EMBARGOS DE EXECUTADO
CASO JULGADO MATERIAL
CONTRATO PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
USUCAPIÃO
MERA DETENÇÃO
INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE
Sumário

Sumário da responsabilidade do relator:
I. Tendo sido expressamente apreciado e decidido – em sede de embargos de executado a execução para entrega de coisa certa, anteriormente decorridos entre as mesmas partes – que a factualidade adrede invocada pela exequente (ora Autora) não consubstanciava um contrato de arrendamento, nos termos do Artigo 732º, nº6, passou a existir entre as partes caso julgado material quanto à inexistência de contrato de arrendamento.
II. Esse caso julgado material vincula as partes neste processo e o próprio Tribunal, estando vedada a reintrodução da discussão sobre a existência de um contrato de arrendamento entre as partes, seja na sequência da alegação da autora, seja por via do disposto no Artigo 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil.
III. Os parâmetros que o tribunal a quo utilizou, ou não, na valoração das provas (sobretudo testemunhais) só carecem de reavaliação, em sede de recurso de apelação, quando tais meios de prova forem invocados como fundamento de uma concreta e peticionada alteração da matéria de facto.
IV. Tendo os réus passado a viver na fração autónoma na sequência de contrato-promessa de compra e venda meramente verbal, os réus passaram a ser meros detentores da mesma, tendo o corpus, mas não o animus da posse nos termos do direito de propriedade (Cf. Artigos 1251º e 1253º, als. a) a c), do Código Civil).
V. Cabia aos réus demonstrar a inversão do título da posse, assumindo expressamente perante a autora que deixaram de ser meros detentores para passarem a ser possuidores nos termos do direito de propriedade, sendo que, só após tal inversão, se pode contar o prazo para aquisição de usucapião.
VI. Não relevam para efeitos de integrar a inversão do título da posse atos consistentes em: efetuar contratos de água, luz e gás em seu nome; singelo pagamento de quotas de condomínio e outras despesas afins; realização de obras de beneficiação e conservação; a mera identificação dos réus como condóminos perante a administração de condomínio e presença em assembleia de condóminos.
VII. A participação em assembleias de condóminos e pagamento de quotas (atos atinentes a relações internas com o Condomínio) só poderão equacionar-se como atos integrativos de inversão do titulo da posse se, adicionalmente, estiver provado que a assunção desses deveres jurídicos do proprietário foram levados ao conhecimento do promitente-vendedor como expressão da vontade do detentor em alterar o título da sua posse, passando a comportar-se como se proprietário fosse.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
AB intentou ação declarativa de condenação, sob a forma do processo comum, contra HM e CD, residentes na Rua (…), Loures, alegando que:
§ É a proprietária da fração autónoma designada pela letra 4 A, correspondente ao (…), do prédio urbano, sito na Rua (...), n.º 7, (...), Loures, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures, sob o número (...)18 – 4-A, da freguesia da (...), inscrita na matriz predial sob o artigo (...), da União das Freguesias de Moscavide e (...), a qual os Réus encontram-se a ocupar, sem o seu consentimento ou autorização e contra a sua vontade;
§ Celebrou um contrato-promessa de compra e venda do imóvel, em 20 de Setembro de 2000, pelo qual prometeu vender aquela fração autónoma ao R. CD, acordando que a escritura pública deveria ser outorgada até 30 de Dezembro de 2003, o que nunca ocorreu, tendo resolvido o contrato, mediante notificação judicial avulsa, em 9 de Janeiro de 2013, interpelando os RR a desocuparem o imóvel e a entregarem-lho, livre de ónus ou encargos e desembaraçado de pessoas e bens;
§ Desde aquela data até à presente, os Réus continuam a ocupar o imóvel, pretendendo a A., além do reconhecimento do seu direito de propriedade, que os Réus paguem uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que tem sofrido com a situação, concluindo a petição inicial nos seguintes moldes:
«Nestes Termos, e nos demais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente ação ser julgada procedente por provada e, consequentemente:
a) Ser judicialmente reconhecida a propriedade da Autora sobre o citado imóvel em conformidade com a descrição predial e inscrição matricial, identificadas supra no articulado;
b) Serem os RR condenados a desocupar e a entregar à Autora o dito imóvel que ilicitamente ocupam, propriedade da Autora, entregando-o, livre de pessoas e bens e ónus ou encargos e em bom estado de conservação;
c) Serem os Réus condenados ao pagamento à Autora de uma indemnização pelos prejuízos resultantes da ocupação ilícita do imóvel, de valor ainda não totalmente liquidado, mas nunca inferior a título de danos patrimoniais, a € 1.200,00€ e a título de danos morais de 100,00€, incluindo a lesão dos direitos de personalidade da Autora, respetivamente, por cada mês de ocupação ilegítima desde Dezembro de 2006 até à efetiva e plena data em que ocorrer a entrega do imóvel, a que deverão acrescer os juros legais de mora que ao caso se aplique.»
Os Réus contestaram e deduziram pedido reconvencional, narrando que:
. Em Janeiro de 1991, o falecido pai da A., FG, fruto da relação de amizade e confiança entre ambos existente, celebrou com o 2.º R., verbalmente, um contrato-promessa de compra e venda daquela fração autónoma;
. FG, na qualidade de procurador da A. e agindo no interesse desta, prometeu vender, pelo preço de 22 000 contos – € 109 736,00 –, a fração autónoma em litígio, tendo estabelecido que o pagamento do preço seria realizado semanal ou mensalmente, consoante a disponibilidade financeira do 2.º R., tendo sido liquidada, para aquisição do imóvel, até 2010, a importância total de € 138 615,87, encontrando-se já remunerada a totalidade do preço. Porém, pese embora tenha sido pago o preço, a verdade é que nunca chegou a ser realizada a escritura definitiva;
. Desde 1991 até à presente data, o 2.º R. tem a posse exclusiva e ininterrupta da fração: (i) tendo requerido o fornecimento de água, luz e gás (contratos que ainda se mantêm em vigor); (ii) pagando as quotas de condomínio desde Dezembro de 1999 até à presente data; (iii) pagando outras despesas e outros encargos relacionados com a conservação e manutenção dos espaços comuns do prédio onde se situa a fração em causa e ainda a apólice de seguro do prédio; (iv) sendo notificado para participar nas assembleias gerais de condóminos; (v) realizando todas as obras de conservação e beneficiação do imóvel, designadamente ao nível da cozinha, com a colocação de móveis de cozinha novos, de um exaustor; ao nível da casa de banho, com a colocação de loiças sanitárias e de móveis de casa de banho e nos quartos colocando roupeiros novos e portas novas, no que despendeu mais de € 60 000,00; (vi) residindo na fração, tendo aí fixado a sua residência, recebendo os seus amigos e familiares, comendo, dormindo e organizando a sua vida, continuando a fazê-lo até à presente data.
. Em consonância, os réus não só impugnam a factualidade articulada pela A., como deduzem pedido reconvencional, sustentando, por um lado, que deve ser declarada a nulidade do registo a favor da A., relativamente à fração autónoma em litígio, e, por outro lado, que deve ser declarada a aquisição da propriedade daquela fração autónoma, por usucapião, a favor do Reconvinte CD, concluindo:
Nestes termos e nos mais e melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de V.exa., deve a presente contestação proceder por provada e, em consequência:
a) Ser fixado como valor da ação o valor de 141.460,55€ (cento e quarenta e um mil quatrocentos e sessenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), por corresponder ao valor patrimonial tributário do imóvel objeto dos presentes autos e por força do disposto n.º 1 do artigo 302.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do CPC, com as legais consequências.
b) Ser declarada a ilegitimidade passiva da Ré HM, a contrário do que resulta do artigo 34.º n.º 1 do CPC, e absolvida da instância, por força do disposto nos artigos 278.º, n.º 1, al. d); 577.º alínea e) e 576.º n.º 1, primeira parte e n.º 2 todos do C.P.C.
c) Ser julgada procedente por provada a exceção perentória do pagamento do preço de venda do imóvel objeto destes autos, por parte do Réu, com as consequências previstas no artigo 576.º n.º 3 do C.P.C., absolvendo-se o Réu CD dos pedidos.
d) Ser julgada procedente por provada a exceção perentória de aquisição da propriedade por usucapião pelo Réu CD, por força do disposto nos artigos 1287.º e seguintes do Código Civil e 576.º n.º 3 do C.P.C., devendo aquele ser absolvido dos pedidos e
e) Julgada improcedente por não provada a ação, com as legais consequências.
Mais se requer a V. Exa. se digne julgar procedente por provado o pedido reconvencional formulado pelo Réu CD e, em consequência:
a) Ser declarada a nulidade do registo a favor da Autora relativamente à fração autónoma designada pela letra “4 A” correspondente ao 4º andar direito do prédio situado na Rua (...), nº 7 – 4.º Dto., (...), Loures, registado na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º (...)18, da freguesia da (...), concelho de Loures;
b) Ser declarada a aquisição da propriedade por usucapião a favor do Reconvinte CD referente à fração autónoma designada pela letra “4 A” correspondente ao 4.º andar direito do prédio situado na Rua (...), n.º 7 – 4.º Dto., (...), Loures, registado na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º (...)18, da freguesia da (...), concelho de Loures;
c) Ser ordenada a inscrição registral do direito de propriedade a favor do Reconvinte CD sendo causa de aquisição a usucapião, por força do disposto no artigo 3.º n.º 1 do Código de Registo Predial; Tudo com custas e procuradoria a cargos da Autora
Como temas da prova, foram enunciados os seguintes:
a) Quais os contornos do negócio celebrado entre A. e réus;
 b) Se a conduta dos RR causa prejuízos à A., e em caso afirmativo, quais e em que medida;
 c) Se os réus pagaram ao pai da A. o preço acordado;
 d) Se os réus ocupam a fração identificada nos autos de forma pública, pacífica, de boa-fé e de forma ininterrupta há 30 (trinta) anos.
Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nos termos expostos, julga-se a acção intentada por AB, contra HM e CD, parcialmente provada e procedente, e consequentemente:
1. Reconhece-se a propriedade da A. sobre a fracção autónoma designada pela letra 4 A, correspondente ao 4.º andar direito, do prédio urbano, sito à Rua (...), n.º 7, (...), Loures, descrito na Conservatória do Registo Predial da Loures, sob o número (...)18 – 4-A, da freguesia da (...).
2. Condenam-se os réus a desocupar e a entregar à A. a fracção autónoma que ocupam, propriedade da Autora, entregando-a, livre de pessoas, bens, ónus ou encargos e em bom estado de conservação.
3. Condenam-se os réus no pagamento à A. de uma indemnização pelos prejuízos patrimoniais resultantes da ocupação ilícita do imóvel, desde o mês de Setembro de 2013 e até à entrega efectiva da fracção, a apurar em incidente de liquidação, nos termos do artigo 358.º e seguintes do Código de Processo Civil, sem prejuízo de eventual direito de compensação dos réus pelas obras realizadas naquela fracção.
4. Absolvem-se os réus do demais peticionado.
5. Julga-se totalmente improcedente o pedido reconvencional dos réus, dele bsolvendo a A./reconvinda.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelaram os Réus formulando, no final das suas alegações, as seguintes
CONCLUSÕES:
(…)
IV. Os recorrentes consideram que, salvo o devido respeito, A sentença faz errada apreciação de matéria de facto e consequentemente erra na decisão de direito.
V. A decisão sub judice atendeu a uma narrativa de factos construída pelas testemunhas que não foram alegados na petição inicial, em violação do disposto pelo art.º 5º/2 do CPC
VI. A A. nunca alegou na sua petição inicial a existência de qualquer arrendamento, formal ou informal, válido ou ineficaz. Nunca referiu na sua petição inicial a convolação de uma promessa de compra e venda em contrato de arrendamento, nem quando, nem qual o valor que venceria de renda.
VII. Alegou, outrossim, a existência de um contrato-promessa de compra e venda que teria sido resolvido por iniciativa sua - ainda que nunca se tenha percebido nem como, nem quando.
VIII. As posições processuais foram construídas em função de, segundo a A., uma promessa de compra e venda, ocorrida em Setembro de 2000 e segundo os RR Reconvintes, ora Recorrentes, uma compra e venda, celebrada em 1991 cujo preço foi pago ao longo de anos.
