I - Os Arguidos, de acordo com o relato da Recorrente, usaram os seguintes argumentos para a convencer a realizar diversas ações prejudiciais ao seu património:
- Necessidade de salvaguardar o património: Os Arguidos convenceram a Recorrente de que ela precisava de proteger o seu dinheiro e bens da filha, alegando que a filha iria movimentar a sua conta bancária e deixá-la sem nada. Este argumento foi usado para persuadir a Recorrente a transferir 90.000€ para uma conta dos Arguidos.
- Apoio e cuidado: Os Arguidos justificavam o seu controlo sobre os atos da Recorrente com a alegação de que queriam dar-lhe todo o apoio necessário num momento em que ela estava afastada da filha.
- Isolamento de parte da família: Os Arguidos isolaram a Recorrente do contacto com a filha para terem mais influência sobre si, convencendo-a a fazer o que eles diziam.
- Doação de imóveis: Os Arguidos convenceram-na a doar-lhes quatro imóveis, com a justificação de salvaguardar o seu património e comprometendo-se a reverter as doações quando não subsistisse o fundamento que as justificava.
- Fazer testamento: Os Arguidos convenceram-na a fazer testamento, com o argumento de salvaguardar o dinheiro depositado na conta bancária.
- Mútuo para pagar dívidas inexistentes: Os Arguidos convenceram a Recorrente de que ela precisava de um mútuo de 60.000€, alegando que todo o seu dinheiro havia sido gasto e que era preciso pagar contas urgentemente, apesar de saberem que tal não correspondia à realidade. Também a convenceram de que carecia de realizar uma intervenção cirúrgica dispendiosa e de que tinha de pagar elevadas despesas dos processos judiciais, o que não era verdade.
- Entregar as joias: Os Arguidos incutiram que era melhor guardar as joias em casa deles face ao perigo da Filha conseguir entrar em sua casa e apoderar-se das peças.
- Promessa de reversão: Os Arguidos prometeram que todas as disposições patrimoniais seriam revertidas quando não existisse o fundamento que as justificava.
O que não aconteceu.
Tendo presente que o significado de "indícios suficientes" no contexto do processo penal é o seguinte:
II - Probabilidade razoável de condenação: Indícios suficientes são aqueles que apontam para uma possibilidade razoável de que o arguido venha a ser condenado em julgamento. Isso significa que deve existir uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
III - No quadro anteriormente descrito é ainda possível antever a probabilidade de futura condenação, os indícios existentes são suficientes para pronunciar os arguidos pela prática do crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º2, al. a) do Código Penal e do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo art. 205.º, n.º1 e 4, al. a) do Código Penal.
Relator: Paulo Costa
Adjuntas: Lígia Trovão
Madalena Caldeira
Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório.
A assistente AA não se conformando com o despacho de não pronúncia proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Porto- Este - Juízo de Instrução Criminal de ..., que nos autos à margem referenciados decidiu não pronunciar:
“Nestes termos, tudo visto e ponderado, atento o preceituado no artigo 308.º do Código de Processo Penal, decido não pronunciar os arguidos BB e CC, de um crime de usura, previsto e punido pelo artigo 226º, um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º2, al. a), c) e d) e em crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º1 e 4, al. a), todos do Código Penal, determinando-se, o oportuno arquivamento dos autos.”, veio recorrer nos termos que ali constam, que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição):
“CONCLUSÕES:
1 - O presente recurso vem interposto da, apesar disso douta, Decisão Instrutória que determinou a não pronúncia dos Arguidos BB e CC por referência aos crimes de usura, p. e p. pelo art. 2262, de burla qualificada, p. e p. pelo art. 2172 e 2189, n9 2, als. a), c) e d), e de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 2059, n2 1 e 4, al. a), todos do Código Penal, por ter sido subidamente entendido não avultarem dos autos indícios suficientes da prática de tais crimes pelos Arguidos.
2 - Na Sentença ora posta em crise fez-se uma errada apreciação da prova produzida no inquérito e em sede instrutória, erro que é notório, assim como se verifica contradição insanável da fundamentação e desta com a Decisão, o que redunda na violação dos arts. 2269, 2172 e 2189, n2 2, als. a), c) e d) e 2052, n2 1 e 4, al. a), todos do Código Penal e do art. 308.2, n.º 1, do Código de Processo Penal.
3 - Na instrução pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança. São indícios suficientes os vestígios, sinais, suspeitas, presunções, indicações que, logicamente relacionados e conjugados, criam a convicção que, mantendo-se em julgamento, o arguido virá a ser condenado. É o que exige o art.2 283.2, n.2 2, aplicável por força do disposto no art.2 308.2, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, quando estipula que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança". Portanto, os indícios são suficientes quando permitem a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado.
4 - A Decisão instrutória ora posta em crise não somente desconsiderou conscientemente todo o manancial probatório que flui dos autos, o que configura notório erro na apreciação da prova posta à disposição do Tribunal a quo, como fundamentou a Decisão de não pronúncia dos Arguidos exclusivamente no principio in dúbio pro reo, aplicado com inaudito rigor e em completo atropelo às normas que disciplinam a fase indiciária que constitui a Instrução, isto apesar do contraditório reconhecimento, expresso e tácito, da congruência entre todos os depoimentos recolhidos no inquérito e instrução e acervo documental patente nos autos no sentido de confirmarem a factualidade carreada para Juízo pela Recorrente, o que impõe insanável contradição na fundamentação e entre esta e a Decisão que, assim, não pode evidentemente manter-se.
5 - Tiveram início os vertentes autos na participação criminal deduzida pela Recorrente em que q esta imputava aos Arguidos a prática de vários crimes, designadamente o de Usura, p. e p. pelo art. 2262, n2 4, do Código Penal. Para sustentar a imputação, a Recorrente relatou que é viúva e tem uma única filha, com quem sempre conviveu mas que, entre 2018 e início de 2021, esteve de relações cortadas com esta, o que surge indissociável do estado depressivo em que se encontrava a Recorrente. Neste ínterim, os Denunciados, seus Sobrinhos, aproveitando a sua fragilidade, aproximaram-se desta alegando querer ajudá-la em tudo o que fosse preciso mas pretendendo verdadeiramente apropriar-se ilicitamente dos seus bens. Passou a Recorrente a frequentar a casa daqueles e vice-versa, num registo de convívio diário que não era habitual até então, passando os Denunciados a acompanhar a Recorrente em todas as deslocações, controlando todos os actos da sua vida, sempre com a justificação de pretenderem dar-lhe todo o apoio necessário, isolaram-na do contacto com a restante família e assim conseguiram ter mais influência sobre si, convencendo-a a fazer o que Ihe diziam, com o pretexto de ser o melhor para a sua vida quando, na verdade, estavam apenas a aproveitar-se da Recorrente e a procurar retirar vantagens patrimoniais para si próprios através da fabricação de uma narrativa, que sabiam ser falsa, de que a Filha pretendia desapossá-la de todo o património.6 - Em maio de 2019 convenceram-na ardilosamente de que tinha de salvaguardar o seu dinheiro, transferindo-o para a conta deles, com o argumento de que a Filha iria conseguir movimentar a sua conta bancária e deixá-la sem esse património, tendo logrado convencer a Recorrente a tal disposição de vontade devido ao receio incutido de que a Filha iria conseguir movimentar a sua conta bancária, mesmo não sendo sequer titular da mesma. Assim, a Recorrente transferiu para uma conta dos Denunciados a quantia de 90.000€ (noventa mil euros) no dia 11 de Março de 2019, conforme acervo documental junto aos autos.
7 - Motivada pela imaginária necessidade de salvaguarda do seu património que lhe foi sedimentada pelos Denunciados, foi a Recorrente convencida a intentar acção judicial contra Filha e Genro, que correu termos no tribunal da ..., aí alegando ser a única proprietária da casa onde a Filha reside e do saldo da conta bancária onde estavam depositados 100.000,00€ (cem mil euros) de que são ambas, Recorrente e Filha, titulares, acção que veio a terminar com uma transacção, documentalmente comprovada nos autos.
8 - A Recorrente, "sequestrada" que estava da realidade e do contacto com todas as pessoas das suas relações promovida conscientemente pelos Denunciados, a que acrescia a vulnerabilidade decorrente do seu estado depressivo, acabou por ser levada a deixar nas mãos dos Denunciados todas as decisões relativas à sua vida, numa relação de dependência extrema e de incapacidade, concebida e promovida pelos Denunciados através de actos sucessivos e reiterados que ardilosamente criaram na Recorrente a convicção de que as pessoas mais próximas de si (com exclusão dos Denunciados) pretendiam desapossá-la de todo o seu património e que apenas estes estavam dispostos a auxiliá-la a evitar esse imaginário destino, cuidadosa e aturadamente encenado pelos próprios Denunciados, aproveitando-se da sua fragilidade psíquica e emocional.
9 - Os próprios Denunciados elaboraram um cartão/aviso para a Recorrente ter sempre consigo, junto aos autos, que configura ademais a prestação de falsas declarações porquanto nunca a Recorrente foi declarada interdita ou sujeita ao estatuto de maior acompanhado, como de resto sabiam perfeitamente os Denunciados - AA DECLARA Em caso de urgência PF contactar exclusivamente os números ...05 ou ...00, meus sobrinhos CC e BB constituídos meus responsáveis ao abrigo do estatuto Legal do <MAIOR ACOMPANHADO>
10 - Era público e notório o seu estado psíquico e a sua dependência dos Denunciados, nutrida 1i por estes através da criação de uma realidade que não se verificava unicamente para controlarem a Recorrente, que não estava capaz de gerir a sua vida e património, de forma correta e consciente, sempre com o propósito de obterem vantagem patrimonial ilegítima para si mesmos. Através da criação de uma narrativa completamente desfasada da realidade, que sabiam ser falsa, os Denunciados astuciosamente aproveitaram e potenciaram o estado de necessidade da Recorrente, acentuaram a sua dependência deles aproveitando a sua inexperiência e fragilidade psíquica, logrando determinar o seu comportamento para que assumisse disposições patrimoniais que lhe provocaram prejuízo patrimonial avultadíssimo e, correspectivamente, obtiveram enriquecimento patrimonial ilegítimo, como sempre pretenderam desde que iniciaram a sua conduta criminosa.
11 - Convenceram-na a doar-lhes quatro imóveis, com um valor comercial de várias centenas de milhares euros, sempre com a justificação da salvaguarda do seu património e comprometendo-se a reverterem as doações quando não subsistisse o fundamento que as justificava, o que está documentalmente comprovado nestes autos.
12 - Mais uma vez influenciada pelos Denunciados, sempre com o inverídico e ardiloso argumento de salvaguarda do seu património, convenceram-na a fazer testamento, o que ocorreu a 16 de Novembro de 2020, conforme acervo documental.
13 - A actuação ilegal dos Denunciados revestiu uma multiplicidade de formas que visavam assegurar que, sucedesse o que sucedesse, sempre os Denunciados acabariam por obter o enriquecimento ilegítimo que prosseguiram desde que se aproximaram da Recorrente para aproveitarem a sua inexperiência e estado de dependência uma vez que a constrangeram a realizar uma miríade de negócios jurídicos díspares, por vezes redundantes, e complexos, sempre com a falsa promessa de reversão.
14 - Os Denunciados convenceram a Recorrente, novamente com recurso à mentira e ao logro, a celebrar um mútuo no valor de 60.000€, a 16 de Novembro de 2020. Para tanto, transmitiram-lhe que todo o seu dinheiro havia sido gasto e que era preciso urgentemente pagar contas, apesar de saberem perfeitamente que tal não correspondia à realidade. O Mutuante. como não podia deixar de ser, é familiar directo dos Denunciados.
15 - Convenceram ardilosamente a Recorrente de que esta carecia de realizar a intervenção cirúrgica ao estômago, urgente e dispendiosa, e também tinha que pagar elevadas despesas dos processos judiciais, no entanto a intervenção cirúrgica não teve qualquer custo pois ocorreu no Hospital ..., no Porto, através do SNS e nunca existiram as elevadas despesas judiciais. Os cheques emitidos pelo Mutuário ficaram logo na posse dos Denunciados que, com o pretexto de Ihe gerirem o dinheiro, imediatamente os depositaram na sua conta após terem convencido a Recorrente a endossa-los e sem sequer ter visto os montantes neles apostos, beneficiando de todo o montante. Foi constituída hipoteca para garantir o mútuo, que está a ser executada nos autos que correm termos sob o nº ..., Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo de Execução de Lousada - ..., uma vez que o dinheiro ficou com os Denunciados e a Recorrente se viu impossibilitada de proceder ao pagamento no prazo estipulado.
16 - No primeiro período de confinamento, a Recorrente permaneceu em casa dos Denunciados, devido à pressão por estes exercida e crendo na veracidade das alegações que estes lhe transmitiam, mormente que todos os restantes familiares pretendiam aproveitar-se dela e delapidarem o seu património, e deixou peças de ouro em casa dos Denunciados — 3 libras em ouro, uma escrava em ouro, uma pulseira em ouro, um colar em ouro, um trancelim e um crucifixo em ouro, um conjunto composto de pulseira e brincos em ouro branco e amarelo, um cordão em ouro e um alfinete - que mais uma vez Ihe incutiram ser melhor guardar em casa deles face ao perigo da Filha conseguir entrar em sua casa e apoderar-se das peças, jóias com valor superior a 5.000€, assim como se apropriaram de dois quadros que estavam na sua residência de ..., da qual tinham a chave.
17 - Uma conhecida da Recorrente solicitou-lhe um empréstimo pecuniário e foram os Denunciados quem outorgou o respectivo contrato, como se mutuantes fossem, isto quando foi a própria Recorrente quem levantou o dinheiro em numerário ao balcão do Banco 1.... S.A. para o entregar à mutuária, o que surge documentalmente comprovado nestes autos.
18 - Com a estabilização do seu quadro clínico e com a depressão controlada, começou a Recorrente a perceber que os Denunciados deixaram de conviver com ela, repentinamente deixando de fazer parte da sua vida, como tinha sucedido de forma quase claustrofóbica até então, começando a perceber que havia sido enganada pelos Denunciados, que vendo-se patrimonialmente acautelados por via das inúmeras disposições de vontade que lograram convencer a Recorrente a efectuar em seu favor e em prejuízo dela própria, deixaram de sentir necessidade de cultivar a história falsa em que a Recorrente havia acreditado piamente, eximindo-se a todos os contactos e recusando reverter os negócios e disposições que lograram convencer a Recorrente a realizar.
19 - Com as assumidas condutas, os Denunciados conseguiram constranger a Recorrente a entregar-lhes uma quantia de 150.000,00€ (cento e cinquenta mil euros), correspondente à aludida transferência de 90.000,00€ acrescida da quantia proveniente do mútuo supra mencionado (60.000,00€), dela se apropriando ilegítima e indevidamente. Para camuflarem os seus ínvios propósitos, é verdade que os Denunciados pagaram algumas despesas da responsabilidade da Recorrente, como parte integrante da sua encenação criminosa, todavia de dimensão incomparável com a quantia que lograram colocar sob a sua disposição e pertencente à Recorrente, calculando esta que tenham em sua posse 86.000,00€ que recusam devolver, isto além dos imóveis doados e dos objectos em ouro.
20 - É esta, não outra, a realidade trazida a Juízo, com respaldo em inúmera prova testemunhal e documental, o que impõe intensa perplexidade quando se a compagina com a Decisão proferida ainda para mais quando cumpre avaliar, nesta fase, a mera suficiência de indícios que tem que aferir-se pelo princípio da razoável probabilidade de condenação no Julgamento.
21 - Para além da prova documental carreada para os autos pela Recorrente e igualmente a adquirida na investigação, foi produzida abundante prova testemunhal. Foram inquiridas durante a investigação, na qualidade de testemunhas e para além da Participante e Denunciados, DD (fls. 70 e 158), EE (fls. 73), FF (fls. 76 e 160), GG (fls. 79 e 162), HH (fls. 82 e 164), II (fls. 85 e 169), JJ (fls. 87 e 168) e KK (fls. 272).
22 - As Testemunhas DD e FF prestaram declarações absolutamente esclarecedoras no sentido de confirmarem que a Recorrente, na data dos factos ajuizados, estava vulnerável, mais sensível, com tristeza e fragilidade. A Testemunha EE testemunhou que a Recorrente, na data dos factos ajuizados, apresentava discurso pouco coerente e não fluido. Por seu turno, as Testemunhas HH e FF foram taxativas a afirmar que a Recorrente estava dominada pela ideia de passar todo o seu património para os Denunciados devido ao receio que por estes lhe foi incutido de vir a perder tudo para a Filha com quem se encontrava desavinda. Todas as Testemunhas, sem excepção, comprovaram que a Recorrente estava desavinda com a Filha e que os Denunciados aproveitaram tal afastamento para uma aproximação à Recorrente, passando esta a viver na casa daqueles e passando aqueles a gerir exclusivamente o seu património.
23 - As Testemunhas FF, GG, HH, II e JJ, todas confirmaram que a Recorrente as informou que estava a transmitir temporariamente o seu património para os Denunciados por temer que a Filha ficasse com tudo mas que não estava a dar nada pois tudo retornaria para si mal deixasse de subsistir o fundamento da transmissão e que tinha sido os Denunciados a transmitir-lhe tal ideia, quer no que tange à possibilidade da Filha poder tentar delapidar o seu património quer quanto à forma de o "salvaguardar".
