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APREENSÃO
CORREIO ELECTRÓNICO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Sumário
I - No que concerne à “apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante”, dispõe o artº 17º que: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurarem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.” II - É ao Juiz de Instrução Criminal que compete selecionar os conteúdos de correio eletrónico relevantes para a descoberta da verdade e para a prova e determinar a sua junção aos autos, nos termos do nº 3, do artº 179º, do Código de Processo Penal.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
No inquérito que corre termos no Departamento Central de Investigação e Acão Penal, sob o nº 291/22.6TELSB, em 19.11.2024 foi proferido despacho, com o teor seguinte: (transcrição)
“I. Consigno que tomei conhecimento dos ficheiros guardados nos seguintes suportes
digitais:
- DVD constante do saco de prova A173306;
- DVD constante do saco de prova A173308;
- Pen constante do saco de prova A173713;
- Pen constante do saco de prova A173714;
- Pen constante do saco de prova A173928;
- Pen constante do saco de prova A173929;
- Disco de armazenamento externo constante do saco de prova A173930;
- Disco de armazenamento externo constante do saco de prova A173931,
tendo acedido ao conteúdo de alguns desses ficheiros e constatado que dos mesmos fazem parte mensagens de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante – arts. 179.º, n.º 3, e 268.º, n.º 1, al. d), ambos do Código de Processo Penal, ex vi art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15.09.
II. Atento o volume da correspondência electrónica em causa, designo para me coadjuvar na tomada de conhecimento das mensagens de correio electrónico e dos registos de comunicações de natureza semelhante apreendidos que são relevantes para a prova a inspectora da Polícia Judiciária AA (fls. 721), bem como, se necessário, especialista informático do referido órgão de polícia criminal, a indicar por aquela.
III. No prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, deverá a inspectora da Polícia Judiciária AA apresentar-me (fora do processo, via confidencial) listagem da correspondência electrónica que seja relevante para a prova, bem como suporte digital onde a mesma se encontre gravada.
IV. Dê conhecimento deste despacho à inspectora da Polícia Judiciária AA e diligencie pela entrega à mesma dos referidos suportes digitais.
V. Acondicione o envelope contendo os aludidos suportes digitais em invólucro selado.
VI. A intervenção que o Ministério Público pretende assumir no procedimento tendente à junção aos autos de correspondência electrónica não encontra suporte nem na letra nem no espírito do regime legal acima citado. Na verdade, resulta do disposto no n.º 3 do art. 179.º do Código de Processo Penal (aplicável por força do estatuído no art. 17.º da Lei n.º 109/2009) que entre a tomada de conhecimento, pelo juiz, do conteúdo da correspondência apreendida (que ocorreu neste momento) e a ponderação judicial sobre a relevância desta para a prova não pode haver intromissão de outros sujeitos processuais, nomeadamente do Ministério Público, no acesso ao conteúdo de tal correspondência. De outro modo, não se compreenderia que em caso de irrelevância da correspondência para a prova só o juiz ficasse ligado por dever de segredo relativamente ao respectivo conteúdo (cf. a parte final do citado n.º 3 do art. 179.º). Pelo que, consequentemente, indefere-se tal pretensão.
VII. Devolva o processo ao Ministério Público, devendo permanecer neste tribunal, guardado em cofre, o aludido invólucro selado, a fim de ser entregue à inspectora da Polícia Judiciária AA.
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É o seguinte o teor da promoção apresentada pelo Ministério Público em 31.10.2024 e que foi objecto de apreciação pelo despacho recorrido (transcrição): No decurso das buscas não domiciliárias, e conforme Auto de Gravação de Dados Informáticos de fls. 792, procedeu-se à gravação da documentação digital referente as conversações extraídas da aplicação WhatsApp utilizada por BB e por CC (cfr. Auto de Busca e Apreensão e Auto de Gravação de Dados Informáticos).
Procedeu-se à gravação dos seguintes dados:
(…)
Os dados foram gravados, em duplicado, em suportes de armazenamento de dados "PEN USB" da marca "...", com a capacidade de 32 Gb, acondicionadas nos sacos de prova Série A173928 e A173929.
(…)
Os ficheiros de correio foram gravados, em duplicado, em suportes digitais autónomos, discos externos, da marca "...", com a capacidade de 128 Gb, acondicionados nos sacos de prova Série A173930 e A173931.
Foi realizada a extração remota e gravação de dados da plataforma "..." associada à conta de correio eletrónico ... que foram gravados, em duplicado, nos suportes de armazenamento de dados Pen USB, da marca ..., acondicionados nos sacos de prova série A com os números 173713 e 173714 (cfr. Relatório De Diligência Forense Em Ambiente Digital, de fls. 892).
As extrações referidas foram realizadas no âmbito das buscas devidamente autorizadas, tal como o foram igualmente as pesquisas informáticas efetuadas.
Vem o Ministério Público apresentar, em primeira mão, o conteúdo dos suportes apreendidos no decurso de diligências de aquisição de prova.
Assim, tal qual nos foi presente, apresente-se ao Exmo. Juiz de Instrução, para os efeitos do disposto no artigo 17° da Lei 190/2009, de 15 de setembro e no artigo 179°, n° 3, na parte em que pode ser correspondentemente aplicável, a fim de que sejam os suportes mantidos apreendidos e juntos aos autos.
No momento, atento o volume dos dados informáticos e a complexidade da investigação em presença, esta apresentação visa fazer intervir o Exmo. Juiz de Instrução para salvaguardar que sejam expurgados os ficheiros cuja utilização como meio de prova se encontra legalmente vedada em presença de direitos fundamentais dos visados, bem como os que não revistam inequivocamente qualquer aporte probatório para a presente investigação.