IX. O Tribunal a quo, no momento em que prolatou o despacho saneador nos termos em que o fez, também não admitiu a existência ou, melhor, a alegação de um arrendamento a provar ou a ser contraditado.
X. O Tribunal conheceu desta narrativa em torno de um arrendamento, em fase de instrução, e erigiu-a em factos essenciais para a decisão da causa, desde logo para caracterizar os Recorrentes como inquilinos, arrendatários e consequentemente descaracterizá-los como possuidores em nome próprio, requisito indispensável para o instituo da usucapião.
XI. Esta possibilidade legal não pode ser exercitada de forma atomística mas integrada e articulada com os demais princípios que informam o processo civil.
XII. Neste sentido, Acórdão do STJ de 7/02/2017, proc. nº 1758/10.4TBPRD.P1.S1
1. Não parece ser de sufragar o entendimento segundo o qual o aproveitamento de factos essenciais novos (complementares ou concretizadores) depende apenas da observância do princípio da audiência contraditória relativamente à produção do meio de prova de que eles emergem (art.º 415º do CPC).
2. A disciplina prevista no art.º 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com esses factos novos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).
3. Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre os factos que o tribunal se propõe aditar e só desse modo lhe é facultado o exercício pleno do contraditório, podendo requerer – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação a esses factos.
XIII. A violação desta regra determina a anulação dos factos assim adquiridos, o que expressamente invocam – cf. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, Processo: 836/12.5TBMCN-A.P1, de 13/07/2022:
III. Sendo a factualidade que a parte pretende ver incluída na decisão, a coberto da alínea b) do nº 2 do art.º 5º do CPC, relevante à decisão da causa, a não observância de tal necessário pressuposto para a sua aquisição oficiosa imporá a anulação da decisão, nos termos do art.º 662º, nº 2, c) do CPC – pressupondo tal anulação que a factualidade em causa haja emergido da discussão da causa com a consistência suficiente e necessária para a sua demonstração em juízo (ou seja, que a discussão da causa os tenha tornado patentes).
XIV. Consequentemente, os factos vertidos nos pontos 4 e 15 dos factos provados não podem ser admitidos, devendo ser excluídos quer dos factos provados, quer dos factos relevantes não provados;
XV. O Tribunal não valorou toda a prova testemunhal de acordo com as melhoras regras e práticas processuais, designadamente aquelas que são enunciadas em toda a jurisprudência e que aqui se cita, a título de exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 13/07/2022, cujo sumário consigna que
I – A valoração da prova pressupõe a avaliação da credibilidade de cada testemunha e depois a ponderação dos elementos comprováveis ou não pelo seu depoimento.
II – A prova testemunhal é valorada pela forma do depoimento, pela sua congruência interna, razão de ciência, isenção e comportamento.
XVI. Para formar a sua convicção e consequentemente a decisão proferida, o Tribunal a quo ponderou a prova documental produzida nos presentes autos, mas também no processo (...)11/13.3TCLRS que correu termos no Juízo de Execução de Loures -Juiz 2, bem, prova testemunhal e ainda os depoimentos de parte dos RR, prestados por determinação do Tribunal
XVII. Globalmente, o Tribunal a quo considerou que todas as testemunhas arroladas pela A. tiveram depoimentos caracterizados como “escorreito”, “percetível”, “assertivo”, “claro” e “relevante” “isento”.
XVIII. Quanto à testemunha comum à Recorrida A. e aos Recorrentes, o seu depoimento foi caracterizado como “nem sempre perfeito, designadamente no que toca a datas, parecendo denotar, por vezes, alguma parcialidade no seu testemunho” , “ pouco coerente, apresentando evidentes contradições quando cotejado com os demais testemunhos que se afiguraram mais fidedignos, porquanto corroborados pela prova documental”.
XIX. As demais testemunhas dos RR tiveram um depoimento “muito pouco credível”, “pouco plausível, tendo a testemunha deposto de uma forma que não merece crédito,”, “um testemunho muito pouco credível e fiável” e quanto aos depoimentos de parte foram tidos por “muito pouco esclarecedores e pesados de contradições, não logrando contribuir para a elucidação dos factos.”
XX. Os Recorrentes uma discrepância de critérios na caracterização e avaliação dos depoimentos das testemunhas AMP e PQ (inquiridas no dia 11.12.2013, a primeira depoimento gravado entre as 10:45 a 11:02 e a segunda depoimento gravado entre as as 15:08 e as 15:24)
XXI. O Tribunal a quo não usou da mesma bitola para apreciar os depoimentos das testemunhas, não utilizou os mesmos critérios quanto à espontaneidade, ao raciocínio, às lacunas, às contradições ou ausência delas.
XXII. O Tribunal considerou como factos não provados mas tem que os dar como provados:
(iv) Que o contrato-promessa de compra e venda foi celebrado em Janeiro de 1991, não tendo sido reduzido a escrito, fruto da relação de amizade e confiança existente entre o falecido pai da A. e o R. CD, e que o pagamento do preço seria realizado semanal ou mensalmente conforme a disponibilidade do R.
(v) Que os Réus vivem na fração autónoma desde janeiro de 1991.
XXIII. Da prova documental carreada para os autos, e até por iniciativa do Tribunal, resulta que foi a própria Recorrida que afirma que os Recorrentes vivem na fração autónoma desde janeiro de 1991! E a mesma prova documental descreve, igualmente a forma como o contrato foi celebrado entre o Recorrente varão e o seu falecido pai, incluindo a amizade e a forma de fazer de fazer negócio que tanto surpreendeu o Tribunal.
XXIV.    Com efeito, é isso mesmo que consta nos arts 12º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 25º, 26º e 31º da resposta apresentada por esta aos embargos deduzidos pelos Recorrentes no processo número (...)11/13.3TCLRS-A, processo consultado pelo Tribunal para extrair elementos probatórios que suportam a sua decisão.
XXV. A confissão da Recorrida nos articulados naquele processo tem pleno efeito probatório nos presentes autos, onde são as mesmas partes, atenta o disposto pelo art.º 607/4 do Código de Processo Civil.
XXVI. O Tribunal considerou provado que 16. Entre 20/05/1998 até ao ano de 2001, o réu CD sociedade Paulo e carnes traço comércio de carnes limitada, emitiram 40 cheques à ordem do pai da autora, FG nas seguintes datas e com os seguintes valores (identificados na sentença e na alegação) e que 17. Entre agosto de 2008 e abril de 2010, o Réu CD procedeu a 11 (onze) transferências bancárias para a conta bancária com o nib (...) da titularidade se levanta MN mãe da A., e mulher de FG
XXVII.   O Tribunal não deu como provado
(vii) Que os cheques emitidos por réu CD (...) traço comércio de carnes, limitada, entre 20/05/98 até o ano 2001 (perfazendo 129965 EUR ponto 87) e as transferências bancárias para a conta bancária com o nib (...)245, MN, entre os meses de agosto de 2008 e abril de 2010 totalizando 8650 EUR se destinassem ao pagamento do preço acordado pela venda da fração autónoma correspondente ao quarto andar direito do prédio da rua Júlio Diniz número 7.
XXVIII.  A prova testemunhal produzida, e apreciação crítica que a mesma deveria ter merecido, conduziriam à consideração deste facto como provado, designadamente o depoimento da testemunha FF (gravado entre as 09,59 e as 10:45 do dia 11.12.2023), o depoimento de parte do Recorrente (gravado entre 15:20 e 16:00 do dia 29 de Janeiro de 2014 e da sua filha PP, (gravado entre 15:24 e 16:12 do dia 11.12.2023)
XXIX. Isto e a concatenação da mesma com aprova documental, designadamente a justificação do pai da A. ao Recorrente da constituição da hipoteca sobre o imóvel em 2006, facto provado sob o n.º 18
XXX. O Tribunal a quo deu como provado que
(4) As partes acordaram que caso o R. marido não conseguisse pagar o valor integral do imóvel até determinada data, aquele contrato-promessa de compra e venda se converteria num “contrato de arrendamento”
(15) No final da década de 1990, os RR passaram a viver, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal ao pai da A, naquela fração autónoma.
XXXI. E sustentou-os nos depoimentos das testemunhas (...) FF (...), AMP, JA e JF.
XXXII. Porém, não é isso que resulta dos depoimentos das referidas testemunhas:
a).Quanto à testemunha AMP, nunca referiu as condições em que esse alegado arrendamento terá sido outorgado e se a existência do contrato era pressuposto para a residência dos RR na referida fração. Não foi questionada sobre isso e nada disse. (cf. depoimento gravado de 10:45 a 11:02 da audiência de julgamento de 11.12.2023)
b). A testemunha (...) FF, irmã da A., referiu a propósito do contrato-promessa e da passagem a inquilino a que o ponto 4 se refere ( gravação ao minuto 00:28 a 00:40 do dia 11 de Dezembro de 2013) que os Recorrentes terão passado a inquilinos, e consequentemente a pagar renda, quando não conseguiram cumprir o contrato-promessa. Não resulta que antes do contrato-promessa - segundo a testemunha o contrato de Setembro de 2020 - os RR tenham pago qualquer renda ou contrapartida pela residência do imóvel a partir de finais de 90.
c) Não há um recibo de renda junto aos autos, apesar da testemunha JF, cunhado da A, os referir como sendo tarefa sua - (testemunha inquirida na audiência de 12 de Dezembro 2023, de 11:18 a 11:45 – aqui segmento 00:02:34 a 00:03:30)
d) não há um caderninho junto aos autos, apesar das referências da testemunha FF (...) ( cf. 00:24:08 a 00:24:26 gravação do dia 11 de Dezembro de 2023)
e ) não há informação bancária de valor depositado na conta do pai da A.... que era conjunta com esta e com a sua irmã FF (inquirida na audiência de 11.12.2013 segmento 00:35:03 a 00:35:46)
XXXIII.  O Tribunal considerou como não provado que
(xv) que o pai da Autora pediu ao réu CD que este representasse a autora nas assembleias de condóminos, dada a sua idade avançada e o facto da autora viver no Algarve
XXXIV.  Este facto foi alegado pela autora sobre o artigo 35 da réplica que apresentou. Não mereceu contestação por parte dos RR ora Recorrentes e deveria, desde logo ter-se por assente, ou seja por provado – cf. art.º 574º, n.º 2 do CPC
XXXV.   Quanto aos factos provados cumpre ainda aditar os seguintes, face à prova documental produzida e que suportou igualmente os pontos 33 a 58, ou seja, as atas das assembleias de condomínio juntas aos autos por determinação oficiosa:
» Na ata da assembleia de condóminos de 2 de Julho de 2008, ata 49, ficou exarado: ”Por pagar está ainda o valor relativo à reparação do veículo do 4º Dtº, já aprovado em reunião.”
» O R. CD – ou a R. HM – compareceu na Assembleia de Condóminos de 29 de Março de 2012 (ata 57) constando apenso à ata , assinada por um deles, um orçamento emitido pela Auto India de Sacavém – Com. Rep. Autom. Lda, em 31 de Maio de 2012 de reparação e pintura de tejadilho da viatura Citroen Berlingo mês 11/2011, no valor de 756,89 euros, cujo destinatário é o Sr. CD, Rua (...), n.º 7 – 4º Dtº, (...), (...) LRS.
» Na ata da Assembleia de Condóminos de 29 de Janeiro de 2014, está exarado que “ relativamente ao condómino Sr. CD, o Sr. JP referiu que o mesmo contactou a LDC no passado dia 24 de Janeiro e entregou um cheque para pagar os valores de Setembro a Fevereiro. O Sr. JP apresentou as explicações dadas pelo condómino relativamente ao seu atraso no pagamento. A esposa do Sr. CD expressou a sua insatisfação relativamente às explicações dadas pelo Sr. JP”.
» Na lista de presenças da Assembleia de Condóminos de 16 de janeiro de 2015, anexa a ata 61, consta o nome do condómino CD, 4ºD, 4º-A, permilagem 41,67%.
» Na lista de presenças da Assembleia de Condóminos de 25 de Fevereiro de 2016, anexa a ata 62, consta o nome do condómino CD, 4ºD, 4º-A, permilagem 41,67%.