24 - A Testemunha JJ declarou que assistiu a uma chamada telefónica entre a Recorrente e o Denunciado em que este lhe exigia 10.000,00€, numa hora, para os levar ao Tribunal. E o próprio KK, compreensivelmente preocupado com o0 ressarcimento do seu crédito, não deixou de reconhecer que o Denunciado acompanhou a Recorrente, de forma omnipresente, em todo o processo de contracção do mútuo e que foi ele quem ficou com os cheques e quem os depositou na sua própria conta bancária.
25 - Perpassa transversalmente todos os testemunhos uma realidade inafastável, caracterizada por uma conjunto de pontos comuns e que permitem formar uma ideia límpida da realidade ocorrida: a Recorrente estava fortemente debilitada, extremamente vulnerável física e psicologicamente, afastada da sua única Filha, repentinamente rodeada pelos Denunciados, ao ponto de com os mesmos ir residir, que lhe criaram a falsa ideia de que os seus familiares mais próximos iriam delapidar-lhe o património, oferecendo-se para serem beneficiários de todas as transmissões com a promessa de devolução pronta a pedido da Recorrente, o que nunca sucedeu.
26 - Todos estes indícios colhidos na fase de investigação e ainda aqueloutros colhidos em sede instrutória (designadamente as declarações de LL, genro da Recorrente, que de forma esclarecedora confirmou o que todas as restantes Testemunhas relataram), no modesto entendimento da Recorrente configuram o cometimento de crimes previstos e punidos no Código Penal.
27 - Contrariamente à conclusão alcançada na douta Decisão recorrida, resultam claríssimos e consequentemente muitíssimo fortes, indícios do cometimento por parte dos Denunciados de um crime de burla qualificada, p. e p. pela conjugação das disposições legais vertidas nos arts. 2172/1 e 2182/2, alíneas a), c) e d) do Código Penal.
28 - Fluem dos autos indícios fortíssimos de que os Denunciados, aproveitando a sua relação de parentesco, a fragilidade psicológica e física da Recorrente, pessoa de provecta idade, ademais acentuada pela circunstância de estar desavinda da sua única Filha, lograram astuciosamente convencer a Recorrente da existência de uma realidade que de todo se verificava (romanceando um suposto perigo de delapidação do seu património pelos familiares mais próximos mormente a sua própria e única Filha) para determinarem a Recorrente a praticar actos que lhe causaram avultadíssimo prejuízo patrimonial, logrando assim despojá-la de todo o seu património, sempre com a consciente intenção de obterem para si enriquecimento ilegítimo.
29 - Dominaram todos os aspectos da sua vida, passando a acompanhá-la para todo o lado, conseguiram convencê-la a ir residir com eles e firmaram reiteradamente a ideia na Recorrente, aproveitando a sua especial vulnerabilidade, que deveria transmitir-lhes todo o seu património para o salvaguardar das supostas intenções dos restantes familiares, sempre com a promessa de devolução do que lhes fosse entregue. Ordenaram e trataram da celebração de testamento a seu favor, de escrituras de doação de todos os imóveis da Recorrente a seu favor, de mandato, de contracção de mútuos com hipotecas em que acabaram por ficar com a totalidade do dinheiro e até lograram constranger a Recorrente a efectuar transferências de dezenas de milhares de euros para a sua conta bancária.
30 - Donde, contrariamente ao decidido na Decisão em crise, face ao manancial probatório indiciário que ressalta destes autos, sempre os Denunciados deveriam ter sido pronunciados pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pela conjugação das disposições legais vertidas nos arts. 2172/1 e 2182/2, alíneas a), c) e d) do Código Penal.
31 - Relativamente às jóias que a Recorrente entregou aos Denunciados para que os mesmos as guardassem em sua casa - 3 libras em ouro, uma escrava em ouro, uma pulseira em ouro, um colar em ouro, um trancelim e um crucifixo em ouro, um conjunto composto de pulseira e brincos em ouro branco e amarelo, um cordão em ouro e um alfinete - face à recusa da sua devolução por parte dos Denunciados, imperioso é concluir que foi praticado um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º/ 1 e 4, alínea a), conjugado com o disposto no art. 2022, alínea a), ambos do Código Penal.
32 - A Recorrente entregou aos Denunciados, para que estes os guardassem e os devolvessem quando a Recorrente tal solicitasse, várias peças em ouro, com valor superior a 5.000,00€, que aqueles guardaram efectivamente em sua casa. A Recorrente interpelou inúmeras vezes os Denunciados para a sua devolução, o que estes sempre recusaram mesmo com a pendência destes autos criminais, o que implica que ocorreu a inversão do título da posse e a apropriação ilegítima a que alude o preceito incriminador porquanto os bens foram entregues aos Denunciados por título não translativo de propriedade, recusando-se estes a devolvê-los à Recorrente, que é a sua exclusiva proprietária e pretende a devolução.
33 - Donde, contrariamente ao decidido na Decisão em crise, face ao manancial probatório indiciário que ressalta destes autos, sempre os Denunciados deveriam ter sido pronunciados pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 2052/ 1 e 4, alínea a), conjugado com o disposto no art. 2029-, alínea a), ambos do Código Penal.
34 - Reconduzindo os indícios que avultam dos autos relativamente ao cometimento por parte dos Denunciados de um crime de Usura, p. e p. pelo art. 2262 do Código Penal, igualmente é forçoso concluir que existem indícios fortes, testemunhais e documentais, de infracção criminal por parte dos Denunciados. Todas as Testemunhas inquiridas firmaram uma realidadej---coincidente e coerente que atesta a especial vulnerabilidade da Recorrente e o aproveitamento consciente dos Denunciados desse especial estado de necessidade para dela se aproximarem e dominarem, constrangendo-a à adopção de disposições patrimoniais ruinosas, que aliás a deixaram na mais absoluta penúria, para alcançarem benefício patrimonial ilegítimo, bem sabendo que a Recorrente tinha a sua liberdade de contratação completamente manietada.
35 - Referir, como se refere no Despacho de arquivamento e que foi confortado igualmente na Decisão instrutória posta em crise, que não é possível estabelecer uma vantagem manifestamente desproporcionada dos Denunciados porque terão pago algumas parcas despesas da Recorrente quando lograram enriquecer ilegitimamente em centenas de milhares de euros afigura-se incompreensível para a Recorrente e ofende os mais elementares conceitos jurídicos que subjazem à norma incriminadora. O mesmo se diga relativamente aos quadros e jóias, até às doações dos imóveis, quando é referido na Decisão recorrida que não é possível discernir se tudo não foi dado pela Recorrente aos Denunciados por vontade própria quando esta litiga em várias frentes judiciais para reverter esta criminosa situação que a deixou na mais absoluta indigência económica, conclusão ademais profusamente contrariada por todos os elementos indiciários que ressaltam dos autos.
36 - Donde, contrariamente ao decidido na Decisão em crise, face ao manancial probatório indiciário que ressalta destes autos, sempre os Denunciados deveriam ter sido pronunciados pela prática de um crime de usura, p. e p. 2262/1 e 4, alínea c), do Código Penal, sobre a Recorrente, atenta a abundância de indícios que avultam destes autos.
37 - Como lucidamente é referido no douto Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação do Porto, em 23/11/2022, no processo 5670/16.5T9PRT.P1, Relatora a Exma. Senhora Juíza Desembargadora Maria Joana Grácio e disponível em www.dgsi.pt: "O sentido da expressão indícios suficientes na fase de instrução é o mesmo que se verifica para a decisão de acusar, devendo considerar-se que os mesmos existem quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. A probabilidade razoável mencionada não equivale à certeza para além da dúvida razoável balizada pelo princípio in dúbio pro reo exigida na apreciação da prova em julgamento. Tão-pouco atinge o grau de exigência imposto pela verificação de fortes indícios de crime para efeitos de aplicação medidas de coação mais gravosas. A admitir-se o recurso ao princípio in dúbio pro reo na fase de instrução, o mesmo deve ser usado com a consciência de que o grau de dúvida que permite decidir pela pronúncia do arguido é necessariamente diferente daquele que ocorre em fase de julgamento, devendo aceitar-se que seja mais acentuado do que aquele que determina a prova do facto em julgamento, sob pena de estarmos a transferir para a fase de instrução as exigências subjacentes à condenação, mas deixando de fora todo o contexto de prova que permite exigir tal rigor."
38 - Não podendo ser mais acertado o entendimento vindo de expor, entende a Recorrente que existem indícios mais do que suficientes do cometimento dos crimes que aponta aos Arguidos e que existiu clamoroso e notório erro na avaliação desses indícios revelados na fase de inquérito, o que impossibilita a manutenção na ordem jurídica desta Decisão sob escrutínio.
39 - A Decisão instrutória em crise começa logo mal quando refere que foi aberta a fase de instrução e que se procedeu à inquirição da Testemunha MM, pessoa desconhecida destes autos e que concorre para a convicção de que, pelo menos esta primeira parte da Decisão, foi "decalcada" de vertente processo. Este é o primeiro erro flagrante em que incorre a Decisão.
40 - Foi indeferida a reinquirição de Testemunhas requerida pela Recorrente, com fundamento no disposto no art. 291º, nº 3, do C.P.P., tendo sido apenas admitida a inquirição de LL, genro da Recorrente, cujo depoimento foi totalmente desconsiderado com o simples argumento de não ter a Testemunha convivência, à data, com a Recorrente e considerado "vago" e "confuso" apesar de ser absolutamente coincidente com o relato factual oferecido pela demais prova testemunhal, o que acaba por ser reconhecido, de forma incoerente, na Decisão sob escrutínio. Uma vez que, nesta parte, volta a Decisão a aludir a um MM, pessoa desconhecida a estes autos, fica a Recorrente sem perceber se as considerações vertidas na Decisão se referem efectivamente ao depoimento de LL ou se foram introduzidas na fundamentação por lapso manifesto.
41 - Em termos de reavaliação dos indícios existentes nos autos, que é para o que serve a fase instrutória, a Decisão em crise, por um lado, restringiu injustificadamente a produção de elementos probatórios e, por outro, limitou-se a sufragar (as mais das vezes simplesmente replicar, sem o menor crivo avaliador) a parca fundamentação do Despacho de arquivamento, o que redunda na impossibilidade da sua manutenção.
42 - A Decisão recorrida fez a análise sintetizada das declarações prestadas quer pela Recorrente quer pelas Testemunhas, não sem antes aludir à postura assumida pelos Arguidos, que negaram os factos e se limitaram a remeter para a Sentença proferida nos autos que correram termos sob o n2 ..., Juízo Central Cível de Guimarães - ..., acção judicial que visou a anulação das doações realizadas pela Recorrente. O que equivale a dizer que os Arguidos, confrontados com esta enorme panóplia de actos, negócios, disposições de vontade e imputações, ao contrário de esclarecerem e contextualizarem cada uma destas condutas, providenciando a sua versão quanto à factualidade relevante, se limitaram a dizer que são falsos, remetendo genericamente para um outro processo judicial, com objecto e essência diametralmente opostos à jurisdição deste.
43 - Reconhecendo a Decisão em crise que as Testemunhas DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ, todas relataram que os Denunciados tomavam conta dos bens da Recorrente e que esta, dominada pela ideia que lhe foi incutida por aqueles de ficar sem nada para a Filha, decidiu passar o seu património para os Denunciados porque estes lhe tinham dito que aquela pretendia tirar-lhe tudo mas que quando ela, ora Recorrente, quisesse voltava tudo a ser seu. Que era uma situação temporária e que a qualquer momento o património retornaria para si, era para garantir o património mas a Recorrente "não lhes estava a dar nada", o que era seu a si iria regressar e quando ela precisasse passaria tudo para o nome dela novamente. E que o próprio KK, mutuante no mútuo que resultou em 60.000,00€ a serem depositados na conta dos Arguidos, ademais primo do Arguido, foi taxativo a confirmar que em todo o processo o Arguido esteve omnipresente, acompanhando a escritura e depositando o montante na sua conta apesar dos cheques terem sido emitidos à ordem da Recorrente.
44 – Ainda assim e partindo desta sintetizada base testemunhal, o tribunal a quo lançou-se na reprodução de parte da sentença proferida nos aludidos autos cíveis (...) para concluir que, contrariamente a todos os indícios, documentais e testemunhais, recolhidos neste inquérito- sublinhe-se que às dezenas de evidências documentais e testemunhais que a Recorrente carreou para os autos os Arguidos limitaram-se a contrapor que tudo seria falso- afinal a Recorrente teria agido conscientemente com o objectivo de impedir a sua Filha, com G-quem estava zangada, de ficar com os seus bens e dinheiro, que sabia o valor jurídico dos actos que praticava (até porque a uma pessoa de baixa instrução certamente alcançou as advertências dos Senhores Notário e Solicitador, utilizados na Decisão para reforçar o raciocínio de que a Recorrente estava esclarecida quanto ao que fazia) e que quis praticá-los. Como corolário deste entendimento, não estariam indiciados factos susceptíveis de integrarem os elementos objectivos e subjectivos de qualquer dos crimes imputados aos Arguidos.
45 - É particularmente intrigante que este raciocínio ignore, por exemplo, que o objectivo da Recorrente seria sempre ilegal (no limite a deserdação da própria Filha em violação do disposto no art. 21562 do C.C.) e se limite a apontar a capacidade negociai da Recorrente nas ruinosas disposições de vontade que foi levada a concretizar.
46 - De forma incompreensível e em manifesta contradição na fundamentação, a Decisão em crise admite que toda a prova indiciária comprova que a Recorrente estava fragilizada e vulnerável e que verbalizava que estava apenas a transmitir temporariamente o património com a promessa da sua futura reversão mas, pasme-se, sabia o que fazia e agora, é o que está implícito, tem que "arcar com as consequências".
47 - Sobre a conduta dos Arguidos, que em pouco mais de três anos ganharam um jackpot do Totoloto de centenas de milhares de euros à custa da ruína da Recorrente, nem uma alusão.
48 - E quanto às jóias, quadros e diversas doações imobiliárias (milionárias, já agora) considera a Decisão em crise serem falhas de sustentação probatória, não se percebendo que critério é este de valoração que, em sede indiciária, ignora conscientemente dezenas de evidências documentais e testemunhais em prol de um princípio in dúbio pro reo que somente com tal rigor poderia ser aplicado em julgamento e porque essa fase é sujeita a distinta densificação probatória.
49 - Uma mera afirmação conclusiva plasmada na Decisão em crise revela o equívoco em que labora: "Não se logrando atingir essa conclusão [verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação], que afaste toda e qualquer dúvida razoável, deve ser proferido despacho de arquivamento." - Nada pode estar mais afastado dos princípios estruturantes que enformam a fase instrutória onde se procura a verificação crítica da factualidade revelada pela investigação, acrescida da que se lograr apurar nas diligências instrutórias, da decisão de acusar ou não determinado agente com fundamento em determinada realidade de facto, decisão essa que bebe a sua definição na razoável probabilidade de condenação.
50 - Conclui assim a Decisão em crise, trilhando este enviesado caminho lógico-argumentativo, que a prova produzida em sede de inquérito revela-se demasiado fraca para sustentar uma condenação em sede de julgamento. E mais, refere expressamente "...tendo o Tribunal de fazer funcionar o princípio da presunção de inocência, o princípio "in dúbio pro reo", sendo já nesta fase previsível que, em sede de julgamento opere o mesmo princípio, o que revela a escassa possibilidade de à arguida vir a ser aplicada uma pena em julgamento." (sublinhado e negrito nossos)
51 - A Decisão em crise não apenas ignorou olimpicamente todos os indícios que ressaltam dos autos, optando pelo entendimento de que os Arguidos (com a simples negação dos factos) concorreram para a convicção de que não lhes será aplicada qualquer pena em julgamento, o que configura exuberante erro na apreciação dos abundantes indícios recolhidos no inquérito, como ainda cai em contradição na fundamentação uma vez que, apesar de elencar toda a prova testemunhal e documental oferecida pela Recorrente, admitir que é perfeitamente coerente entre si e que efectivamente os factos denunciados não deixaram de ocorrer perfilhando o entendimento de que é escassa a possibilidade de futura condenação da Arguida. Sobre o Arguido, que acompanhou a Recorrente no mútuo e depositou os cheques na sua conta bancária, aquele que foi testemunhado a pressionar a Recorrente a entregar-lhe 10.000,00€ no espaço de uma hora para pagar imaginárias despesas judiciais, aquele que instruiu a Recorrente, valendo-se da sua impreparação e estado depressivo, para a determinar à concretização de vários negócios jurídicos ruinosos, desde doações imobiliárias a legados no testamento, nada é dito.
52 - Assim como não se compreende nem se aceita que seja utilizado o argumento de que os Arguidos, apesar de se terem ilicitamente apropriado de centenas de milhares de euros pertencentes à Recorrente, tenham despendido uma ínfima parte desse dinheiro no pagamento de despesas da Recorrente para tentar sustentar-se que não existe uma irrazoável desproporção entre o que lograram ardilosamente receber da Recorrente por comparação ao que prestaram.
