido e o seu historial de dependência de drogas.

Em suma, os argumentos do arguido centram-se na alegação de que não ficou provado que ele detinha ou usava as armas, na crítica à valoração da prova por parte do tribunal, e na defesa de uma pena de substituição à pena de prisão, tendo em conta o seu percurso e as suas atuais condições de vida.

Do vicio da insuficiência.

O arguido alega que a sentença é nula por insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.

O tribunal não considerou factos que resultam da prova produzida e que afastam a punibilidade do arguido. Especificamente, o arguido alega que o tribunal não se pronunciou sobre questões que deveria ter apreciado, nomeadamente a falta de prova de que o arguido deteve ou usou qualquer dos instrumentos apreendidos.

Argumenta que a decisão assenta numa deficiente apreciação da matéria de facto.

O tribunal não valorizou corretamente a prova documental e testemunhal que demonstra que o arguido não detinha nem usava as armas e munições apreendidas.

Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».

Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].

No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que não se confunde com insuficiência de prova.

No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Por fim, o “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.

No acaso em apreço invoca-se o vicio da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.

Com bem refere Fernando Gama Lobo em Código Processo Penal anotado, 2ª ed. 2017. “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada: É um vicio endógeno da sentença, que se encontra previstos no art. 410º-2- a), isto é, tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Conforme o seu nomem júris, é um erro que tem assento exclusivamente na matéria de facto considerada provada; já não na não provada. Nada tem a ver com erro de julgamento em matéria de facto, que analisámos supra (confusão tantas vezes feita nos recursos). Em todo o caso, entre o erro/nulidade de "omissão de pronúncia" e este erro/vicio, existe uma relação de causa e consequência.

É unânime a jurisprudência no sentido de que só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando do acervo de factos vertidos na sentença se constata faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados e julgados (provados ou não provados), são necessários para se formular um juízo seguro de condenação (ou absolvição) e se determinar a natureza e a medida da sanção; ou, noutra formulação, quando a matéria de facto considerada provada na sentença, é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, o que se verifica quando o tribunal recorrido deixou ou não conseguiu apurar matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objeto do processo, tal como este está configurado pela acusação e pela defesa, o que conduz à formação incorreta de um juízo, porque a conclusão ultrapassa as premissas ou nelas não se ancora. É, em suma, um problema lacunar de raciocínio, Na alegação deste vício da sentença, importa que o recorrente invoque a factualidade considerada provada (não releva a não provada) e a confronte com a decisão sobre a matéria de facto evidenciando a falta de elementos para a conclusão, sem invocação de elementos exteriores. O vício é puramente lacunar e puramente endógeno da sentença. Obviamente, nada tem a ver com o entendi- mento pessoal do recorrente sobre a prova produzida. Não deve ele confundir o que foi considerado provado, com aquilo que ele recorrente, considerará ter-se provado (se quiser assim proceder, terá de ir pela via do erro de julgamento).

Em suma; se as premissas da sentença, no que toca á matéria de facto, são suficientes para se alcançar a conclusão condenatória que se alcançou, então não há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; se os factos reportados na sentença como provados, não constituem um acervo factual de elementos, inclusivamente de ordem típica, que consubstanciem o necessário e suficiente para se chegar á conclusão condenatória a que se chegou, então, há insuficiência para a decisão da matéria de facto considerada provada.

"o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão exige que deixe de ser apurada matéria factual relevante, não se mostrando elencado o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face a equação jurídica a resolver no caso" (Ac. TRL de 23.03.2006, Proc. n.° 06P959, in, www.dgsi.pt.).”

Da análise do texto decisório não se verifica que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe se o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insuscetível de adequada subsunção jurídico-criminal, “pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa, que ainda seja susceptivel apurar, sendo esse apuramento necessário para a decisão a proferir. (Ac. do STJ de 18.11.98, in, proc. n. 855/98).

Tudo o que havia para investigar foi investigado sendo que este vicio se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. (Ac. TRC de 30.03.2011, proc. 10/10.0РЕСТB.Cl, in, www.dgsi.pt).