» Na lista de presenças da Assembleia de Condóminos de 14 de Abril de 2016, anexa a ata 63, consta o nome do condómino CD, 4ºD, 4º-A, permilagem 41,67%.
XXXVI. A redação do ponto 30 dos factos provados é ambígua e tem de ser substituída por outra que segmente, com rigor, os factos que o Tribunal entendeu dar como provados:
(iv) Desde Maio de 2012 a administração do condomínio é exercida pela Loja do Condomínio, Ld.ª
(v) Que a Loja do Condomínio Lda considerou desde essa data, Maio de 2012, e até pelo menos 2019 o R. CD como condómino
(vi) Que a A. tomou conhecimento que o R. CD se identificava como condómino, pelo menos, em 2019.
XXXVII. Assim, resulta da prova documental, designadamente convocatórias, avisos de pagamento e recibos de quotização, bem como da prova testemunhal, designadamente do depoimento de FF (...) (Depoimento gravado no citius entre as 09:59 e 10:45 da sessão de julgamento do dia 11 de Dezembro 2023, segmento iniciado aos minutos 00:15 a 00:26)
XXXVIII. Os factos vertidos nos pontos 23, 24 e 30 devem ter a seguinte redação, por ser a que se compagine com aprova testemunhal e documental, designadamente depoimentos das testemunhas AF, JB e FF (...):
23. Pelo menos, a partir de Março de 2008 o R. CD pagou as quotas do condomínio do (...) da Rua (...), n.º 7, por vezes com atrasos.
24. Pelo menos, a partir de 2009 despesas extraordinárias e outros encargos relacionados com a conservação e manutenção dos espaços comuns, onde se situa a fração autónoma, designadamente, reparações no telhado, reparação de bombas de água e substituição de elevadores
XXXIX.  Alterada decisão de facto, nos termos ora identificados, alterada será decisão de direito e fará jus ao que se passou nos últimos 30 anos na vida dos Recorrentes.
XL. Reconhecido que, particularmente, os comportamentos, a forma de fazer negócio não são as mesmas hoje que existiam há 30 (trinta) anos atrás, será também uma forma de fazer justiça ao respeito, à educação e à palavra que valia mais que qualquer papel de 25 linhas e selo fiscal!
XLI. O exercício como possuidores da fração autónoma em nome próprio iniciou-se antes de 2008, ao contrário do decidido pela Primeira Instância. Iniciou-se em 1991 quando os Recorrentes foram residir para fração, momento em que ocorreu a tradição do bem e estes passaram a atuar em nome próprio e não em nome do procurador da vendedora ou até promitente vendedora.
XLII. Os Recorrentes, pelo menos em Março de 2008, já contribuíam para as despesas de condomínio, mas os demais condóminos referem que é anterior e até fizeram consignar em ata que sempre os viram como proprietários do 4º A ( cf. facto 52), o que não foi levado à decisão de direito pelo Tribunal
XLIII. Os Recorrentes têm a posse da fração autónoma designada pela letra “4A”, correspondente ao quarto andar direito do prédio urbano situada na Rua (...), nº 7, (...), Loures, de forma pública, pacífica, de boa-fé e de forma ininterrupta há 30 (trinta) anos. E mesmo que considerássemos que só foi exercida de forma pacifica até 2013, atenta a notificação judicial recebida, mesmo assim já teria decorrido o prazo necessário ao efeito pretendido – cf. art.º 1296º do CC.
XLIV. Assim, confiam que o desfecho deste recurso será a declaração da aquisição originária pelos Recorrentes da fração autónoma designada pela letra “4A”, correspondente ao (...) do prédio urbano situado na Rua (...), nº 7 – 4' Dto., (...), Loures, registado na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº (...)18, da freguesia da (...), concelho de Loures, por usucapião, de acordo com o preceituado nos artigos 1258.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1287.º, 1296.º, e 1316.º do C.C.
E em consequência,
Serão declarados inexistentes todos e quaisquer direitos afirmados quer pela A. Recorrida quer por terceiros e em oposição com o referido direito de propriedade dos Recorrentes.
XLV.     Contudo, por estrita cautela de patrocínio, e admitindo que outro entendimento possa vingar, importa referir que a decisão de direito que condenou os RR numa indemnização por danos patrimoniais a contar desde 13 de setembro de 2013, viola e faz errada interpretação do disposto 577º/i) do CPC, uma vez que houve já sentença proferida e transitada em julgado, a qual não admitiu o pedido formulado pela então A. e Exequente, assente no exercício de um direito de propriedade que o Tribunal não admitiu e do qual a Recorrida, na altura, não recorreu.
XLVI.    A sentença recorrida violou o disposto no art.º 5/2, 607/ 4 e 5 do CPC e 1258.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1287.º, 1296.º e 1316.º do C.C.
XLVII.   Deve, por isso, ser revogada e substituída por outra que defira afinal o peticionado pelos Recorrentes, por ser de elementar Justiça!
*
Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação.
A apelada apresentou recurso subordinado, sustentando que os factos não provados sob (ii) e (iii) deverão ser revertidos para provados, devendo o valor da indemnização pela ocupação da fração ser fixado em € 1.200, sendo desnecessária a liquidação em execução de sentença.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Atendibilidade de factos não alegados (conclusões 5 a 14);
ii. Discrepância de critérios na valoração das testemunhas (conclusões 15 a 21);
iii. Impugnação da decisão da matéria de facto (conclusões 22 a 34);
iv. Aditamento de factos provados (conclusão 25) ;
v. Aquisição da fração por usucapião (conclusões 39 a 44);
vi. A existência de caso julgado quanto à indemnização (conclusão 45);
vii. Recurso subordinado.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
A jurisprudência citada neste acórdão sem menção da origem encontra-se publicada em www.dgsi.pt.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. A A. tem inscrita a seu favor, pela Ap. 40 de 1980/04/24, a aquisição do direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra 4 A, correspondente ao 4.º andar direito, do prédio urbano, sito à Rua (...), n.º 7, (...), Loures, descrito na Conservatória do Registo Predial da Loures, sob o número (...)18 – 4-A, da freguesia da (...).
2. Os réus encontram-se a ocupar o 4.º andar direito da Rua (...), n.º 7, na (...), sem o consentimento da A. e contra a sua vontade.
3. Em data não concretamente apurada, o pai da A., FG, em representação da sua filha, e o R. CD celebraram um “contrato-promessa de compra e venda” daquela fração autónoma, pelo qual o R. marido prometeu comprar aquele imóvel por um valor não concretamente apurado.
4. As partes acordaram que caso o R. marido não conseguisse pagar o valor integral do imóvel até determinada data, aquele contrato-promessa de compra e venda se converteria num “contrato de arrendamento”.
5. A. e réus nunca celebraram qualquer escritura pública de compra e venda da fração autónoma correspondente ao 4.º andar direito, do prédio urbano, sito à Rua (...), n.º 7, (...).
6. Em 13 de Setembro de 2013, na sequência de requerimento da aqui A., os réus receberam uma notificação judicial avulsa a comunicar-lhes o seguinte: “1. A cessação, por resolução, do contrato de arrendamento para habitação celebrado, em 20 de Setembro 2000, onde os requeridos são atuais arrendatários e a requerente senhoria, referente à fração urbana sita na Urb. Da (...), Rua (...), Lote 7-4.º Dtº (...) Lrs. 2. Devendo os requeridos dentro do prazo máximo de 1 (um) mês, contado da presente notificação, procederem à desocupação total, por pessoas ou bens, do local arrendado e entrega da respetiva chave à requerente. 3. Deverão, ainda, de imediato, procederem ao pagamento das rendas já vencidas e não pagas as quais, na presente data, somam o montante de € 56.852,40. 4. Devendo, também, procederem ao pagamento das rendas que entretanto se forem vencendo até à entrega do locado”.
7. Em 9 de Dezembro de 2013, a ora A. intentou ação executiva para entrega de coisa certa contra os ora réus, distribuída, no Juízo de Execução de Loures – Juiz 2, sob o n. (...)11/13.3TCLRS-A, invocando: “Em 20-09-2000 entre o representante da exequente, devidamente mandatado e o executado marido foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda de uma fração sita na Rua (...), Lote 7 - 4º andar Dtº , em (...) /Loures, fração essa propriedade da exequente, agora divorciada, descrita na CRP de Loures, freguesia de da (...), com o nº (...)18-A (doc. 1). Nesse contrato foi acordado o preço da venda do andar por 31.000, contos em moeda antiga e entregue a titulo de sinal, pelos aqui executados, a quantia de 1.000 contos, ficando ainda acordado que: A escritura deveria realizar-se até 30-12-2003; caso o promitente comprador não conseguisse o crédito bancário para pagamento do restante preço e realizarem a escritura até á data prevista, este contrato convertia-se então num contrato de arrendamento mediante o pagamento de uma renda mensal de €835,50 ( vd. contrato junto à NJAv.). De facto, os agora executados não lograram obter crédito bancário de forma a permitir a realização da escritura tendo, conforme o previsto no contrato, passado à condição de inquilinos a partir de 01-01-2004. Sendo o valor da renda, conforme o acordado, de € 835,50/mês a qual com as atualizações anuais tem, na presente data, o valor de €861,40. Sucede que os executados/ inquilinos foram pagando as rendas até Dezembro de 2006 e a partir dai, Janeiro de 2007, não mais pagaram qualquer renda à senhoria/exequente. Sendo o montante das rendas em divida em Julho de 2013 de €56.852,40. Estando verificadas as condições previstas na Lei (NRAU), a senhoria resolveu contrato através de notificação Judicial avulsa, efetuada na pessoa dos executados em 09-01-2013 (tudo conforme se verifica pela certidão da notificação que se junta (doc.2). Termos em que resolvido que foi o contrato, deverão os executados entregarem á exequente o local arrendado livre de pessoas ou bens
8. O requerimento executivo foi instruído com uma procuração notarial, datada de 22 de Maio de 1980, em que a A. declarou “que constitui bastante procurador o seu pai FG (...) e lhe confere os mais amplos poderes para, pelo preço, cláusulas e condições que melhor entender, vender quaisquer bens ou direitos imóveis, que possuas, receber os preços e deles dar quitação, outorgar ou assinar se necessárias escrituras, requerer quaisquer atos de registo predial, inclusive provisórios, definitivos, averbamentos e cancelamentos, outorgar e assinar recibos de sinal e contratos de promessa de venda, requerendo, praticando e assinando o que necessário se torne aos fins indicados.»
9. O requerimento executivo foi instruído, também, com um documento manuscrito, datado de 20 de Setembro de 2000, contendo duas assinaturas, com o seguinte teor: “Contrato de Promessa de compra e venda – Eu abaixo assinado FG, residente na Rua (...), 10 – 2.º Esq., (...), Loures, declaro que recebi do Sr. CD a quantia de 1.000.000$00 como sinal e princípio de pagamento da promessa de venda do 4.º andar direito na Rua (...), n.º 7, (...), Loures, que promete vender pela quantia de 31.000.000$00, trinta e um milhões de escudos, livre de encargos e que a restante quantia de 30.000.000$00 será liquidada no ato da escritura que se realizará até 31/12/2003. No caso do comprador não consiga o crédito para a compra da referida fração ficará sem efeito a compra da fração, fica como inquilino com uma renda a combinar nunca inferior a 835,50 Euros – Lisboa 20/9/2000
10. Em 22 de Janeiro de 2014, os executados deduziram embargos de executado naquela execução (Processo n.º (...)11/13.3TCLRS-A) impugnando a genuinidade da assinatura aposta no documento intitulado “Contrato de Promessa de compra e venda” e arguindo a nulidade desse contrato por falta de forma, os quais foram recebidos por despacho de 18 de Abril de 2017.
11. Na sentença de 9 de Outubro de 2017, proferida no âmbito dos embargos de executado/oposição à execução, exarou-se “que o escrito junto ao requerimento executivo não consubstancia um contrato de arrendamento. Ainda que assim não fosse entendido, sempre se concluiria que o referido escrito, juntamente com a notificação judicial avulsa não constitui título executivo”, tendo-se decidido, a final: “Julga-se integralmente procedente a presente oposição à execução, por falta de título executivo e, em consequência, determina-se a extinção da execução.» (sic).