53 - Deste emaranhado de erros de avaliação da prova e contradições na fundamentação avulta ainda, numa das últimas conclusões vertidas na Decisão, que "Assim, aplicando e adaptando este princípio in dúbio pro reo à fase em que nos encontramos, somos levados a concluir que durante a instrução foi produzida prova suficiente e capaz de abalar os indícios recolhidos em sede de inquérito, que levaram à dedução de despacho de arquivamento."
54 - Com isto a Recorrente tem que concordar pois existem indícios fortíssimos, mais do que suficientes, do cometimento de vários crimes pelos Arguidos, o que ficou ainda mais nítido na instrução, todavia e ao contrário do que seria logicamente de esperar, a Decisão em crise acaba por não pronunciar os Arguidos, o que é ilógico e impossível de compatibilizar com esta afirmação, o que constitui manifesta contradição entre a fundamentação e a Decisão.
55 - Acabando a Decisão em crise a professar que não pode concluir-se, com a certeza exigível, ter o arguido praticado factos integradores do crime que lhe é imputado (aqui se omitindo, desta feita, a Arguida) e que, apesar de nesta fase apenas se exigir uma razoável possibilidade de aos arguidos vir a ser aplicada uma pena, não avultam dos autos indícios suficientes para preenchimento da previsão legal, em sólida contradição com toda a sorte de elementos indiciários recolhidos no inquérito e na instrução.
56 - Contrariamente ao entendido na Decisão recorrida, considera a Recorrente que, face à abundância e exuberância dos indícios documentais e testemunhais que fluem dos autos, é muito mais provável que os Arguidos venham a ser condenados em Julgamento do que absolvidos.
57 - Sendo certo que, nesta fase processual, não se exige o juízo de certeza que a condenação impõe, mas apenas e só essa probabilidade dominante, a razoável probabilidade de condenação futura.
58 - Assim, reunidos que estão os indícios suficientes para pronunciar os Arguidos BB e CC pelos factos e como Autores materiais dos crimes de usura, p. e p. pelo art. 2262, de burla qualificada, p. e p. pelo art. 2172 e 2182, nº 2, ais. a), c) e d), é de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 2052, n2 1 e 4, al. a), todos do Código Penal, o Despacho de não pronúncia violou o disposto nos arts. 22612, 2172 e 2182, nº 2, als. a), c) e cl) e 2052, n2 1 e 4, al. a), todos do Código Penal e o disposto no art. 308.2, n.2 1, do Código de Processo Penal, o que impõe a sua imediata revogação e substituição por outro que subidamente determine a pronúncia dos Arguidos pelos crimes supra indicados, como é de Lei.
Os arguidos responderam, concluindo:
“Nestes Termos e nos de Direito e sempre com o mui douto suprimento deverá o recurso ser julgado totalmente improcedente, por não provado e, em consequência, deve a decisão instrutória proferida ser integralmente mantida, pelos fundamentos nela referidos, por ter efetuado correcta análise do acervo probatório recolhido nos autos, sem qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, sem qualquer erro de análise da prova, mantendo-se a decisão de não pronunciar os arguidos, relativamente a todos os crimes que a Recorrente lhes imputava.”
O M. P. respondeu concluindo pela improcedência do recurso argumentando nos seguintes termos:
“Conclusões:
1.Por decisão instrutória de fls. 358 a 370, datada de 15/10/2024, a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal "a quo" decidiu não pronunciar os Arguidos, como pretendia a Assistente/Recorrente, pela alegada prática dos crimes de burla qualificada, p. e p. pelos art.° 217.° e 218.°, n.° 2, al. a), c) e d), abuso de confiança, p. e p. pelo art.° 205.°, n.°1 e 4, al. a) e usura, p. e p. pelo art.° 226.°, n.° 1 e 4 al. c), todos do Código Penal.
2.a) Analisadas as conclusões formuladas pela Assistente/Recorrente, que são em número de 58 (cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido por economia processual para todos os legais efeitos) se constata que, s.m.o., e ressalvado o devido respeito por opinião contrária. que é muito, há apenas uma questão para analisar e decidir, ou seja, se a prova testemunhal e documental que já existia nos autos, conjugada com a prova testemunhal (decorrente do depoimento da testemunha MM. E relativamente à qual. s.m o . não há qualquer erro de identificação na decisão instrutória, contrariamente ao afirmado pelos Assistentes/Recorrentes em algumas das conclusões das suas alegações e recurso. pois é exatamente essa pessoa que foi indicada por eles como testemunha como sendo "LL'. — cfr. fls. 298 (verso. último parágrafo) e ata de inquirição e debate instrutório junta a fls. 355/356) produzida em sede de instrução era, conforme a mesma defende, suficiente para justificar a prolação de um despacho de pronúncia ou, conforme entendeu a Meritíssima Senhora Juíza de Instrução Criminal "a quo", se tais elementos de prova não eram suficiente para a prolação de tal despacho, impondo-se a prolação de despacho de não pronúncia.
3.a) Analisada a decisão instrutória constatamos que pelos motivos e com os fundamentos, quer de facto quer de direito, que a Meritíssima Senhora Juíza de Instrução Criminal "a quo" bem concretizou, e aqui damos por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos por economia processual, a mesma se encontra bem fundamentada, sendo perfeitamente percetível e escrutinável o raciocínio lógico efetuado para apreciar os elementos de prova (documental e testemunhal) que já havia nos autos, bem como os produzidos em sede de instrução, não merecendo tal decisão qualquer censura.
4.a) Acresce que o que a Assistente/Recorrente pretende é lazer valer a sua interpretação dos elementos de prova que já existiam nos autos conjugados com os produzidos em sede de instrução, obviamente nada isenta, porque interessada, em detrimento da apreciação correta, isenta e objetiva dos elementos de prova efetuada pela Meritíssima Senhora Juíza de Instrução Criminal "a alio'', sendo para nós certo que nada do que a Assistente/Recorrente refere tem a virtualidade de pôr em causa a decisão instrutória de não pronúncia dos Arguidos.
5.a) Não se mostram violados os normativos legais indicados pela Assistente/Recorrente ou quaisquer outros que cumpra conhecer!”
Neste tribunal de recurso a Srª Procurador-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da manutenção da decisão a quo relativamente aos alegados crimes de usura e de burla, discordando, todavia dos factos relativos ao abuso de confiança pelos quais os arguidos deveriam ter sido pronunciados.
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
Erro do julgamento indiciário da matéria indiciária por deficiente apreciação das provas quanto ao seu enquadramento jurídico.
É invocado erro notório e contradição.
Matéria relevante a considerar.
Do enquadramento dos factos.
1.Decisão instrutória.
“O tribunal é competente.
O processo é o próprio.
Não existem nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
Alega, para tanto, em síntese, que foram recolhidos indícios suficientes da prática, pelos arguidos, dos crimes de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º e 218.º, n.º2, al. a), c) e d), abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205.º, n.º1 e 4, al. a) e usura, p. e p. pelo art. 226.º, n.º1 e 4 al. c), todos do Código Penal.
Juntou os documentos de fls. 300 a 317.
Teve lugar o debate instrutório com obediência a todo o formalismo legal.
Não se nos afigura pertinente a realização de qualquer a qualquer outra diligência instrutória que não retarde inadmissivelmente o decurso da instrução.
O artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal vem indicar expressamente, como fim da instrução, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Como facilmente se depreende do citado dispositivo, a instrução configura-se, no Código de Processo Penal, como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, a sua imputação ao agente e respectivo enquadramento jurídico-penal.
Desde logo, é necessário atentar no disposto no artigo 308.º, n.º1, do Código de Processo Penal: “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
“Efectivamente, entende o legislador português, acompanhado aliás pelo da generalidade dos países, que só é legitimo ao Estado submeter uma pessoa a julgamento pela prática de um crime havendo comprovados motivos que o justifiquem. O que impõe que a primeira etapa de tramitação do processo penal comporte uma fase, ou um conjunto de fases, que visa investigar cabalmente a existência de um crime de que houve notícia e determinar os seus agentes, descobrindo e recolhendo as provas. Terminada essa primeira fase do processo, apelidada de preparatória, e esgotadas as diligências de investigação possíveis, importa responder à seguinte questão: há, ou não, motivos que justifiquem a submissão de alguém a julgamento? Só uma resposta afirmativa permite a progressão do processo para a fase seguinte – a de julgamento” (Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 157).
A nossa jurisprudência já deixou clara a razão de se exigir a presença de indícios suficientes para se submeter alguém a julgamento (para o Ministério Público acusar ou para o Juiz de Instrução Criminal pronunciar). Desta forma, podemos ler no sumário do acórdão do S.T.J. de 28/06/2006, número convencional JSTJ000, publicado no sítio www.dgsi.pt: I - «A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame. II - Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.º daquela Declaração e 27.º da CRP)”.
Para que surja uma decisão de pronúncia, a lei, tal como de resto faz na acusação, não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, antes basta-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final; tratando-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase de julgamento.
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (artigo 283.º n.º 2 do CPP).
São assim, suficientes, os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime do qual aquele agente é responsável (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 2003, processo: 03P1493, relator: Henriques Gaspar, www.dgsi.pt). Por isso, se logo a nível do juízo, formulado na instrução, no plano dos factos, se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não serão suficientes, não havendo prova bastante para a pronúncia.
Assim sendo, para a pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas os factos indiciários devem ser bastantes por forma que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade dos factos que lhe são imputados.
Os indícios são suficientes quando haja uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição, caso contrário deverá elaborar-se despacho de não pronúncia.
Assim, cumpre verificar se existem indícios suficientes da prática pelo arguido/a/s do/ crime/s de que vem acusado/a/s.
Dispõe o artigo 226.º do Código Penal que:
“1 - Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, fizer com que ele se obrigue a conceder ou prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstancias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. (…)
4 - O agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias se:
a) Fizer da usura modo de vida;
b) Dissimular a vantagem pecuniária ilegítima exigindo letra ou simulando contrato; ou
c) Provocar conscientemente, por meio da usura, a ruína patrimonial da vítima.(…)”
O bem jurídico protegido pelo tipo de crime de usura é o património, todavia, algo mais terá de existir que legitime a criminalização da usura e a penalização, isto é, no aproveitamento consciente de uma situação de necessidade que reduz significativamente a liberdade de contratar e fixar o conteúdo do contrato.
Segundo Taipa de Carvalho, in Código Conimbricense Tomo II, pág. 386 e 387: ” que embora o objectivo direto ou imediato do tipo legal de crime de usura seja a tutela do património alheio, também o bem jurídico liberdade, na sua dimensão de liberdade negocial, está presente na criminalização da usura, constituindo um objectivo mediato do tipo de crime de usura.”
O tipo objectivo consiste numa conduta, estrutural e material, da celebração de um negócio jurídico, em que uma das partes, fica credora de uma prestação manifestamente desproporcionada à sua contraprestação, aproveitando-se, conscientemente da situação de necessidade económica ou da inexistência do outro contraente, de uma normal para apreender o prejuízo patrimonial que o negócio realizado lhe traz ou da dependência deste face ao credor.
O tipo subjectivo do crime de usura exige o dolo directo ou necessário, não bastando o dolo eventual.
Dispõe o art. 217.º do Código Penal que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
De acordo com a descrição típica, na burla podem surpreender-se quatro momentos objectivos, ligados numa rede de causa e efeito: a) a astúcia do agente, exteriorizada numa conduta que a norma não descreve; b) o erro ou engano; c) os actos (de disposição patrimonial ou de administração) realizados pelo enganado; e d) o consequente prejuízo patrimonial deste ou de uma terceira pessoa. Sendo o erro e o engano elementos do tipo, têm que estar em relação, dum lado, com os meios empregues pelo burlão, do outro, com os actos que vão directamente defraudar o património do lesado. A conduta astuciosa do burlão motiva o erro ou engano; em consequência do erro ou engano, a vítima passa ao acto de que resulta o prejuízo patrimonial.
A burla é crime de relação, envolve dois comportamentos, o do burlão e o da vítima, mas só se pune o primeiro. A figura da vítima é certamente imprescindível no iter criminis da burla mas nunca se assume como punível.
Como primeiro elemento surge a astúcia do agente, exteriorizada numa conduta que a norma não descreve.
A actuação do burlão não se fica por uma simples alteração da verdade, deve antes projectar-se, de forma injustificada, numa falsa representação da realidade por parte da vítima, enganando-a ou induzindo-a em erro (sobre factos). Por conseguinte, esta conduta astuciosa (das motivierenden Verhalten) terá que ser de molde a motivar o erro ou o engano, de tal forma que, por um lado, se registe entre os dois segmentos típicos uma relação de causalidade; por outro, que tal conduta fraudulenta seja antecedente ou causal desse erro ou engano (e deste modo da disposição patrimonial que causa um prejuízo) e não meramente acidental.
Como consequência do erro, a vítima deverá realizar o outro requisito da burla: um acto de disposição. Os actos de disposição são o elemento do tipo que em pertinente relação causal estão em contacto, dum lado, com o elemento intelectual que é o erro ou engano de quem os pratica; do outro, com a consequência exterior — patrimonial — da burla, que é o prejuízo do enganado ou de terceiro. Esse nexo causal “deve essere concretamente accertato”, avisa Delpino.
O desenho da burla, que é crime de relação, envolve dois comportamentos, mas só se pune o do burlão.
A burla completa-se, quanto aos seus elementos objectivos, com o prejuízo — prejuízo patrimonial. O prejuízo patrimonial, que é elemento de outros tipos de crime, suscita um elevado número de questões, a maioria delas conexionadas com a noção de património. A disposição patrimonial deverá conduzir à diminuição do património do enganado ou de terceiro, deverá ser razão de um dano patrimonial. O conceito de património tem aqui a sua principal área de intervenção. A doutrina maioritária considera o património como o bem jurídico protegido no crime de burla e define-o de acordo com as suas características mistas. A noção mista de património é afeiçoada por A. M. Almeida Costa, Conimbricense, p. 282, com “correctores” tendentes a compaginá-la com a teleologia do direito penal”, adoptando-se um procedimento que conduz “a um específico conceito jurídico-criminal de património”.
A burla, delito de execução vinculada, pressupõe um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio e, depois, entre estes e a verificação do prejuízo.
O bem jurídico protegido pela incriminação é o património de outra pessoa.
Trata-se de um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção).1
1 Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Portuguesa, pág. 684.
Quanto ao tipo subjectivo, trata-se de crime exclusivamente doloso, bastando o dolo eventual, que deve cobrir todos os elementos objectivos do tipo. Porém, o burlão age com a intenção de conseguir uma vantagem patrimonial ilegítima para si (eigennütziger Betrug) ou para terceiro (fremdnütziger Betrug). Nesta parte, o dolo (dolo "específico", como por vezes é designado) do agente do crime consiste na intenção de obtenção de um enriquecimento, a que o burlão ou o terceiro não têm direito, tendo o agente do crime consciência do prejuízo. A intenção de obter um enriquecimento ilegítimo é um dos conceitos de disposição (Dispositionsbegriffe) de que fala Hassemer. Essa intenção não tem que ser realizada, embora o seja a maior parte das vezes. É uma tendência interior transcendente (überschießende Innentendenz), que permite qualificar a burla como crime de resultado cortado, não havendo correspondência (“congruência”) entre o lado objectivo e o subjectivo do ilícito.
A consumação do crime de burla requer a produção do prejuízo, ainda que paralelamente se não verifique a obtenção do lucro pela outra parte. Exigindo-se um efectivo prejuízo patrimonial, pode simultaneamente concluir-se que o bem jurídico tutelado é o património como um todo. A burla é crime comum, de dano contra o património, crime material, na medida em que a realização típica comporta o evento.
1 — Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 — A pena é a de prisão de dois a oito anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida;
c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou
d) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.
3 — É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 206.º
4 — O n.º 1 do artigo 206.º aplica -se nos casos do n.º 1 e das alíneas a) e c) do n.º 2.
Dispõe o art. 205º, n.º 1 do Código Penal que comete o crime de abuso de confiança quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade.
Este tipo legal de crime implica apropriação de bens móveis por título não translativo de propriedade, pelo que o bem jurídico por si protegido será o direito de propriedade enquanto tal, exercido sobre coisas, móveis e alheias, recebidas por título que produza a obrigação de restituir, contra os comportamentos ilícitos apropriativos dessas mesmas coisas.
Contrariamente ao crime de furto, onde, além da propriedade, protege-se também a situação de posse ou detenção sobre a coisa.
No tipo de crime abuso de confiança, o agente já (de)tem a coisa consigo, já está na sua posse por a ter recebido em virtude de uma relação de confiança, a qual trai, fazendo sua a coisa recebida.
A este propósito Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 97, refere que “Neste sentido pode e deve dizer-se (…) que o abuso de confiança é um delito especial, concretamente na forma de delito de dever, pelo que autor só pode ser aquele que detém uma qualificação determinada, resultante da relação de confiança que o liga ao proprietário da coisa recebida por título não translativo da propriedade e que fundamenta o especial dever de restituição”.
São, assim, elementos objectivos deste tipo de crime:
a) A apropriação ilegítima;
b) De coisa alheia móvel;
c) Entregue por título não translativo de propriedade.