Requer o Ministério Público que, sendo mantidos apreendidos e juntos aos autos, sejam esses ficheiros facultados à investigação, a fim de que o Ministério Público proceda à avaliação do seu conteúdo em função do seu concreto relevo probatório, em resultado do ulterior desenvolvimento da investigação.
Voltará o Ministério Público a apresentar o Exmo. Juiz de Instrução, em suporte autónomo, os ficheiros de correio eletrónico que entenda revestirem relevo determinante para o prosseguimento da investigação e do exercício da ação penal, requerendo então que venham a ser considerados prova definitivamente adquirida.
***
Inconformado com o despacho, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O objeto do presente recurso é o despacho datado de 19.11.2024, do Exmo. Juiz de Instrução, que indeferiu a pretensão do Ministério Público de proceder à seleção das mensagens de correio eletrónico revelantes para a prova.
2. Da exposição do quadro legal do regime do correio eletrónico, e no que releva para a presente motivação, resulta que o Juiz de Instrução tem intervenção: na visualização em primeira mão do correio eletrónico; e na apreensão das mensagens que se afigurem relevantes para a prova.
3. Entre a primeira visualização e decisão sobre a apreensão das mensagens que se afigurem relevantes para a prova - existe uma necessária etapa que a lei não prevê expressamente: a seleção das mensagens com relevância probatória.
4. No que respeita a esta seleção, ou seja, escolha das mensagens relevantes para a prova, entende o Exmo. Juiz o quo que essa competência pertence ao Juiz de Instrução, coadjuvado pelo órgão de polícia criminal, com total exclusão do titular da acção penal, o Ministério Público.
5. A construção jurídica operada pelo Exmo. Juiz de Instrução não é conforme aos princípios constitucionais do acusatório, autonomia do Ministério Público e regras de interpretação (artigo 9º do Código Civil), sendo, por isso, contrária à lei.
6. Nos termos do disposto no artigo 262°, n°1, e 263°, do Código de Processo Penal, o inquérito, cuja direção cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal, compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
7. Incumbe ao Ministério Público, na qualidade de titular da acção penal, correlacionar o correio eletrónico com a restante prova já carreada ou a carrear para os autos, selecionar aqueles conteúdos que entender necessários para o esclarecimento dos factos, em obediência ao princípio do acusatório plasmado no artigo 32°, n° 5 da CRP.
8. A intervenção jurisdicional na fase de inquérito é limitada, prendendo-se com aqueles atos que, nos termos dos artigos 269°, do Código de Processo Penal, estejam na disponibilidade decisória do juiz de instrução, ou com aqueloutros que devam ser pessoalmente praticados por aquele, nos termos do artigo 268° do mesmo diploma legal.
9. A remissão contida na parte final do artigo 17° da Lei 109/2009 para o regime de apreensão da correspondência prevista no Código de Processo Penal não significa uma aplicação integral e acrítica deste.
10. Estamos perante normas criadas pelo legislador em tempos distintos e que pretenderam dar resposta a problemáticas diferentes, pelo que uma aplicação automática não é consentânea com o espírito do sistema.
11. A aplicação correspondente do regime do artigo 179°, do Código de Processo Penal deve hoje ser a de aplicação subsidiária e com as necessárias adaptações, aplicando-se esse regime apenas naquilo que não estiver especialmente previsto na Lei n° 109/2009, de 15 de Setembro, não podendo o regime geral do Código de Processo Penal sobrepor-se ao regime especial de prova electrónica.
12. Veja-se que o entendimento defendido pelo Exmo.Juiz de Instrução Criminal conduziria a que o despacho por si proferido de apreensão de mensagens de correio eletrónico fosse insidicável e como tal irrecorrível.
13. Com efeito, seria conceder ao Juiz de Instrução um poder de direção do inquérito absoluto, pois tudo o que considerasse irrelevante para a prova ficaria para sempre selado pelo dever de segredo, inacessível ao Ministério Público e, como tal, fora de qualquer controlo.
14. Tal significaria uma perda de prova irreparável, colocando em causa o exercício da acção penal e, em última instância o poder punitivo do Estado.
15. É com grande perplexidade que se verificou que o Exmo. Juiz de Instrução disponibilizou o conteúdo das mensagens ao OPC, solicitando à Polícia Judiciária que lhe apresentasse a listagem das mensagens de correio eletrónico relevantes para a prova, vedando ao Ministério Público, magistratura com assento constitucional, dominus do inquérito, obrigada a critérios de estrita legalidade e objectividade, a seleção de mensagens de correio de eletrónico. 16. Ao disponibilizar o correio electrónico à Policia Judiciária, o Exmo. Juiz de Instrução não só esvazia de sentido o argumento por si aventado de que nenhum sujeito processual pode ter intromissão entre a tomada de conhecimento e ponderação judicial sobre a relevância da prova, como também incorre em contradição, assumindo não ser ele próprio quem irá selecionar o correio eletrónico relevante para a prova, delegando tal função no OPC.
17. Ao proferir o despacho ora colocado em crise agiu em crassa violação de disposições legais e constitucionais, assumindo uma posição de direcção do inquérito, determinando o que é, ou não, relevante para a prova, através de uma grave limitação das funções constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público.
18. A interpretação plasmada no despacho recorrido faz tábua rasa das disposições constitucionais que estabelecem a estrutura acusatória do processo penal (artigo 32.° n.° 5, da CRP) e a autonomia do Ministério Público (artigo 219.° n.° 2, da CRP) das quais decorrem, em conjugação com a lei processual penal, que compete ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal, a direção do inquérito e, consequentemente, a escolha das mensagens de correio eletrónico com relevância probatória. 19. Arguindo-se, para os devidos efeitos, a inconstitucionalidade das normas do artigo 17°, da Lei n° 109/2009, de 15 de Setembro, e do n.° 3 do artigo 179.°, do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de atribuir ao Juiz de instrução a competência de, no inquérito, proceder à seleção das mensagens de correio eletrónico relevantes para a prova, excluindo o Ministério Público dessa tarefa, que, por natureza, lhe incumbe.