Ora, no caso concreto o tribunal deu como provado que o automóvel onde se encontravam as armas era do arguido e que este o conduzia habitualmente. Trata-se de matéria fáctica suficiente para daí se extrair a conclusão que as armas estavam na posse do arguido e isto só com base no texto da decisão.

Questão diferente é se o tribunal teve suporte probatório para tal ou se a valoração que fez da prova violou as regras da experiência comum ou se não considerou factos relevantes apurados no julgamento, matérias a analisar noutra sede, a sede da denominada revista ampla do domínio do erro do julgamento.

Improcede, pois a alegada nulidade decorrente da existência do vicio de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Do erro de julgamento.

O erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, reporta-se às seguintes situações:

1. o Tribunal “a quo” dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;

2. ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;

3. prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;

4. prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;

5. e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.

O recorrente deu cumprimento aos disposto no art.412º, n º 3 do CPP já que indicou os concretos pontos da matéria de facto que considerou erradamente julgados, as concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida, sendo certo que se for possível versão diferente da pretendida pelo recorrente e essa versão, a do tribunal, tiver substrato na prova produzida e nas regras da experiência comum será esta a que prevalecerá em abono do principio da livre apreciação da prova realizada pelo tribunal.

Importa transcrever nesta decisão parte de acórdão proferido nesta instância pela Exmª Srª Drª. Lígia Trovão, nos autos de processo nº 2885/17.2JAPRT.P1 e que se subscreve por inteiro, a propósito das competências desta instância em sede de apreciação de recurso:

“ O recorrente para impugnar a matéria de facto em sede de erro de julgamento tem de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar qual o concreto documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens da gravação desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação([2])) e, no caso de ser requerida a audiência (não sucede no caso presente), as provas que devem ser renovadas, nos termos do art. 412º nºs 1, 3 alíneas a) a c) e 4 do CPP devendo, em simultâneo, esclarecer o porquê da discordância, como e qual a razão por que é os meios probatórios por si especificados contrariam/infirmam a conclusão factual do Tribunal de 1ª instância, fazendo uso de um raciocínio lógico e de exame crítico com o mesmo grau de exigência que se impõe ao tribunal na fundamentação das suas decisões([3]) e enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas, pois são essas que devem ser prima facie apreciadas pelo Tribunal de recurso (que não deixará, no entanto, de tomar em consideração, para além desses específicos trechos, também outros produzidos em audiência, nos termos do nº 6 do art. 412º do CPP, conforme resulta do disposto no art. 412º nº 4 do CPP, “sob pena do recorrente escolher a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material”([4])).

Ou seja, depois de indicar os concretos pontos de facto sobre os quais incide a discordância, impõe-se ao recorrente nos termos do citado art. 412º nº 3 b) do CPP, que indique concretamente em que documentos e/ou trechos/passagens das declarações e/ou dos depoimentos das testemunhas, ouvidos em audiência de julgamento, baseia a sua impugnação.

No caso destes autos, tendo sido documentados através de gravação áudio as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento (cfr. arts. 363º e 364º do CPP) e por reporte ao ónus de especificação da prova pessoal gravada imposto ao recorrente, haverá que ter presente o decidido pelo AUJ do STJ nº 3/2012 de 18/04/2012, relatado por Raúl Borges, publicado no D.R. nº 77, I Série, segundo o qual “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412º nº 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/ excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.

Sobre este concreto ónus de especificação (art. 412º nº 3 b) do CPP), escreveu-se a dado passo no recente Ac. da R.P. de 25/09/2024([5]) que “…não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. Quando, no artigo 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.

Assim, para que a impugnação possa proceder, as provas que o recorrente invoque, e a apreciação que sobre as mesmas se faça recair, em confronto com as valoradas pelo tribunal a quo ou com a valoração que esse tribunal efectuou, devem não apenas revelar que os factos foram incorrectamente julgados, como antes devem determinar a convicção de que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.

Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art. 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações do arguido, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.

Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal“.