Começando a análise dos elementos objectivos, importa dizer que o primeiro elemento característico deste crime encontra-se “implícito”, isto é, antes mesmo de se falar de “apropriação” importa averiguar da existência ou não da situação “prévia” de posse legítima em nome alheio ou de mera detenção do agente em relação à coisa, situação essa resultante de um acto de entrega da coisa ao agente.
Seguindo de perto os ensinamentos de José António Barreiros, in “Crimes contra o Património”, Lusíada, 1996, págs. 103 a 107, essa entrega, que pode ocorrer mesmo sem a tradição material da coisa, tem que ser: a) Válida, ou seja, o agente do crime tem que alcançar a coisa através de um acto prévio legítimo (decorrente de acto do proprietário da coisa, do seu detentor legítimo ou ainda de um terceiro obrigado a prestá-la); b) Afecta a uma causa ou finalidade determinada; c) Suportada numa relação fiduciária entre aquele que entrega a coisa e aquele que a recebe.
Um outro elemento objectivo do tipo de ilícito é, precisamente, o seu objecto.
Este tem de reportar-se a uma coisa móvel e alheia, noções essas que devem ser apuradas e para aqui consideradas nos termos do direito civil, importando, apenas, salientar que a coisa entregue tem de pertencer, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente ou, dito de outra maneira, não se encontrar na efectiva disponibilidade jurídica do agente no momento da consumação.
O elemento objectivo seguinte e com o qual se dá a consumação do crime é a conduta de apropriação, isto é, a inversão do título da posse.
A apropriação consiste no facto de o agente passar a actuar como dono da coisa que lhe fora entregue e confiada, adoptando comportamentos que exteriorizam e convencem os demais de ser ele o “proprietário” da coisa. (cfr. neste sentido e entre outros, o Acórdão do STJ, de 11.01.1994, in CJSTJ, Tomo I, pág. 195).
A simples negação ou atraso de restituição ou a omissão de devolução da coisa, não significa necessariamente apropriação ilegítima.
Sucede, porém, que nem sempre é fácil distinguir estes dois momentos, tornando-se, assim, imperioso, que se demonstre que o agente pretendeu integrar a coisa no seu património ou no de terceiro, o que só se conseguirá se este praticar actos objectivos, inequívocos.
Conforme referem o Acórdão da Relação do Porto, de 31.05.1995, in CJ, Tomo III, pág. 263; e o Acórdão da Relação de Lisboa, de 21.04.1998, in CJ, Tomo II, pág. 161, “A inversão do título da posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse”.
É, portanto, maioritária a jurisprudência segundo a qual a inversão do título da posse, neste ilícito criminal, tem de resultar de actos objectivos susceptíveis de revelarem que o agente já está a dispor da coisa como se fosse sua, não bastando a mera confusão no património do agente ou o simples não uso da coisa por este.
Inicialmente o agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa “ut dominus”. Então deixa de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não mais o poderia fazer.
Segundo José António Barreiros, in “Crimes contra o património”, Univ. Lusíada, 1996, pág. 110, “nem sempre será fácil determinar quando se verificou a apropriação, mas esta verifica-se quando tiver ocorrido a inversão do título de posse e houver actos objectivos demonstrativos de o agente ter incorporado a coisa na sua esfera patrimonial - ficando dono dela - ou ter passado a agir como se dela fosse dono, (…)”.
Contudo, deve ter-se em atenção que a inversão do título tem de resultar de actos objectivos, susceptíveis de revelarem que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse - neste sentido cfr. Ac. STJ de 12.01.94, Colectânea de Jurisprudência Ac. STJ, ano II, tomo I, pág. 195; Ac. Relação do Porto de 24.05.95, Colectânea de Jurisprudência, ano XX, tomo III, pág. 262; e Ac. Relação de Lisboa, de 21 de Abril de 1998, Colectânea de Jurisprudência, ano XXIII, tomo II, pág. 161.
José António Barreiros, in ob. cit. pág. 111 alerta para o facto de que “a acção executiva característica do abuso de confiança não tem necessariamente que traduzir-se em condutas positivas, pois que a mera omissão pode consubstanciar já o necessário para a consumação deste tipo de ilícito”.
Como explana, Nelson Hungria citado por Simas Santos e Leal Henriques no seu Código Penal anotado, 2º vol., pág. 460, “para que esta apropriação indébita se apresente, é indispensável que a negativa ou omissão seja precedida ou acompanhada de circunstâncias que inequivocamente revelem o arbitrário “animus rem sibi habendi”, ou que não haja, de todo, qualquer fundamento legal ou motivo razoável para a recusa ou omissão”.
Ora, são vários os actos que podem evidenciar ou indicar a apropriação indevida: venda, doação, consumo, dissipação, cessão, penhor, caução, ocultação (naturalmente a pretexto de não ter recebido a coisa ou de tê-la perdido), retenção sem causa legítima ou motivo razoável (sublinhados nossos). - neste sentido cfr. Ac. Relação de Coimbra de 23 de Abril de 1998, Colectânea de Jurisprudência, ano XXIII, tomo II, pág. 60 e segs.
Quanto ao elemento apropriativo, a inversão do título da posse não é nem tem de ser conforme a lei civil, como supra já se fez referência e para o qual se transcreve um excerto do comentário do Dr. Figueiredo Dias in obra citada, pág. 104: “(…) sendo uma tal inversão ilícita – e mais do que isso, integrante de um crime - é óbvio que não pode ser avaliada à luz das normas do direito civil, face às quais ela nunca constituirá título suficiente para a aquisição da propriedade da coisa”.
A ilegitimidade aferir-se-á, assim, verificando-se a existência ou não de uma contradição com o ordenamento jurídico e relativo à propriedade.
Por outras palavras, verificando se o agente actua a coberto de uma causa legitimante, como, por exemplo, o estado de necessidade ou o direito de retenção, previstos no artigo 339º e 754º ambos do Código Civil.
Este elemento do tipo, inversão do título da posse, releva ainda para a determinação do momento da consumação. Entendia-se no domínio do Código Penal de 1886 e deve continuar a entender-se, que a inversão do título de posse, em princípio, surge com o acto de apropriação. É forçoso admitir-se que o momento da consumação é o da negativa de restituição, ainda que verdadeiramente tenha sido outro, quando o agente, devidamente solicitado, se recusa a devolver a coisa possuída ou detida em nome alheio e não se determinou um acto material anterior iniludivelmente indicativo da arbitrária apropriação - cfr. obra supra citada, pág. 461.
Relativamente ao elemento subjectivo, trata-se de um ilícito doloso cujos elementos, intelectual e volitivo, se traduzem no conhecimento da ilicitude da sua conduta e na vontade de a realizar (cfr. art.º 14º do Código Penal).
É, pois, necessário que o agente actue com conhecimento da ilicitude do seu comportamento (elemento intelectual) e com vontade de se apropriar ilegitimamente da coisa entregue por título não translativo de propriedade (elemento volitivo).
Apesar de não se exigir nenhum tipo de dolo específico, importa realçar, como acentua o Prof. Eduardo Correia in RLJ, 90º, pág. 38 e ss, que também não chega a simples intenção de restituir para afastar o dolo, antes se mostra “indispensável que o agente se represente como seguro que, no prazo e nas condições juridicamente devidas, efectuará a restituição da coisa recebida”.
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (artigo 283.º n.º 2 do Código de Processo Penal), isto é, quando haja uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
O presente inquérito teve origem na queixa apresentada por AA contra BB e CC, porquanto no período compreendido entre 2018 e o inicio de 2021 esteve de relações cortadas com a filha, e os seus sobrinhos BB e CC aproveitaram-se dessa circunstância para obterem para si vantagem patrimonial, levando a que a denunciante conferisse plenos poderes aos denunciados, causando á denunciante um prejuízo patrimonial de 150.000€ (fls. 3 a 10 e documentos de fls. 13 a 58).
Os factos acima referidos, foram registados como susceptíveis de consubstanciar, em abstracto, a prática do tipo legal do crime de usura p. e p. pelo artigo 226º, do Código Penal.
Procedeu-se a inquérito com a realização das diligências consideradas úteis e pertinentes ao apuramento da verdade dos factos.
AA foi inquirida na qualidade de ofendida, e no essencial, confirmou os factos constantes na queixa por si apresentada - cfr. fls.97 a 98 e 166 a 167.
AA foi ainda inquirida pela Magistrada do MP Titular do inquérito (fls. 255 a 257) e declarou que começou a frequentar a casa dos seus sobrinhos/arguidos em Novembro de 2018. Relativamente à quantia monetária de 90.000 €, foi buscá-la a uns certificados de aforro que tinha no Banco 2... e transferiu-os para a conta por si titulada que tinha na Banco 3.... Depois realizou a transferência para o BB para a conta da Banco 4... titulada pelos arguidos BB e CC.
A quantia não foi devolvida, todavia, dessa quantia o BB gastou nas despesas com a assistente algum dinheiro: era ele quem pagava as viagens da assistente (a Benidorm, a Marrocos), as despesas de saúde, chegou a ser operada num hospital privado a um dedo do pé, onde gastou cerca de 4.000€, e outras despesas da assistente.
O BB tinha acesso aos seus cartões Multibanco, das entidades bancárias onde era titular de contas, como sendo: Banco 1..., Banco 5..., Banco 3... e Banco 6....
Relativamente às joias, a assistente pediu para os arguidos as guardarem, quando foi fazer a viagem a Benidorm no ano de 2019. Identificou as joias como sendo: 3 libras em ouro, uma escrava em ouro, uma pulseira em ouro, colar em ouro, um trancelim e um crucifixo em ouro, um conjunto composto por um colar, uma pulseira e brincos em ouro branco e amarelo, cordão em ouro e um alfinete. Nunca mais lhe devolveram as joias. Vem aos autos, juntar fotografias onde aparece com algumas joias.
Os arguidos tinham a chave da sua residência em ..., deslocando-se lá quando quisessem. Também lhe levaram dois quadros da sua residência. A sua sobrinha aproveitou-se da sua carência afectiva dizendo-lhe mesmo que tivesse descansada que se a assistente morresse que o que sobrava entregava à II, a sua filha. O testamento já foi revogado. As doações dos imóveis não foram anuladas. A NN pediu-lhe dinheiro emprestado, mas o arguido decidiu ser ele e a esposa os primeiros outorgantes, apesar de ter sido a assistente a levantar e emprestar o dinheiro à NN. O dinheiro foi levantado em numerário pela assistente ao balcão do Banco 1... em .... Relativamente ao Mandato, fez e assinou, e nem sabia o que queria dizer, os arguidos disseram-lhe que teria de fazer o Mandato a favor deles se não eles não podiam fazer nada, e a filha é que seria chamada. Já revogou o Mandato. Tinha um apartamento em ... onde reside e fez uma escritura Mutuo com Hipoteca a favor de KK que constava como outorgante. O KK emprestava o dinheiro à assistente. Nessa altura o BB fê-la assinar por trás, isto é, endossar 3 cheques, dizendo que era para o apartamento ficar mais seguro. Corre uma acção em Tribunal relativa ao Mutuo com Hipoteca a favor de KK. Não conhecia o KK. A assistente ia virar os cheques para ver as quantias, mas na altura não viu, porque o BB colocou a mão nos cheques e disse-lhe para assinar e “eu sei o que estou a fazer”. Só posteriormente teve conhecimento do valor total dos cheques que perfazia a quantia de 60.000€ - cfr. fls. 255 a 257.
Foram juntas cópias de vários documentos, nomeadamente cópia do testamento, e do Mandato – cfr. fls.13 a 58, 268 e verso.
Veio juntar cópias de fotografias onde são visíveis as joias – cfr.fls.264 a 267.
CC e BB foram constituídos arguidos, e nessa qualidade prestaram TIR e foram interrogados, tendo referido que os factos que lhes são imputados são completamente falsos, remetendo o esclarecimento da presente matéria para o Processo n.º ... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães - ..., e cuja sentença judicial declarou a sua absolvição – cfr. fls.208 a 210 e 211 a 213.
Foi junta Certidão da Sentença proferida no processo supra identificado, onde se concluiu que a restituição pedida pela queixosa da quantia de 86.000€, foi improcedente, uma vez que AA admitiu que parte dessa quantia foi gasta no pagamento de despesas suas, e ainda, que relativamente aos outros pedidos, só o processo especial de prestação de contas será o adequado na medida em que AA incumbiu os sobrinhos de administrar o seu património – cfr. fls.228 a 238.
Corre termos no Juízo de Execução de Lousada – ..., o Processo n.º ... relativo ao Contrato de Mútuo com hipoteca.
Foram inquiridas, na qualidade de testemunhas:
DD, que no essencial confirmou que no período compreendido entre meados do ano de 2018 a 2021, a denunciante esteve de relações cortadas com a filha II, e que a denunciante lhe disse que estava em casa dos seus sobrinhos, e eram aqueles que tomavam conta de si e dos seus bens.
Refere ainda que nesse período de tempo, é um facto que a Sra. AA aparentava estar vulnerável, mais sensível, com tristeza e fragilidade, contudo não aparentava qualquer demência – fls. 70 a 71 e 158 a 159.
EE, que confirmou que em meados de 2018 a denunciante teve uma zanga com a filha e que desde essa altura apercebeu-se que algo se passava com ela, e nas conversas que mantinham a denunciante apresentava um discurso ás vezes pouco coerente e não fluido. Acrescentou que os sobrinhos se aproximaram mais da denunciante e aquela foi viver para casa deles, tendo a denunciante lhe dito que eram “aqueles que tratavam de tudo, que lhe faziam as coisas, que lhes dava papeis para assinar e que ficava tudo tratado” – cfr. fls.73 a 74.
FF, sobrinha e afilhada da denunciante, e prima dos denunciados, confirmou que em meados de 2018 a denunciante teve uma zanga com a filha e que desde essa altura apercebeu-se que algo se passava com ela. Que num desses encontros lá em casa, a sua Madrinha disse-lhe que ia passar o seu património para o nome do BB, para ele gerir os seus bens, porque ele lhe tinha dito que a sua filha lhe ia tirar tudo, e que era melhor ele ficar a cuidar do seu património, mas que quando ela quisesse voltava a ser tudo seu, porém, a sua Madrinha encontrava-se de tal forma dominada pela ideia de ficar sem nada para a filha, que acabou por alienar todos os seus bens para os sobrinhos. Referiu ainda que nesse período de tempo, é um facto que a Sra. AA aparentava estar vulnerável, mais sensível, contudo não aparentava qualquer demência – cf. fls.76 a 77 e 160 a 161.
GG, que confirmou que em meados de 2018 a denunciante teve uma zanga com a filha e uma vez que mãe e filha estavam chateadas, pensa que foi por isso que AA alienou o seu património para BB, que a ideia foi tão bem " cozinhada", que a AA, com medo de ficar sem nada, passou o património para BB. Mais refere que AA lhe dizia que os bens estarem em nome de BB era temporário, era só para assegurar o seu património, e que a qualquer momento o seu património retornaria para si. Disse ainda que AA não aparentava qualquer demência, aliás que AA dizia convictamente que ia passar os seus bens para BB de forma a assegurar o património, mas que "não lhe estava a dar nada", que o que era seu a si iria regressar – cf. fls.79 a 80 e 162 e 163.
HH, irmã da denunciante e tia dos denunciados, confirmou que a denunciante lhe disse que estava chateada com a II, e que ia para os seus sobrinhos, que eles iam cuidar de si, e que lhes ia por o património em nome deles, mas que eles iam só guardar o que era seu para a II não tocar em nada, e que quando a AA precisasse passaria tudo para nome dela novamente. Perante isto disse-lhe várias vezes para não o fazer, que eles iam lhe ficar com tudo o que era dela, que eles não eram pessoas sérias, o que é que ela ia fazer à sua vida, mas a irmã estava dominada pela ideia de passar tudo para nome daqueles sobrinhos – cf. fls.82 a 83 e 164 a 165.
II, filha da denunciante, confirmou que de facto em meados de 2018 até Março 2021, esteve de relações cortados com a sua mãe, porque casou e foi viver com o seu marido, e a sua Mãe ficou com algum ciúme. Perante isto, os denunciados foram-se aproximando da sua Mãe, e foram-lhe colocando na cabeça a ideia, de que iria ficar com o seu património, e que era melhor passar tudo o que tinha para nome deles, que eles guardavam, e que quando ela precisasse lhe devolviam tudo, que era apenas para a filha não lhe tocar no seu património. O denunciado chegou a contactá-la, dizendo que não ia ficar com nada da sua Mãe, que ela andava a gastar o dinheiro dela era com as amigas. Mais diz que apenas ter conhecimento da situação, em Março de 2021, quando um dos seus tios e a sua prima lhe ligaram e disseram que a sua Mãe andava a pedir dinheiro, que estava sem nada, e que ela tinha que agir. Posto isto aproximou-se da sua Mãe, e foi quando ela lhe disse que estava sem nada porque o BB tinha tudo o que era dela, e não lhe devolvia – cf. fls.85 a 86 e 169 a 170.