20. Em conclusão, o Exmo. Juiz de Instrução Criminal ao proferir o despacho recorrido fez uma errada interpretação e excedeu os seus poderes, substituindo-se ao Ministério Público e violou as normas previstas nos artigos 17° e 28° da Lei n° 109/2009, de 15 de Setembro, e dos artigos 17°, 53°. n° 2, alínea b), 179°, 262°, n°1, 263°, n°1 e 269° n° 1, alínea d) e f), todos do Código de Processo Penal; e 2º, 3º, 4º, n° 1, alíneas d) e e), do Estatuto do Ministério Público.
21. Concomitantemente, violou disposições com previsão constitucional, designadamente o princípio da reserva de função jurisdicional, contida no artigo 32°, n° 4, o princípio do acusatório, previsto no artigo 32°, n° 5, e o princípio da autonomia do Ministério Público, plasmado no artigo 219°, n° 2, todos da CRP.
22. Termos em que deverá o despacho em crise ser revogado e substituído por outro que, após a abertura e primeira visualização pelo Juiz de Instrução, e após exclusão dos conteúdos que possam contender com a reserva da vida privada e que não tenham relevância para a prova, disponibilize ao Ministério Público, na qualidade de titular da acção penal, para investigação, a pesquisa e seleção do correio eletrónico que se afigure relevante para a descoberta da verdade e para a prova.
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Por despacho proferido em 06.01.2025, foi o recurso regularmente admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo da decisão recorrida.
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso.
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Não há lugar ao cumprimento do disposto no art.º 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
*** II. Fundamentação Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso concreto, considerando tais conclusões, a questão suscitada e que importa decidir é a seguinte:
- se a decisão recorrida está ferida de nulidade, nos termos do art. 119° e) do Código de Processo Penal, por violação da função, do estatuto e a autonomia do Ministério Público, e inconstitucional por violação do princípio da reserva de função jurisdicional, contida no artigo 32°, n° 4, o princípio do acusatório, previsto no artigo 32°, n° 5, e o princípio da autonomia do Ministério Público, plasmado no artigo 219°, n° 2, todos da CRP.
Apreciando e decidindo.
O Ministério Público dirige o inquérito, goza de autonomia nos termos em que o seu Estatuto o prevê, tendo processo penal uma natureza acusatória.
Preceitua o artº 32º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) que “Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.”
De acordo com o artº 32º, nº 5, da CRP, “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”. Decorre do artº 219º, nº 2, da CRP, que “o Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei”. E, como se retira do artº 263º, nº 1, do CPP, “a direção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal”.
Ainda assim, mesmo em sede de inquérito, se estiverem em causa direitos, liberdades e garantias, há atos previstos na lei que são da exclusiva competência do juiz de instrução, que deve praticar alguns deles (cfr. artigo 268º do CPP), devendo autorizar ou ordenar outros (vide artigo 269º do CPP).
Ao caso dos autos tem aplicação a Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, conhecida por Lei do Cibercrime.
Dispõe o artº 15º, nº 1, da Lei do Cibercrime que “Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência”.
Quando está em causa uma “apreensão de dados informáticos”, diz-nos o artº 16º da Lei em análise que:
“1. Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos.
2. O órgão de polícia criminal pode efetuar apreensões, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo anterior, bem como quando haja urgência ou perigo na demora.
3. Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto. (...)”.
No que concerne à “apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante”, dispõe o artº 17º que: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurarem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.” (destacado nosso)
De acordo com o artº 269º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal, durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar apreensões de correspondência, nos termos do nº 1 do artigo 179º.
A propósito da apreensão de correspondência, o artº 179º do Código de Processo Penal preceitua que:
“1- Sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que:
a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa;
b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e
c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
(…)
3- O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ser ela utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova”. (sublinhado nosso)
Adianta-se, desde já, que se acolhe o entendimento sufragado pelo despacho recorrido, no qual, entendeu-se que “resulta do disposto no n.º 3 do art. 179.º do Código de Processo Penal (aplicável por força do estatuído no art. 17.º da Lei n.º 109/2009) que entre a tomada de conhecimento, pelo juiz, do conteúdo da correspondência apreendida (que ocorreu neste momento) e a ponderação judicial sobre a relevância desta para a prova não pode haver intromissão de outros sujeitos processuais, nomeadamente do Ministério Público, no acesso ao conteúdo de tal correspondência.”
Porém, a questão decidenda não é pacífica neste Tribunal da Relação, existindo duas posições opostas, a saber:
No acórdão de 11 Maio 2023, proferido no processo nº 215/20.5T9LSB.L1, desta 9ª Secção, decidiu-se no sentido que:
I – A Lei do Cibercrime é uma legislação especial que veio estabelecer disposições penais materiais e processuais relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico (secundarizando o Código de Processo Penal) para fazer face a novas realidades e inerentes especificidades, tais como dos dados informáticos e do correio electrónico, justificando-se o sacrifício do interesse individual numa comunicação livre de interferências alheias, em prol do exercício do “ius puniendi” estadual.
II - Mas, a apreensão (mesmo gozando de legitimidade formal pela existência de prévia autorização ou ordem judicial de apreensão) não legitima, “per si”, a valoração dos elementos probatórios assim conseguidos.