12. A A. paga o IMI da fração autónoma correspondente ao 4.º andar direito da Rua (...), n.º 7.
13. A A. paga as despesas de condomínio daquela fração autónoma desde o bimestre de Março/Abril de 2017.
14. A A. está desgostosa com a situação de não poder habitar naquela fração autónoma, o que lhe causa ansiedade.
15. No final da década de 1990, os réus passaram a viver, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal ao pai da A., naquela fração autónoma.
16. Entre 20 de Maio de 1998 e até ao ano de 2001, o R. CD e a sociedade (...) – Comércio de Carnes, Lda.1, emitiram 40 (quarenta) cheques à ordem do pai da A., FG, nas seguintes datas e com os seguintes valores:

10-05-1999   0765018916 SantanderTotta      (...), Lda      FG 1.431.050 7138.05€
31-07-1999  9465018874  SantanderTotta   (...), Lda      FG 63.250,00 315.49€


Data
Cheque Nº
Banco
Conta de
Ordem de
Valor $
Valor €
20-05-1998
1004312162
BBV
CD
FG
393.000,00
1.960,28 €
21-05-1998
1404312140
BBV
CD
FG
388.000,00
1.935,34 €
22-05-1998
5404312114
BBV
CD
FG
388.000,00
1.935,34 €
08-06-1998
5604311812
BBV
CD
FG
83.196,00
414,98 €
13-06-1998
5404312405
BBV
CD
FG
488.000,00
2.434,13 €
15-06-1998
5204312416
BBV
CD
FG
493.660,00
2.462,37 €
17-06-1998
5404311823
BBV
CD
FG
83.196,00
414,98 €
19-06-1998
1204312442
BBV
CD
FG
83.300,00
415,50 €
20-06-1998
804312464
BBV
CD
FG
293.450,00
1.463,72 €
24-06-1998
5204311834
BBV
CD
FG
83.196,00
414,98 €
10-07-1998
404311904
BBV
CD
FG
78.245,00
390,28 €
17-07-1998
204511915
BBV
CD
FG
78.245,00
390,28 €
24-07-1998
9704311926
BBV
CD
FG
78.245,00
390,28 €
31-07-1998
6104311930
BBV
CD
FG
78.245,00
390,28 €
10-08-1998
1504312280
BBV
CD
FG
83.000,00
414,00 €
17-08-1998
1304312291
BBV
CD
FG
83.000,00
414,00 €
24-08-1998
1104312302
BBV
CD
FG
83.000,00
414,00 €
31-08-1998
904312313
BBV
CD
FG
83.000,00
414,00 €
01-05-1999
5965018921
SantanderTotta
(...) Lda
FG
463.030,00
2.309,58 €
06-05-1999
5065018922
SantanderTotta
(...) Lda
FG
980.000,00
4.888,22 €
15-05-1999
2365018925
SantanderTotta
(...) Lda
FG
821.010,00
4.095,18 €
16-05-1999
8465018929
SantanderTotta
(...) Lda
FG
769.595,00
3.838,72 €
20-05-1999
6565018888
SantanderTotta
(...) Lda
FG
873.610,00
4.357,55 €
21-05-1999
4765018890
SantanderTotta
(...) Lda
FG
63.250,00
315,49 €
11-07-1999
3365018870
SantanderTotta
(...) Lda
FG
63.250,00
315,49 €
18-07-1999
2465018871
SantanderTotta
(...) Lda
FG
63.250,00
315,49 €
25-07-1999
665018873
SantanderTotta
(...) Lda
FG
63.250,00
315,49 €
10-08-1999
9265018885
SantanderTotta
(...) Lda
FG
63.250,00
315,49 €
17-08-1999
8365018886
SantanderTotta
(...) Lda
FG
63.250,00
315,49 €
24-08-1999
7465018887
SantanderTotta
(...) Lda
FG
63.250,00
315,49 €
S/data 6104312512 BBV CD FG 210.000 10.474.76€
31-08-1999
5665018889
SantanderTotta
(...) Lda
FG
63.250,00
315,49 €
26-09-2001
1304312582
BBV
CD
FG
217.528,00
1.085,03 €
31-10-2001
1104312593
BBV
CD
FG
181.124,00
903,44 €
31-12-2001
704312615
BBV
CD
FG
167.500,00
835,49 €
31-06-1998
5004311845
BBV
CD
FG
83.196,00
414,98 €
30-11-2001
904312604
BBV
CD
FG
216.445,00
1.079,62 €
s/data
404512486
BBV
CD
FG
13.760.500,00
68.637,08 €





TOTAL - 24.165.816$00
(€ 129 965,87)
17. Entre Agosto de 2008 e Abril de 2010, o R. CD procedeu a 11 (onze) transferências bancárias para a conta bancária com o NIB (...)24 5, da titularidade de MN, mãe da A., e mulher de FG:
_Pic12

18. Em 2006, o pai da A., FG, comunicou ao R. CD ter celebrado um contrato de mútuo bancário com a Caixa Geral de Depósitos, tendo dado como garantia real a fração autónoma, correspondente ao 4.º andar direito da Rua (...), n.º 7, na (...), pendendo sobre a fração uma hipoteca voluntária de 30 000 (trinta mil) contos.
19. O pai da A. era construtor civil de profissão.
20. Em 2013, o pai da A. adoeceu e confiou às suas filhas, a A., AB, e (...) FF (...), a resolução do problema da fração.
21. Em 2017 faleceu o pai da A..
22. Em data não concretamente apurada, o R. CD requereu o fornecimento de água, luz e gás, em seu nome, para aquela fração autónoma.
23. Em Março de 2008, o R. CD começou a pagar as quotas de condomínio do 4.º andar direito da Rua (...), n.º 7, por vezes com atrasos.
24. Após o ano de 2009, o R. CD pagou despesas extraordinárias e outros encargos relacionados com a conservação e manutenção dos espaços comuns, onde se situa a fração autónoma, designadamente, reparações no telhado, reparação de bombas de água e substituição de elevadores.
25. Após o último trimestre de 2008, os réus realizaram obras de conservação e beneficiação da fração autónoma, designadamente, na cozinha e nas casas de banho, em montante não concretamente apurado.
26. No final da década de 1990, o R. CD fixou a sua residência na Rua (...), n.º 7, 4.º direito, (...), Loures, aí recebendo os seus amigos e familiares.
27. Desde o final da década de 1990, os réus comem, dormem e organizam a sua vida, de forma ininterrupta, naquela fração autónoma.
28. O R. CD tinha uma relação de amizade com o pai da A..
29. Nem o pai da A., nem a A. autorizaram qualquer dos réus a apresentar-se como condómino perante o condomínio ou perante qualquer outra entidade.
30. Desde Maio de 2012, a administração do condomínio é exercida pela Loja do Condomínio, Lda., tendo a A. tomado conhecimento que o R. CD se identificava como condómino, pelo menos, desde 2019.
31. Os réus casaram em 21 de Junho de 1993 e divorciaram-se em 16 de Janeiro de 2008, tendo continuado, após aquela data, a viver em união de facto.
32. Os réus nunca pagaram diretamente à A. qualquer valor pecuniário como contrapartida pelo facto de viverem na fração autónoma.
33. Na Assembleia de Condóminos de 12 de Março de 1991 (ata n.º 28) esteve presente como condómino a A., (...), que assinou a ata.
34. Na Assembleia de Condóminos de 9 de Março de 1992 (ata n.º 30) esteve presente o pai da A., FG.
35. Na Assembleia de Condóminos de 29 de Janeiro de 1993 (ata n.º 32) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de representante do 4.º andar direito, tendo sido empossado secretário da Administração.
36. Na Assembleia de Condóminos de 25 de Fevereiro de 1993 (ata n.º 33) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de secretário da Administração e de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
37. Na Assembleia de Condóminos de 4 de Maio de 1993 (ata n.º 34) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de secretário da Administração e de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
38. Na Assembleia de Condóminos de 1 de Junho de 1993 (ata n.º 35) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de secretário da Administração e de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
39. Na Assembleia de Condóminos de 14 de Junho de 1993 (ata n.º 36) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de secretário da Administração e de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
40. Na Assembleia de Condóminos de 12 de Maio de 1995 (ata n.º 38) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
41. Na Assembleia de Condóminos de 24 de Junho de 1999 (ata n.º 43) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
42. Na Assembleia de Condóminos de 12 de Julho de 1999 (ata n.º 44) esteve presente um procurador na qualidade de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
43. Na Assembleia de Condóminos de 3 de Dezembro de 1999 (ata n.º 45) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
44. Na Assembleia de Condóminos de 10 de Outubro de 2002 (ata n.º 46) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
45. Na Assembleia de Condóminos de 19 de Novembro de 2007 (ata n.º 47) esteve presente um representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
46. Na Assembleia de Condóminos de 8 de Janeiro de 2009 (ata n.º 50) esteve presente o pai da A., FG, na qualidade de representante do 4.º andar direito, tendo assinado a ata.
47. O R. CD esteve presente na Assembleia de Condóminos de 3 de Dezembro de 2009 (ata n.º 51), tendo assinado a ata.
48. O R. CD – ou a R. HM – compareceu, após aquela data, nas Assembleias de Condóminos de 25 de Fevereiro de 2010 (ata n.º 52); 21 de Setembro de 2010 (ata n.º 53); 2 de Novembro de 2011 (ata n.º 55); 10 de Maio de 2012 (ata n.º 58); 9 de Janeiro de 2014 (ata n.º 60); 6 de Janeiro de 2015 (ata n.º 61); e de 15 de Fevereiro de 2015 (ata n.º 64), cujas atas assinou.
49. Na Assembleia de Condóminos de 2 de Fevereiro de 2018 (ata n.º 65) esteve presente como representante do 4.º andar direito JF, cunhado da A..
50. Na Assembleia de Condóminos de 25 de Março de 2019 (ata n.º 66) esteve presente, como representante do 4.º andar direito, (...) FF (...), irmã da A., tendo assinado a ata.
51. Na Assembleia de Condóminos de 1 de Maio de 2019 (ata n.º 67) esteve presente, como representante do 4.º andar direito, (...) FF (...) (irmã da A.), tendo assinado a ata.
52. Na ata n.º 67 ficou exarado: “A representante da fração 4.º-A (Dtº) colocou em causa a presença dos alegados inquilinos da fração, alegando falta de enquadramento legal para a sua presença. / Colocada à apreciação da Assembleia a continuidade da presença dos alegados inquilinos na Assembleia foi aprovada com o voto contra da representante da fração do 4.º-A e os votos favoráveis das restantes frações. /A Senhora QT acreditando representar o sentimento dos restantes condóminos que votaram a favor da sua presença declarou para a ata que os habitantes da dita fração a ocupam evidenciando a sua posse pacífica e pública.» (sic).
53. Na Assembleia de Condóminos de 4 de Fevereiro de 2022 (ata n.º 68) esteve presente, como representante do 4.º andar direito, FF (irmã da A.), tendo assinado a ata.
54. Na ata n.º 68 ficou exarado: “No ano de 2019 os valores do 4.º Dtº pagos pelo Sr. CD foram os seguintes: a) Janeiro-Fevereiro Quota ordinária (150€); b) Janeiro-Fevereiro Quota extraordinária (50€); c) Março-Abril Quota ordinária (150€); d) Março-Abril Quota extraordinária (50€); e) Maio-Junho Quota ordinária (150€); f) Maio-Junho Quota extraordinária (50€); / Efetuou ainda em 2019 duas transferências em 18 de Julho (200€) e 13 de Setembro (200€) no valor total de 400€ que ficaram na sua conta corrente./A Sr. a AB efetuou os pagamentos seguintes para a mesma fração: g) Julho-Agosto Quota ordinária (150€); h) Julho-Agosto Quota extraordinária (50€); i) Setembro-Outubro Quota ordinária (150€); j) Setembro-Outubro Quota extraordinária (50€); / O bimestre de Novembro-Dezembro mais a respetiva quota extraordinária ficou por liquidar tendo o seu pagamento efetuado no dia 6 de Janeiro de 2020.»(sic).
55. Na Assembleia de Condóminos de 10 de Maio de 2021 (ata n.º 69) esteve presente, como representante do 4.º andar direito, a A., AB.
56. Na Assembleia de Condóminos de 1 de Abril de 2022 (ata n.º 72) esteve presente, como representante do 4.º andar direito, a A., AB.