JJ, confirmou que em meados de 2018 a denunciante teve uma zanga com a filha. A denunciante chegou a dizer-lhe que ia passar todo o seu património para nome dos sobrinhos BB e a CC, para eles acautelarem o que era dela e para a filha II, com quem ela estava chateada, não lhe tirar nada. A denunciante disse-lhe que tinha sido ideia dos seus sobrinhos fazer uma coisa dessas, mas que eles também lhe prometeram que quando ela precisasse tudo o que era seu para si voltava. Por diversas vezes disse à denunciante para não o fazer, mas que a denunciante dizia "eu faço confiança neles, eles são os filhos que eu nunca tive, eles depois devolvem-me tudo". Mais disse que chegou a ouvir uma chamada telefónica em que BB pedia à tia 10.000€, alegando que tinha apenas uma hora para os entregar em Tribunal – cf. fls.87 a 88 e 168 a verso.
Foi junto aos autos cópias da revogação do Mandato e do Testamento – cfr. fls.123 a 127.
KK foi inquirido e referiu que a D. AA foi-lhe apresentada pelo seu primo BB. A senhora estava doente não tinha dinheiro para tratamentos e pediu-lhe 20.000€. Acedeu a emprestar-lhe, ela fez uma declaração de divida e passou-lhe um cheque com esse valor. Depois a D. AA pediu-lhe mais 40.000€ pois precisava de dinheiro para os tratamentos. Nessa altura, a D. AA disse-lhe de livre vontade, que tinha um apartamento que o podia hipotecar e dar-lhe como garantia do empréstimo, por isso, acedeu novamente e emprestou-lhe mais 40.000€.
Anulou-se a declaração de divida e fez-se a hipoteca do dito apartamento pelo valor total de 60.000€ (pagou os 40.000€ com um cheque de 15.000€, outro de 20.000€, e 5.000€ em numerário. Dos 5.000€ a D. AA pagou logo as despesas com a hipoteca.
Os cheques foram depositados na conta do primo pelo que sabe, mas estavam passados em nome da D. AA. A D. AA foi sempre acompanhada pelo BB.
Depois a D. AA fez as pazes com a filha e solicitaram a prorrogação do prazo de pagamento do empréstimo. Após, a D. AA já com o ónus da hipoteca doou o apartamento á filha, e posteriormente impugnou o empréstimo. Ainda não recebeu o dinheiro, e emprestou o dinheiro á Senhora a pedido dela. Correu uma acção em Tribunal em que foi testemunha para falar destes factos. O julgamento foi no Tribunal de Guimarães. Sabe que o seu primo foi ilibado de todas as acusações porque ele apresentou todas as contas relacionadas com o dinheiro dos cheques que depositou e outros valores que podiam existir (foi o seu primo que lhe disse) – cfr. fls.272 a 273.
Foram juntas aos autos certidões de assento de nascimento de fls. 109 a 112, 115 a 116, 140 a 141.
Em sede de instrução foi determinada e teve lugar, audição da testemunha MM, genro da assistente, que de modo vago contou, no essencial, a versão que já resultava dos autos, que a assistente esteve um período de tempo desavinda com a sua filha II, e nesse período dissipou a maioria dos seus bens a favor dos arguidos, seus sobrinhos. Explicou de modo confuso a forma como se aperceberam das transacções, e revelou o arrependimento da sogra. No entanto, no período em que as mesmas ocorreram, não tinha convivência com a mesma, não se conseguindo aferir se a estaria no uso das suas faculdades.
Quanto a este ponto, importa relembrar com o que se entendeu na motivação da sentença proferida no âmbito da Acção de Processo Comum n.º ..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães - ...:
“…Tudo conjugado, face aos depoimentos contraditórios das testemunhas familiares, amigos e vizinhos (ora sustentando a tese da A., ora a tese dos RR.) quanto à capacidade mental da A. na data em que fez as doações, analisamos os depoimentos das testemunhas sem qualquer interesse no processo e sem qualquer relação com as partes.
A notária perante a qual foi outorgado o Mandato, em 8 de Novembro de 2019, afirmou que se certificou que a A. percebeu o que estava a fazer e que era essa a sua vontade.
Esse documento não é objecto da acção mas foi elaborado entre as duas doações, em data muito próxima da primeira.
O solicitador que elaborou os documentos das doações assegurou que a A. sabia, compreendeu e quis fazer as doações, o que lhe foi explicado.
A circunstância da notária e do solicitador não terem tido quaisquer razões para suspeitar da ausência da capacidade volitiva da A., razão pela qual procederam à realização dos actos, por si só, não faz prova plena da ausência da qualquer perturbação volitiva, razão pela qual nada obsta a que, por via da prova testemunhal ou pericial, se possa, posteriormente, demonstrar a falta ou vícios da vontade declarada e naquele acto documentada [cfr., neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2016 (processo n.º 893/05.5TBPCV.C1.S1, relator Fonseca Ramos) e PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. VI, pág. 342] (publicado in www.dgsi.pt), embora indiciem, porque foi por aqueles testemunhado, o estado mental da A. à data da prática daqueles actos.
É, pois, precisamente neste ponto que entroncam os depoimentos das testemunhas OO e PP, médicos inquiridos por iniciativa do Tribunal.
Assim, temos que a médica de família da A., com conhecimento que detinha do quadro mental/intelectual da mesma, não registou nenhum problema cognitivo, apontando apenas o quadro depressivo.
O médico psiquiatra que teve a A. em consulta em Abril e Junho de 2018, Outubro de 2020 e Março de 2021, falou do quadro depressivo da A., da medicação que esta tomava, e afirmou que nunca esteve em situação de não poder decidir sobre a sua vida e perceber o que fazia, sendo que os medicamentos que tomava também não a diminuíam nesses aspectos, pelo contrário. Nada se provou sobre o “comprimido da alegria” que algumas testemunhas referiram.
A A. disse ao seu médico psiquiatra que só tomava um antidepressivo, este medicamento, conforme explicado pelo médico, não era capaz de afectar a capacidade de discernimento da A., pelo contrário, estabilizava-a, concluindo-se que lhe assegurava mais saúde mental.
A própria A. admitiu que tudo o que fez foi para impedir que a filha, com quem estava zangada, ficasse com os seus bens e dinheiro.
As testemunhas referiram como a A. estava zangada e revoltada com a filha e o marido desta, tendo encontrado nos RR. uma nova família, que a amparava e lhe dava assistência.
Não se provou o afastamento e isolamento da A. pelos RR., de forma a terem uma maior influência sobre ela.
Com efeito, a A. continuou a falar com familiares e amigos, a viajar, a frequentar festas, a fazer compras, a anunciar o seu propósito de doar aos RR., a ser advertida pela família contra os RR.
Conjugando tudo o que foi dito, convencemo-nos que efectivamente a A. quis fazer as doações aos RR., sabia o que fazia, e fê-lo para impedir que a filha um dia herdasse tais bens; pelas mesmas razões, transferiu os 90 mil euros para a conta dos RR., permitindo que fosse o R. a gerir esse dinheiro, pagando despesas suas, fazendo transferências para pelo menos uma conta sua da Banco 3... e entregando-lhe quantias em numerário, a seu pedido.
No entanto, arrependeu-se depois, porque não gostou de alguns comportamentos dos RR. (que não terão agido sempre com as melhores intenções), porque se começou a aperceber das consequências dos seus actos (nomeadamente, a hipoteca da sua casa por ter contraído um empréstimo de 60 mil euros) e porque fez as pazes com a filha.
Ficou demonstrado este arrependimento e só este arrependimento.
Vale isto por dizer, que o Tribunal não se convenceu da versão trazida pela A. e que é relatada na petição inicial (e que não foi totalmente confirmada pela A. foi em julgamento).
Incumbia à A., interessada na anulabilidade das doações, o ónus de alegar e provar os factos de onde se conclua a sua alegada incapacidade de entender o sentido do acto que praticava (cfr., neste sentido, a título exemplificativo, o já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 4 de Outubro de 2017, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de Dezembro de 2020, relatado por Florbela Moreira Lança, ambos publicados in www.dgsi.pt).
A prova produzida em audiência final não foi suficiente para provar aquela incapacidade da A.
A matéria que não consta do elenco dos factos provados e dos factos não provados é conclusiva e de direito ou não interessa para a decisão da causa…”
Ora, também nesta sede entendemos que não se pode senão concluir, como a própria assistente admitiu, que tudo o que fez foi para impedir que a filha, com quem estava zangada, ficasse com os seus bens e dinheiro. A mesma sabia perfeitamente o valor dos actos que praticava (o que lhe foi explicado pelo notário e solicitador), e quis praticá-los. No entanto, depois, arrependeu-se, o que não quer dizer que tenha sido “enganada” pelos arguidos, muito menos que não estivesse no uso das suas capacidades quando fez as transacções, bem pelo contrário, a mesma sabia bem os actos que praticava e fê-lo de livre vontade.
Assim, não se pode afirmar que estejam indiciados factos susceptíveis de integrarem os elementos objectivos e subjectivos de qualquer dos crimes referidos pela assistente no RAI.
Ora, da prova coligida nos autos não temos indícios suficientes, relativamente às características pessoais, e de forma manifesta, de que a referida queixosa vivesse qualquer situação de necessidade ou estivesse numa qualquer das peculiares situações a que se refere a norma incriminadora, isto é, do depoimento das testemunhas e dos documentos junto aos autos, nada permite aferir que a denunciante estivesse com alguma anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter. Aliás, todas as testemunhas foram unanimes em referir que após o desentendimento com a sua filha II, a denunciante aparentava estar vulnerável, mais sensível, com tristeza e fragilidade, contudo não aparentava qualquer demência.
Ora, foi a própria denunciante que chegou a dizer que ia passar todo o seu património para nome dos sobrinhos BB e CC, para eles acautelarem o que era dela e para a filha II, com quem ela estava chateada, não lhe tirar nada, e foi a própria que ainda admitiu que os arguidos pagavam as suas despesas. aliás uma das testemunhas referiu que a AA dizia convictamente que “ia passar os seus bens para BB de forma a assegurar o património, mas que não lhe estava a dar nada", que o que era seu a si iria regressar.
Aliás a própria denunciante se contradiz quando refere que relativamente ao Mandato, fez e assinou, e nem sabia o que queria dizer, pois disse às suas vizinhas ter passado uma procuração a favor dos sobrinhos.
Relativamente às jóias, aos quadros e às doacções realizadas, não existem provam nos autos que nos permitam afirmar que os arguidos se apropriassem dos mesmos contra a vontade da denunciante, e que não tivesse sido a denunciante a dar esses objectos aos arguidos por vontade própria.
Faz parte da factualidade típica plasmada no artigo 226º do CP a obtenção de uma vantagem manifestamente desproporcionada à prestação efectuada, concorrendo com o aproveitamento da situação de necessidade da vítima.
Pelo exposto, e relativamente ao crime de usura, por não ter bases suficientemente sólidas que a sustentem, permanece, assim, a dúvida e não a probabilidade razoável assente em bases minimamente seguras.
O mesmo se diga quanto aos crimes de burla e abuso de confiança.
Estes parcos elementos reproduzidos em julgamento certamente que se traduziriam numa absolvição, fundada na aplicação do princípio in dubio pro reo, pelo que, não existem indícios suficientes tal como estão definidos pelo artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
A estas conclusões não obsta o teor de qualquer dos documentos juntos com o RAI, de fls. 300 a 317, nem o depoimento da testemunha ouvida na fase de instrução.
Não se logrando atingir essa convicção, que afaste toda e qualquer dúvida razoável, deve ser proferido um despacho de arquivamento.
Concluímos que a prova produzida em sede de inquérito revela-se demasiado fraca para sustentar uma condenação em sede de julgamento.
Aqui chegados, importa sublinhar que existe dúvida insanável acerca do facto de ter a arguida praticado, ou não, o crime pelo qual vem acusada, tendo o Tribunal de fazer funcionar o princípio da presunção de inocência, o princípio do “in dúbio pro reo”, sendo já nesta fase previsível que, em sede de julgamento opere o mesmo princípio, o que revela a escassa possibilidade de à arguida vir a ser aplicada uma pena em julgamento.
O referido princípio, trata-se de uma emanação ou corolário da garantia constitucional da presunção de inocência (cfr. art.º 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, art.º 11º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948, aplicável por via do art.º 16º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, art.º 14º, n.º 2 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1976, aprovado para ratificação, pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho, art. 6º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que foi aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro).
A materialização de tal princípio, enquanto dirigido à apreciação dos factos objecto de um processo penal, desdobra-se em dois vectores essenciais: o primeiro é o de que o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram um ilícito criminal cabe a quem acusa; o segundo, consiste que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação, o Tribunal deve decidir a favor do arguido. Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 04.11.98, in BMJ 481/265, dispõe que “Se por força da presunção de inocência, só podem dar-se por provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido quando eles se tenham, efectivamente, provado, para além de qualquer dúvida, então é inquestionável que, em caso de dúvida na apreciação da prova, a decisão nunca pode deixar de lhe ser favorável, por isso no caso de dúvida insanável sobre se se verificaram ou não determinados factos que implicam, por exemplo, a invalidade das provas obtidas contra o arguido e a consequente impossibilidade de contra ele serem utilizadas, a dúvida deve ser resolvida a favor deste, dando como provada a verificação de tais factos, ainda e sempre por obediência ao princípio “in dúbio pro reo”.
Veja-se ainda neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 11.01.2006, Relator Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que “(…) Não havendo dúvida razoável e insanável, não é defensável a aplicação do princípio” in dúbio pro reo”.
Assim, aplicando e adaptando este princípio à fase em que nos encontramos, somos levados a concluir que durante a instrução foi produzida prova suficiente e capaz de abalar os indícios recolhidos em sede de inquérito, que levaram à dedução de despacho de arquivamento.
Ponderando todos os elementos de prova carreados para os autos, entende-se que não pode concluir-se, com a certeza exigível, ter o arguido praticado os factos integradores do crime que lhe é imputado.
Porque nesta fase apenas se exige uma razoável probabilidade e/ou possibilidade de os arguidos terem praticado um facto qualificado pela lei como crime, não deverá a presente causa ser submetida a julgamento, já que atentos os elementos indiciários constantes dos autos, não se verifica uma razoável possibilidade de aos arguidos vir a ser aplicada um pena, ao abrigo do disposto nos n.º1 e 2, do art. 308.º, do Código de Processo Penal deve, consequentemente, ser proferido despacho de não pronúncia.
2. Teor do despacho de arquivamento.
DO ARQUIVAMENTO
A. RELATÓRIO
O presente inquérito teve origem na queixa apresentada por AA contra BB e CC, porquanto no período compreendido entre 2018 e o inicio de 2021 esteve de relações cortadas com a filha, e os seus sobrinhos BB e CC aproveitaram-se dessa circunstância para obterem para si vantagem patrimonial, levando a que a denunciante conferisse plenos poderes aos denunciados, causando á denunciante um prejuízo patrimonial de 150.000€.
Os factos acima referidos, foram registados como susceptíveis de consubstanciar, em abstracto, a prática do tipo legal do crime de usura p. e p. pelo artigo 226º, do Código Penal.
B. INVESTIGAÇÃO
Procedeu-se a inquérito com a realização das diligências consideradas úteis e pertinentes ao apuramento da verdade dos factos.
AA foi inquirida na GNR e neste DIAP, na qualidade de ofendida, e no essencial, confirmou os factos constantes na queixa por si apresentada - cfr. fls.97 e 166.
AA foi ainda inquirida pela Magistrada do MP Titular do presente inquérito e declarou que começou a frequentar a casa dos seus sobrinhos/arguidos em Novembro de 2018. Relativamente à quantia monetária de 90.000 €, foi buscá-la a uns certificados de aforro que tinha no Banco 2... e transferiu-os para a conta por si titulada que tinha na Banco 3.... Depois realizou a transferência para o BB para a conta da Banco 4... titulada pelos arguidos BB e CC.
A quantia não foi devolvida, todavia, dessa quantia o BB gastou nas despesas com a assistente algum dinheiro: era ele quem pagava as viagens da assistente (a Benidorm, a Marrocos), as despesas de saúde, chegou a ser operada num hospital privado a um dedo do pé, onde gastou cerca de 4.000€, e outras despesas da assistente.
O BB tinha acesso aos seus cartões Multibanco, das entidades bancárias onde era titular de contas, como sendo: Banco 1..., Banco 5..., Banco 3... e Banco 6....
Relativamente às joias, a assistente pediu para os arguidos as guardarem, quando foi fazer a viagem a Benidorm no ano de 2019. Identificou as joias como sendo: 3 libras em ouro, uma escrava em ouro, uma pulseira em ouro, colar em ouro, um trancelim e um crucifixo em ouro, um conjunto composto por um colar, uma pulseira e brincos em ouro branco e amarelo, cordão em ouro e um alfinete. Nunca mais lhe devolveram as joias. Vem aos autos, juntar fotografias onde aparece com algumas joias.