Para o efeito, é ainda necessário que o Juiz seja a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo apreendido, conhecimento esse que não tem de ser obrigatoriamente completo/total.
Depois, os elementos apreendidos podem ser enviados pelo Juiz ao Ministério Público para que este emita proposta/parecer sobre a relevância, ou não, para a descoberta da verdade ou para a prova dos factos em investigação (pelo mesmo (Ministério Público face à estrutura acusatória de qualquer processo penal).
Então o Juiz estará em condições de melhor aferir qual o conteúdo relevante e ponderar da necessidade, ou não, da sua junção aos autos como meios de prova e, em caso afirmativo, com a inerente compressão de direitos constitucionais.
III - O Juiz de instrução é um garante dos direitos fundamentais dos diversos intervenientes no processo penal, porém não controla o exercício da ação penal.
A intervenção do Juiz de Instrução Criminal em sede de inquérito deve pautar-se por um princípio da intervenção enquanto Juiz das liberdades (e não como Juiz de investigação), respeitando o modelo constitucional de divisão de funções entre a magistratura judicial e a magistratura do Ministério Público.”
Em sentido contrário, pode ler-se no acórdão de 10.08.2020, proc. 6330/18.8JFLSB-A.L1 da 3ª Secção sdeste tribunal, o seguinte:
“O regime de apreensão de correio electrónico mostra-se regulado directamente pelo art.º 17.º da Lei do Cibercrime e, subsidiariamente (por remissão para o mesmo) pelos pressupostos e requisitos legais relativos à apreensão de correspondência previstos no art.º 179.º, do Código de Processo penal. O disposto no art.º 179.º, n.º 3 do CPP aplicável por força do art.º 17.º, da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), impõe que o JIC seja pessoa a tomar conhecimento “em primeiro lugar” do correio eletrónico apreendido, sob pena de nulidade. A falta de exame da correspondência pelo juiz constitui uma nulidade prevista no art.º 120.º, n.º2, alínea d) do CPP, porque se trata de um acto processual legalmente obrigatório.”
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Como vimos, o artigo 17º da Lei do Cibercrime remete para o regime da apreensão de correspondência previsto no artigo 179º do Código de Processo Penal. E dispõe o nº 3 do artº 179º, do CPP que o juiz de instrução é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida e atribui competência exclusiva, para valorar da relevância do conteúdo da correspondência eletrónica apreendidas como meio de prova para o processo.
Efectivamente, o que está em causa é o direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, ao sigilo das comunicações e à inviolabilidade da correspondência, com proteção constitucional através do artigo 34º nº 4 da CRP, pelo que a sua restrição na fase de inquérito são da competência exclusiva do JI enquanto garante dos direitos, liberdades e garantias.
Na verdade, a efetiva intromissão no direito à privacidade só ocorre no momento em que é aberta a correspondência eletrónica, com o acesso ao seu conteúdo, daí que o legislador tenha reservado ao juiz das garantias de acordo com os artº 179º nº 3 e 268º nº 1 al. d) do CPP.
Assim, da conjugação dos artigos 179º nº 3, 268º nº 1 al. d) e 269º nº 1 al. d) do CPP, não existe fundamento legal para o juiz de instrução, autorizar o Ministério Público a pesquisar e selecionar o correio eletrónico apreendido nos autos como pretende o recorrente.
Tal garantia constitucional atribuída ao JI enquanto garante dos direitos, liberdades e garantias, não contende com o princípio da reserva de função jurisdicional, contida no artigo 32°, n°4, o princípio do acusatório, previsto no artigo 32°, n° 5, e o princípio da autonomia do Ministério Público, plasmado no artigo 219°, n° 2, todos da CRP, como defende o recorrente.
O Ministério Público continua a ter a exclusividade de direcção do inquérito e, como tal, a definir o objeto do inquérito. Razão pela qual não se vislumbra a invocada violação dos preceitos constitucionais (32º, nº 4, 32º, 5 e 219º, nº 2 da CRP) e, consequentemente, a nulidade do despacho recorrido, nos termos do art. 119° e) do Código de Processo Penal
Em síntese: é ao Juiz de Instrução Criminal que compete selecionar os conteúdos de correio eletrónico relevantes para a descoberta da verdade e para a prova e determinar a sua junção aos autos, como decidiu o juiz a quo no despacho recorrido.
Improcede, pois, o recurso.
***
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 9ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Não há lugar a custas (artigo 522º, nº 1 do C.P.P.).
Notifique.
***
Lisboa, 06.03.2025
(texto processado e revisto pela relatora, assinado electronicamente)
As Juízes Desembargadoras,
Manuela Marques Trocado
Maria de Fátima Marques Bessa - com voto vencido
Paula Cristina Bizarro
***
Voto vencido
Voto vencido a decisão em síntese pelas seguintes as razões pelos quais não acompanho a decisão que fez vencimento:
É certo que a apreensão de correio electrónico “armazenado” ou “guardado” e de outros “registos” de comunicações e transmissão por via telemática, rege-se, sem restrições pelo disposto no artigo 17.º da lei 109/2009, conjugado com o disposto nos artigos 179.º e 252.º, do CPP, optando o legislador por equiparar o correio electrónico ao correio tradicional. (Discordando de tal opção legislativa e apontando várias razões Paulo Pinto de Albuquerque Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convencção dos Direitos Humanos Vol. I, 5.ª Edição actualizada UCP Editora, pág. 793).
Também é certo que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, que pratica os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no art.º no n.º1 do 262.º, do CPP, assistido pelos órgãos de polícia criminal, os quais actuam sob a direcção daquele e na sua dependência funcional, em conformidade com o disposto nos n.º1 e 2 do art.º 263.º e no art.º 267.º do CPP
Porém, nos termos do artigo 268°, n°1, al. d) do CPP (actos a praticar pelo juiz de instrução) é da competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do n°3 do artigo 179º do CPP.