Convém no entanto assinalar que a apreciação a efetuar pelo Tribunal de recurso (alargada à prova produzida em audiência, se documentada), contém-se nos limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto nos termos do citado art. 412º nºs 3 e 4 do CPP, não visando a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, como se o primeiro julgamento realizado pelo Tribunal de 1ª Instância não tivesse existido, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente([6]).

Por sua vez o Tribunal de recurso, só poderá alterar a decisão sobre a matéria de facto, fora do contexto da livre convicção, se constatar que o Tribunal de 1ª instância errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas ou, nas palavras do Ac. da R.E. de 25/09/2012([7]), se verificar que “a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas “, ou ainda nas palavras do recente Ac. da R.L. de 06/02/2024([8]), “A forma de descortinar o erro de julgamento não passa pela mera alegação da discordância, antes tem que passar pela demonstração inequívoca – nos mesmos moldes de fundamentação que se exige ao julgador - de que o Tribunal desdizeu as exigidas regras da experiência e afrontou princípios basilares do direito probatório “. Deste modo, “I - Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. II - Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção “([9]).

Concluindo, ao Tribunal da Relação só pode pedir-se que efetue um controlo do julgamento, e não que repita ou reproduza o julgamento. Os seus poderes de decisão de facto estão direcionados para a (sindicância da) sentença de facto, e sempre de acordo com a impugnação do recorrente([10]).

A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.

Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (arts. 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto([11]).

Os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso (cfr. arts. 428º e 431º do CPP) consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal([12]); dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram([13]); dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada([14]).
Por último, refira-se que a decisão de facto só deve ser alterada quando seja evidente que as provas a que se faz referência na fundamentação não conduzem à decisão impugnada (cfr. art. 431º b) do CPP).

(…)”

Vejamos de perto.

O recorrente apresenta e faz uma análise da prova, levando-o a concluir pela refutação da posse das armas pelo arguido através de vários pontos chave, focando-se principalmente na ausência de ligação direta entre o arguido e as armas encontradas, e na forma como as armas foram descobertas.

Assim refere:

A notícia da existência de armas no veículo surgiu durante uma operação policial de buscas domiciliárias no Bairro ..., relacionada com tráfico de droga, na qual o arguido não estava envolvido. A informação sobre as armas veio de terceiros, sem qualquer ligação inicial ao arguido, o que é um facto devidamente apurado e resulta quer dos depoimentos dos agentes de autoridade quer dos documentos juntos aos autos

De facto, a operação policial não estava relacionada com a posse das armas pelo arguido, no sentido em que a investigação que levou à descoberta das armas não tinha o arguido como alvo inicial. Depoimento do Agente da PSP BB.

A operação de buscas domiciliárias no Bairro ..., no âmbito de um inquérito relacionado com tráfico de droga, é que levou à informação sobre a possível existência de armas numa viatura.

A referida operação policial, designada pelo número ..., não tinha o arguido como alvo inicial.

No decorrer desta operação, a polícia recolheu informações de terceiros sobre a possível existência de armas de fogo numa viatura da marca Peugeot, modelo ..., de cor ..., estacionada na Rua ..., no Porto.

Esta informação não estava diretamente ligada ao arguido, mas sim ao inquérito sobre tráfico de droga, cfr.Auto de Notícia por Detenção.

Os agentes da PSP foram para a rua mencionada e encontraram o veículo com as características descritas. A viatura da marca Peugeot, modelo ..., de cor ..., estacionada no bairro. A viatura foi identificada como sendo a única com essas características na rua

Após uma vistoria sumária, verificaram que o veículo estava fechado.

A polícia contactou o arguido, proprietário do veículo, que circulava a pé nas imediações e solicitou a sua colaboração para abrir a mesma. O arguido autorizou a busca à viatura. O arguido não tinha as chaves da viatura e a polícia devidamente autorizada pelo arguido abriu a viatura sem causar danos cfr. Autorização de Busca Manuscrita.

A informação sobre as armas surgiu, assim, de uma operação que não tinha como objetivo inicial o arguido e que visava o combate ao tráfico de droga.

