I - O novo regime do maior acompanhado garante à pessoa acompanhada a sua autodeterminação e promove, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente de acordo com o princípio da máxima preservação da capacidade do sujeito.
II - A matéria das restrições judiciais dos direitos do acompanhado é de natureza estritamente casuística, sujeita aos princípios da necessidade, proporcionalidade e flexibilidade de acordo com o critério da imprescindibilidade individual e da vontade esclarecida do beneficiário.
III - A aplicação de qualquer medida de acompanhamento tem que ser fundamentada, devendo o Tribunal averiguar e apurar se a sua imposição é necessária, adequada e proporcional, e se se justifica, em face do concreto estado de saúde, deficiência e/ou comportamental que o maior apresenta e em face do cumprimento dos deveres gerais de cooperação e de assistência que, no caso concreto, caibam por parte dos seus familiares.
IV - Tanto no domínio dos direitos pessoais como na dimensão patrimonial dos negócios da vida corrente, as intervenções no âmbito do regime do maior acompanhado devem garantir o poder de autodeterminação e salvaguardar a vontade do beneficiário, quando que tal se mostre possível e sempre que este seja detentor de um discernimento esclarecido, estando todas as actuações que visam a resolução de determinado problema limitadas pelos princípios da necessidade, proporcionalidade e suficiência, sendo que estas medidas surgem, ainda assim, como subsidiárias dos deveres gerais de cooperação e apoio de natureza familiar ou assistencial.
V - Em sede de procedimento de jurisdição voluntária, o julgador pode fazer uso das regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, de molde a descobrir e adoptar a solução mais conveniente para os interesses em causa.
ECLI:PT:TRP:2025:865/23.8T8ILH.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
AA, residente na Rua ..., ..., ..., instaurou acção especial de acompanhamento de maior, requerendo o acompanhamento do seu filho BB, residente na mesma morada.
Alegou, para tanto e em síntese, que o seu filho padece de deficiência cerebral, patologia que o torna incapaz de gerir, de forma autónoma, a sua pessoa e bens.
1. Declarou suprido o consentimento do beneficiário BB para a propositura da ação.
2. Decretou a aplicação do regime de maior acompanhado ao beneficiário BB e determinou como medidas de acompanhamento a administração total de bens, a realizar pelo acompanhante, bem como a representação especial, conferindo ao acompanhante os poderes necessários para (i) representar o beneficiário junto de quaisquer instituições de saúde, clínicas e hospitais, (ii) representar o beneficiário junto de qualquer instituição bancária ou instituição de crédito, atribuindo poderes ao mesmo para abrir, movimentar ou encerrar quaisquer contas, à ordem ou a prazo, efetuar levantamentos de dinheiro ou depósitos, assinar cheques e recibos, solicitar saldos, extratos de conta, emissão de cartões de débito ou crédito, requisitar cadernetas de cheques ou credenciais para acesso ao netbanking, (iii) representar o beneficiário junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas, designadamente para efeitos de liquidação de impostos ou contribuições, e (iv) representar o beneficiário em juízo, consignando-se que tais medidas se tornaram necessárias desde 2 de Janeiro de 2008.
3. O exercício de direitos pessoais pelo acompanhado fica restringido da seguinte forma:
a) O acompanhado é incapaz de testar (cf. artigo 2189.º, alínea b) do Código Civil);
b) O acompanhado é incapaz de celebrar negócios da vida corrente (cf. artigo 147.º, n.º 1 do Código Civil).
4. Nomeia-se AA, pai do acompanhado, residente na Rua ..., ..., ... ..., para exercer o cargo de Acompanhante.
5. Para integrarem o Conselho de Família, nomeia-se CC, mãe do beneficiário e residente na Rua ..., ..., ... ..., e DD, irmão do beneficiário e residente na Rua ..., ..., anexo, ... ....