57. Na Assembleia de Condóminos de 13 de Março de 2023 (ata n.º 73) esteve presente, como representante do 4.º andar direito, a A., AB.
58. Ao R. CD foram assinaladas dívidas de condomínio nas atas n.º 59 (€ 150,50), n.º 60 (€ 300,00), n.º 62 (€ 319,40) e n.º 64 (€ 450,00).
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Atendibilidade de factos não alegados (conclusões 5 a 14).
Os Réus/apelantes sustentam que: a decisão impugnada atendeu a uma narrativa de factos que não foram alegados na petição inicial, a saber, a existência de um contrato de arrendamento, formal ou informal, válido ou ineficaz, bem como a convolação de uma promessa de compra e venda em contrato de arrendamento; o tribunal a quo conheceu desta narrativa em torno de um arrendamento, na fase de instrução, e erigiu-a em factos essenciais para a decisão da causa em violação dos princípios processuais, nomeadamente do contraditório, dando prévio conhecimento às partes da possibilidade de ampliar a matéria de facto com esses factos; não tendo sido cumpridos os requisitos para a aquisição oficiosa desses factos, os factos vertidos nos pontos 4 e 15 devem ser excluídos quer dos factos provados quer dos factos não provados.
Apreciando.
Nos artigos 6º e 7º da petição, a Autora reportou-se a processo anterior que decorreu entre as mesmas partes ((...)11/13.3TCLRS, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Loures, Juízo de Execução 2), no âmbito do qual foi proferida decisão transitada que deu «como não provada a existência de contrato de arrendamento entre os aqui intervenientes» (artigo 7º da pi).
Posteriormente, na réplica, a Autora alegou o seguinte, em sede de resposta à exceção perentória de pagamento do preço:
66 – Bem como que o preço acordado ascendia a 31.000 contos, tendo sido pagos 1000 contos a título de sinal e que a escritura realizar-se-ia até 30/12/2003; e, caso o aqui RR não conseguissem a concessão de crédito para a aquisição, este convertia-se em contrato de arrendamento,
67 – Os ora RR não conseguiram o crédito bancário, tendo então as partes acordado na resolução do contrato e que convertia-se em contrato de arrendamento.
68 – É certo que entendeu o Tribunal que não configurava um contrato de arrendamento, porém isto não invalida a resolução do contrato promessa convencionada, então, entre as partes.
69 – Os RR não pagaram o preço acordado, sendo que os 1000 contos foram-lhes devolvidos aquando a resolução do contrato, nada tendo estes a haver da A.
Decorre do facto provado sob 7 que, em 9.12.2013, a ora Autora intentou ação executiva para entrega de coisa certa contra os Réus, invocando que, em 20.9.2000, foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda com os Réus, devendo a escritura realizar-se até 30.12.2003. Caso o promitente-comprador não conseguisse o crédito bancário para pagamento do preço e realizar a escritura até à data prevista, o contrato converter-se-ia em contrato de arrendamento mediante o pagamento de uma renda de € 835,50, o que sucedeu a partir de 1.1.2004. Em 22.1.2024, os executados (ora Réus) deduziram embargos de executado, arguindo a nulidade do contrato-promessa por falta de forma. Na sentença proferida em 9.10.2027, exarou-se que o escrito junto ao requerimento executivo não consubstancia um contrato de arrendamento ( facto 11), tendo sido os embargos julgados procedentes, por falta de título executivo, sendo determinada a extinção da execução (cf. sentença junta com a pi desta ação).
Na fundamentação da sentença dos embargos foi também dito :
«Atente-se que consta do escrito dado à execução que “(…) ficará sem efeito a compra da fração, fica como inquilino com uma renda a combinar, nunca inferior a 835,50 Euros”.
Constata-se, assim, que não se mostra fixada qualquer renda – a mesma seria, ainda, a combinar – o que é revelador, uma vez mais, de que não se formou qualquer contrato (acordo de vontade), não podendo falar-se de relação locatícia.
Em suma, concluiu-se que o escrito junto ao requerimento executivo não consubstancia um contrato de arrendamento.»
Cotejando o que a autora invoca nesta ação declarativa com o que invocou anteriormente na ação executiva, verifica-se que a versão da autora é a mesma: celebração de um contrato-promessa de compra e venda com os Réus, devendo a escritura realizar-se até 30.12.2003; na eventualidade de não celebração do contrato definitivo, o contrato convolava-se em contrato de arrendamento mediante o pagamento de uma renda de € 835,50, o que sucedeu a partir de 1.1.2004.
Nos termos do Artigo 732º, nº6, do Código de Processo Civil, «Para além dos efeitos sobre a instância executiva, a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda.»
Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2ª ed., 2022, Almedina, p. 93, a sentença que julgue os embargos procedentes com base em factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda faz caso julgado material, em desvio à regra do Artigo 91º, nº2.
Conforme referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, p. 696:
«Se os embargos forem julgados procedentes, isto é, se o tribunal reconhecer o fundamento invocado pela executado, a decisão do tribunal significa que a obrigação exequenda não existe, não é válida ou não é exigível (e não apenas que a mesma não é suscetível de realização coativa através da execução pendente). Para que se forme caso julgado sobre a inexistência, a invalidade ou a inexigibilidade da obrigação exequenda basta que o tribunal reconheça um fundamento de inexistência, invalidade ou inexigibilidade.»
Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Ação Executiva, Anotada e Comentada, Almedina, 4ª ed., 2025, p. 294, em anotação a esta norma, referem:
«O trânsito em julgado da decisão de mérito proferida em sede de embargos de executado, impede que a validade, existência e exigibilidade da respetiva obrigação possam ser novamente invocadas e apreciadas num outro processo, seja ele declarativo ou executivo.»
Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL, 2018, pp. 433-434, refere a este propósito:
«Deste modo, veio dar-se valor de caso julgado aos fundamentos de defesa atinentes à causa de pedir, em exceção às regras dos artigos 91º, nº2 e 621º.
(…) por “existência, validade [...] da obrigação exequenda” a lei está a referir-se à decisão sobre a aquisição, modificação e extinção do direito à pretensão. Aqui se incluem os vícios formais que contaminam o título material do crédito, mesmo que, em simultâneo, seja também o título executivo.
(…)
Do exposto, resulta a nossa conclusão, já enunciada: no direito em vigor a oposição à execução é uma ação declarativa constitutiva processual e cumulativamente, de modo acessório e eventual, uma ação de simples apreciação positiva da existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda.»
Ora, tendo sido expressamente apreciado e decidido – em sede de embargos de executado – que a factualidade adrede invocada pela exequente (ora Autora) não consubstancia um contrato de arrendamento, nos termos do Artigo 732º, nº6, passou a existir entre as partes caso julgado material quanto à inexistência de contrato de arrendamento.
Esse caso julgado material vincula as partes neste processo e o próprio Tribunal, estando – assim – vedada a reintrodução da discussão sobre a existência de um contrato de arrendamento entre as partes, seja na sequência da alegação da autora (cf. artigos 7º da pi. , 66º a 69º da réplica), seja por via do disposto no Artigo 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil.
 A tal não obsta a circunstância de o tribunal a quo ter, agora, dado como provado esse arrendamento desde o final de década de 1990 (facto 15) quando na execução se discutiu a sua existência desde 1.1.2004. Com efeito, a identidade da causa de pedir não é atingida por alteração factual que não afete o núcleo essencial da causa de pedir:
§ Para efeitos da exceção de caso julgado, a identidade de causas de pedir não pressupõe uma absoluta coincidência das causas de pedir, bastando que os factos que integram o núcleo essencial das normas jurídicas que se pretendem aplicáveis na segunda ação estejam entre os invocados e apreciados na ação anterior ( Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.9.2019, Catarina Serra, 789/19);
§ A essencial identidade e individualidade da causa de pedir tem de aferir-se em função de uma comparação entre o núcleo essencial das causas petendi invocadas numa e noutra das ações em confronto, não sendo afetada tal identidade, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afete o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as ações, nem pela invocação na primeira ação de determinada factualidade, perspetivada como meramente instrumental ou concretizadora dos factos essenciais (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.7.2019, Bernardo Domingos, 13111/17).
Ora, o núcleo essencial factual em ambas as ações é sobreponível no que tange à invocação da existência de um contrato de arrendamento, não sendo descaraterizado pela pretensa divergência quanto à data do início da existência do contrato de arrendamento, tanto mais que a data de início dada como provado no facto 15 é anterior à data do início que era invocada no requerimento executivo dos embargos.
Mesmo que os réus/apelantes não tivessem suscitado a questão nesta apelação (não estando o tribunal vinculado ao enquadramento de direito efetuado – cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil ), a violação do caso julgado material sempre seria de conhecimento ofícioso (cf. Artigos 578º e 577º, al. i), do Código de Processo Civil ).
De todo o exposto, resulta a procedência da apelação neste segmento, sendo excluídos da matéria de facto (provada e não provada) os factos provados sob 4 e 15 por violação do caso julgado material entre as partes.
Discrepância de critérios na valoração das testemunhas (conclusões 15 a 21).
Nas conclusões 15 a 21, 36 a 38, os réus sustentam que o tribunal a quo apreciou as provas de forma discrepante, não tendo utilizado da mesma bitola para apreciar os depoimentos das testemunhas, nem utilizado os mesmos critérios quanto à espontaneidade, ao raciocínio, às lacunas, à (in)existência de contradições.
Apreciando.
Os parâmetros que o tribunal a quo utilizou, ou não, na valoração das provas (sobretudo testemunhais) só carecem de reavaliação, em sede de recurso de apelação, quando tais meios de prova forem invocados como fundamento de uma concreta e peticionada alteração da matéria de facto. Dito de outra forma, a avaliação dos meios de prova não é uma questão de per si, mas uma questão instrumental e que se articula necessariamente com uma concreta impugnação da decisão relativa à matéria de facto (cf. Artigo 640º, nº1, al. b), do Código de Processo Civil ).
A apreciação da questão, nos termos em que é suscitada pelos apelantes, integraria a prática de ato inútil pelo que não será efetuada (cf. Artigo 130º do Código de Processo Civil ).
Impugnação da decisão da matéria de facto (conclusões 22 a 34).
Os apelantes pretendem que a matéria de facto seja alterada nos seguintes termos:
Reversão de não provados para provados dos seguintes factos:
(iv) Que o contrato-promessa de compra e venda foi celebrado em Janeiro de 1991, não tendo sido reduzido a escrito, fruto da relação de amizade e confiança existente entre o falecido pai da A. e o R. CD, e que o pagamento do preço seria realizado semanal ou mensalmente conforme a disponibilidade do R.
(v) Que os Réus vivem na fração autónoma desde janeiro de 1991.
(vii) Que os cheques emitidos por réu CD (...) traço comércio de carnes, limitada, entre 20/05/98 até o ano 2001 (perfazendo 129965 EUR ponto 87) e as transferências bancárias para a conta bancária com o nib (...)245, MN, entre os meses de agosto de 2008 e abril de 2010 totalizando 8650 EUR se destinassem ao pagamento do preço acordado pela venda da fração autónoma correspondente ao quarto andar direito do prédio da rua Júlio Diniz número 7.
(xv) Que o pai da Autora pediu ao réu CD que este representasse a autora nas assembleias de condóminos, dada a sua idade avançada e o facto da autora viver no Algarve.
Reversão de provados para não provados dos seguintes factos:
(4) As partes acordaram que caso o R. marido não conseguisse pagar o valor integral do imóvel até determinada data, aquele contrato-promessa de compra e venda se converteria num “contrato de arrendamento”
(15) No final da década de 1990, os RR passaram a viver, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal ao pai da A, naquela fração autónoma.
Alteração da redação de factos provado para:
Facto 23:
Pelo menos, a partir de Março de 2008 o R. CD pagou as quotas do condomínio do (...) da Rua (...), n.º 7, por vezes com atrasos.
Facto 24:
Pelo menos, a partir de 2009 despesas extraordinárias e outros encargos relacionados com a conservação e manutenção dos espaços comuns, onde se situa a fração autónoma, designadamente, reparações no telhado, reparação de bombas de água e substituição de elevadores.