Os arguidos tinham a chave da sua residência em ..., deslocando-se lá quando quisessem. Também lhe levaram dois quadros da sua residência. A sua sobrinha aproveitou-se da sua carência afectiva dizendo-lhe mesmo que tivesse descansada que se a assistente morresse que o que sobrava entregava à II, a sua filha. O testamento já foi revogado. As doações dos imóveis não foram anuladas. A NN pediu-lhe dinheiro emprestado, mas o arguido decidiu ser ele e a esposa os primeiros outorgantes, apesar de ter sido a assistente a levantar e emprestar o dinheiro à NN. O dinheiro foi levantado em numerário pela assistente ao balcão do Banco 1... em .... Relativamente ao Mandato, fez e assinou, e nem sabia o que queria dizer, os arguidos disseram-lhe que teria de fazer o Mandato a favor deles se não eles não podiam fazer nada, e a filha é que seria chamada. Já revogou o Mandato. Tinha um apartamento em ... onde reside e fez uma escritura Mutuo com Hipoteca a favor de KK que constava como outorgante. O KK emprestava o dinheiro à assistente. Nessa altura o BB fê-la assinar por trás, isto é, endossar 3 cheques, dizendo que era para o apartamento ficar mais seguro. Corre uma acção em Tribunal relativa ao Mutuo com Hipoteca a favor de KK. Não conhecia o KK. A assistente ia virar os cheques para ver as quantias, mas na altura não viu, porque o BB colocou a mão nos cheques e disse-lhe para assinar e “eu sei o que estou a fazer”. Só posteriormente teve conhecimento do valor total dos cheques que perfazia a quantia de 60.000€ - cfr. fls. 255 a 257.
Foram juntas cópias de vários documentos, nomeadamente cópia do testamento, e do Mandato – cfr. fls.13 a 58.
Veio juntar cópias de fotografias onde são visíveis as joias – cfr.fls.264 a 267.
CC e BB foram constituídos arguidos, e nessa qualidade prestaram TIR e foram interrogados, tendo referido que os factos que lhes são imputados são completamente falsos, remetendo o esclarecimento da presente matéria para o Processo n.º ... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães - ..., e cuja sentença judicial declarou a sua absolvição – cfr. fls.208 e 211.
Foi junto Certidão da Sentença proferida no processo supra identificado, onde se concluiu que a restituição pedida pela queixosa da quantia de 86.000€, foi improcedente, uma vez que AA admitiu que parte dessa quantia foi gasta no pagamento de despesas suas, e ainda, que relativamente aos outros pedidos, só o processo especial de prestação de contas será o adequado na medida em que AA incumbiu os sobrinhos de administrar o seu património – cfr. fls.228 a 237.
Corre termos no Juízo de Execução de Lousada – ..., o Processo n.º ... relativo ao Contrato de Mutuo com hipoteca.
Foram inquiridas, na qualidade de testemunhas:
DD, que no essencial confirmou que no período compreendido entre meados do ano de 2018 a 2021, a denunciante esteve de relações cortadas com a filha II, e que a denunciante lhe disse que estava em casa dos seus sobrinhos, e eram aqueles que tomavam conta de si e dos seus bens.
Refere ainda que nesse período de tempo, é um facto que a Sra. AA aparentava estar vulnerável, mais sensível, com tristeza e fragilidade, contudo não aparentava qualquer demência – cfr. fls.70 e 158.
EE, que confirmou que em meados de 2018 a denunciante teve uma zanga com a filha e que desde essa altura apercebeu-se que algo se passava com ela, e nas conversas que mantinham a denunciante apresentava um discurso ás vezes pouco coerente e não fluido. Acrescentou que os sobrinhos se aproximaram mais da denunciante e aquela foi viver para casa deles, tendo a denunciante lhe dito que eram “aqueles que tratavam de tudo, que lhe faziam as coisas, que lhes dava papeis para assinar e que ficava tudo tratado” – cfr. fls.73.
FF, sobrinha e afilhada da denunciante, e prima dos denunciados, confirmou que em meados de 2018 a denunciante teve uma zanga com a filha e que desde essa altura apercebeu-se que algo se passava com ela. Que num desses encontros lá em casa, a sua Madrinha disse-lhe que ia passar o seu património para o nome do BB, para ele gerir os seus bens, porque ele lhe tinha dito que a sua filha lhe ia tirar tudo, e que era melhor ele ficar a cuidar do seu património, mas que quando ela quisesse voltava a ser tudo seu, porém, a sua Madrinha encontrava-se de tal forma dominada pela ideia de ficar sem nada para a filha, que acabou por alienar todos os seus bens para os sobrinhos. Referiu ainda que nesse período de tempo, é um facto que a Sra. AA aparentava estar vulnerável, mais sensível, contudo não aparentava qualquer demência – cf. fls.76 e 160.
GG, que confirmou que em meados de 2018 a denunciante teve uma zanga com a filha e uma vez que mãe e filha estavam chateadas, pensa que foi por isso que AA alienou o seu património para BB, que a ideia foi tão bem " cozinhada", que a AA, com medo de ficar sem nada, passou o património para BB. Mais refere que AA lhe dizia que os bens estarem em nome de BB era temporário, era só para assegurar o seu património, e que a qualquer momento o seu património retornaria para si. Disse ainda que AA não aparentava qualquer demência, aliás que AA dizia convictamente que ia passar os seus bens para BB de forma a assegurar o património, mas que "não lhe estava a dar nada", que o que era seu a si iria regressar – cf. fls.79 e 162.
HH, irmã da denunciante e tia dos denunciados, confirmou que a denunciante lhe disse que estava chateada com a II, e que ia para os seus sobrinhos, que eles iam cuidar de si, e que lhes ia por o património em nome deles, mas que eles iam só guardar o que era seu para a II não tocar em nada, e que quando a AA precisasse passaria tudo para nome dela novamente. Perante isto disse-lhe várias vezes para não o fazer, que eles iam lhe ficar com tudo o que era dela, que eles não eram pessoas sérias, o que é que ela ia fazer à sua vida, mas a irmã estava dominada pela ideia de passar tudo para nome daqueles sobrinhos – cf. fls.82 e 164.
II, filha da denunciante, confirmou que de facto em meados de 2018 até Março 2021, esteve de relações cortados com a sua mãe, porque casou e foi viver com o seu marido, e a sua Mãe ficou com algum ciúme. Perante isto, os denunciados foram-se aproximando da sua Mãe, e foram-lhe colocando na cabeça a ideia, de que iria ficar com o seu património, e que era melhor passar tudo o que tinha para nome deles, que eles guardavam, e que quando ela precisasse lhe devolviam tudo, que era apenas para a filha não lhe tocar no seu património. O denunciado chegou a contactá-la, dizendo que não ia ficar com nada da sua Mãe, que ela andava a gastar o dinheiro dela era com as amigas. Mais diz que apenas ter conhecimento da situação, em Março de 2021, quando um dos seus tios e a sua prima lhe ligaram e disseram que a sua Mãe andava a pedir dinheiro, que estava sem nada, e que ela tinha que agir. Posto isto aproximou-se da sua Mãe, e foi quando ela lhe disse que estava sem nada porque o BB tinha tudo o que era dela, e não lhe devolvia – cf. fls.85 e 169.
JJ, confirmou que em meados de 2018 a denunciante teve uma zanga com a filha. A denunciante chegou a dizer-lhe que ia passar todo o seu património para nome dos sobrinhos BB e a CC, para eles acautelarem o que era dela e para a filha II, com quem ela estava chateada, não lhe tirar nada. A denunciante disse-lhe que tinha sido ideia dos seus sobrinhos fazer uma coisa dessas, mas que eles também lhe prometeram que quando ela precisasse tudo o que era seu para si voltava. Por diversas vezes disse à denunciante para não o fazer, mas que a denunciante dizia "eu faço confiança neles, eles são os filhos que eu nunca tive, eles depois devolvem-me tudo". Mais disse que chegou a ouvir uma chamada telefónica em que BB pedia à tia 10.000€, alegando que tinha apenas uma hora para os entregar em Tribunal – cf. fls.87 e 168.
Foi junto aos autos cópias da revogação do Mandato e do Testamento – cfr. fls.123 a 127.
KK foi inquirido e referiu que a D. AA foi-lhe apresentada pelo seu primo BB. A senhora estava doente não tinha dinheiro para tratamentos e pediu-lhe 20.000€. Acedeu a emprestar-lhe, ela fez uma declaração de divida e passou-lhe um cheque com esse valor. Depois a D. AA pediu-lhe mais 40.000€ pois precisava de dinheiro para os tratamentos. Nessa altura, a D. AA disse-lhe de livre vontade, que tinha um apartamento que o podia hipotecar e dar-lhe como garantia do empréstimo, por isso, acedeu novamente e emprestou-lhe mais 40.000€. Anulou-se a declaração de divida e fez-se a hipoteca do dito apartamento pelo valor total de 60.000€ (pagou os 40.000€ com um cheque de 15.000€, outro de 20.000€, e 5.000€ em numerário. Dos 5.000€ a D. AA pagou logo as despesas com a hipoteca.
Os cheques foram depositados na conta do primo pelo que sabe, mas estavam passados em nome da D. AA. A D. AA foi sempre acompanhada pelo BB.
Depois a D. AA fez as pazes com a filha e solicitaram a prorrogação do prazo de pagamento do empréstimo. Após, a D. AA já com o ónus da hipoteca doou o apartamento á filha, e posteriormente impugnou o empréstimo. Ainda não recebeu o dinheiro, e emprestou o dinheiro á Senhora a pedido dela. Correu uma acção em Tribunal em que foi testemunha para falar destes factos. O julgamento foi no Tribunal de Guimarães. Sabe que o seu primo foi ilibado de todas as acusações porque ele apresentou todas as contas relacionadas com o dinheiro dos cheques que depositou e outros valores que podiam existir (foi o seu primo que lhe disse) – cfr. fls.272.
III. DIREITO
Dispõe o artigo 226.º do Código Penal que: “1 - Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, fizer com que ele se obrigue a conceder ou prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstancias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. (…) 4 - O agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias se: a) Fizer da usura modo de vida; b) Dissimular a vantagem pecuniária ilegítima exigindo letra ou simulando contrato; ou c) Provocar conscientemente, por meio da usura, a ruína patrimonial da vítima.(…)”
O bem jurídico protegido pelo tipo de crime de usura é o património, todavia, algo mais terá de existir que legitime a criminalização da usura e a penalização, isto é, no aproveitamento consciente de uma situação de necessidade que reduz significativamente a liberdade de contratar e fixar o conteúdo do contrato.
Segundo Taipa de Carvalho, in Código Conimbricense Tomo II, pág. 386 e 387: ” que embora o objectivo direto ou imediato do tipo legal de crime de usura seja a tutela do património alheio, também o bem jurídico liberdade, na sua dimensão de liberdade negocial, está presente na criminalização da usura, constituindo um objectivo mediato do tipo de crime de usura.”
O tipo objectivo consiste numa conduta, estrutural e material, da celebração de um negócio jurídico, em que uma das partes, fica credora de uma prestação manifestamente desproporcionada à sua contraprestação, aproveitando-se, conscientemente da situação de necessidade económica ou da inexistência do outro contraente, de uma normal para apreender o prejuízo patrimonial que o negócio realizado lhe traz ou da dependência deste face ao credor.
O tipo subjectivo do crime de usura exige o dolo directo ou necessário, não bastando o dolo eventual.
Acrescenta o n.º 2 do aludido normativo legal que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”
Daqui resulta que o Ministério Público só deve exercer a acção penal quando, relacionando e conjugando os elementos de prova recolhidos em inquérito, estes formem um conjunto persuasivo da existência do facto criminalmente punível, de quem foi o seu autor e da sua culpabilidade.
Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/11/2015 (Relator: Nuno Ribeiro Coelho), in WWW.dgsi.pt: “Os indícios são suficientes quando há uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”
Por conseguinte, da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas.
Não se logrando atingir essa convicção, que afaste toda e qualquer dúvida razoável, deve ser proferido um despacho de arquivamento.
Teixeira, Carlos Adérito, in “Indícios Suficientes”: Parâmetro de Racionalidade e “Instância” de Legitimação Concreta do Poder-Dever de Acusar, Revista do CEJ, n.º 1, 2004, Almedina, Coimbra, pp. 155 e 156, refere que a suficiência dos indícios está, portanto, “funcionalizada a uma parametrização de condenação e não a um mero desígnio de fazer despoletar o procedimento”, pelo que se impõe uma avaliação de todos os elementos probatórios coligidos, relacionando-os entre si, de modo a antever se a sua reprodução em sede de julgamento terá como consequência mais provável a condenação do arguido.
IV. APRECIAÇÃO
Face ao acervo factual e probatório carreado para os autos, desde já adiantamos que no âmbito da investigação levada a cabo no presente inquérito, entendemos que a prova recolhida é insuficiente, uma vez que não há provas nos autos de indícios suficientes da prática dos mesmos por parte dos arguidos.
Se não vejamos:
Com efeito, a usura não se reduz a um mero ataque ao património, dado que carece para a respectiva verificação do especial constrangimento da vítima da actividade, ou seja, in casu, de que esta experimentasse uma especial situação de necessidade.
Ora, da prova coligida nos autos não temos indícios suficientes, relativamente ás características pessoais, e de forma manifesta, de que a referida queixosa vivesse qualquer situação de necessidade ou estivesse numa qualquer das peculiares situações a que se refere a norma incriminadora, isto é, do depoimento das testemunhas e dos documentos junto aos autos, nada permite aferir que a denunciante estivesse com alguma anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter. Aliás, todas as testemunhas foram unanimes em referir que após o desentendimento com a sua filha II, a denunciante aparentava estar vulnerável, mais sensível, com tristeza e fragilidade, contudo não aparentava qualquer demência. Faz parte da factualidade típica plasmada no artigo 226º do CP a obtenção de uma vantagem manifestamente desproporcionada à prestação efectuada, concorrendo com o aproveitamento da situação de necessidade da vítima. Ora, foi a própria denunciante que chegou a dizer que ia passar todo o seu património para nome dos sobrinhos BB e CC, para eles acautelarem o que era dela e para a filha II, com quem ela estava chateada, não lhe tirar nada, e foi a própria que ainda admitiu que os arguidos pagavam as suas despesas. aliás uma das testemunhas referiu que a AA dizia convictamente que “ia passar os seus bens para BB de forma a assegurar o património, mas que não lhe estava a dar nada", que o que era seu a si iria regressar.
Aliás a própria denunciante se contradiz quando refere que relativamente ao Mandato, fez e assinou, e nem sabia o que queria dizer.
Relativamente ás joias, aos quadros e ás doações realizadas, não existem provam nos autos que nos permitam afirmar que os arguidos se apropriassem dos mesmos contra a vontade da denunciante, e que não tivesse sido a denunciante a dar esses objectos aos arguidos por vontade própria.
Pelo exposto, e relativamente ao crime de usura, com os elementos disponíveis não poderemos, por não ter bases suficientemente sólidas que a sustentem, deduzir acusação, abstendo-se o Ministério Público de o fazer, permanecendo, assim, a dúvida e não a probabilidade razoável assente em bases minimamente seguras.
Estes parcos elementos reproduzidos em julgamento certamente que se traduziriam numa absolvição, fundada na aplicação do princípio in dubio pro reo, pelo que, não existem indícios suficientes tal como estão definidos pelo artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Este Princípio da Presunção da Inocência tem como corolário, em direito probatório, o Princípio “In Dubio Pro Reo”, segundo o qual, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o arguido.
No entanto, com a prova recolhida nos autos, sempre poderíamos estar perante a práctica do crime de infidelidade, uma vez que foi confiado aos arguidos o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios, nomeadamente através do Mandato, porém, só após o desfecho de um eventual processo especial de prestação de contas, é que podemos aferir do prejuízo patrimonial e como tal, da existência da práctica do crime.
Com efeito, é nosso entendimento que existe uma questão civil que necessita de ser resolvida. Assim, na questão em apreço, estamos perante um litígio de natureza cível, pelo que, a subsunção dos factos na previsão típica de um tipo legal de crime de infidelidade, por ora, está inviabilizada, sendo nosso entendimento que os factos denunciados não consubstanciam qualquer crime, mas sim uma questão do foro cível, não sendo o inquérito crime o meio legal legítimo para a denunciante fazer valer as suas razões.
III. DECISÃO
Face ao exposto, determina-se, também nesta parte, o arquivamento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sem prejuízo de o mesmo poder ser posteriormente reaberto face à descoberta de novos elementos - artigo 279.º, do Código de Processo Penal.
Conhecendo.
Relativamente aos invocados vícios atenda-se que os vícios previstos no art. 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal, todos eles têm forçosamente, como decorre do texto do corpo do n.º 2, que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo possível, para a sua demonstração, o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações prestadas ou documentos juntos durante o inquérito, a instrução, ou até mesmo no julgamento – cfr. Ac. STJ de 19-12-90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este artigo.
Tais vícios são intrínsecos à própria decisão considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais.
No caso concreto cabe desde já dizer que o recorrente invoca os vícios prevenidos no nº2 do artº 410º do CPP fora das condições legais, uma vez que se limita sobretudo a divergir do modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida em sede de instrução, sendo que pretende contestar a valoração da prova indiciária, trazendo à colação a sua própria valoração dos factos. Ora, em sede de instrução é legalmente inadmissível invocar tais vícios cfr. in www dgsi ac. RL de 24-11-2020 que se transcreve na parte que interessa “O vício de erro notório na apreciação da prova, bem como os demais enunciados no nº 2, do artigo 410º, do CPP, são vícios relativos à sentença, não tendo aplicação à decisão instrutória a que se reporta o artigo 307º, do mesmo Código – cfr. os acs. da Relação de Lisboa de 03.04.2019, processo n.º 3106/18.6T9LSB.L1, e de 31/10/2017, processo n.º 3335/16.7.T9SNT.L1, acs. da Relação do Porto de 15/02/2012, Proc. nº 918/10.2TAPVZ.P1 e de 18/04/2012, Proc. nº 4454/10.9TAVNG.P1 e ac. da Relação de Évora de 03/07/2012, Proc. nº 4016/08.0TDLSB.E1, todos disponíveis em dgsi.pt.