I.Vem o presente recurso interposto da decisão proferida em sede de primeira instância que decretou a aplicação do regime de maior acompanhado ao beneficiário BB, determinando como medida de acompanhamento a administração total de bens, pelo acompanhante, bem como a representação especial, conferindo ao acompanhante os poderes necessários para (i) representar o beneficiário junto de quaisquer instituições de saúde, clínicas e hospitais, (ii) representar o beneficiário junto de qualquer instituição bancária ou instituição de crédito, atribuindo poderes ao mesmo para abrir, movimentar ou encerrar quaisquer contas, à ordem ou a prazo, efectuar levantamentos de dinheiros ou depósitos, assinar cheques e recibos, solicitar saldos, extractos de conta, emissão de cartões de débito ou crédito, requisitar cadernetas de cheques ou credenciais para acesso ao netbanking, (iii) representar o beneficiário junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas, designadamente para efeitos de liquidação de impostos ou contribuições, e (iv) representar o beneficiário em juízo, consignando-se que tais medidas se tornaram necessárias desde 2 de Janeiro de 2008;
II. A sentença a quo não fez uma correcta interpretação e adequação da matéria de facto assente ao direito aplicável ao caso concreto, tendo assim violando lei substantiva;
III. Na decisão em crise, teve-se em conta essencialmente as declarações do beneficiário, as quais foram consideradas como aptas a fazer prova de que este conserva discernimento bastante para a realização dos actos normais da sua vida corrente, tendo percepção da realidade que o rodeia e sendo capaz de se expressar.
IV. Desconsiderando-se as conclusões vertidas no relatório médico legal de psiquiatria forense, que apontam para um quadro de patologia permanente e irreversível.
V. E, consequentemente, conclui no sentido, de o beneficiário ser abrangido por uma medida de representação geral.
VI. Que não foi o que veio a ser decretado nos autos.
VII. Na verdade, o beneficiário não consegue realizar as tarefas do dia-a-dia, sem ajuda de terceiros, desorienta-se com facilidade, não tem noção do dinheiro, precisa de orientação no trabalho.
VIII. O regime jurídico da representação geral é por isso, no modesto entender do recorrente, o mais adequado ao caso em concreto.
IX. A circunstância de não se ter valorado o relatório pericial com o peso que deveria, conduziu a uma sentença desadequada às necessidades do beneficiário.
X. Assim, em face do exposto, a sentença em crise, ao não decretar a medida de representação geral violou o disposto no artigo 145º, n.º 2, alínea b) e 138º, todos do CC, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que altere a medida ora indicada, assim se fazendo a tão acostumada Justiça.
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. O beneficiário BB nasceu em ../../1990.
2. É solteiro.
3. É filho de AA e de CC.
4. O beneficiário reside com os seus pais.
5. O beneficiário sofre de perturbação do desenvolvimento intelectual ligeiro.
6. A doença de que padece o beneficiário reveste caráter permanente, definitivo e irreversível.
7. O beneficiário é capaz de se expressar e de manter conversação com terceiros.
8. Consegue situar-se espácio-temporalmente.
9. Consegue manifestar as suas preferências.
10. Exerce atividade profissional de coveiro, no cemitério da ....
11. O beneficiário necessita de auxílio dos seus pais para as atividades da vida diária, designadamente ao nível da sua higiene pessoal, medicação, alimentação e vestuário.
12. A gestão do património e dos rendimentos auferidos pelo beneficiário é realizada pelo seu pai.
13. O beneficiário não tem noção do valor económico das coisas.
14. O beneficiário não consegue realizar cálculos aritméticos.
15. O beneficiário não sabe ler.
16. O beneficiário não outorgou, até à presente data, testamento vital, nem nomeou procurador de cuidados de saúde.
17. Do “relatório pericial” elaborado nos presentes autos constam as seguintes conclusões:
«A análise da história pessoal do examinando e dos dados psicopatológicos disponíveis sugere a existência de um atraso do desenvolvimento cognitivo compatível com o diagnóstico de Perturbação do Desenvolvimento Intelectual Ligeiro (6A00.0; Classificação Internacional de Doenças CID-11), presente desde o nascimento, e de etiologia desconhecida.
Este diagnóstico corresponde a alterações permanentes e irreversíveis, à luz dos conhecimentos médicos actuais, da normal capacidade cognitiva do indivíduo, espelhadas em incapacidade de organização e planeamento das actividades complexas da vida diária e relacionamento interpessoal, para as quais se encontra dependente de terceiros.