Facto 30:
(iv) Desde Maio de 2012, a administração do condomínio é exercida pela Loja do Condomínio, Ld.ª
(v) Que a Loja do Condomínio Lda. considerou desde essa data, Maio de 2012, e até pelo menos 2019 o R. CD como condómino
(vi) Que a A. tomou conhecimento que o R. CD se identificava como condómino, pelo menos, em 2019.
Apreciando.
No que tange à pretendida reversão de provados para não provados quanto aos factos 4 e 15, a apreciação da questão encontra-se prejudicada pelo caso julgado material, consoante foi analisado supra.
No que tange à pretendida alteração da redação do facto 23 (“Em Março de 2008, o R. CD começou a pagar as quotas de condomínio do 4.º andar direito da Rua (...), n.º 7, por vezes com atrasos”) para «Pelo menos, a partir de Março de 2008 o R. CD pagou as quotas do condomínio do (...) da Rua (...), n.º 7, por vezes com atrasos», a diferença de redação é inócua e absolutamente irrelevante para a sorte do litígio (cf. o que se dirá no capítulo atinente à aquisição por usucapião), razão pela qual não se procede à sua apreciação.
Com efeito, o direito à impugnação da decisão de facto não subsiste a se mas assume um caráter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.[3] Dito de outra forma, o princípio da limitação dos atos, consagrado no Artigo 130º do Código de Processo Civil, deve ser observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.5.2017, Isabel Pereira, 4111/13.
O mesmo ocorre, mutatis mutandis, quanto à alteração da redação do facto 24 de «Após o ano de 2009, o R. CD pagou despesas extraordinárias e outros encargos relacionados com a conservação e manutenção dos espaços comuns, onde se situa a fração autónoma, designadamente, reparações no telhado, reparação de bombas de água e substituição de elevadores» para «Pelo menos, a partir de 2009 despesas extraordinárias e outros encargos relacionados com a conservação e manutenção dos espaços comuns, onde se situa a fração autónoma, designadamente, reparações no telhado, reparação de bombas de água e substituição de elevadores.»
No que tange ao facto 30, o que os apelantes pretendem é o aditamento do segmento: «Que a Loja do Condomínio Lda. considerou desde essa data, Maio de 2012, e até pelo menos 2019 o R. CD como condómino.»
Todavia, essa factualidade não foi oportunamente alegada pelos réus, nomeadamente em sede de contestação, só podendo ser inserida no processo com observância do disposto no Artigo 5º, nº2, al. b), do Código de Processo Civil.
Atenta a causa de pedir da reconvenção, o facto que os réus/apelantes pretende adicionar ao elenco dos factos provados assume a natureza de facto complementar, nos termos do Artigo 5º, nº2, al. b), do Código de Processo Civil. Tal facto só poderia ser introduzido no processo no decurso do julgamento em primeira instância, mediante iniciativa da parte ou oficiosamente, sendo que, neste último caso, cabe ao juiz anunciar às partes que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de proferir uma decisão-surpresa (cf. também: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2017, Pinto de Almeida, 1758/10, de 6.9.2022, Graça Amaral, 3714/15, de 30.11.2022, Barateiro Martins, 23994/16, de 30.5.2023, Jorge Dias, 529/21, de 7.12.2023, Cura (...)no, 2017/11; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.12.2018, Moreira do Carmo, 2053/14, de 13.9.2022, Moreira do Carmo, 3713/16; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12.2019, Castelo Branco, 11605/18). Em qualquer dessas circunstâncias, assiste à parte beneficiada pelo facto complementar e à contraparte a faculdade de requererem a produção de novos meios de prova para fazer a prova ou contraprova dos novos factos complementares – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 32.
Não tendo os apelantes desencadeado tal mecanismo de ampliação fáctica nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal quanto a este facto, está precludida a ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de facto essencial complementar ou concretizador fora das condições previstas no art.º 5º (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 860) ou, segundo Alberto dos Reis, ocorreria erro de julgamento por a sentença/acórdão se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp.. 145-146). Note-se que a ampliação da matéria de facto (Artigo 662º, nº2, al. c), in fine, do Código de Processo Civil) tem por limite a factualidade alegada, tempestivamente, pelas partes, não constituindo um sucedâneo do mecanismo sucedâneo do Artigo 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil).
Acresce que, mesmo que tal factualidade fosse inserível nos autos com observância do disposto no Artigo 5º, nº2, al b), do Código de Processo Civil , certo é que- consoante visto infra- a mesma seria absolutamente inócua para a procedência da reconvenção.
Posto isto, resta então apreciar os quatro factos que os apelantes entendem que devem ser revertidos de não provados para provados.
Os apelantes pretendem que o facto não provado sob iv) (“(iv) Que o contrato-promessa de compra e venda foi celebrado em Janeiro de 1991, não tendo sido reduzido a escrito, fruto da relação de amizade e confiança existente entre o falecido pai da A. e o R. CD, e que o pagamento do preço seria realizado semanal ou mensalmente conforme a disponibilidade do R.”) seja revertido para provado. Invocam, para tanto, a prova documental carreada para os autos até por iniciativa do Tribunal atinente ao outro processo que decorreu entre as partes, bem como as declarações de parte dos réus.
O Tribunal a quo fundamentou a resposta de não provado nestes termos:
«Concretizando, todavia, um pouco mais, importa salientar que, pese embora o Tribunal ter dado como provados os factos indicados sob os n.ºs 3 e 4 – no que tange à celebração de um contrato-promessa de compra e venda, cuja falta de pagamento do preço o converteria num contrato de arrendamento –, não foi possível apurar que esse contrato-promessa era, concretamente, aquele que consubstancia o documento n.º 2 junto ao Processo n.º (...)11/13.3TCLRS, nem, muito menos, o contrato-promessa que os RR. vieram alegar, razão pela qual ficaram por provar, designadamente, qual a data do contrato, a sua forma (escrita ou verbal) ou os valores acordados – cf. factos não provados (i) e (iv).
(…)
Quanto aos factos não provados (iv) e (vi), reitera-se, não há qualquer prova de que o contrato-promessa tenha sido celebrado nos moldes aí descritos, designadamente, no que tange à forma (verbal), data (1991), valor (Esc. 22 000 000$00) e, muito menos ainda, ao modo de pagamento do preço – “semanal ou mensalmente, consoante a disponibilidade do R.º –, sendo o testemunho da filha dos RR. e os depoimentos de parte destes, pelas razões já antes expostas, manifestamente insuficientes para estribar a tese constante da contestação/reconvenção. Aliás, sendo o R. um comerciante com larga experiência de negócios, não se concebe que não acautelasse minimamente a formalização de um negócio de tal envergadura, não tendo em seu poder qualquer tipo de documento que corporizasse semelhante negócio oneroso. Um só que seja! Mais estranho, ainda, é afirmar que o contrato, verbal, alegadamente celebrado em 1991, foi celebrado dessa forma “dada a relação de amizade confiança existente entre o Réu varão e o falecido pai da A., FG” (cf. artigo 15.º da contestação), quando o próprio depoente no seu depoimento “confessou” que apenas conheceu o Senhor FG, enquanto construtor civil, em 1990, através de uma terceira pessoa.»
Apreciando.
O tribunal a quo censurou a conduta das partes, sobretudo dos réus, na condução dos seus negócios, alegando factos que, normalmente, são objeto de cuidada documentação, não tendo sido esse o caso. Percebe-se a crítica do tribunal a quo, mas a práxis social nem sempre é a mais adequada, incorrendo as partes em riscos probatórios acrescidos por via do seu desleixo contratual com a prevalência da informalidade, sendo que a ignorância da lei não justifica a falta do seu cumprimento (Artigo 6º do Código Civil).. O que há que aquilatar é se existe prova suficiente sobre a ocorrência de determinados factos, sem que haja que sucumbir a soluções maniqueístas/holistas de tudo ou nada.
Cremos que assiste parcialmente razão aos réus nesta impugnação.
Consoante se verá já de seguida, deverá ser considerando provado que os réus vivem na fração desde janeiro de 1991.
Não faz qualquer sentido, segundo as regras da experiência comum, que o pai da autora, construtor civil, permitisse que alguém fosse viver para o apartamento da autora sem que essa ocupação fosse justificada por uma via contratual, por exemplo, arrendamento ou contrato-promessa de compra e venda, mesmo sendo este verbal. A verbalidade do contrato justificar-se-á porque havia uma relação de confiança entre o pai da autora e os réus, consoante explanado pelos réus em sede de declarações de parte bem como pelas testemunhas JF (cunhado da autora) e por FF (irmã da Autora). Consoante explicou a testemunha JF (parte final do seu depoimento), o pai da autora utilizou por diversas vezes esta prática contratual: fazia um contrato-promessa de compra e venda e se, por alguma razão, a contraparte não conseguisse honrar o contrato-promessa, o mesmo convolava-se em arrendamento.
Deste modo, a vivência dos réus, a partir de janeiro de 1991, na fração autónoma dos autos colhe sentido ao abrigo de tal contrato-promessa verbal, sendo que os réus assim o afirmaram em termos suficientemente atendíveis.
Já no que tange ao pagamento do preço consoante a disponibilidade do réu, sem prazo, a verbalização dos réus paira no vazio, não sendo corroborada por outros elementos de prova. Com efeito, a tal prática contratual do pai da autora estava colimada à existência de um prazo para a celebração do contrato definitivo de compra e venda, não havendo elementos que permitam apurar qual foi o prazo inicialmente estabelecido e se ocorreram, e em que termos, prorrogações ao mesmo.
Assim, altera-se a redação do facto 3 para:
3. Em janeiro de 1991, o pai da autora, FG, em representação da sua filha, e o Réu CD celebraram um “contrato-promessa de compra e venda” daquela fração autónoma, pelo qual o Réu marido prometeu comprar aquele imóvel por um valor não concretamente apurado.
Altera-se a redação do facto 26 para :
26- Em janeiro de 1991, o Réu CD fixou a sua residência na Rua (...), nº7, 4º direito, (...), Loures, aí recebendo os seus amigos e familiares.
Altera-se a redação do facto 27 para :
27. Desde janeiro de 1991, os réus comem, dormem e organizam a sua vida, de forma ininterrupta, naquela fração autónoma.
Adita-se o facto 3-A com a seguinte redação:
3-A – O contrato-promessa referido em 3 foi celebrado em janeiro de 1991, não tendo sido reduzido a escrito, fruto da relação de amizade e confiança existente entre o falecido pai da autora e o réu CD.
Em segundo lugar, os réus pretendem que o facto não provado sob (v) (“Que os réus vivem na fração autónoma desde janeiro de 1991”) seja revertido para provado. Invocam, para tal, os depoimentos prestados pelas testemunhas FF, PP Azenha (filha dos réus) e as declarações do réu.
O tribunal a quo justificou a resposta de não provado nestes termos:
«O facto não provado (v), já antes se disse, é totalmente infirmado pela prova documental inserta no processo, inexistindo um só documento que seja, ou qualquer outro princípio de prova, que inculque que os RR. vivem na fração autónoma desde 1991. Aliás, como também se salientou, é totalmente contra as regras da experiência e da normalidade das situações da vida que não exista qualquer resquício probatório de um só pagamento que tenha seja realizado pelos RR. entre 1991 e 1998, não sendo admissível, ou atendível, a afirmação constante do artigo 19.º da contestação, segundo a qual, “...dado o tempo decorrido, não consegue o Réu varão apresentar os comprovativos dos pagamentos efetuados no período compreendido entre Dezembro de 1991 e 20/05/1998” (sic).»
Apreciando.
Houve, de facto, displicência das partes na documentação da relação contratual estabelecida, sendo essa displicência bilateral e explicável pela dita relação de confiança entre os réus e o pai da autora.
Todavia, na contestação dos embargos do Processo (...)11/13.3TCLRS (anteriormente decorrido entre as partes) a ora autora foi taxativa no seu artigo 12º: «Aceita-se como verdadeiros o previsto 6º dos embargos, ou seja, que os executados residem no locado desde dezembro de 1991», aceitação reiterada no artigo 19º (cf. contestação junta no vol. 3º).
A confissão realizada anteriormente numa ação principal pode ser invocada em ação subsequente entre as mesmas partes com o valor de confissão extrajudicial, sendo livremente apreciada – cf. Artigos 421º, nº1, do Código de Processo Civil e 358º, nº4; Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 3ª ed., p. 100.