O arguido não era referenciado nessa operação policial.

Assim, a informação sobre as armas surgiu de forma fortuita no âmbito de uma operação policial mais vasta, sem que o arguido fosse o alvo da mesma e não porque o arguido estivesse a ser investigado por posse de armas.

A operação policial que levou à descoberta das armas não tinha como alvo o arguido, nem estava relacionada com ele inicialmente. A descoberta das armas no carro do arguido foi o resultado de uma informação obtida durante essa operação, não havendo prova suficiente que o arguido tivesse conhecimento ou ligação às armas a não ser o facto das armas se encontrarem no seu veículo.

As armas foram encontradas dentro do veículo, um Peugeot ..., que era propriedade do arguido. No entanto, o arguido não estava no veículo, nem sequer nas suas imediações no momento em que as armas foram descobertas. Além disso, o veículo encontrava-se estacionado em plena via pública, no Bairro ....

As armas foram encontradas no interior de um veículo, um Peugeot ..., que era propriedade do arguido. No entanto, o arguido não se encontrava dentro do veículo, nem sequer nas imediações quando as armas foram descobertas. Isto poderá sugerir que o arguido não tinha controlo imediato sobre o veículo e o seu conteúdo naquele momento.

É que o veículo estava estacionado em plena via pública, no Bairro .... O veículo encontrava-se fechado, mas a polícia conseguiu abri-lo sem causar danos, demonstrando que qualquer pessoa poderia ter acesso ao interior do veículo, o que pode levantar a possibilidade de que as armas pudessem ter sido colocadas lá por terceiros, não se sabendo se com ou sem autorização do arguido.

O arguido disse não possuir as chaves do veículo por as ter perdido, o que poderá ou não ter ocorrido, o que impediria a posse e o controlo do interior do mesmo.

Esta alegada falta de acesso direto ao veículo poderá reforçar a ideia de que o arguido poderia não ter conhecimento do que se encontrava lá dentro.

O tribunal deu como provado que o arguido usava o veículo habitualmente, no entanto, as declarações do arguido, bem como o depoimento do agente da polícia que conduziu a operação, indiciam o contrário. O arguido afirmou que o veículo estava avariado, o que não foi confirmado, desconhecendo-se se tal é verdade, podendo sê-lo e o agente policial não conseguiu confirmar que o arguido era o seu condutor habitual. O agente da polícia, BB, não conseguiu confirmar se o arguido era o condutor habitual.

Em face disto o tribunal a quo não poderia ter dado como provado que o arguido usava habitualmente o veículo, pelo que tal matéria terá de ser retirada da matéria de facto dada por aprovada. O veículo mostrava-se devidamente inspecionado, mas tal não afeta a hipótese de se encontrar avariada no momento da busca. A inspeção do veículo estava prestes a expirar, mas daqui não se pode concluir como pretende o arguido que o carro não era usado com regularidade.

De todo o modo sempre se dirá que da análise das fotografias de fls. 50, foto n º 2, resulta que o veículo não estava em condições de ser conduzido, atente-se ao pneu traseiro lado direito, que se encontrava manifestamente em baixo no momento da busca.

O facto de o arguido ser o proprietário do veículo não significa necessariamente que tivesse a posse das armas. A posse implica ter as armas consigo ou na sua esfera de controlo, e não apenas ser proprietário do local onde as armas foram encontradas. O arguido não tinha as armas junto de si, nem se consegue asseverar com grau de certeza que tinha o controlo sobre as mesmas.

Em suma, a localização das armas, num veículo que o arguido, estacionado em via pública, avariado e sem que o arguido tivesse acesso às chaves, indicia ausência de controlo e posse das armas pelo arguido. O facto de o arguido ter permitido voluntariamente a busca ao veículo também poderá indicar que ele poderia não saber da existência das armas e não receava que fossem encontradas.