Atendendo ao diagnóstico enunciado, devem ser consideradas medidas de acompanhamento médico geral, em função das necessidades, com eventual tratamento psicofarmacológico em caso de alterações comportamentais e medidas de apoio global prestadas por instituição dedicada a pessoas com deficiência, já em curso.
Atendendo ao grau muito elevado de incapacidade de desempenho pessoal global imposta pela patologia de que padece, atingindo todas as dimensões relevantes, somos de parecer que o examinando integra pressupostos médico-legais previstos para acompanhamento no âmbito da representação geral».
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
a. O estado de saúde do beneficiário não lhe permite tomar qualquer decisão sobre a sua vida.
b. O beneficiário não exerce qualquer atividade profissional.
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que a questão a resolver no âmbito do recurso prende-se em saber da adequação da medida de acompanhamento escolhida.
Como é consabido, com a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, foram revogados os institutos da interdição e inabilitação e, em sua substituição, foi introduzido o instituto do maior acompanhado.
A necessidade de alteração legislativa resultou de imperativos constitucionais e de obrigações internacionais do Estado Português após adesão à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adoptada em Nova Iorque em 30 de Março de 2007 e ao respectivo Protocolo Adicional.
Destarte, o actual regime do Código Civil pretende ser a realização infraconstitucional das liberdades e direitos das pessoas portadoras de deficiência com vista a encontrar soluções individualizadas, que ultrapassem a rigidez da interdição e da inabilitação, garantindo à pessoa acompanhada a sua autodeterminação, e promovendo, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente, de acordo com o princípio da máxima preservação da capacidade do sujeito.
Nos termos do artigo 140.º do Código Civil “O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença” (n.º 1); “A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam” (n.º 2).
Assim, o regime jurídico de maior acompanhado veio reformar a disciplina das incapacidades dos maiores, substituindo os institutos da interdição e da inabilitação, com a publicação da Lei n.º 49/2018, de 14/08, diploma que introduziu modificações ao Código Civil e estabeleceu critérios de orientação no regime da incapacidade de exercício de adultos.
O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
No comentário de António Pinto Monteiro[1], a Lei acolheu a mudança de paradigma já há muito anunciada, afastando-se do modelo de tomada de decisões por substituição e abraçando o modelo do acompanhamento, pela tomada de decisões com recurso à assistência e apoio. «Proteger sem incapacitar», recorde-se, é a palavra de ordem do novo modelo. Mas fê-lo com realismo, permitindo o recurso à representação legal quando, excecionalmente, não houver alternativa credível, no interesse do necessitado e por decisão judicial. Em vez do modelo do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, de substituição, temos hoje, dizia, um regime que segue um modelo flexível e monista, de acompanhamento ou apoio, casuístico e reversível, que respeita na medida do possível a vontade das pessoas e o seu poder de autodeterminação.
No actual espectro lógico-normativo, as normas contidas no Código Civil e no Código de Processo Civil têm de ser interpretadas à luz das regras fundamentais inscritas na Constituição da República Portuguesa e noutros instrumentos internacionais vinculativos[2], que estabelecem, entre outros, como princípios fundamentais que todas as pessoas com deficiência, sem excepção, têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida e que, a par disso, a pessoa com deficiência deve ser apoiada nas suas decisões relativas ao exercício da capacidade jurídica e tem o direito a participar activamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico. Constam ainda do rol de direito o de ser ouvido sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica e que as medidas de apoio devem ser absolutamente necessárias e proporcionais e flexíveis de acordo com o critério das suas necessidades individuais.
Esta visão é partilhada pela mais autorizada jurisprudência[3] que, de igual modo, afirma que o novo regime do maior acompanhado, introduzido no Código Civil por força da Lei n.º 49/2018, representa a realização infraconstitucional das liberdades e direitos das pessoas portadoras de deficiência com vista a encontrar soluções individualizadas, que ultrapassem a rigidez do antigo regime dualista da «interdição/inabilitação», garantindo à pessoa acompanhada a sua autodeterminação, e promovendo, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente, de acordo com o princípio da máxima preservação da capacidade do sujeito.
De harmonia com a lei substantiva, no artigo 138.º do Código Civil, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
De acordo com a lei processual, reunidos os elementos necessários, o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145.º do Código Civil e, quando possível, fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.