E, de acordo com o artigo 269°, n°1, al. d) (actos a ordenar e a autorizar pelo juiz de instrução) do mesmo diploma normativo, durante o inquérito é competência exclusiva do juiz de instrução ordenar ou autorizar apreensões de correspondência, nos termos do n°1 do artigo 179°.
Só o juiz e só quando tiver “fundadas razões”, tem competência para autorizar (sob. Promoção do M.P.) ou ordenar (por sua iniciativa) a apreensão de correspondência (é uma competência exclusivamente sua -art.º 268.º, n.º 1, al. d)), sem prejuízo do disposto no art.º 178.º, n.º 4 onde em situações de urgência ou perigo, as autoridades policiais também podem proceder a apreensões de correspondência, sujeita a validação. Compete ainda ao Juiz, exclusivamente proceder à abertura e leitura de correspondência, nos termos do n.º3 do art.º 268.º, n.º1, al. d) e art.º 252º, n.º1. A apreensão de correspondência sem autorização ou validação do Juiz, corresponde a uma proibição de produção e utilização de prova, a que alude o art.º 126.º, n.º3, gerando nulidade insanável, sendo que a omissão de leitura de correspondência pelo Juiz (n.º3), corresponde à nulidade sanável, prevista no art.º 120.º, n.º2, al. d) do CPP (no ensinamento de Fernando gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição Almedina pág. 354 e 355 Ac. STJ de 18.05.2006, proc. 06P1394 in www.dgsi.pt).
Como defendido pelo Ministério Público na motivação de recurso, da explanação do quadro legal do regime do correio electrónico, resulta cristalino que o Juiz de Instrução Criminal tem intervenção obrigatória nos seguintes dois momentos:
-Primeiro momento: Na primeira visualização do correio electrónico, ou seja, é necessário que o Juiz seja a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo apreendido, em conformidade com o n.º3 do art.º 179.º, do CPP, embora não seja obrigatório que tome conhecimento completo . (neste sentido, entre outros, Ac. RL de 11.05.2023 proc. 215/20.5T9LSB-C.L1-9 relatora Paula Penha já supra citado, Ac. RL 06.02.2019 processo 152/16.8TELSB e Ac. RL 10.08.2020proc. 6330/18.8JFLSB-A.L1-3)
A atribuição desta competência ao Juiz de Instrução Criminal decorre da sua posição de Juiz das liberdades e garante dos direitos fundamentais em fase de inquérito.
Efectivamente, do conteúdo apreendido resulta sempre uma compressão de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos, como o direito à privacidade e reserva da vida privada e familiar e à inviolabilidade da correspondência e comunicações essas restrições têm de obedecer aos pressupostos materiais da necessidade, adequação e proporcionalidade(cf. artigos 26.°, n.º 1, 34.°, n.º 1 e 18.°, n.ºs 2 e 3, todos da Constituição da República Portuguesa).
Assim, no âmbito das funções que lhe estão legalmente e constitucionalmente atribuídas, o Juiz de Instrução Criminal deve, desde logo, verificar se o correio electrónico foi validamente extraído da sua origem, sem qualquer visualização por parte de outrem e concomitantemente expurgar as comunicações que contendam com a reserva da privada e/ou segredo profissional dos visados.
-Segundo momento: na apreensão das mensagens que se afigurem relevantes para a prova, sendo necessário que o Juiz considere o respectivo conteúdo como relevante para a descoberta da verdade ou para a prova dos factos investigados e ordene a sua junção aos autos através de despacho fundamentado e recorrível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 16°, n° 3, e 17° da Lei do Cibercrime e artigos 97°, n° 5 (fundamentação dos actos decisórios), e 179.º, n.º3, 399° (recorribilidade dos actos) do Código de Processo Penal "ex vi" do art. 28° da Lei do Cibercrime.
É competência do juiz de instrução, na fase de inquérito, ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio eletrônico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não lidas), que se afigurem ser de grande interesse para descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art.º 17.°, da Lei n.° 109/2009, de 15/09.
Foi esse o entendimento fixado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 10/2023, Proc. n.º 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1, publicado no DR n° 218, la Série, 10 de Novembro de 2023: “Na fase de inquérito, compete ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não lidas), que se afigurem ser de grande interesse para descoberta da verdade ou para a prova, nos termos do art. 17.º, da Lei n.º 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime)”. Também neste sentido, Sónia Fidalgo (A apreensão de correio eletrónico e a utilização noutro processo das mensagens apreendidas, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 29, Janeiro-Abril de 2019, p. 73.).
Pretende-se, tal como na primeira visualização, garantir que a compressão dos direitos fundamentais dos visados, na vertente do direito à reserva da vida privada e/ou segredo profissional, seja curial aos interesses da investigação e necessária para a prova dos factos, objecto do inquérito; tudo o mais deverá ser expurgado dos autos.
Tal opção legislativa é consentânea com a reserva de juiz e estrutura acusatória do processo - artigos 32°, n°4 e 5 da CRP.
É indiscutível que procedimentos dirigidos à constatação, positiva ou negativa, do facto criminoso, com vista à sua repressão penal, terão que observar as garantias constitucionais e os princípios gerais de processo penal, entre os quais o princípio do acusatório (art.º 5.º, da CRP.
A estrutura acusatória traduz-se na exigência de diferenciação entre o órgão acusador e o órgão julgador. A sua densificação alcança-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com a dimensão orgânica-subjectiva (entidades competentes).