O veículo estava fechado e o arguido não possuía as chaves na sua versão não desmentida. Os agentes da polícia conseguiram abrir o veículo sem causar danos, demonstrando que qualquer pessoa poderia ter acesso ao interior. O arguido autorizou a busca ao veículo, o que indica que não teria receio de que algo ilícito fosse descoberto, o que pode contrariar a ideia de que detinha as armas. O facto de o arguido ter autorizado a busca sem hesitação pode sugerir que ele não tinha conhecimento de qualquer atividade ilícita no interior do veículo e não receava que algo comprometedor fosse descoberto. Esta atitude de colaboração espontânea pode contrariar a ideia de que ele estivesse envolvido com a posse das armas encontradas.

Não existe nenhuma prova que ligue o arguido às armas a não ser o facto de terem sido encontradas dentro do seu veículo supostamente avariado e deixado na rua e com facilidade de ser aberto e nas particulares circunstâncias supra descritas e não foram encontradas impressões digitais do arguido nas armas.

A prova apenas indicia seguramente que o veículo era propriedade do arguido, ali foram encontradas armas, mas não que ele tivesse posse ou conhecimento das armas.

Não existe qualquer ligação direta entre o arguido e as armas, como impressões digitais ou outros indícios técnicos. A única ligação é o facto de o arguido ser o proprietário do veículo.

A prova produzida lança dúvidas se o arguido tinha as armas consigo, as detinha ou se sabia da sua existência.

Da prova produzida o tribunal a quo deveria ter dado ainda como provado:

1.A notícia da existência das armas surgiu no âmbito de uma operação policial de combate ao tráfico de droga, na qual o arguido não estava envolvido.

2.O arguido não se encontrava na viatura onde as armas foram encontradas, nem nas suas imediações.

3.O arguido autorizou voluntariamente a busca ao veículo.

4.A viatura estava fechada e o arguido não tinha as chaves, tendo a polícia conseguido abri-la facilmente sem causar danos.

5.O que permite concluir que outros poderiam ter igual facilidade de acesso.

6. A viatura estava imobilizada e avariada.

Quando muito deveria na motivação ter abordado estes aspetos para afastar, no confronto com a demais prova produzida, qualquer espécie de dúvida.

Não obstante, diga-se, a fundamentação realizada pelo tribunal é bastante, tendo sido feita uma análise critica da prova, pelo que não padece de qualquer nulidade associada a falta de fundamentação do invocado art. 379º, n º 1, al.c) do CPP.

Perante o supra referido impõe-se a dúvida.

Ora, é nosso entender que os indícios recolhidos no caso dos autos não se afiguram suficientes para cabal convicção do tribunal da autoria do crime em causa pelo arguido, não sendo inequívocos, uma vez que, pese embora estejamos perante uma pluralidade de indícios concludentes, a verdade é que existem outras circunstâncias (nomeadamente, e entre as quais, o particular contexto de como e onde foram encontradas as armas que se afiguram contraditórias com os demais indícios, configurando, inclusive, contraindícios que não permitam concluir de forma lógica e consonante com as regras da experiência comum pela imputação dos factos ao arguido como autor dos mesmos.

Isto posto, na dúvida quanto a verificação das circunstâncias de facto relevantes para a condenação ou absolvição do acusado, o juiz há de “presumir” a situação de facto que conduza a uma decisão mais favorável àquele, subjacente ao princípio da presunção de inocência e do in dúbio pro reo.

Na dúvida sobre a posse, conhecimento e uso das armas por parte do arguido, o tribunal deveria ter decidido a favor do arguido. O facto de não se poder provar com suficiente segurança que o arguido tinha controlo sobre as armas, nem que sabia da sua existência no veículo, são determinantes.

E na dúvida impera o principio do in dubio pro reo o que trás como conclusão o dever dar-se como não provado que:
· O arguido detinha as armas e munições apreendidas.
· O arguido era utilizador habitual da viatura.
· O arguido sabia que, em virtude de não ser titular de licença de uso e porte de arma, não lhe era lícito adquirir, guardar, transportar, deter ou ter na sua posse as supra descritas armas e munições e sabia que era igualmente proibida a detenção das armas da classe A e munições da classe B, não obstante, detinha-as na sua posse, sabendo encontrarem-se aptas a ser utilizadas.
· Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo a respetiva conduta proibida e punida por lei.