O decretamento de qualquer medida de acompanhamento decorre de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior se encontrar de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais, tal como decorre da associação entre os artigos 130.º e 138.º Código Civil.
O acompanhamento só é decretado, independentemente da sua concreta extensão, se estiverem verificadas duas condições, a necessidade da medida (requisito de ordem positiva) e a não susceptibilidade dessa necessidade ser suprida por via dos deveres gerais de cooperação e assistência (requisito de ordem negativa)[4].
O Tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres de cooperação e assistência forem suficientes para acautelar as necessidades do maior, dado que, como assume Mafalda Miranda Barbosa[5], a ideia não é incapacitar o sujeito, mas auxiliá-lo, dando-lhe o apoio necessário para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica.
O pensamento matricial é que a capacidade de exercício dos beneficiários de medidas de protecção é sujeita apenas às modificações absolutamente necessárias impostas pelas circunstâncias particulares do caso concreto[6].
E a razão para restringir determinados direitos está alocada ao propósito de «proteger o próprio acompanhado, mas também na necessidade de evitar que terceiros possam ser prejudicados por determinados comportamentos»[7].
A ideia de ultima ratio presente no instituto implica que o acompanhamento de maiores apenas tem lugar quando tal for absolutamente necessário para salvaguardar os interesses do beneficiário e quando os seus objectivos não possam ser atingidos de outra forma, nomeadamente pela via dos deveres gerais de cooperação e assistência[8].
Assim, qualquer limitação nos direitos pessoais do beneficiário tem de ter um fundamento fáctico bastante que justifique a intervenção do Tribunal, a qual deve sempre ser subsidiária e devidamente balizada no tempo[9].
Na verdade, a aplicação de qualquer medida de acompanhamento tem que ser fundamentada, devendo o Tribunal averiguar e apurar se a sua imposição é necessária, adequada e proporcional, e se se justifica, em face do concreto estado de saúde, deficiência e/ou comportamental que o maior apresenta e em face do cumprimento dos deveres gerais de cooperação e de assistência que, no caso concreto, caibam por parte dos seus familiares, devendo serem ponderados, para tal efeito, três factores: acompanhamento, competências e limitações[10].
No caso vertente, o Recorrente interpôs recurso da decisão proferida, que decretou, em benefício do beneficiário BB o regime de maior acompanhado e determinou como medidas de acompanhamento a administração total de bens, a realizar pelo acompanhante, bem como a representação especial, conferindo ao acompanhante os poderes necessários para (i) representar o beneficiário junto de quaisquer instituições de saúde, clínicas e hospitais, (ii) representar o beneficiário junto de qualquer instituição bancária ou instituição de crédito, atribuindo poderes ao mesmo para abrir, movimentar ou encerrar quaisquer contas, à ordem ou a prazo, efetuar levantamentos de dinheiro ou depósitos, assinar cheques e recibos, solicitar saldos, extratos de conta, emissão de cartões de débito ou crédito, requisitar cadernetas de cheques ou credenciais para acesso ao netbanking, (iii) representar o beneficiário junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas, designadamente para efeitos de liquidação de impostos ou contribuições, e (iv) representar o beneficiário em juízo.
Mais determinou a sentença recorrida que o acompanhado é incapaz de testar e de celebrar negócios da vida corrente[11].
E consignou que tais medidas se tornaram necessárias desde 02 de Janeiro de 2008.
Nesta sede recursiva, invoca o Recorrente que o tribunal recorrido, em face da prova produzida, deveria ter aplicado em benefício do beneficiário, outrossim, a medida de representação geral, por ser a que melhor se adequa à sua situação clínica e vivencial.
Tendo presente a factualidade dada como provada e atrás enunciada, há que atentar que as medidas de representação especial e as limitações de direitos pessoais, tal como determinadas na sentença e em face da sua extensão e concretização, respondem cabalmente às necessidades do beneficiário e são idóneas e suficientes para assegurar a sua cabal representação, a satisfação dos seus cuidados de saúde, a gestão do seu património e a assegurar o seu bem estar, não merecendo, por isso, reparo.