E, assim é, porque dizem respeito à matéria de facto provada (e/ou não provada) o que inexiste numa decisão instrução, que apenas pode concluir pela existência de matéria de facto suficientemente indiciada ou não indiciada, o que se declara, acrescendo que esses vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, o que exclui o recurso a quaisquer elementos externos à decisão, ainda que constantes do processo, para a sua detecção e o certo é que a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tanto os presentes no inquérito como os produzidos já na fase de instrução, para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, respectivamente, pelo que a crítica à decisão sobre a existência ou inexistência dos indícios não é admissível pela invocação do vício de erro notório na apreciação da prova tal como no nosso ordenamento jurídico se encontra configurado - Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal - Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 909.
Aliás, basta verificar que se não for possível decidir da causa por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º, do CPP, o tribunal de recurso determina o reenvio para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio - cfr. art.º 426.º, do CPP. O que pressupõe, como bem se refere no ac. da Relação de Lisboa de 03.04.2019, processo n.º 3106/18.6T9LSB.L1, que os vícios tenham derivado de um julgamento anterior e não de diligências realizadas em fase de instrução que culmina numa decisão instrutória que reveste a forma de um despacho.”
Passemos agora à análise dos factos indiciários constantes da pronúncia e seu enquadramento legal.
Uma primeira observação para referir que este tribunal superior atentou em toda a documentação junta aos autos e atentamente considerou o que disse a prova testemunhal.
Estabelece o art. 308.°, n.° 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de urna pena ou de urna medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Segundo o art. 283.°, n.° 2, para onde remete o art. 308.°, n.° 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar urna possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, urna pena ou medida de segurança”. Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art. 286.°, n.° 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
De acordo com o princípio “in dubio pro reo” sempre que se esteja, no decurso da apreciação e avaliação da prova perante uma dúvida irremovível e razoável, quanto à verificação de certos factos que geram a sua incerteza, deve o Tribunal favorecer o arguido. Aliás, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de realçar a relevância deste princípio e da inadmissibilidade da sua exclusão na valoração da prova que está subjacente ao despacho de pronúncia, ao “julgar inconstitucionais os artigos 286°, n°1, 298°, e 308°, n° 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32 n° 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.” [Ac. 439/02]. O mesmo tem sido assinalado pela demais jurisprudência, segundo a qual “O juízo de prognose que determinará a sujeição do arguido a julgamento é equivalente tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução, e exige uma possibilidade de condenação em julgamento que respeite o princípio in dubio pro reo.” [Ac. R. Porto de 2011/Nov./23].
Em suma, podemos dizer que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308°/JCPP,) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final” (Ac. R. Porto de 2010/Jan./20).
Isto significa que no culminar da fase de instrução, como se refere no Ac. desta Relação de 2006/Jan./04, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases. Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada. Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido. Por último efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento.
Estão em causa três crimes.
Relativamente ao crime de usura, concorda-se, diga-se com a conclusão a que chegou o tribunal a quo, já na senda do que se referiu no despacho de arquivamento.
De facto, no crime de Usura, previsto e punido pelo art. 226.º, n.º1 e 4 al. c) do Código Penal, o bem jurídico primário protegido é o património, mas também a liberdade negocial do indivíduo.
O processo teve origem numa queixa de AA contra os seus sobrinhos, BB e CC, alegando que estes se aproveitaram do período em que ela esteve de relações cortadas com a filha para obter vantagens patrimoniais.
No processo de inquérito, AA alegou que, entre 2018 e o início de 2021, os seus sobrinhos, BB e CC, se aproveitaram do seu afastamento da filha para obter vantagens patrimoniais. Os bens patrimoniais que terão sido dados aos arguidos incluem:
• Transferência de 90.000€: AA declarou ter transferido 90.000€ de certificados de aforro para uma conta titulada por BB.
• Acesso aos cartões Multibanco: BB tinha acesso aos cartões Multibanco de AA em várias entidades bancárias como Banco 1..., Banco 5..., Banco 3... e Banco 6....
• Joias: AA alegou que os arguidos ficaram com as suas joias quando viajou para Benidorm em 2019. As joias incluem: 3 libras em ouro, uma escrava em ouro, uma pulseira em ouro, colar em ouro, um trancelim e um crucifixo em ouro, um conjunto composto por um colar, uma pulseira e brincos em ouro branco e amarelo, cordão em ouro e um alfinete3.
• Acesso à residência e bens: Os arguidos tinham a chave da residência de AA em ... e levaram dois quadros de lá4.
•Doações de 4 imóveis: As doações dos imóveis não foram anuladas4.
• Mandato: AA fez um Mandato a favor dos arguidos.
•Empréstimo com hipoteca: AA fez uma escritura de Mútuo com Hipoteca a favor de KK, com o intermédio de BB, e assinou cheques no valor de 60.000€.
A Usura configura uma situação de aproveitamento da relação familiar e da vulnerabilidade da vítima que é um fator chave. A lei penaliza o aproveitamento consciente de uma situação de necessidade que reduz significativamente a liberdade de contratar. No caso, a queixosa alegou que os sobrinhos se aproveitaram da sua carência afetiva e do afastamento da filha.
A decisão do tribunal de não pronunciar os arguidos baseou-se na análise das provas, incluindo depoimentos de testemunhas, que indicaram que AA sabia e queria praticar os atos de transferência de património, mesmo estando zangada com a filha. O tribunal considerou que a prova produzida não indicava que a queixosa estivesse numa situação de necessidade ou vulnerabilidade que caracterizasse o crime de usura.
Em suma, as relações familiares podem ser um fator importante na análise deste crime, uma vez que podem criar situações de confiança e vulnerabilidade que são exploradas pelos arguidos. No entanto, é necessário provar que houve um aproveitamento indevido dessa relação e que a vítima não agiu de livre e consciente vontade.
Quais os elementos constitutivos do crime de usura?
Os elementos constitutivos do crime de usura são:
Intenção de alcançar um benefício patrimonial: O agente deve ter a intenção de obter uma vantagem financeira para si ou para outrem. Os indícios poderão ir nesse sentido.
Exploração da situação de vulnerabilidade da vítima: O agente aproveita-se da situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência, fraqueza de carácter ou relação de dependência do devedor. É necessário que a vítima experimente uma situação de especial necessidade, o que atenta a prova produzida não parece indiciar embora estivesse estado doente oncológica e afastada emocionalmente da sua filha.
Obrigação ou promessa de vantagem pecuniária desproporcionada: O agente faz com que o devedor se obrigue a conceder ou prometa uma vantagem pecuniária que seja manifestamente desproporcionada em relação à contraprestação, tendo em conta as circunstâncias do caso. É importante que a vantagem seja manifestamente desproporcionada à prestação efetuada, o que no caso parece haver indícios.
Dolo: O tipo subjetivo do crime de usura exige dolo direto ou necessário, não sendo suficiente o dolo eventual.
Nexo de causalidade: É necessário que haja uma relação de causa e efeito entre a situação de vulnerabilidade da vítima e a obtenção da vantagem desproporcionada pelo agente.
O bem jurídico protegido pelo crime de usura é o património, mas também a liberdade negocial, na medida em que a usura se aproveita de uma situação que reduz a liberdade de contratar da vítima.
Em casos agravados, a pena pode ser aumentada se o agente fizer da usura modo de vida, dissimular a vantagem pecuniária ilegítima ou provocar conscientemente a ruína patrimonial da vítima.
No caso analisado no processo, o tribunal considerou que não havia indícios suficientes de que a queixosa vivesse uma situação de necessidade ou estivesse numa das situações de vulnerabilidade previstas na lei, pelo que não se verificavam os elementos constitutivos do crime de usura. Além disso, o tribunal entendeu que a queixosa agiu de livre vontade ao transferir o seu património para os arguidos.
Efetivamente não existem indícios de constrangimento da vítima: Não foram encontradas provas de que AA estivesse numa situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter que a tornasse vulnerável à exploração por parte dos arguidos. Embora as testemunhas tenham referido que AA aparentava estar vulnerável, sensível, triste e frágil após o desentendimento com a filha, não aparentava qualquer demência ou incapacidade para não entender os atos de disposição que fez.
A própria AA afirmou que queria passar os bens para os sobrinhos para proteger o património da filha, e admitiu que os arguidos pagavam as suas despesas. AA terá dito que ia passar os seus bens para BB "de forma a assegurar o património, mas que não lhe estava a dar nada", e que o que era seu a si iria regressar.
Surgiram contradições da denunciante: AA contradisse-se em relação ao Mandato, afirmando que o fez e assinou sem saber o que queria dizer.
A própria denunciante admitiu que queria passar os bens para os sobrinhos para proteger o património da filha.
No caso analisado no processo, o tribunal considerou que não havia indícios suficientes de que a queixosa vivesse uma situação de necessidade ou estivesse numa das situações de vulnerabilidade previstas na lei, pelo que não se verificavam os elementos constitutivos do crime de usura. Além disso, o tribunal entendeu que a queixosa agiu de livre vontade ao transferir o seu património para os arguidos.
Com o que concordamos.
As testemunhas referiram que, após o desentendimento com a filha, a denunciante aparentava estar vulnerável e sensível, mas não demonstrou demência. Além disso, foi a própria denunciante que afirmou que ia passar todo o seu património para os sobrinhos para que a filha, com quem estava chateada, não lhe tirasse nada.
A assistente tinha conhecimento do valor dos atos que praticava, como explicado pelo notário e solicitador, e quis praticá-los. A decisão de transferir o património para os arguidos foi tomada para impedir que a filha ficasse com os seus bens e dinheiro.
A prova produzida revelou-se demasiado fraca para sustentar uma condenação em sede de julgamento. Não foi produzida prova capaz de infirmar a prova produzida em sede de inquérito, e que conduziu ao despacho de arquivamento.
Existe uma dúvida insanável acerca da prática do crime pelo arguido, devendo o tribunal aplicar o princípio da presunção de inocência. Este princípio estabelece que o ónus da prova cabe a quem acusa e que, em caso de dúvida razoável, o tribunal deve decidir a favor do arguido.
Desta forma, pode concluir-se como fez o tribunal a quo relativamente ao crime de usura que não se podia afirmar que estavam indiciados factos suscetíveis de integrarem os elementos objetivos e subjetivos deste crime.
Aliás, no processo cível, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães (Processo n.º ...), os principais argumentos utilizados para defender a validade das doações e transferências de património foram os seguintes:
Capacidade mental da assistente: Apesar dos depoimentos contraditórios de familiares e amigos sobre a capacidade mental da assistente na altura das doações, o tribunal valorizou os depoimentos de testemunhas sem interesse no processo, nomeadamente a notária e o solicitador que elaboraram os documentos das doações. Ambos afirmaram que a assistente sabia, compreendia e queria fazer as doações, o que lhes foi explicado.
Depoimentos dos médicos: A médica de família da assistente não registou nenhum problema cognitivo, apontando apenas um quadro depressivo. O médico psiquiatra que acompanhou a assistente também referiu o quadro depressivo, mas afirmou que ela nunca esteve em situação de não poder decidir sobre a sua vida e perceber o que fazia, e que a medicação que tomava não diminuía as suas capacidades.
Intenção da assistente: A própria assistente admitiu que tudo o que fez foi para impedir que a filha, com quem estava zangada, ficasse com os seus bens e dinheiro. As testemunhas confirmaram que a assistente estava zangada e revoltada com a filha, e que encontrou nos arguidos uma nova família.
Ausência de isolamento total: Não ficou provado que os arguidos afastaram ou isolaram a assistente para terem maior influência sobre ela. A assistente continuou a falar com familiares e amigos, a viajar, a frequentar festas, a fazer compras e a anunciar o seu propósito de doar aos arguidos.
Arrependimento posterior: O tribunal considerou que a assistente se arrependeu posteriormente das doações devido a alguns comportamentos dos arguidos e por se ter apercebido das consequências dos seus atos, nomeadamente a hipoteca da sua casa, e também por ter feito as pazes com a filha. No entanto, o tribunal entendeu que o arrependimento não invalidava os atos praticados anteriormente com plena capacidade e intenção.
Ónus da prova: Incumbia à assistente o ónus de alegar e provar a sua incapacidade de entender o sentido do ato que praticava, o que não foi conseguido com a prova produzida.
Em suma, o tribunal no processo cível concluiu que a assistente queria fazer as doações aos arguidos, sabia o que fazia, e fê-lo para impedir que a filha herdasse os bens. O arrependimento posterior não foi considerado suficiente para anular as doações, uma vez que não foi provada a incapacidade da assistente no momento em que os atos foram praticados.
Donde se pode concluir que os elementos disponíveis não permitiam deduzir acusação por usura permanecendo a dúvida e não a probabilidade razoável de condenação. A incerteza sobre os factos levaria a uma absolvição, com base no princípio in dúbio pro reo.
Vejamos agora o crime de burla.
Na burla Qualificada, a relação de confiança, muitas vezes presente em relações familiares, pode ser utilizada para enganar a vítima. A burla envolve astúcia, erro ou engano, atos de disposição patrimonial e prejuízo. No caso, a queixosa alegou que os arguidos a induziram em erro para que lhes concedesse plenos poderes, resultando num prejuízo patrimonial.
No crime de burla, o bem jurídico protegido é o património de outra pessoa. A doutrina maioritária considera o património como o bem jurídico protegido no crime de burla e define-o de acordo com as suas características mistas.
O crime de burla é considerado um crime de dano contra o património. Para que se consume o crime, é necessário que haja um prejuízo patrimonial efetivo. A disposição patrimonial resultante da burla deve conduzir a uma diminuição do património do enganado ou de terceiro, resultando num dano patrimonial.
O conceito de património, neste contexto, é entendido numa noção mista, adaptada por A. M. Almeida Costa com "corretores" que visam compatibilizá-la com a teleologia do direito penal, conduzindo a um conceito jurídico-criminal específico de património.
A assistente, AA, alegou que os arguidos cometeram o crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º2, al. a), c) e d) do Código Penal.
Este crime visa proteger o património de outra pessoa, garantindo que as pessoas não sejam induzidas em erro ou engano para realizar atos que causem prejuízo patrimonial.
Ora a análise da prova no seu conjunto dá conta que a Recorrente estava a passar por fase depressiva e de doença já para não esquecer a sua idade, o facto de se encontrar zangada com a sua filha e neste quadro há indícios que a conduta dos Arguidos, que, segundo ela, se aproveitaram da sua vulnerabilidade para obter vantagens patrimoniais. De facto houve uma aproximação dos arguidos à recorrente num momento de fragilidade e depressão, que a isolaram da filha e ela agiu ciente do que estava a transferir os seus bens para eles, todavia, ela fê-lo condicionalmente, ou seja, os bens a ela retornariam, caso contrário não teria feito as transferências. A propósito de quê o faria?
O propósito da assistente era evitar que a filha se apossasse do seu património, não vemos por que razão ela passaria a título definitivo bens seus e daquela grandeza para a posse dos sobrinhos a não ser que tivesse sido convencida de que os mesmos a ela regressariam como apregoou. Caso contrário não o teria feito as disposições que fez.
De facto, resulta suficientemente indiciado que houve:
•Aproveitamento da fragilidade psíquica e emocional: A Recorrente alega que os Arguidos se aproveitaram do seu estado depressivo e do afastamento da filha para manipulá-la e obter vantagens patrimoniais.
•Criação de uma narrativa falsa: Os Arguidos fabricaram ou aproveitaram uma história de que a filha da Recorrente pretendia despojá-la do património, induzindo-a ou combinando com a assistente, a transferir os bens para eles na condição de mais tarde lhos devolverem.
•Obtenção de enriquecimento ilícito: A Recorrente acusa os Arguidos de terem obtido enriquecimento ilícito através de doações de imóveis, testamentos e um mútuo, do qual se apropriaram do dinheiro.
•Apropriação de joias: A Recorrente alega que os Arguidos se apropriaram de joias que lhes foram confiadas.
•Desproporção entre os benefícios obtidos e as despesas pagas parece evidente: Não obstante o argumento de que os Arguidos pagaram algumas das suas despesas, tais pagamentos são insignificantes em comparação com o património que colocaram em seu nome da centenas de milhares de euros.
Foi ignorado o facto de que num período de tempo os Arguidos dominaram todos os aspetos da sua vida, passando a acompanhá-la para todo o lado e convencendo-a a residir com eles.
Convém não esquecer que passaram das mãos da recorrente para a dos arguidos:
•Quatro imóveis, com um valor comercial de várias centenas de milhares de euros.
Mais especificamente:
•Uma loja destinada a comércio, inscrita na matriz com o artigo ...78..., da união de freguesias ... e ... e descrito na conservatória do registo predial de Felgueiras sob o n.o ...62.
•Um Prédio urbano composto por 3 moradias em banda, inscrito na matriz com o artigo ...30 da freguesia e ..., ... e descrito na conservatória do registo predial de Fafe sob o n.o ...42.