Concordando inteiramente com o defendido pelo Ministério Público, entre a primeira visualização e decisão sobre a apreensão das mensagens que se afigurem relevantes para a prova existe uma imprescindível etapa que a lei não previne explicitamente: a selecção das mensagens com relevância probatória.
O despacho recorrido considera que essa competência pertence em exclusivo ao juiz de Instrução Criminal, coadjuvado pelo órgão de polícia criminal, com total exclusão do Ministério Público.
Tal posição alcançasse da leitura dos pontos I) e IV) do despacho em crise com base nos seguintes argumentos: (i) A intervenção que o Ministério Público pretende assumir no procedimento tendente à junção aos autos de correspondência electrónica não encontra suporte nem na letra nem no espirito do regime legal (sublinhado nosso) (...) (ii) resulta do disposto no n°.3 do art. 179° do Código de Processo Penal aplicável por força do estatuído no art. 17° da Lei n° 109/2009) que entre a tomada de conhecimento, pelo juiz, do conteúdo da correspondência apreendida e a ponderação judicial sobre a relevância desta para a prova não pode haver intromissão de outros sujeitos processuais, nomeadamente do Ministério Público, no acesso ao conteúdo de tal correspondência. De outro modo, não se compreenderia que em caso de irrelevância da correspondência para a prova só o juiz ficasse dever de segredo relativamente ao respectivo conteúdo (sublinhado nosso).
Tratando-se, no caso dos autos, de diligência de inquérito, cuja competência e direcção cabe ao Ministério Público, e, considerando que as regras relativas ao correio electrónico foram alteradas através da Lei do Cibercrime para fazer face a novas realidades, a remissão operada pelo artigo 17° da Lei 109/2009 de 15/09 para o artigo 179° do CPP, deverá ser interpretada respeitando a unidade do sistema jurídico-penal português, devendo ser interpretada de forma hábil e ser efectuada considerando o artigo 28°, n.º 3, da Lei do Cibercrime e tendo sempre como pano de fundo as regras de interpretação plasmadas no artigo 9° do Código Civil.
Conforme regista RUI CARDOSO, Magistrado do Ministério Público, (citado no Acórdão Ac. da RL de 11.05.2023) existem diferenças entre as normas em causa que impedem uma aplicação integral do regime previsto no artigo 179° do Código de Processo Penal ao correio electrónico. (...) quanto ao conteúdo em suporte electrónico, a operação de "desencapsulamento" feita pelo JIC não é minimamente equiparável à abertura de correspondência corpórea, pois dados informáticos "encapsulados" que se supõe serem mensagens de correio electrónico ou semelhantes armazenadas no sistema informático não são o equivalente a correspondência fechada, porque: antes de mais, aquelas mensagens ou comunicações nunca estiveram fechadas; para além disso, tal não visa (nem consegue) assegurar a integridade do invólucro; finalmente, porque, por si não significa tomar conhecimento do respectivo conteúdo das mensagens; - No CPP, o âmbito objectivo é o de correspondência em trânsito ou ainda não aberta; na LCC, são todas as mensagens de correio electrónico ou semelhantes armazenadas num sistema informático, não havendo verdadeiramente regime aberto-lido e fechado-não lido; No CPP, a apreensão de correspondência só é meio de obtenção de prova admissível para crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; na LCC, não há catálogo - por força do expressamente previsto no artigo 11.°, - No CPP, a correspondência tem de ser expedida pelo suspeito/arguido ou lhe ser dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; na LCC, pode respeitar a qualquer pessoa (mais uma vez, o artigo 11.° não faz qualquer restrição de âmbito subjectivo); No CPP e na LCC, o critério da necessidade para a prova é o mesmo: grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova; O artigo 17.° da LCC não tem previsão sobre invalidades, pelo que deve operara remissão para o CPP, aplicando-se o regime do artigo 179.° supra referido - O artigo 17.° da LCC não tem previsão sobre a apreensão de correspondência electrónica ou semelhante entre o arguido e o seu defensor, pelo que deve operar a remissão para o CPP (só será admissível se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela constitui objecto ou elemento de um crime); - No que respeita aos procedimentos, no CPP os OPC's transmitem a correspondência intacta ao juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência e é este que procede à abertura e primeiro toma conhecimento do seu conteúdo; na LCC, durante o inquérito, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, o Ministério Público pode tomar conhecimento de dados ou documentos informáticos e apreendê-los cautelarmente, sem prévia autorização judicial, só estando sujeita a validação do juiz quando o conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou terceiro; na LCC, durante o inquérito, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, se forem encontrados armazenados (nesse ou noutro sistema informático a que seja permitido acesso legítimo a partir do primeiro) mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.”
Enquanto titular do inquérito, cabe ao Ministério Público dirigir e fixar o objecto do processo, recolher a prova, proceder à sua análise em ordem a determinar o arquivamento ou prosseguimento dos autos, por via de dedução de acusação, assistido pelos órgãos de polícia criminal, encetando diligências com vista a investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles.
A intervenção jurisdicional na fase de inquérito é limitada, encontrando-se circunscrita pelas normas dos artigos 269° e 268° do Código de Processo Penal, não controlando o Juiz de Instrução o exercício da acção penal.
O papel do JIC é o de garante dos direitos fundamentais por imposições jurídico-constitucionais, designadamente, do disposto no artigo 32.°, n.º 4, da CRP, quanto à competência exclusiva do juiz de Instrução Criminal para a prática de atos que diretamente contendem com direitos fundamentais e do artigo 18º da CRP que estabelece os princípios da necessidade e proporcionalidade.
O Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal têm, à luz da Constituição e da lei, natureza e funções substancialmente distintas. Ao primeiro compete, segundo o n.º 1 do artigo 219.º da CRP e o artigo 2.º do Estatuto do Ministério Público representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
A CRP prevê ainda que o Ministério Público goze de um estatuto próprio e de autonomia (artigo 219.º, n.º 2), o que pressupõe a sua vinculação a critérios de legalidade e objetividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às obrigações decorrentes do respetivo Estatuto (artigo 3.º do EMP), e não aos demais órgãos do poder público.
Contudo, a Constituição concebe o Ministério Público como uma magistratura responsável e hierarquicamente subordinada (artigo 219.º, n.º 4 da CRP e artigo 14.º do EMP), sujeita a ação disciplinar por parte da Procuradoria-Geral da República (artigo 219.º, n.º 5 da CRP).
Quanto aos juízes, são titulares de órgãos de soberania, com competência para administrar a justiça em nome do povo, assegurando a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimindo a violação da legalidade democrática e dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados (artigo 202.º, n.ºs 1 e 2 da CRP e artigos 1.º e 3.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Os juízes desempenham as suas funções em condições de estrita independência (artigo 203.º da CRP), não estando sujeitos a quaisquer ordens ou instruções (artigo 4.º do EMJ), gozando das garantias de irresponsabilidade, inamovibilidade, e outras previstas na lei (artigos 4.º a 6.º do EMJ), e vinculados a exigências de atuação imparcial, isenta e de respeito pelo princípio da igualdade (nos termos do disposto nos artigos 6.º-B e 6.º-C do EMJ). O juiz tem, nos termos da CRP, uma competência exclusiva e não delegável de garantia de direitos fundamentais no âmbito do processo criminal (à luz do artigo 32.º, n.º 4, do CPP), pelo que a lei apenas pode dispensar a sua intervenção em casos excecionais devidamente delimitados e justificados.
Sufragamos, assim, o entendimento, por nós já defendido no acórdão desta Relação e secção no processo n.º 85/18.3TELSB-F.L1, publicado em www.dgsi.pt, de que a intervenção do Ministério Público na selecção das mensagens de correio electrónico não contraria qualquer preceito constitucional, decorrendo mesmo das suas atribuições que emanam do princípio do acusatório plasmado no citado artigo 32°, n°5 da CRP.
Neste sentido a decisão sumária de 6/2/2019 desta Relação de Lisboa no processo nº 152/16.8TELSB: «[o] Juiz de Instrução deve ser o primeiro a tomar conhecimento das comunicações recolhidas, seja no momento em que estas são extraídas em busca por si presidida, seja ulteriormente quando os suportes onde estas foram alocadas lhe são apresentados”, mas “em casos como o dos autos, em que podem estar em causa milhares de documentos (emails), esse conhecimento objectivo de todo o conteúdo pelo JIC, tem-se afigurado de difícil concretização, todavia, nada obsta a que o Juiz de instrução, caso queira tomar previamente conhecimento desse conteúdo integral, o faça, selecionando o que entender relevante e devolva depois o processo ao Ministério Público com aquilo que for pertinente para a investigação”, podendo ainda devolver ao Ministério Público todos os suportes, “devendo o Ministério Público, após visualização da totalidade dos conteúdos de correio electrónico e registos de comunicações contidos nos suportes em causa, dar deles conhecimento à Juíza de Instrução, a fim de então, esta decidir quais têm relevância para a investigação e quais devem ser anexados aos autos, com observância de todos os formalismos legais vigentes”. (destaque nosso) inwww.pgdlisboa.pt
Também foi esse o entendimento sufragado no Aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-04-2021, Processo 184/12.5TELSB-N.L1-9 "o MP - ao contrário do que por vezes já parece fazer escola, ao avesso da nossa Constituição - continua a ser o titular da investigação e ao Mm° JIC encontram-se apenas cometidas funções de juiz das liberdades. Neste contexto competindo-lhe, apenas, expurgar os e-mails materialmente fora do objecto da investigação que contundam com direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados." disponível em www.dgsi.pt
Nesse mesmo aresto foi sumariado o seguinte: «I–A interpretação conjugada do artigo 17.° da LCC e do artigo 179.° do CPP no sentido de aí fundar uma norma com o sentido de que é o juiz de instrução que, no inquérito, em primeiro lugar toma conhecimento das mensagens de correio electrónico ou semelhantes e que é ele que, oficiosamente, procede à selecção daquelas que são de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, para além de não se traduzir em qualquer real garantia, viola a estrutura acusatória do processo, pois essa é matéria essencial à direcção do inquérito e à definição do seu objecto, assim comprometendo a posição de imparcial juiz das liberdades; II–O juiz de instrução não pode ter qualquer "influência" ou "manipulação" sobre a definição do objecto do inquérito,- deve ser alheio à definição da estratégia de investigação do Ministério Público e OPC, devendo actuar apenas no campo da admissibilidade legal das intervenções requeridas, sendo por isso sua obrigação, "uma vez verificados os pressupostos formais de procedência, deferir o requerido pelo Ministério Público, "não podendo, em caso algum, examinar a utilidade da medida requerida; III–Nas buscas a documentos, nomeadamente de correio electrónico quando em apenas algumas horas de um só dia se apreendem milhões de documentos, não é exigível, e bem, aos Juízes que presidem a essas diligências que tomem conhecimento de todas, e cada uma, das páginas de tais documentos, não sendo por isso que a apreensão respectiva é ilegal; IV– Compete ao Juízes numa busca a que se refere o n.º anterior, verificar da relação dos documentos com o objecto da investigação e determinar a sua junção aos autos (in casu apenas num suporte digital), incumbindo ao Ministério Público seleccionar aqueles que entender necessários para o esclarecimento dos factos, desde logo para confrontar testemunhas e arguidos com os mesmos, não sendo naturalmente obrigatório que tais documentos possam depois ser indicados como prova numa eventual acusação».