A confissão extrajudicial da autora é confluente com o que os réus relataram nas suas declarações de parte, lançando luz sobre a ocupação que os réus fizeram da fração, concluindo-se pela procedência da apelação neste segmento.
Assim, o facto não provado sob (v) passa a constituir o facto provado 3-B com esta redação:
3-B – Os réus vivem na fração autónoma desde janeiro de 1991.
Os apelantes pretendem que o facto não provado sob (vii) (“Que os cheques emitidos por réu CD (...) traço comércio de carnes, limitada, entre 20/05/98 até o ano 2001 (perfazendo 129965 EUR ponto 87) e as transferências bancárias para a conta bancária com o nib (...)245, MN, entre os meses de agosto de 2008 e abril de 2010 totalizando 8650 EUR se destinassem ao pagamento do preço acordado pela venda da fração autónoma correspondente ao quarto andar direito do prédio da rua Júlio Diniz número 7”) seja revertido para provado. Invocam, para tanto, o depoimento da testemunha PP Azenha (filha dos Réus) e as declarações de parte do réu.
O Tribunal a quo fundamentou a resposta de não provado nestes termos:
«No que concerne ao facto não provado (vii, para além de não fazer qualquer tipo de sentido que, segundo a tese dos RR., o contrato-promessa remontasse a 1991 e os pagamentos só surgissem entre 1998 e 2001 e depois entre 2008 e 2010, não colhe a explicação de falta de qualquer tipo de demonstração probatória de pagamentos entre 1991 e 1998. Aliás, pergunta-se, mesmo que se admitisse a tese (não provada) dos RR., que sentido faria o contrato ter sido celebrado em 1991 e os alegados pagamentos da fração só terem sido concluídos decorridos quase 20 anos! Evidentemente, não há qualquer explicação coerente ou lógica que suporte essa realidade e os RR. não a demonstraram. Acresce, outrossim, ter ficado por compreender, por um lado, o motivo pelo qual os cheques emitidos apresentavam valores pecuniários tão dispares – não tendo os RR. feito o mínimo esforço para explicar, de modo sério e coerente, quais os pagamentos realmente feitos, cingindo-se a remeter em “bloco” para aqueles cheques –, não se compreendendo, também, se esses cheques se destinavam, de facto, a suportar o preço (tese dos RR) da fração autónoma. Na verdade, conforme foi salientado pelas testemunhas da A., designadamente, FF e JF, o R. enfrentou problemas financeiros no seu talho de Moscavide no período da crise das vacas loucas e pediu dinheiro emprestado ao pai da A., sendo certo que o período temporal daqueles cheques, mormente os que foram emitidos pela (...), Lda., é contemporâneo dessa crise. Evidentemente, era aos RR. que cabia o ónus da prova de demonstrar, sem margem para quaisquer dúvidas, que todos aqueles cheques se destinavam ao fim alegado, o que não fizeram. Por seu turno, as transferências bancárias realizadas para a conta bancária da mãe da A., entre Agosto de 2008 e Abril de 2010, não foram minimamente explicadas, inexistindo qualquer prova de que se destinassem ao fim invocado pelos RR.!»
Apreciando.
Aqui, entendemos que o tribunal a quo decidiu corretamente, nada havendo a alterar ao decidido. Com efeito, é inexplicável o longo hiato temporal entre o contrato-promessa verbal (1991) e subsequentes entregas pelos réus de valores inconstantes só a partir de maio de 1998. Neste circunspecto, as declarações do réu não emprestam consistência à sua verbalização porquanto é o próprio réu a afirmar que fez “pagamentos à balda” sem controle e, por outro lado, declarou que pagava juros “não é” e, mais à frente, vem contradizer-se afirmando que “não havia” taxa de juros, que o pai da autora numa lhe falou em juros. Ou seja, o próprio réu nem foi capaz de enunciar uma versão coerente do ocorrido.
No que tange ao passivo que as entregas feitas pelos réus visavam liquidar, como bem assinalado pelo tribunal a quo, foi feita contraprova (cf. Artigo 346º do Código Civil) suficiente quanto ao objetivo de tais entregas. Com efeito, as testemunhas JF e FF corroboraram a existência de empréstimos feitos pelo pai da autora ao réu, em virtude da crise das vacas loucas, sendo que o pai da autora – na leitura da testemunha FF – teve como um dos motivos de não demandar judicialmente os réus o propósito de ver se, ao não serem hostilizados, os réus pagavam os empréstimos. Esses empréstimos já haviam sido invocados na contestação dos embargos anteriormente ocorridos (cf. artigo 24º).
Do exposto resulta que os réus não fizeram prova suficiente da imputação das entregas para pagamento da fração, sendo que se poderiam ter acautelado com o efetivo exercício do direito à quitação (Artigo 787º do Código Civil). Sibi imputet.
Finalmente, pretendem os apelantes que o facto não provado sob (xv) (“Que o pai da autora pediu ao Réu CD que este representasse a autora nas assembleias de condóminos, dada a sua idade avançada e o facto da autora viver no Algarve”) seja revertido para provado. Invocam a esse propósito que tal foi alegado ao artigo 35º da réplica, não tendo sofrido oposição dos réus.
Apreciando.
Mesmo que o facto em causa fosse revertido para provado , o mesmo – de per si ou conjugado com outros provados – é absolutamente inconsequente para a procedência da reconvenção. Com efeito, mesmo a existir, tal facto não sedimenta qualquer requisito da aquisição por usucapião (cf. infra), razão pela qual – pelos motivos já acima explanados (princípio da utilidade e da economia de atos) – não se aprecia sequer esta impugnação.
Aditamento de factos provados (conclusão 25).
Os apelantes pretendem que sejam aditados os seguintes factos provados face à prova documental produzida:
» Na ata da assembleia de condóminos de 2 de Julho de 2008, ata 49, ficou exarado: “Por pagar está ainda o valor relativo à reparação do veículo do 4º Dtº, já aprovado em reunião.”
» O R. CD – ou a R. HM – compareceu na Assembleia de Condóminos de 29 de Março de 2012 (ata 57) constando apenso à ata , assinada por um deles, um orçamento emitido pela Auto India de Sacavém – Com. Rep. Autom. Lda, em 31 de Maio de 2012 de reparação e pintura de tejadilho da viatura Citroen Berlingo mês 11/2011, no valor de 756,89 euros, cujo destinatário é o Sr. CD, Rua (...), n.º 7 – 4º Dtº, (...), 2685¬216 (...) LRS.
» Na ata da Assembleia de Condóminos de 29 de Janeiro de 2014, está exarado que “relativamente ao condómino Sr. CD, o Sr. JP referiu que o mesmo contactou a LDC no passado dia 24 de Janeiro e entregou um cheque para pagar os valores de Setembro a Fevereiro. O Sr. JP apresentou as explicações dadas pelo condómino relativamente ao seu atraso no pagamento. A esposa do Sr. CD expressou a sua insatisfação relativamente às explicações dadas pelo Sr. JP”.
» Na lista de presenças da Assembleia de Condóminos de 16 de janeiro de 2015, anexa a ata 61, consta o nome do condómino CD, 4ºD, 4º-A, permilagem 41,67%.
» Na lista de presenças da Assembleia de Condóminos de 25 de Fevereiro de 2016, anexa a ata 62, consta o nome do condómino CD, 4ºD, 4º-A, permilagem 41,67%.
» Na lista de presenças da Assembleia de Condóminos de 14 de Abril de 2016, anexa a ata 63, consta o nome do condómino CD, 4ºD, 4º-A, permilagem 41,67%.
Apreciando.
Improcede a pretensão dos apelantes por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, o aditamento de factos complementares – consoante já visto supra – teria de passar pelo crivo do Artigo 5º, nº2, al. b), não estando demonstrado o processamento aí exigido.
Em segundo lugar, a presença dos réus em assembleias de condóminos e o pagamento de condomínio pelos réus já consta nos factos provados 23, 24, 30, 48, 52, 54 e 58, sendo que o aditamento dos factos ora em causa nada de útil, relevante e operativo, aditaria a tais factos, tanto mais que os factos já provados são anteriores aos que agora os réus pretendem aditar. Consoante se verá já no capítulo seguinte, as condutas dos réus traduzidas no pagamento do condomínio e na presença em reuniões da assembleia poderão ter alguma relevância na aferição da inversão do título da posse mas, para esse efeitos, os factos já provados são suficientes e mesmo anteriores àqueles cujo aditamento é pretendido.
Termos em que não se aprecia a pretensão , em observância dos princípios da utilidade e da economia processual (cf. supra).
Aquisição da fração por usucapião (conclusões 39 a 44).
Os apelantes sustentam que adquiriram a fração autónoma por usucapião uma vez que: em 1991, iniciaram posse sobre a mesma na sequência da tradição; desde março de 2008, contribuem para as despesas do condomínio, constando em atas que são proprietários; têm a posse pública, pacífica, de boa fé e de forma ininterrupta há mais de 30 anos.
Não lhes assiste razão.
O caso em apreço tem afinidades com muitos casos já decididos no Supremo Tribunal de Justiça , sendo a jurisprudência do STJ bastante clara e taxativa quanto às circunstâncias em que pode ocorrer a aquisição da fração por usucapião, na sequência de contrato-promessa de compra e venda com tradição da coisa.
Assim:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.9.2008, Azevedo Ramos, 08A1988:
I – A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respetivo negócio.
II – O contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é suscetível de transferir a posse ao promitente comprador.
III – Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração da escritura de compra e venda, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário.
IV- Os poderes que o promitente comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, nem paga a totalidade do preço, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente adquirente perante o promitente alienante.
V – A posse em nome próprio do promitente comprador pressupõe a prova da inversão do título da posse em que aquele se encontrava, que terá de ser efetuada por oposição aos promitentes vendedores e levada ao conhecimento destes, em virtude da posse em nome próprio não ter sido originariamente conferida aos autores.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.9.2010, Urbano Dias, 1618/04:
I – A simples ocupação de um prédio, por virtude da celebração de um contrato-promessa não é, de per se, suficiente para se possa falar numa situação de verdadeira posse, a menos que, entretanto, tenha havido inversão do título de posse, facto que acarreta, a favor do promitente-comprador, o início da contagem do prazo necessário para a verificação da usucapião.
II – Para que se possa falar, com legitimidade, em inversão do título de posse, há de o detentor tornar diretamente conhecida, junto da pessoa em cujo nome possui, a sua intenção de atuar como titular do direito.
 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.10.2033, Prazeres Beleza, 420/06:
I - A tradição da coisa que, por vezes, acompanha a celebração dos contratos-promessa de compra e venda não transmite, para o promitente-comprador, a posse correspondente ao direito de propriedade, que só após a celebração do contrato definitivo ingressará na esfera jurídica respetiva.
II - Não obstante, tal não impede a eventual ocorrência de uma situação de inversão do título da posse (art.º 1265.º do CC).
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.3.2014, Nuno Cameira, 3325/07:
III -Quem exerce a posse em nome alheio só poderá adquirir o direito de propriedade se entretanto ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos art.ºs 1265.º e 1290.º do CC.
IV - A eficácia da oposição referida no art.º 1265.º do CC depende da prática de atos inequivocamente reveladores de que o detentor quer atuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa.
V - A oposição deve, além disso, ser dirigida contra a pessoa em nome de quem o opositor detinha a coisa e tornar-se dela conhecida.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2029, Lima Gonçalves, 1565/15:
V - O contrato promessa de compra e venda não é suscetível, só por si, de transmitir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, numa situação de mero detentor ou possuidor precário.
VI - A inversão do título da posse tem de traduzir-se, para se eficaz, em circunstâncias excecionais que permitam considerar que na situação o promitente comprador ultrapassou a mera detenção do imóvel, que alteram a normal situação de detenção, decorrente da simples tradição, convertendo-a em verdadeira e própria posse.