•Uma moradia inscrita na matriz predial com o artigo ...64 da freguesia ... e descrito na conservatória do registo predial de Fafe, sob o n.o ...73.
•Um terreno rústico inscrito na matriz com o artigo ...07 da freguesia ... e descrita na conservatória do registo predial de Fafe, sob o n.o ...63.
A Recorrente transferiu para os Arguidos a quantia de 90.000€ (noventa mil euros) no dia 11 de Março de 2019.
Adicionalmente, a Recorrente foi convencida a celebrar um mútuo no valor de 60.000€, elevando o total transferido para 150.000,00€.
A Recorrente estima que os arguidos tenham em sua posse 86.000,00€ que se recusam a devolver.
A Recorrente é tia dos Denunciados.
A Recorrente num estado mais frágil passou a frequentar a casa dos Denunciados e vice-versa, numa convivência diária. Os Denunciados acompanhavam a Recorrente em todas as deslocações e controlavam os seus atos.
São vários indícios que comprovam:
•Aproveitamento da vulnerabilidade da Recorrente: A Recorrente estava vulnerável física e psicologicamente quando os Denunciados se aproximaram. Testemunhas confirmam que a Recorrente estava debilitada e vulnerável, e que os Denunciados se aproveitaram desse estado.
•Isolamento da família: Os Denunciados isolaram ou alimentaram o isolamento da Recorrente em relação à sua filha, controlando os seus atos ao ponto de ir morar com os Denunciados.
•Criação de uma narrativa falsa: A convicção por parte da recorrente de que os seus familiares iriam delapidar o seu património, levaram-na como o convencimento dos arguidos a transferir os bens para os Denunciados para os "salvaguardar" com a promessa de devolução.
•Transferência de património: A Recorrente transferiu para os Denunciados 90.000€ em dinheiro. Doou quatro imóveis com um valor comercial elevado. Foi convencida a fazer um testamento a favor dos Denunciados.
•Mútuo e apropriação de dinheiro: A Recorrente foi convencida a celebrar um mútuo de 60.000€, mas o dinheiro ficou com os Denunciados. O mutuante era familiar dos Denunciados, e o Denunciado acompanhou todo o processo.
•Apropriação de joias: Os Denunciados apropriaram-se de joias da Recorrente. A Recorrente entregou as joias para que as guardassem, mas estes recusaram-se a devolver.
•Contratos outorgados pelos Denunciados: Os Denunciados outorgaram um contrato de empréstimo em nome da Recorrente, como se fossem os mutuantes.
•Testemunhos: Várias testemunhas confirmam que os Denunciados tomavam conta dos bens da Recorrente e que esta estava dominada pela ideia de que a filha lhe ia tirar os bens. As testemunhas relatam que a Recorrente mencionou que estava apenas a transmitir temporariamente o património com a promessa de reversão futura.
O que disseram as Testemunhas:
As testemunhas prestaram declarações que corroboram a versão da Recorrente sobre a sua vulnerabilidade e a influência dos Denunciados. Em geral, os testemunhos revelam uma realidade caracterizada pela debilidade física e psicológica da Recorrente, o seu afastamento da filha, e a aproximação dos Denunciados, que criaram uma falsa ideia de que os familiares da Recorrente iriam delapidar o seu património.
Os pontos principais dos testemunhos incluem:
•Vulnerabilidade da Recorrente: DD e FF confirmaram que a Recorrente estava vulnerável, mais sensível, com tristeza e fragilidade. EE testemunhou que a Recorrente apresentava um discurso pouco coerente e não fluido.
•Domínio dos Denunciados: HH e FF afirmaram que a Recorrente estava dominada pela ideia de passar todo o seu património para os Denunciados devido ao receio que estes lhe incutiram de vir a perder tudo para a filha.
•Afastamento da filha e aproximação dos Denunciados: Todas as testemunhas comprovaram que a Recorrente estava desavinda com a filha e que os Denunciados aproveitaram tal afastamento para uma aproximação, passando a Recorrente a viver na casa daqueles e estes a gerir o seu património.
•Transferência temporária do património: FF, GG, HH, II e JJ confirmaram que a Recorrente as informou que estava a transmitir temporariamente o seu património para os Denunciados por temer que a filha ficasse com tudo, mas que não estava a dar nada pois tudo retornaria para si mal deixasse de subsistir o fundamento da transmissão, ideia transmitida pelos Denunciados.
•Pressão para obter dinheiro: JJ declarou que assistiu a uma chamada telefónica entre a Recorrente e o Denunciado em que este lhe exigia 10.000,00€, numa hora, para levar ao Tribunal.
•Contratação do Mútuo: KK reconheceu que o Denunciado acompanhou a Recorrente, de forma omnipresente, em todo o processo de contração do mútuo, e que foi ele quem ficou com os cheques e os depositou na sua própria conta bancária.
•Ascendência dos Denunciados: LL, genro da Recorrente, confirmou o relato das restantes testemunhas relativamente ao modo como ocorreram as transmissões patrimoniais e à ascendência dos Denunciados sobre a Recorrente.
. A assistente só doou com a condição dos bens voltarem à sua propriedade.
Vários testemunhos indicam que a Recorrente declarou que as transferências de património para os Denunciados eram temporárias, com a condição de que os bens lhe fossem devolvidos no futuro.
As testemunhas FF, GG, HH, II e JJ confirmaram que a Recorrente lhes disse que estava a transmitir temporariamente o seu património para os Denunciados por temer que a Filha ficasse com tudo. No entanto, frisou que não estava a dar nada, pois tudo retornaria para si assim que deixasse de existir o motivo para a transmissão.
A Recorrente acreditava que o património lhe seria devolvido quando ela quisesse, garantindo assim a sua proteção, e que "não lhes estava a dar nada", o que era seu a si iria regressar e quando ela precisasse passaria tudo para o nome dela novamente.
Esta condição de devolução é um dos principais argumentos para sustentar que as ações dos Denunciados configuram crimes como burla qualificada, uma vez que estes, supostamente, nunca tiveram a intenção de devolver os bens, aproveitando-se da sua fragilidade e confiança e aquela agiu nesse pressuposto.
E de acordo com o relato da Recorrente, foram os Arguidos que a convenceram a realizar diversas ações prejudiciais ao seu património, aproveitando-se da sua vulnerabilidade e criando uma narrativa falsa para a manipular.
A Recorrente alega que os Arguidos a convenceram a transferir os seus bens para eles com a promessa de que seriam devolvidos no futuro. As testemunhas FF, GG, HH, II e JJ confirmaram que a Recorrente lhes disse que estava a transmitir temporariamente o seu património para os Denunciados por temer que a Filha ficasse com tudo. No entanto, frisou que não estava a dar nada, pois tudo retornaria para si assim que deixasse de existir o motivo para a transmissão.
Os Arguidos, de acordo com o relato da Recorrente, usaram os seguintes argumentos para a convencer a realizar diversas ações prejudiciais ao seu património:
•Necessidade de salvaguardar o património: Os Arguidos convenceram a Recorrente de que ela precisava de proteger o seu dinheiro e bens da filha, alegando que a filha iria movimentar a sua conta bancária e deixá-la sem nada. Este argumento foi usado para persuadir a Recorrente a transferir 90.000€ para uma conta dos Arguidos.
•Apoio e cuidado: Os Arguidos justificavam o seu controlo sobre os atos da Recorrente com a alegação de que queriam dar-lhe todo o apoio necessário num momento em que ela estava afastada da filha.
•Isolamento de parte da família: Os Arguidos isolaram a Recorrente do contacto com a filha para terem mais influência sobre si, convencendo-a a fazer o que eles diziam.
•Doação de imóveis: Os Arguidos convenceram-na a doar-lhes quatro imóveis, com a justificação de salvaguardar o seu património e comprometendo-se a reverter as doações quando não subsistisse o fundamento que as justificava.
•Fazer testamento: Os Arguidos convenceram-na a fazer testamento, com o argumento de salvaguardar o dinheiro depositado na conta bancária.
•Mútuo para pagar dívidas inexistentes: Os Arguidos convenceram a Recorrente de que ela precisava de um mútuo de 60.000€, alegando que todo o seu dinheiro havia sido gasto e que era preciso pagar contas urgentemente, apesar de saberem que tal não correspondia à realidade. Também a convenceram de que carecia de realizar uma intervenção cirúrgica dispendiosa e de que tinha de pagar elevadas despesas dos processos judiciais, o que não era verdade.
•Entregar as joias: Os Arguidos incutiram que era melhor guardar as joias em casa deles face ao perigo da Filha conseguir entrar em sua casa e apoderar-se das peças.
•Promessa de reversão: Os Arguidos prometeram que todas as disposições patrimoniais seriam revertidas quando não existisse o fundamento que as justificava.
O que não aconteceu.
Tendo presente que o significado de "indícios suficientes" no contexto do processo penal é o seguinte:
•Probabilidade razoável de condenação: Indícios suficientes são aqueles que apontam para uma possibilidade razoável de que o arguido venha a ser condenado em julgamento. Isso significa que deve existir uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
•Elementos que persuadem da culpabilidade: São os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime do qual aquele agente é responsável.
•Juízo de probabilidade: Os factos indiciários devem ser bastantes para que da sua lógica conjugação e relação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade dos factos que lhe são imputados.
•Não é necessária certeza: A lei não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, bastando a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência. A prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final, sendo uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase de julgamento.
•Fundamentação objetiva: A apreciação das provas recolhidas no inquérito deve resultar numa verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação, não bastando um mero juízo de carácter subjetivo, exigindo-se um juízo objetivo fundamentado nas provas recolhidas.
Os "indícios suficientes" referem-se a um conjunto de elementos que, analisados em conjunto, levam a uma conclusão razoável de que o arguido praticou o crime, justificando a sua submissão a julgamento. Não é necessária a certeza absoluta, mas sim uma probabilidade razoável de condenação.
No quadro anteriormente descrito é ainda possível antever a probabilidade de futura condenação, os indícios existentes são suficientes para pronunciar os arguidos pela prática do crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º2, al. a) do Código Penal.
Do crime de abuso de confiança.
O crime de abuso de confiança, está previsto e punido pelo art. 205.º, n.º1 e 4, al. a) do Código Penal.
Este crime implica a apropriação ilegítima de algo que foi entregue por título não translativo de propriedade. A relação de confiança é fundamental, pois a vítima entrega o bem ao agente, que depois trai essa confiança. No caso, a queixosa alegou que os arguidos não lhe devolveram joias e outros bens que lhes foram confiados.
Quais os elementos objetivos do abuso de confiança?
Os elementos objetivos do crime de abuso de confiança são:
• Apropriação ilegítima. A apropriação consiste no agente passar a atuar como dono da coisa que lhe foi entregue e confiada, adotando comportamentos que exteriorizam e convencem os demais de ser ele o "proprietário" da coisa. A simples negação ou atraso na restituição não significam necessariamente apropriação ilegítima. É necessário demonstrar que o agente pretendeu integrar a coisa no seu património ou no de terceiro, através de atos objetivos e inequívocos. A inversão do título da posse carece de ser demonstrada por atos objetivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse.
•Coisa alheia móvel. O objeto do crime deve ser uma coisa móvel e alheia, de acordo com as definições do direito civil. A coisa entregue tem de pertencer, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente.
•Entrega por título não translativo da propriedade. O agente deve ter recebido a coisa por um título que não transfere a propriedade, ou seja, com a obrigação de a restituir. A entrega deve ser válida, afetada a uma causa ou finalidade determinada e suportada numa relação fiduciária entre quem entrega e quem recebe.
Adicionalmente, antes de se falar em apropriação, é importante verificar a existência de uma situação prévia de posse legítima em nome alheio ou de mera detenção do agente em relação à coisa, resultante de um ato de entrega. Essa entrega pode ocorrer mesmo sem a tradição material da coisa.
A apropriação ilegítima é o elemento com o qual se dá a consumação do crime, através da inversão do título da posse.
O bem jurídico protegido pelo crime de abuso de confiança é o direito de propriedade sobre coisas móveis alheias, recebidas por título não translativo da propriedade. O crime visa proteger o direito de propriedade contra comportamentos ilícitos de apropriação dessas mesmas coisas. Diferentemente do crime de furto, o abuso de confiança protege o direito de propriedade e não a posse.
O que significa inversão do título posse?
A "inversão do título da posse" é um elemento do crime de abuso de confiança, que se consuma quando o agente passa a atuar como se fosse o dono da coisa que lhe foi entregue e confiada. Essencialmente, ocorre uma mudança na forma como o agente se relaciona com o bem, deixando de o possuir ou deter em nome alheio e passando a comportar-se como se fosse o proprietário.
Mais especificamente, a inversão do título da posse manifesta-se quando o agente adota comportamentos que exteriorizam a intenção de ser o proprietário da coisa. Alguns exemplos de tais comportamentos incluem:
•Venda
•Doação
•Consumo
•Dissipação
•Cessão
•Penhor
•Caução
•Ocultação
•Retenção sem causa legítima ou motivo razoável
É importante notar que a simples negação ou atraso na restituição da coisa, ou a omissão de a devolver, não significa necessariamente apropriação ilegítima. É preciso demonstrar que o agente pretendeu integrar a coisa no seu património ou no de terceiro, através de atos objetivos e inequívocos.
A jurisprudência maioritária exige que a inversão do título da posse resulte de atos objetivos que revelem que o agente está a dispor da coisa como se fosse sua. A mera confusão no património do agente ou o simples não uso da coisa não são suficientes.
A inversão do título da posse não tem de ser conforme a lei civil. O que importa é que seja ilícita, ou seja, que contrarie o ordenamento jurídico no que diz respeito à propriedade. Não se verifica a inversão se o agente atuar ao abrigo de uma causa legitimante, como o estado de necessidade ou o direito de retenção, previstos no Código Civil.
A consumação do crime de abuso de confiança ocorre no momento da apropriação, que, em princípio, coincide com a inversão do título de posse. No entanto, pode entender-se que o momento da consumação é o da negativa de restituição, caso não se tenha determinado um ato material anterior que indique inequivocamente a apropriação arbitrária.
Quais os atos que indiciam apropriação indevida?
No contexto do crime de abuso de confiança, a apropriação indevida é um elemento chave, indiciada por atos que demonstram que o agente passa a comportar-se como se fosse o proprietário da coisa. Esta apropriação é a inversão do título da posse, ou seja, o agente deixa de possuir ou deter a coisa em nome alheio e passa a agir como se fosse o dono.
Ora, AA alegou que os arguidos ficaram com as suas joias quando viajou para Benidorm em 2019 e não as restituíram apesar de ter tentado lhas solicitar. As joias incluem: 3 libras em ouro, uma escrava em ouro, uma pulseira em ouro, colar em ouro, um trancelim e um crucifixo em ouro, um conjunto composto por um colar, uma pulseira e brincos em ouro branco e amarelo, cordão em ouro e um alfinete no valor total superior a 5.000€1.
E dois quadros que estavam na residência da recorrente em ..., da qual os arguidos tinham a chave.
Estes objetos descriminados, alguns de uso pessoal, tinha deles a assistente total domínio de facto e de disposição.
Assim, e no que diz respeito à prova relativamente a estes factos, entende-se também que existem indícios suficientes da versão apresentada pela assistente, não pendendo nessa avaliação uma maior probabilidade, ou igual probabilidade relativamente à condenação, no sentido da possível absolvição dos arguidos por tais factos, que justificasse a aplicação do princípio in dúbio pro reo, sendo certo que a decisão instrutória não pode constituir uma antecipação do julgamento e decisão final sobre os crimes imputados.
Relativamente ao demais nomeadamente as alegadas contradições no despacho de não pronúncia, traduzem matéria do âmbito dos meros lapsos sendo certo que o alegado erro na identificação de uma das testemunhas não se verifica. Basta ler atentamente toda a decisão instrutória para, facilmente, se perceber que na referida conclusão, certamente por lapso, falta a expressão não, a seguir à “… fase em que nos encontramos, somos levados a concluir que que durante a instrução (não) foi produzida prova suficiente e capaz de abalar os indícios recolhidos em sede de inquérito, que levaram à dedução de despacho de arquivamento”.
Relativamente à testemunha identificada como LL, sabe-se que o nome completo é MM, e que o tribunal ao referir-se a esta testemunha, na decisão instrutória, a identifica de forma abreviada, como MM, não havendo dúvidas que se se referem efetivamente ao depoimento de LL.
Em suma, a matéria de facto indiciariamente apurada é manifestamente insuficiente para permitir a conclusão de que os arguidos praticaram um crime de usura.
Todavia, existem indícios bastantes para levar os arguidos a julgamento no que diz respeito aos crimes de burla e de abuso de confiança.
Decisão.
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela assistente AA e nessa medida determinar que o tribunal a quo profira despacho de pronúncia pelo crime de burla qualificada previsto e punido pelo artigo 217.º e 218.º, n.º2, al. a) do Código Penal e pelo crime de abuso de confiança previsto e punido pelo art. 205.º, n.º1 e 4, al. a) do Código Penal e manter a não pronúncia dos arguidos pelo crime de Usura.
Sem custas por não serem devidas pela assistente.
Notifique.
Sumário:
(Da exclusiva responsabilidade do relator)
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(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Paulo Costa
Lígia Trovão
Madalena Caldeira