Relativamente à arma da marca "Sig Sauer" o exame de fls, 31 e ss. dá conta que apresentava condições mecânicas para efetuar disparos, pelo que nada haverá que alterar.

Consequentemente ficam prejudicadas as demais questões objeto de recurso.


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III. Decisão:

Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto decide conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA e, em consequência, revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido AA pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, nº 1, alíneas c) e d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redação introduzida pela Lei n.º 12/2011, de 27.04; art.º 2º, n.º1, al. p), e sub al. i), q), az) e a e), n.º3, al c), e ar.º 3º, n.º1 e 3, b); art.º 2º, n.º1, al. p, sub al i), v), n.º3, al c), e art.º 3º, n.º2, al l); art.º2º, n.º3, al. p) e a c), art.º3º, al.a) e b); art.º2º, n.º3, al.p) e ac), art.º3º, n.º4, al b).

Sem custas a cargo do recorrente.

Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.

[(*) Voto vencido.

O Juiz Desembargador signatário fica vencido, porquanto, muito embora compreenda as razões aduzidas no Douto o acórdão, salvo o merecido respeito, considera que os elementos dos autos não permitiam firmar parâmetros de dúvida atendível, sobretudo, porque o arguido, sendo o proprietário, mostrou ter o domínio do veículo, conhecendo o seu estado de avaria, para além da viatura não poder se aberta por qualquer pessoa, conforme afirmou o agente BB.

Juiz Desembargador adjunto.

Nuno Pires Salpico.]

Sumário da responsabilidade do relator.

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Porto, 12 de março de 2025.

(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)

Paulo Costa

Nuno Pires Salpico (*)

Amélia Catarino

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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cfr. Ac. da R.P. de 24/01/2024, no proc. nº 957/23.3PRPRT.P1, relatado por Paulo Costa, não publicado.
[3] Cfr. Acs. da R.P. de 13/09/2023 no proc. nº 1138/21.6T9AVR.P1, relatado por Pedro Afonso Lucas, não publicado e da R.C. de 12/07/2023 no proc. nº 982/20.6PBFIG.C1, relatado por Luís Teixeira, acedido in www.dgsi.pt
[4] Cfr. Ac. do STJ de 01/07/2010, publicado na C.J., Ano XVIII, Tomo II, pág. 219.
[5] Cfr. proc. nº 135/22.9PCMTS.P1, relatado por Pedro Afonso Lucas, ainda não publicado.
[6] Cfr. Ac. da R.C. de 09/09/2009 no proc. nº 112/08.2GDCBR.C1, relatado por Jorge Raposo, acedido in www.dgsi.pt
[7] Cfr. proc. nº 77/07.8GFSTB.E1, relatado por Gilberto Cunha, acedido in www.dgsi.pt
[8] Cfr. proc. nº 1381/22.0PBBRR.L1-5, relatado por Manuel José Ramos da Fonseca, acedido in www.dgsi.pt
[9] Cfr. Ac. da R.C. de 04/05/2016, no proc. nº 721/13.8TACLD.C1, relatado por Fernando Chaves, acedido in www.dgsi.pt
[10] Cfr. Ac. da R.E. de 07/12/2012, no proc. nº 197/10.1TAMRA.E1, relatado por Ana Barata Brito, acedido in www.dgsi.pt
[11] Ac. da R.E. de 11/09/2024, no proc. nº 1601/21.9PBCBR.C1, relatado por João Abrunhosa, acedido in www.dgsi.pt
[12] Cfr. Ac. da R.P. de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. nº 23/14.2PCOR.L1-9, acedido in www.dgsi.pt
[13] Cfr. Ac. da R.C. de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. nº 444/14.0JACBR.C1, acedido in www.dgsi.pt
[14] Cfr. Ac. da R.L. de 14/07/2022, relatado por João Abrunhosa, no proc. nº 103/22.0PWLSB.L1, não publicado na www.dgsi.pt