De resto, em sede de audição pessoal do beneficiário, realizada em 03.12.2024, conforme se alcança do respectivo auto junto aos autos[12], resultou que o beneficiário assumiu postura colaborante, mantendo contacto visual e respondendo às questões que lhe foram dirigidas. Revelou orientação espácio-temporal, concretizando o lugar da audição, dia, mês, ano e dia da semana correspondentes. Revelou o seu nome completo e idade, frustrando comunicar a sua data de nascimento, assim como identificou, apenas pelo primeiro nome, os seus progenitores, a saber AA, seu pai que reconhece como estando presente neste acto, e CC, sua mãe. Disse pertencer a uma fratria de 3 filhos, sendo o mais velho de todos eles, residindo na companhia do seu irmão DD e dos seus pais, em habitação da propriedade destes, desconhecendo se em apartamento ou moradia, sita na .... Exerce as funções de coveiro, no cemitério da ..., que dista cerca de 10 minutos da sua residência, fazendo-o todos os dias da semana, no período horário compreendido entre as 08 e as 17 horas, ali se deslocando com recurso a bicicleta. O vencimento que aufere é gerido pelo seu pai, por sua própria vontade, porquanto reconheceu a sua incapacidade para realização de pagamentos, por desconhecimento do valor real do dinheiro, não obstante ter conseguido identificar nota, de 5,00€ que lhe foi exibida nesta audição. Revelou inaptidão para realização de simples operações aritméticas, acrescentando não saber ler, e referiu que, apesar de se vestir sozinho, são os seus pais que escolhem a roupa do seu dia-a-dia, o auxiliam na higiene pessoal, e confeccionam as refeições. Referiu gostar de futebol, divulgando conhecimentos genéricos quanto a jogadores, classificação e campeão nacional. Rematou dizendo que já exerceu o direito de voto, por uma vez, pretendendo continuar a fazê-lo, e manter interesse na manutenção da sua condição pessoal/social actual, mormente, lugar da sua residência, na companhia dos seus progenitores, com quem realiza, quase em pleno, todas as suas actividades, encarregando o seu pai da gestão dos seus rendimentos, como tem vindo a suceder até então.
De resto, em decorrência do exposto foram dados como provados pelo tribunal os factos elencados nos pontos 7 a 15 da sentença, tendo presente, aliás, que o pai do beneficiário, aqui Recorrente, esteve presente na referida diligência e corroborou o aduzido pelo beneficiário, seu filho, no que concerne às incapacidades deste no seu dia-a-dia e o auxílio que lhe é prestado para gerir a sua pessoa e bens.
Invoca o Recorrente, porém, que o tribunal desconsiderou as conclusões insertas no relatório médico legal de psiquiatria forense que apontam para um quadro de patologia permanente e irreversível e conclui que o Requerido deverá beneficiar, por isso, de uma medida de representação geral, entendimento que não acompanhamos.
No entanto, ao invés do que sustenta o Apelante, o tribunal a quo não ignorou tal meio de prova, dado que nele se fundou para dar como provada a patologia de que padece o Requerido, o seu alcance e as incapacidades cognitivas que dela decorrem para a vida daquele, fixando o seu início em 02.01.2008.
Além disso, tal elemento de prova nunca pode suplantar ou dispensar a audição pessoal do Requerido pelo tribunal, que constitui uma diligência obrigatória, sob pena da sua dispensa gerar nulidade processual, porquanto visa averiguar directamente da sua concreta situação e aferir das medidas de acompanhamento mais adequadas, conforme decorre expressamente do disposto nos artigos 897.º, n.º 2 e 898.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[13].
Assim, a decisão a proferir terá de tomar em conta o que resulta da audição pessoal e directa do beneficiário, ponderadas as demais provas produzidas, designadamente a prova pericial, conforme o estatui o artigo 139.º, nº 1, do Código Civil.
Neste conspecto, refere Maria Inês Costa[14], que: “(…) A obrigatoriedade da audição é especialmente vincada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, pela utilização pelo legislador das expressões “em qualquer caso” e “sempre”, não deixando dúvida sobre a intenção daquele no sentido de que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais seja invariavelmente precedida da audição do beneficiário pelo juiz (…) Assim, a prossecução da sobredita finalidade aconselha que se proceda a uma observação da situação real em que se encontra o beneficiário de modo a que o juiz decida as medidas de acompanhamento após adquirir uma imagem dessa situação que coincida com a realidade, sem o crivo da narrativa inserta nos articulados.