Seguindo o mesmo entendimento o Ac. RL de 11.05.2023 proc. 215/20.5T9LSB-C.L1-9 (relatora Paula Penha) no seguinte excerto“(…)Pois, conforme já referimos, o juiz de instrução (durante a fase de inquérito) não é um juiz investigador, é sim um juiz de direitos, liberdades e garantias a quem compete, nomeadamente, autorizar ou ordenar apreensões e a quem compete ser a primeira pessoa a tomar conhecimento da correspondência/correio electrónico/ registos de comunicações de natureza semelhante apreendidas. E, depois dessa primeira tomada de conhecimento pelo JIC, caberá ao Ministério Público (enquanto autoridade judiciária que dirige o inquérito e a respectiva investigação criminal) a competência para tomar conhecimento de todos aqueles meios de prova em suporte electrónico apreendidos. Pois, só assim lhe será possível aferir e pronunciar-se, fundamentada e detalhadamente, sobre a concreta relevância probatória, ou não, de todos e cada um desses meios probatórios apreendidos em face dos crimes investigados pelo Ministério Público(…). Por isso, não consideramos ser obrigatório, em sede da Lei do Cibercrime (como é o caso dos autos) que o primeiro conhecimento judicial pelo JIC tenha de ser do respectivo conteúdo total /completo apreendido. E, também, consideramos ser admissível e adequado que o JIC, antes da sua decisão de junção, ou não, aos autos dos concretos elementos em suporte electrónico apreendidos, tenha solicitado o aludido e prévio parecer/proposta do Ministério Público (…) solicitação de proposta/parecer do Ministério Público, ser não só possível como adequada e válida no âmbito do processo criminal conforme já referimos, destina-se a permitir ao JIC uma melhor avaliação dos interesses do caso concreto (em investigação pelo Ministério Público face à estrutura acusatória de qualquer processo penal) e ponderação da necessidade da sua junção aos autos com a inerente compressão dos aludidos direitos constitucionais.” (destaque nosso) in www.dgsi.pt.
No artigo “A RECOLHA DE PROVA EM SUPORTE ELECTRÓNICO — EM PARTICULAR, A APREENSÃO DE CORREIO ELECTRÓNICO” Sónia Fidalgo, na JULGAR - N.º 38 – 2019 aflora igualmente a questão, ao referir que “(…)Já se afirmou, inclusivamente, que a exigência de que, no inquérito, seja o juiz de instrução o primeiro a conhecer o conteúdo das mensagens de correio electrónico apreendidas e a seleccionar aquelas que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova viola a estrutura acusatória do processo penal(…)”
A excluir-se o Ministério Público do acesso a todas as mensagens e a proceder à escolha conduziria a que o despacho por si proferido pelo JIC de apreensão de mensagens de correio eletrónico fosse insindicável e como tal irrecorrível.
O Ex.mo Procurador e docente do CEJ Dr. Rui Cardoso ensina que: “(…)Em ambos os regimes há um primeiro momento de empossamento da correspondência corpórea/dados ou documentos informáticos ou correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante (abrangida pela ordem ou autorização judicial de apreensão), seguido do momento da tomada de conhecimento pelo Juiz, seguido do momento do conhecimento com fundamentada tomada de posição pelo Ministério Público e, finalmente, o momento da fundamentada e recorrível decisão judicial sobre a concreta admissão, ou não, como meio de prova a ser junto ao processo. Sendo de salientar que a exigida tomada de conhecimento, em primeiro lugar, pelo JIC não visa impedir que outros tomem conhecimento subsequente do seu conteúdo. Aliás, o seu não envio pelo JIC ao Ministério Público (antes da tomada de decisão pelo JIC) que impedisse o Ministério Público de tomar conhecimento do respectivo conteúdo, criaria um regime de segredo e, mais, faria com que o JIC assumisse a direcção do inquérito – algo que incumbe, exclusivamente, ao Ministério Público. Em conformidade com a estrutura acusatória do processo penal português, durante a fase de inquérito, o Ministério Público tem essa função como titular do inquérito e o Juiz de Instrução tem a função juiz de garantias. Isto é, trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).” (in “Apreensão de mensagens de correio electrónico e de natureza semelhante” contido em Jurisdição Penal do Centro de Estudos Judiciários – Direito Probatório, Substantivo e Processual Penal - 2019, págs. 61-122). O mesmo Magistrado do Ministério Público defende ainda que "A interpretação conjugada do artigo 17.° da LCC e do artigo 179.° do CPP no sentido de aí fundar uma norma com o sentido de que é o juiz de instrução que, no inquérito, procede à selecção daquelas (mensagens de correio electrónico ou semelhantes) que são de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, para além de não se traduzir em qualquer real garantia, viola a estrutura acusatória do processo, pois essa é matéria essencial à direcção do inquérito e à definição do seu objecto, assim comprometendo a posição de imparcial juiz das liberdades (artigo da Revista do SMMP n.° 153, Janeiro a Março de 2018 fls. 209 a 211)
A posição do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal no despacho recorrido ao não permitir que, após a abertura e primeira visualização pelo JIC e após exclusão daqueles que possam contender com a reserva da vida privada, sejam disponibilizados os ficheiros ao Ministério Público para análise e selecção dos que forem considerados pertinentes ao esclarecimento dos factos e relevantes para a prova, viola as disposições constitucionais que estabelecem a estrutura acusatória do processo penal (art. 32.° n.° 5, da C.R.P.6) e a autonomia do Ministério Público (art.º 219.° n.° 2, da C.R.P.).
Em face de todo o exposto, entendo que o recurso do Mº Pº deveria ser julgado procedente.