VII - No caso em apreço, verificam-se as circunstâncias excecionais referidas em VI, perante o seguinte quadro factual: (i) o preço convencionado foi pago integralmente, por exigência dos promitentes vendedores; (ii) foi acordada a ocupação imediata da parcela de terreno por parte do promitente comprador; (iii) há mais de vinte anos que o promitente comprador executou um muro na parte sobrante do prédio e aí colocou um portão, como acordado.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.3.2025, Lopes do Rego, 3566/06:
1. O contrato promessa de compra e venda , embora acompanhado de tradição da coisa prometida vender, mas sem que se mostre integralmente pago o preço devido pela transação, não é, em regra, suscetível de transmitir a posse ao promitente comprador que, normalmente, não se verificando circunstâncias excecionais, adquire o corpus possessório, mas não o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor.
2. A posse em nome próprio do promitente comprador pode, porém, resultar de superveniente inversão do título da posse, a qual pressupõe a sua efetivação por oposição à contraparte, levada ao conhecimento desta, em termos de poder razoavelmente inferir-se uma oposição séria ao seu direito de propriedade.
E na fundamentação:
«No caso dos autos - e perante a matéria factual apurada pelas instâncias - não se verificam as referidas circunstâncias excecionais que pudessem reconfigurar ou alterar a normal situação de detenção da promitente compradora, decorrente da simples tradição do imóvel, convertendo-a em verdadeira e própria posse. Assim:
(…)
- o preço convencionado nunca foi integralmente pago, uma vez que a fração do valor global estipulado (925.000$00) que excedia o montante sinalizado (600.000$00) apenas deveria ser paga no ato da escritura, que nunca se realizou;
- a mera circunstância de a A. habitar e fazer da casa um uso normal, expresso nomeadamente na celebração de contratos de fornecimento de água e energia, sendo tal uso conhecido dos promitentes vendedores, que concederam a «traditio», é obviamente irrelevante para operar a inversão do título da posse;
- do mesmo modo, a simples circunstância de a mesma A. participar em assembleias de condomínio e pagar determinadas quotas, relativas às despesas de administração, é insuficiente para preencher adequadamente o referido conceito de inversão do título – desde logo, por se ignorar se tais factos, processados no domínio das relações internas com o condomínio, alguma vez foram levados ao conhecimento do outro contraente, em termos de tal poder indiciar uma oposição reptícia à qualidade em que detinha o imóvel;
- tal como não constitui base factual suficiente para a inversão do título da posse a mera circunstância de o público em geral e os outros condóminos inferirem do uso continuado do prédio um direito de propriedade por parte da A.; ou a mera circunstância de esta ter adquirido uma simples convicção psicológica de que seria possuidora ou proprietária, sem que tal convencimento tivesse sido expressado, comunicado e claramente oposto à contraparte;
- carece manifestamente de densidade factual, para efeitos de inversão do título, a simples realização de obras de manutenção e reparação interiores: na verdade, a única situação que poderia ter algum relevo para o preenchimento da figura da inversão do título seria a realização de obras que tivessem alterado ou melhorado estrutural ou substancialmente o local utilizado pela A. como sua habitação, no caso de as mesmas transcenderem claramente -e de forma inquestionável - o plano da utilização e fruição de um imóvel no quadro de um simples direito pessoal de gozo, demonstrando-se ainda o conhecimento efetivo da sua realização, dimensão e significado provável pelo promitente vendedor.
Deste modo, assentando originariamente o direito da A. numa situação de detenção do imóvel e não estando demonstrados os pressupostos da figura da inversão do título da posse, nos termos do art.º 1265º do CC, tem naturalmente de improceder o pedido subsidiário de aquisição originária do direito de propriedade com base em usucapião.»
Esta jurisprudência é inteiramente clara, pertinente e aplicável ao caso em apreço.
Na sequência de contrato-promessa de compra e venda meramente verbal, os réus vivem na fração dos autos desde janeiro de 1991 ( factos 3, 3-A e 3-B). Tendo havido tradição da fração autónoma, os réus passaram a ser meros detentores da mesma, tendo o corpus, mas não o animus da posse nos termos do direito de propriedade (Cf. Artigos 1251º e 1253º, als. a) a c), do Código Civil).
Nunca foi celebrada escritura de compra e venda (5) nem os réus demonstraram o valor ajustado para a compra e o seu efetivo pagamento (16, 17).
Cabia aos réus demonstrar a inversão do título da posse, assumindo expressamente perante a autora que deixaram de ser meros detentores para passarem a ser possuidores nos termos do direito de propriedade, sendo que, só após tal inversão, se pode contar o prazo para aquisição de usucapião.
«Na inversão do título, o detentor exerce já o poder de facto sobre a coisa, mas exerce a posse em nome de outrem, o verdadeiro possuidor. Existe, portanto, uma causa que lhe permite exercer o corpus sobre a coisa, sem, no entanto se poder falar em posse. (…) Sucede que, essa causa vai ser alterada, mostrando a intenção do antes detentor, agora possuidor, em agir como titular do direito. Existe, pois, um facto que permitem, sem margem para dúvidas, concluir pela aquisição de animus que, assim, se junta ao corpus já existente. Apenas a partir desse momento poderá começar a contagem do prazo para a usucapião (artigo 1290º)» (Henrique Sousa Antunes (Coord.), Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica Editora, 2021, pp. 54-55). É necessária a prática de um ato concludente que signifique, inequivocamente, a afirmação de um direito próprio pelo detentor, diverso do até aí exteriorizado por ele (cf. José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, pp. 590-591). «Em termos práticos, a jurisprudência tem exigido, na inversão do título, uma atuação mais enérgica do que num simples apossamento. Bem se compreende: não basta o mero controlo da coisa pois isso já o interessado tinha, como mero detentor. Temos de presenciar uma atuação efetiva contra o possuidor - isto é, sendo esse o caso a pessoa em nome da qual se possuía – de tal modo que, com publicidade, que também aqui deverá ser exigida, seja cognoscível, pelos interessados, a verdadeira posse em nome próprio» (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XIII, Direitos Reais, Almedina, 2022, pp. 664-665).
Na verdade, consoante explicitado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.3.2025 acima citado longamente, não relevam para efeitos de integrar a inversão do título da posse atos consistentes em: efetuar contratos de água, luz e gás em seu nome (22); singelo pagamento de quotas de condomínio ( 23, 54, 58) e outras despesas afins (24); realização de obras de beneficiação e conservação (25); a mera identificação dos réus como condóminos perante a administração de condomínio e presença em assembleia de condóminos ( 30, 47, 48, 52).
A participação em assembleias de condóminos e pagamento de quotas (atos atinentes a relações internas com o Condomínio) só poderão equacionar-se como atos integrativos de inversão do titulo da posse se, adicionalmente, estiver provado que a assunção desses deveres jurídicos do proprietário foram levados ao conhecimento do promitente-vendedor como expressão da vontade do detentor em alterar o título da sua posse, passando a comportar-se como se proprietário fosse. Ora, com relevância a este propósito, só está provado que, desde maio de 2012, a administração do condomínio é exercida pela Loja do Condomínio, Lda., tendo a A. tomado conhecimento que o R. CD se identificava como condómino, pelo menos, desde 2019. Assim, admitindo-se que se possa divisar aqui um ato concludente de inversão do titulo da posse, só a partir de 2019 se iniciou o prazo da posse relevante para aquisição por usucapião, não se tendo completado o prazo necessário (cf. Artigos 1290º e 1296º do Código Civil). Mesmo que, na mesma senda, se interpretasse os anteriores factos provados sob 23 e 47 (pagamento do condomínio a partir de março de 2008 e nalguns anos subsequentes, presumindo-se o seu conhecimento coetâneo pela autora, não estando este autonomamente demonstrado) e participação dos réus em assembleia de condóminos em dezembro de 2009 e nalguns anos subsequentes, o prazo de quinze anos para a aquisição por usucapião não estaria ainda completo à data da dedução do pedido reconvencional (16.9.2021) (cf. Artigos 1296º e 1260º, nº1, do Código Civil).
Termos em que se mantém a improcedência da reconvenção.
A existência de caso julgado quanto à indemnização (conclusão 45).
Entendem os apelantes que a decisão o que condenou os Réus numa indemnização por danos patrimoniais, a contar desde 13 de setembro de 2013, viola e faz errada interpretação do disposto 577º/i) do CPC, uma vez que houve já sentença proferida e transitada em julgado, a qual não admitiu o pedido formulado pela então Autora e Exequente, assente no exercício de um direito de propriedade que o Tribunal não admitiu e do qual a Recorrida, na altura, não recorreu.
Apreciando.
A argumentação dos apelantes improcede.
Na ação executiva para pagamento de quantia certa, a ora autora/exequente invocava que estavam em dívida rendas que totalizavam € 56.852,40 (facto 7), sendo que os embargos foram julgados procedentes. Trata-se de pedido e causa de pedir distintos dos invocados nesta ação, os quais assentam na privação das utilidades económicas da fração (cf. Artigos 13º e seguintes da petição) e não em dívidas de rendas em sentido estrito.
Recurso subordinado.
A apelada apresentou recurso subordinado, sustentando que os factos não provados sob (ii) (“Que o valor da “renda” inicialmente acordada fosse de € 835,50 e a Autora esteja a deixar de auferir, agora, € 1.200 mensais pela ocupação da fração autónoma pelos réus”) e (iii) (“que a Autora pretendesse vender a fração autónoma na sequência do seu divórcio”) deverão ser revertidos para provados, devendo o valor da indemnização pela ocupação da fração ser fixado em € 1.200, sendo desnecessária a liquidação em execução de sentença.
Apreciando.
O tribunal a quo justificou a resposta de não provado a tal factualidade assim:
«Do mesmo modo, a A. não logrou provar, de modo algum, o valor da renda acordada com os RR., sendo certo que apenas a testemunha AMP aludiu ao facto de ter visto o livro de recibos do pai da A. onde constaria um valor que se situava entre os € 800 e os € 900, não tendo as restantes testemunhas corroborado que a renda fosse no valor invocado de € 835,50; tão pouco ficou provado, sequer por presunção, que a A. esteja a deixar de auferir, agora, € 1200,00 (mil e duzentos euros) mensais pela ocupação da fração autónoma pelos RR.., ou que, por fim, pretendesse vender aquela fração, não tendo sido produzida nenhuma prova nesse sentido– cf. factos não provados (ii) e (iii).»
Inexistem razões atendíveis para nos apartarmos da convicção formulada pelo tribunal a quo.
Em primeiro lugar, conforme já foi enunciado supra, está fora da discussão nestes autos a existência de um contrato de arrendamento com os valores inerentes de renda, com ou sem atualizações.
Em segundo lugar, o segmento do depoimento da testemunha AMP em causa é perfunctório e pouco atendível, sendo que para a prova do valor da renda seria essencial a corroboração por prova documental (inexistente). A testemunha JF verbalizou que fazia os recibos das rendas do pai da autora, mas não achegou a precisar valores e, muito menos, fez qualquer estimativa do que seria o valor atual de uma renda da fração dos autos.
Termos em que improcede o recurso subordinando, subsistindo a condenação a liquidar em execução de sentença.
Mantendo-se os pressupostos da procedência da ação de reivindicação e de condenação em indemnização por danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença, bem como a improcedência da reconvenção, há que manter o dispositivo adotado pela primeira instância.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, (...) João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedentes a apelação e o recurso subordinado, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas da apelação e do recurso subordinado, na vertente de custas de parte, pelos réus e autora, respetivamente (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 11.3.2025
Luís Filipe Pires de Sousa
João Novais
Carlos Oliveira

_______________________________________________________
[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21, de 29.10.2024, Pinto Oliveira, 5295/22. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).
[3] Cf.: Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.4.2012, Beça Pereira, 219/10, de 14.1.2014, Henrique Antunes, 6628/10, de 27.5.2014, Moreira do Carmo, 1024/12; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.10.2019, Paulo Reis, 582/17; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.1.2020, Tomé Gomes, ECLI:PT:STJ:2020:4172.16.4T8FNC.L1.S1., de 24.9.2020, Graça Trigo, 127.16, ECLI, de 19.5.2021, Júlio Gomes, 1429/18, de 14.7.2021, Fernando Baptista, 65/18, de 25.10.2022, Lima Gonçalves, 721/18, de 3.11.2023, Mário Morgado, 835/15; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14.7.2020, Rita Romeira, 1429/18, de 12.4.2021, Eusébio Almeida, 6775/19; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.10.2022, Castelo Branco, 7241/18; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.5.2023, Albertina Pedroso, 1996/19.