Apenas através da audição do beneficiário poderá o juiz compreender efectivamente o contexto vivencial daquele, nomeadamente no que concerne à densidade da sua (in)capacidade para a prática de actos e, por conseguinte, apenas dessa forma poderá aproveitar na plenitude a maleabilidade que a lei lhe confere no que tange a fixar as medidas de acompanhamento, personalizando-as à medida da situação do destinatário, afastando a aplicação de medidas estanques, pré-concebidas e, afinal, potencialmente desajustadas em relação às efectivas e concretas necessidades da pessoa que delas beneficiará.
Assinale-se que é frequente os documentos médicos que constam do processo corresponderem a descrições sumárias das patologias, com pouca alusão ao caso, sendo essa mais uma razão para que o tribunal, na avaliação a fazer, não deva cingir-se aos relatórios periciais: o juiz é o «perito dos peritos» e a audição pessoal e directa assume particular importância permitindo complementar o exame médico, possibilitando averiguar as limitações do caso em apreço e assegurando ao beneficiário o seu direito a ser ouvido e expressar a sua vontade – na medida das suas limitações – sobre o seu futuro (…)”.
Ora, tecidas estas considerações sobre o alcance de tal diligência e o seu desiderato, temos que no caso dos autos, na sequência da audição do beneficiário, o tribunal entendeu, e bem, que, ao invés da sugerida medida de representação geral invocada no relatório pericial, seriam mais adequadas e compagináveis com a concreta situação daquele, as que determinou.
Refira-se que estamos perante um processo especial, urgente e de jurisdição voluntária, cabendo ao juiz os poderes de investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações que entenda por pertinentes para a boa decisão da causa, conforme, decorre do disposto nos artigos 986.º, n.º 2 e 987.º do Código de Processo Civil.
Pode, ainda, o tribunal, nos termos gerais e ao abrigo do princípio da gestão processual decorrente dos artigos 6.º, n.º 1 e 547.º do mesmo diploma legal, adoptar qualquer medida de gestão processual que considere conveniente para a boa apreciação da causa.
Assim, atenta a natureza do processo de acompanhamento de maior, o critério decisório no decretamento da medida de acompanhamento é, pois, o da discricionariedade, cabendo ao julgador adoptar a solução que julgue mais conveniente e oportuna, conforme redunda do artigo 987.º do Código de Processo Civil.
Pelo que, cotejados os elementos de prova juntos aos autos e em face da factualidade dada como provada, o tribunal decretou as medidas acima elencadas que nos afiguram proporcionais e adequadas ao caso concreto e à situação vivencial do beneficiário.
De resto, conforme refere a sentença recorrida, o acompanhamento do beneficiário deve limitar-se ao necessário em face da concreta situação deste[15].
Nesta medida, deverá o acompanhamento ser proporcional e cingir-se ao estritamente necessário, de modo a salvaguardar-se, tanto quanto possível, a dignidade, a autonomia e a vontade da pessoa[16].
Ou seja, as medidas de acompanhamento aplicáveis serão as que se afigurarem adequadas ao caso concreto, sempre com carácter subsidiário face de outras que redundem dos deveres gerais de cooperação e assistência, nos termos do artigo 140.º do Código Civil, erigindo-se os princípios da necessidade e da subsidiariedade como aqueles que deverão nortear o julgador nessa aferição.
Assim, cotejando, à luz da factualidade provada, as medidas de representação especial decretadas na sentença recorrida e as limitações impostas ao beneficiário no que concerne aos seus direitos pessoais de testar e de celebrar negócios da vida corrente, temos que, no caso concreto, as mesmas asseguram, de forma abrangente, proporcional e necessária, o bem estar, o pleno exercício de todos os direitos e o cumprimento dos deveres daquele.
E, efectivamente, é este afinal o objectivo do acompanhamento de maior, o de assegurar o bem-estar deste, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.
O qual será alcançado com as medidas decretadas na sentença recorrida, sem prejuízo do Requerente suscitar a sua revisão a todo o tempo, sempre que a evolução do beneficiário o justifique[17].
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.
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Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar não provido o recurso da apelação, confirmando a decisão recorrida.
Porto, 20 de Março de 2025